A Querela do Humanismo

Louis Althusser


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Podemos agora voltar a Marx, para ver o que adveio de seu encontro com Feuerbach.

Feuerbach declarava-se "comunista" (reino do amor entre os homens reconciliados entre si pois reconciliados com sua Essência). Dava aos Jovens-hegelianos meios para sair, aparentemente, do impasse teórico no qual os havia jogado a história, ao propor-lhes uma teoria que dava a razão da Desrazão existente(b) (contradição entre o fato e o direito, entre o estado do mundo e o Homem). Dava, magicamente, controle sobre a Desrazão existente, da qual mostrava a necessidade como Essência alienada do Homem. Ele anunciava, em acentos patéticos e proféticos, os Tempos Novos da Liberdade e da Fraternidade Humanas.

Compreende-se a palavra de Engels, evocando, cinqüenta anos mais tarde, essa imensa esperança de ter enfim ascendência sobre o mundo: "Nós fomos todos feuerbachianos",(26) e eles o foram no entusiasmo. A história das obras de juventude de Marx, entre 1842 e 1845, é a história dessa esperança e desse entusiasmo; e a seguir, depois de 1845, a história de uma amarga desilusão e de uma ruptura sem retorno.

Gostaria de escandir os momentos essenciais dessa história pelo simples comentário de algumas frases-chave, que servem de álibis a todos os nossos modernos "humanistas".

1) Antes dos Manuscrits de 1844, Marx é, teoricamente falando, feuerbachiano, e sem nenhuma restrição. "Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora a raiz do Homem é o Homem"(27) Essa frase resume toda a sua posição.

Ao que se objeta: mas Marx não é feuerbachiano, pois ele fala não apenas da religião, mas também da política, do direito e do Estado, dos quais Feurbach fala pouco. E joga-se aos nossos pés essa famosa frase da Critique de la philosophie du droit de Hegel (1843) que diz: "O Homem não é um ser abstrato, agachado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade".(28)

Respondo: essa frase é cem por cento feuerbachiana. Feuerbach não faz nada, ao longo de Uessence du christianisme, além de descrever essa equação: o homem é o mundo do homem, a Essência do Homem é o mundo dos seus objetos, em função mesmo da relação especular: Essência do Sujeito (Homem) = objetivação dessa Essência nos seus Objetos, no seu mundo humano, que compreende o Estado, ao lado da religião e de muitas outras coisas ainda.

Feuerbach não diz portanto, em princípio, nada além do que Marx repete em 1843: o homem não é um ser abstrato (clichê feuerbachiano), mas concreto. Se querem conhecer a essência do homem, procurem-na onde ela está: nos seus Objetos, no seu mundo. Apenas aqueles que não leram Feuerbach, mas fazem dele uma pequena idéia confortável aos seus fins "demonstrativos", podem pensar que há aí, não digo nem uma revolução teórica, mas a sombra da sombra de uma novidade teórica.

Ao que se objeta: mas Feuerbach não colocava, como faz Marx, a tônica sobre a sociedade, sobre o direito, sobre a política e logo sobre o proletariado. Essa objeção introduz uma questão de princípio, sobre a qual devemos estar perfeitamente esclarecidos.

O que há de realmente novo nos textos de Marx desse período, são interesses políticos e uma tomada de posição política, da qual Feuerbach era bem incapaz. Mas essa tomada de posição nova concerne a evolução política de Marx: ela não exerceu, até o momento, nenhuma repercussão sobre sua posição teórica, da qual ela não transforma nenhum termo. Essa tomada de posição política nova tem, é verdade, por efeito modificar o ponto de aplicação do Humanismo teórico de Feuerbach. Passa-se da religião à política. Mas o que importa, do ponto de vista teórico, isto é, do único ponto de vista decisivo quando se pretende fazer história das transformações de uma teoria, não é que se submeta um objeto a mais a um tratamento teórico determinante, portanto a uma teoria determinada. O que importa é esse tratamento teórico, a própria teoria. Em certos casos, tratar um objeto a mais pode provocar mudanças na teoria, mas deve-se então poder mostrá-las, e demonstrar que se trata efetivamente de mudanças reais na teoria, e não somente uma simples mudança do objeto ao qual se aplica uma mesma teoria. Essas mudanças na teoria, ninguém pôde mostrá-las em 1843, e não por acaso. Entramos então na lei comum. Uma teoria não muda mais de natureza ao tratar um objeto suplementar do que um capitalista se torna socialista ao acrescentar aos seus aviões a produção de geladeiras.

Na Critique de la philosophie de l'État de Hegel, como em La question juive, Marx não faz nada mais do que estender da religião à política uma mesma teoria: a teoria feuerbachiana do Homem e da alienação. Que essa investigação produza novos efeitos (distinção dos direitos do homem e dos direitos do cidadão, crítica do Estado como existência alienada da essência genérica do homem, e mesmo teoria do proletariado como existência da alienação da Essência Humana como Essência Inumana), quem o negará? Resta que esses novos efeitos são, em última instância, suspensos à teoria humanista de Feuerbach, que eles não modificam nem um pouco. Por exemplo, Marx trata o Estado e a política, ele próprio o reconhece, como o "céu" da existência humana,(29) isto é, nas próprias categorias da teoria da religião feuerbachiana. E mesmo quando fala da revolução, ele a concebe nos termos feuerbachianos da desalienação: o reconhecimento público de um sentido desconhecido pois alienado, portanto como a "confissão" do que era silenciado.

Após ter proclamado, na célebre carta a Ruge, de setembro de 1843;

"Nada nos impede então de reatar nossa crítica à crítica da política, à tomada de partido na política, portanto a lutas reais, e de identificá-la",

Marx diz claramente qual é o sentido dessa crítica:

"Nós podemos exprimir a tendência do nosso jornal(30) em uma só fórmula: auto-explicação (filosofia crítica) de nossa época sobre suas lutas e suas aspirações. Aí está uma tarefa para o mundo e para nós. Só poderia ser a obra de forças reunidas. Trata-se de uma confissão, nada mais. Para compensar seus pecados, a humanidade deve apenas declará-los tais como são"(31) (sublinhado por Marx).

"Reatar nossa crítica a ...lutas reais" é o efeito de uma tomada de posição política nova. Que esse passo na política possa trazer em si conseqüências teóricas, que, um dia, poderão ser tomadas em consideração, é para nós, agora, uma certeza. Mas o fato é que essas conseqüências teóricas possíveis ficam totalmente inexprimidas nas posições teóricas adotadas por Marx no mesmo momento. Elas não mudam nem um pouco essas posições teóricas. Não nos safaremos através do argumento de todos os apologéticos que nos explicam à saciedade que essas transformações teóricas estão "em germe" na expressão da mudança da posição política de Marx, e que em suma faltou apenas a esse "germe" não ter crescido, isto é, não ter encontrado sua expressão teórica explícita. Pois, e deve-se chegar até aí, essas mudanças na posição política de Marx não levaram a nenhuma mudança nas suas posições teóricas porque as posições teóricas de Marx o impediam radicalmente de, tão-somente, suspeitar das conseqüências teóricas possíveis contidas "em germe" na sua mudança de posição política. O que, para nós, que sabemos o que Marx aproveitou mais tarde, é "germe" de uma possível transformação teórica não é para Marx absolutamente nada. A teoria que o domina repele sem consideração tudo o que poderia, mesmo de muito longe, afetá-lo: ela reduz a nada o que, para nós, é "germe" ou possível. Ou melhor, ela não precisa destruí-lo: ela é tal que para ela nada se passa. É a razão pela qual, depois de ter evocado essas "forças reais", Marx pode tranqüilamente voltar a nos servir, sem nenhuma restrição, nem a sombra de uma hesitação, sua definição da crítica revolucionária como confissão pública dos pecados da Humanidade pela Humanidade. Na história política de Marx, passou-se algo de importante: sua adesão a essas forças reais às quais ele planeja "reatar" e identificar sua crítica. Na história teórica de Marx, nada ainda se passou: nada portanto se passa.

2) A situação muda seriamente nos Manuscritos de 1844. A posição política de Marx é então abertamente declarada: ele é comunista. Mas sua posição teórica também é marcada por um evento realmente novo e importante.

Esse evento não é, como se costuma acreditar, o "encontro" com a Economia Política. Pois, desse ponto de vista, caímos de novo no caso precedente. A teoria feuerbachiana do Homem e de alienação é estendida a um objeto a mais: depois da religião e da política, a economia. Por certo, a economia não é o primeiro objeto a aparecer. Feuerbach falava, em trechos rápidos, mas falava assim mesmo, do Estado e da política. Ele efetivamente falava da economia, pode-se dizer, a propósito do povo judeu; mas era para dizer banalidades sobre o reino das "necessidades práticas", sobre o homem judaico.(32) A Economia Política que "acrescenta-se" aos antigos objetos nos Manuscrits de 1844, não é mais uma brincadeira: é a Economia Política de Smith e de seus sucessores (menos Ricardo: omissão sintomática), enfim, dos Economistas, e com ela todas as suas categorias: capital, trabalho, salário, lucro, renda, divisão do trabalho, mercado, etc.

No entanto, como já foi mostrado,(c) mas deverá ser retomado, Marx consegue, nos Manuscrits de 1844, essa prodigiosa operação teórica de criticar as categorias dos Economistas e a própria Economia Política, submetendo-os aos princípios teóricos do Humanismo feuerbachiano: O Homem e a alienação. A relação especular Essência do Homem = Essência dos seus Objetos como objetivação de sua Essência, típica do Humanismo feuerbachiano, domina toda a teoria do trabalho alienado. No trabalho, o homem objetiva sua essência (suas "forças essenciais", suas "forças genéticas") que se exterioriza sob a forma dos produtos de seu trabalho. Por certo, lidamos aqui com uma produção de objetos reais, materiais, e não mais com objetos espirituais, como Deus e o Estado. Mas o princípio de alienação permanece o mesmo. Ele atua no seio da relação especular: operário (sujeito) = seus produtos (seus Objetos), onde o Homem = seu mundo de objetos. Os efeitos que Marx tira dessa aplicação-extensão da teoria feuerbachiana aos objetos da produção econômica e às categorias dos Economistas (que ele tem então por categorias da economia, sem, um só instante, recolocá-las em questão, como o fará em Le Capital) são certamente novos em relação aos discursos anteriores sobre a religião e a política. Mas esses efeitos não tocam os princípios da teoria feuerbachiana do Homem e da alienação, da Essência Genérica do Homem (Marx "reencontra-a", por exemplo, na divisão do trabalho...), por uma boa razão: eles são seu produto direto e necessário. O "encontro" com a Economia Política (ou melhor, com as categorias dos Economistas) não muda, portanto, nada no dispositivo teórico de Feuerbach.

O evento teórico específico dos Manuscritos de 1844 é de uma outra natureza. Eu o resumo em uma expressão: é a intervenção de Hegel em Feuerbach.

Digo-o bem: em Feuerbach, isto é, no interior do campo teórico definido pelos conceitos fundamentais de Feuerbach, que permanecem intactos, e que essa intervenção não modifica, pois ele ocorre no interior do campo teórico que eles definem. Vejamos isso mais de perto.

O que é que, de Hegel, é introduzido em Feuerbach?

Uma parte daquilo que Feuerbach havia suprimido de Hegel, e uma parte importante: a história como processo dialético ou processo de alienação. Essa introdução da história tem por efeito teórico modificar sensivelmente as formas de exercício da categoria feuerbachiana da alienação.

Qual é o campo teórico feuerbachiano no qual a história, no sentido hegeliano, encontra-se introduzida? O campo da relação especular Sujeito = Objeto, ou Essência genérica do Homem = objetos do mundo humano como objetivação da Essência do Homem. Esse campo teórico permanece intacto: ele é dominado por um Sujeito, o Homem, cujas forças essenciais objetivam-se na alienação de seus objetos (por excelência, nos Manuscrits..., em virtude daquilo que acabou de ser dito do deslocamento da política sobre as categorias dos Economistas: nos produtos do trabalho humano.)

Conhecendo aquilo que, de Hegel, é assim introduzido no interior do que reconhecemos como o campo teórico de Feuerbach, podemos então enunciar claramente o resultado dessa intervenção. A História hegeliana, como processo dessa alienação, uma vez incluída no campo teórico especular Sujeito (homem) = Objeto (produtos do mundo humano em suas diferentes esferas: econômica, política, religiosa, moral, filosófica, artística, etc.) reveste inevitavelmente a forma seguinte: História como processo de alienação de um sujeito, o Homem. A História dos Manuscrits de 1844 é, no sentido estrito dessa vez, para retomar uma fórmula da qual já dissemos que não poderia ser hegeliana, "a história da alienação (e de desalienação) do homem". Essa fórmula exprime rigorosamente o efeito de intervenção de Hegel em Feuerbach, pois o conceito hegeliano da história como processo de alienação (ou processo dialético) é teoricamente submetido à categoria não-hegeliana de Sujeito (homem). Lidamos com aquilo que não possui nenhum sentido em Hegel: uma concepção antropológica (ou humanista) de história.

Esse efeito representa uma modificação considerável em relação ao esquema feuerbachiano anterior. A história entra nele, e com ela a dialética (a negação da negação, o Aufhebung e a negatividade funcionam aí à vontade). Com a história e a dialética entra aí também o conceito hegeliano de trabalho, que realiza, aos olhos de Marx, o encontro teórico miraculoso de Hegel e da Economia Política sob a bênção da feuerbachiana Essência do Homem. Marx celebra a unanimidade dessa Conferência de Cúpula do Conceito em termos comoventes na sua ingenuidade ou, se preferirmos, na sua profundidade. O que fez a Economia Política (entenda-se os Economistas) moderna? Ela reconduziu, diz Marx, todas as cateogorias econômicas à sua essência subjetiva: o trabalho. O que fez de extraordinário Hegel (na "Phénoménologie")! Ele, diz Marx, "concebeu a essência do homem como trabalho."(33) Sujeito, Homem, Trabalho. Sujeito = Homem = Trabalho. O Homem é o sujeito da história. A essência do Homem é o trabalho. O Trabalho não é nada mais do que o ato de objetivação das Forças Essenciais do Homem nos seus produtos. O processo de alienação do homem exteriorizando suas forças essenciais em produtos através dos trabalho é a História. Tudo entra assim em Feuerbach, por uma boa razão: não se saiu dele um só instante.

Nada espantoso, pois é Feuerbach que convida. A Economia Política e Hegel são seus convidados, ele os recebe, apresenta-os um ao outro, explicando-lhes que são da mesma família (trabalho), sentam-se e a conversa começa: na casa de Feuerbach.

Seria decente atrapalhar essa reunião de familia chamando a atenção para a necessidade de um jogo de palavras para identificar o conceito do trabalho de Smith à "subjetividade", ao Homem como Sujeito, para fazer de Smith "o Lutero da Economia Política"?(34) Ao observar que, se o conceito de trabalho consta em Hegel, jamais declara-se a essência do Homem, por uma boa razão (supondo que se encontre em Hegel uma definição da essência do Homem, ela o declara "animal doente" e não "animal trabalhando"): o trabalho sendo um momento do processo de alienação do Espírito, ele não é, mais do que o Homem, a origem ou o sujeito da História. Mas pouco importa. Não são os jogos de palavras que contam, mas as funções teóricas que eles exercem. Esses jogos de palavras têm por função selar a união da Economia Política e da dialética hegeliana em uma teoria Humanista de História, como alienação (e desalienação) do Homem, Sujeito da História.

Segue-se o mais extraordinário texto de ideologia teórica que Marx nos legou, de uma densidade e de um vigor excepcionais: seu único texto hegeliano (onde a dialética hegeliana mais pura exerce-se alegramente sobre as categorias da Economia Política), mas hegeliano em Feuerbach, o que significa, Feuerbach sendo Hegel invertido, o único texto da "inversão" marxista de Hegel.

Querendo-se ter uma idéia daquilo que foi chamado de Humanismo teórico, com o qual Marx rompeu, deve-se então voltar a Feuerbach. Querendo-se compreender até onde se estende em Marx o reino do Humanismo teórico de Feuerbach, deve-se reconhecer que os Manuscritos de 1844 são, contrariamente às opiniões interessadas que correm em certos meios, o texto onde essa concepção culmina e triunfa na sua maior potência, sendo ela capaz de submeter à sua lei a dialética hegeliana e a Economia Política em pessoa.

Não nos livraremos tão facilmente, com truques de mágica teóricos, dessas constatações elementares, mas de grande conseqüência. Em particular, devem-se parar, uma vez por todas, de contar-nos histórias sobre a ruptura de Marx com a antropologia especulativa,(35) fingindo acreditar que se designa com isso a teoria de Feuerbach. Pois a ruptura com a antropologia especulativa não é o feito de Marx, mas o de Feuerbach, que do início ao fim, não pára de louvar os méritos do homem concreto, real, sensível, total, erguido sobre seus pés, exercendo suas forças, etc: oposto ao homem abstrato, especulativo, etc. A verdadeira questão não é a da especulação (não se vai muito longe ao denunciar a especulação: livramo-nos de alguns mitos, mas isso não nos dá, como tal, nenhum conhecimento; é então que começam a ser introduzidas as questões sérias), mas a da antropologia: expressão que dissimula a empresa ideológica, que foi abordada sob o termo de Humanismo teórico (a História como processo de alienação de um Sujeito, o Homem), e seus requisitos filosóficos correspondentes.

Sob esse ângulo, apesar de todo o "concreto" que eles contêm, apesar de toda "riqueza" "humana" de suas análises, os Manuscrits de 1844 são, teoricamente falando, um dos mais extraordinários exemplos de impasse teórico total de que dispomos. Se quisermos guardar de Gaston Bachelard a tese de que alguns conceitos, ou certas posições de problema, podem constituir "obstáculos epistemológicos", bloqueando todo ou parte do desenvolvimento de uma teoria, e se examinarmos desse ponto de vista a proposição que resume os Manuscrits... (a história é o processo de alienação de um Sujeito, o Homem), chegamos a um balanço bastante edificante. Alienação, Sujeito, Homem: três conceitos, três "obstáculos epistemológicos". Três conceitos dos quais devemos nos livrar para deixar a via aberta ao único conceito positivo prisioneiro desse dispositivo impressionante, o conceito de processo (que, livre do Sujeito e do Homem, tornar-se-a então processo sem sujeito). Admitamos que uma proposição composta de quatro conceitos, dentre os quais três são obstáculos epistemológicos, representa uma concentração ideológica e um "bloqueio" pouco ordinários. Justamente, é o extraordinário da tentativa de Marx nos Manuscrits de 1844 que constitui o seu interesse, e também a sua natureza crítica.

Não quero com isso dizer que os Manuscrits... possuem o começo de um valor crítico objetivo. Quero dizer que eles são a expressão de uma situação crítica de uma extrema gravidade, e que essa situação crítica do Humanismo teórico é provocada pela própria tentativa de Marx, pela sua vontade de pensar, até o fim, a unidade milagrosa desse encontro a três: Hegel e a Economia Política em Feuerbach. Oficialmente, tudo se passa às mil maravilhas nessa Conferência de cúpula: Irmão, eis teu Irmão, diz o Pai comum, tomem seus lugares, e cortemos o pão do Conceito. Conferência do Reconhecimentos mútuo e da Unidade, e acordo sobre a Revolução mundial. Na realidade, esse encontro "unitário" não pode ser senão um encontro explosivo. Pois, como vimos, tudo é falsificado. As identidades são falseadas, o Irmão não é o Irmão. Quanto ao Pai, que parece tudo dominar, na realidade, nem mesmo ele consegue manter-se erguido. No momento mesmo onde Marx sustenta este extraordinário Discurso da Unidade que são os Manuscrits..., até a própria prodigiosa tensão teórica de seu discurso prova que se trata do discurso não da crítica, mas da crise. Que beleza: não pode ser verdade. Mas esse encontro e esse impossível Projeto eram necessários, para que estoure, irremediável, a crise, que desta vez abala tudo, até às raízes. Parodiando a célebre frase, pode-se dizer: não é mais uma crítica, mas a crise radical. Ser radical, é tomar as coisas pela raiz: a raiz da crise, é a crise do Homem.

Depois dos Manuscrits..., acabou-se com Feuerbach. Será necessário tempo, muito tempo. Mas acabou. O Humanismo teórico mostrou o que ele era: uma impostura, nem mesmo uma teoria, um artifício ideológico. Sobre o plano da teoria, nada: vento. Ou melhor, um sério obstáculo à teoria, o qual deverá ser varrido. Sobre o plano da ideologia: um desejo, desarmado, mas perigoso. O desejo da pequena-burguesia, que bem gostaria de uma mudança, mas por nada no mundo gostaria que essa mudança se chame, ou melhor, seja a Revolução. O Humanismo Teórico (ou tudo que a ele se assemelhe) é o disfarce teórico da ideologia moral pequeno-burguesa recém-chegada. Pequena-burguesia no pior sentido da palavra: contra-revolucionária.

3) A ruptura tem início. Levará tempo para que seja, como se diz, "consagrada". Pois uma coisa é a declaração de ruptura (que data das Thèses sur Feuerbach e de Uidéologie allemande), outra coisa é a sua "consumação". A "ruptura" será consumada passo a passo durante os longos anos que separam Uidéologie allemande de O Capital: no período escandido diferencialmente pelas mutações que geram o advento dos conceitos da nova ciência, e das categorias da nova filosofia que ela traz em si.

Ressaltemos, em um breve comentário, os momentos essenciais dessa escansão: a história da ruptura com o Humanismo Teórico.

As Thèses sur Feuerbach, por mais breves que sejam (algumas frases escritas apressadamente, mas bastante refletidas), mostram-nos o que advém, e como se passa o que advém.

Feuerbach é diretamente questionado, em pessoa, e sob dois ângulos, que (e este é um fenômeno novo) são, pela primeira vez, nitidamente distinguidos: o ângulo de sua concepção do Homem, e o ângulo de suas categorias filosóficas de base.

O Homem: lembremo-nos da VIª Tese:

"A Essência do Homem não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na sua realidade, ele é "o conjunto das relações sociais".

Essa pequena frase conheceu e ainda conhece a cada dia, na história do marxismo, o destino mais edificante e absurdo possível. Provocar-se-á escândalo ao declará-la obscena e ininteligível. Todo o mundo a tem por clara, e clara porque compreensível. Não somente Marx diz claramente que o homem não é abstrato, não é uma essência abstrata da qual os "indivíduos isolados" seriam os sujeitos (no sentido aristotélico), mas ele diz alguma coisa que "fala": a essência humana é o conjunto das relações sociais. Nós estamos em terra conhecida: em pleno materialismo histórico.

Basta, no entanto, comparar as interpretações um pouco precisas dessa frase para convencer-se de que ela não é nem um pouco clara; pior, que ela é, literalmente, incompreensível, e que ela o é por razões necessárias. Essas razões se devem ao fato de que Marx não podia enunciar o que ele tentava dizer, não somente porque ele não sabia ainda dizê-lo, mas também porque ele se proibia de dizê-lo, pelo simples fato de que ele começava sua frase pela expressão: a "essência do Homem...". Quando, desde a primeira palavra que se pronuncia, fecha-se com um gigantesco "obstáculo epistemológico" a via que se abre para nele se engajar, pode-se apenas patinar, ou fazer singulares desvios para contornar o obstáculo. Esses desvios estão inscritos nessa frase necessariamente incompreendida, porque incompreensível.

Exemplo, célebre este, pois dele encontramos traços no próprio Engels(36) (os paralelogramas de forças) e, literalmente, em Gramsci.(37) "A essência do homem é... o conjunto das relações sociais" foi lida e interpretada como segue: a essência de um indivíduo humano é composta pela soma das relações sociais que ele mantém na sociedade onde vive. O indivíduo está no ponto, é o ponto de encontro de "múltiplas relações sociais". Se vocês querem conhecer a essência do Sr. X, adicionem e recortem: relações familiares, profissionais, políticas, ideológicas, esportivas, ornitológicas, etc: Sr. X está na sua intersecção, como resultado. Não estou brincando: é esse tipo de categorias que professa toda uma parte da sociologia e da psicologia contemporâneas. Deixemos de lado o absurdo da interpretação. Ela é, no entanto, interessante, pois faz aparecer um dos sentidos que a denominação cobre: o sentido de indivíduo. O tipo de interpretação que acabei de citar puxa a VIª Tese no sentido do que nós chamaremos o problema da teoria da individualidade.

No entanto, fica claro que, na frase dessa VIª Tese, Marx tem uma coisa bem diversa em vista: um outro sentido, totalmente diferente, coberto, também ele, pela denominação Homem. Esse sentido questiona o que nós chamaremos o problema de teoria da sociedade e de História das sociedades.

Ora, Marx não diz: para fazer uma teoria da sociedade, deve-se considerar, na sua distinção, sua articulação e sua unidade "o conjunto das (diferentes) relações sociais" Marx diz: para fazer uma teoria "da essência do homem"... O bloqueio teórico está aí, em e desde essas primeiras palavras. Uma vez pronunciadas, não se pode mais dizer nada que tenha, ao pé da letra, o menor sentido. Para dar um sentido a essa frase teoricamente retorcida, deve-se fazer ao contrário o desvio que ela teve de fazer para ser simplesmente pronunciável. Esse desvio, ei-lo. Deve-se romper com Feuerbach, portanto com o que ele coloca na essência humana. Não basta dizer, como em 1843: o Homem é o mundo do Homem, a sociedade, o Estado. O mundo do homem não é a objetivação de sua essência, não são apenas simples Objetos, são realidades totalmente surpreendentes: relações, no seu "conjunto". No entanto, nessa mesma novidade, resta alguma coisa de Feuerbach: o que Feuerbach chamava a essência genérica do homem, o "conjunto" dos homens, do qual os Manuscrits de 1844 mostravam o funcionamento nas "relações" da divisão do trabalho e outras categorias práticas de Economia Política. É graças a esse conceito ausente de sua frase (o gênero humano) que Marx pode escrever essa impossível frase: "A essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado, mas o conjunto das relações sociais". A essência humana visa (já que ela evita o indivíduo) o problema da estrutura da sociedade, mas através do conceito feuerbachiano de gênero humano. Enquanto esse conceito de gênero humano, que é, ele também, um belo obstáculo epistemológico, não tiver sido liquidado, estaremos condenados às contorções de frases totalmente incompreensíveis.

Ganhamos, entretanto, com isso, alguma coisa: a distinção de dois problemas:

  1. O problema de uma teoria da sociedade (e da história);
  2. O problema de uma teoria da individualidade (do que se costuma chamar o indivíduo humano).

Ganhamos também com isso a percepção de que a via de acesso a esses dois problemas estava obstruída por dois obstáculos epistemológicos: o conceito de Homem e o conceito de gênero humano.

Entretanto, outra coisa ocorre nas Thèses sur Feuerbach: um questionamento das categorias filosóficas fundamentais que definem esse famoso campo do Humanismo teórico, como campo da relação especular Sujeito-Objeto. As Teses Iª, IIª, Vª, VIIIª, IXª questionam principalmente a natureza dos conceitos que sustentam esse campo: sujeito e objeto.

O Objeto: o defeito de Feuerbach é de não ter "captado o sensível (die Sinnlichteif) senão sob a forma de objeto... mas não enquanto atividade humana concreta..." (Tese Iª); "...ele não considera o mundo sensível enquanto atividade prática concreta do homem" (Tese Vª).

O Sujeito: deve-se concebê-lo como práxis, social e histórica.

O par de categorias Sujeito-Objeto, portanto, não é mais originário. Mais profundamente que ele, as Thèses fazem intervir a categoria de práxis histórica.

Filosoficamente, essa transformação é importante. Ela significa, de fato, que Marx tira certas conseqüências de sua ruptura com o Humanismo Teórico de Feuerbach, no que concerne às categorias típicas constitutivas do campo da relação especular, e também no que concerne à operação tentada nos Manuscrits...: Hegel em Feuerbach. De fato, superar o Sujeito=Objeto é fazer agir a dialética hegeliana sobre os próprios conceitos feuerbachianos de Sujeito e de Objeto. A práxis histórica é o conceito de um compromisso teórico, onde, desta vez, a relação anterior é modificada: a práxis histórica é o que resta de Feuerbach em um certo Hegel, e muito precisamente a transformação do Sujeito em práxis, e a historicização desse sujeito como sujeito.

Essa transformação é muito importante, pois ela dá a chave da filosofia que domina toda Uidéologie allemande: o historicismo do Sujeito. Conserva-se a categoria de Sujeito. Há um, ou vários sujeitos da história. Uidéologie allemande dirá: são os indivíduos, são "os homens", entendam-se os homens reais, que são os sujeitos da história. Mas não são sujeitos abstratos fora da história: eles são, neles mesmos, de natureza histórica, afetados pela historicidade da história da qual eles são os sujeitos. Compromisso teórico muito particular: a história não está mais contida no interior do campo delimitado pelo Sujeito e o Objeto, ela ultrapassa esses limites (Sujeito-Objeto) e injeta-lhes historicidade, sempre respeitando o seu estatuto de Sujeito e de Objeto. O que vale para o sujeito vale também para o objeto. Todo objeto é, ele também, historicizado: a natureza é histórica de ponta a ponta, transformada pela práxis humana.(38) Não somente a natureza, mas também a própria ciência; não somente os sujeitos da história, mas também os sujeitos do conhecimento da história e o próprio conhecimento da história.

O historicismo de Uidéologie allemande devia pesar bastante sobre a história da teoria marxista. Não é um acaso teórico que ele esteja ainda associado, ali onde ele é professado em nome de Marx, a uma Ideologia Humanista. Pois, na formação do pensamento de Marx, o historicismo das Thèses sur Feuerbach e de Uidéologie allemande não é nada mais do que uma nova relação, instaurada entre uma concepção dita "hegeliana" da história e as categorias feuerbachianas Humanistas de Sujeito e de Objeto. Essa nova relação é a modificação do antigo (o dos Manuscrits...). Hegel em Feuerbach torna-se, no Historicismo Hamanista das Thèses e de Uidéologie allemande (o que resta de) Feuerbach em (um certo) Hegel.

4) Vê-se sob qual concepção filosófica, ainda marcada pelos conceitos resultantes da empreitada dos Manuscrits de 1844, apresenta-se Uidéologie allemande.

Falo, é claro, da concepção (não explicitada como tal) que reina em Uidéologie allemande, e não da concepção de filosofia exposta com todas as letras em Uidéologie allemande. Pois Uidéologie allemande não toma caminhos diversos: ela suprime radicalmente toda filosofia, como pura ilusão ideológica, sonho, quimera, resultante da alienação da divisão do trabalho, e no espaço assim saneado, ela instala a ciência sozinha.(39) Tudo o que resta da filosofia declarada reduz-se à ideologia espontânea da ciência: isto é, ao empirismo do dado, dos fatos, do "real", do "concreto" (ele vai sempre muito bem, obrigado), que em Uidéologie allemande é batizado materialismo. Daí tiraremos a conclusão de que se Uidéologie allemande é interessante do ponto de vista do materialismo histórico do qual ela expõe, em uma forma ainda extremamente confusa, os primeiros elementos, ela é notável pela ausência total do que será intitulado na tradição marxista de materialismo dialético, essa filosofia nova sustentada pela grande descoberta científica de Marx.

Justamente, o que advém dos conceitos científicos, que, em Uidéologie allemande, anunciam essa descoberta científica, a abertura ao conhecimento do "continente" História? Qual é o seu estado, em uma situação dominada pela ausência de toda filosofia nova?

Entre os Manuscrits de 1844 e Uidéologie allemande, produziu-se um pequeno evento, do qual raros especialistas apreciaram a importância: a publicação da obra de Stirner, Uunique et sa propriété (1845). Em que esse texto nos interessa? No que contribuiu para fazer desagregar a categoria hegeliana de Homem em dois elementos: um conceito empírico, o indivíduo real, singular, concreto, etc, de um lado, e a Idéia religiosa de Homem de outro. Stirner chegou a esse resultado, acusando formalmente Feuerbach de não ter jamais deixado a religião, mas de ter simplesmente substituído Deus por ele mesmo, chamando-o de Homem. Essa acusação que reveste em Uunique et sa propriété a forma de uma argumentação dificilmente refutavel, e que estabelece que o Humanismo feuerbachiano (senão todo humanismo), e portanto o Humanismo ateu (todo humanismo ateu) não é nada mais do que uma forma de ideologia religiosa, a forma moderna de religião, essa acusação tocou profundamente Marx e Engels.(40) A partir da demonstração de Stirner, alguma coisa de novo está teoricamente adquirida: o Homem e o Humanismo designam alguma coisa que, contrariamente ao que eles pensavam até então, é todo o contrário do real, do concreto, etc: histórias de pregadores, uma ideologia moral de essência religiosa, pregada por pequenos-burgueses à paisana.

A partir daí, o Homem é tocado na sua própria existência, e esse homicídio faz aparecer então, sob essa velha denominação constitutiva do Humanismo teórico, três realidades, ou problemas, ou indícios de problemas

  1. o indivíduo (o problema de uma teoria da individualidade);
  2. a sociedade (o problema de uma teoria da sociedade e da história);
  3. uma ideologia (o problema de uma teoria da ideologia: mais particularmente do conceito ideológico de Homem e da Ideologia Humanista, isto é, do Humanismo como Ideologia).

É sobre o fundo dos primeiros desenvolvimentos do grande "ajuste de contas" (Abrechnung)(41) em curso, e dessas distinções adquiridas, que se deve entender os elementos de conceitos do materialismo histórico que Uidéologie allemande produz.

Dissemos que o sujeito da história nela estava historicizado. É notável que não seja mais o Homem, em Uidéologie allemande, o Sujeito da História, mas os indivíduos reais, empíricos, dotados de forças, vivendo em condições materiais sociohistóricas e, produzindo, pelo emprego de "suas forças produtivas" em "relações de comércio mútuo" (Verkehrsverhãltnisse, Verkehrsformen), o suficiente para satisfazer suas próprias necessidades vitais, no seu processo-de-vida-material (Lebenprozess).

Em face desses indivíduos empíricos, reais, concretos, etc, que são a "pressuposição" primeira da nova concepção da história (a qual "não funciona sem pressuposições"(42)), que são portanto a origem sempre presente, os sujeitos sempre atuais de uma história que é a sua própria produção, onde eles exteriorizam objetivamente suas "forças essenciais" em um processo de alienação que, pelo efeito de divisão do trabalho (instrumento e nome da alienação), separa-os de seus produtos e de suas condições de existência, que os dominam então como uma força estrangeira (efeito de alienação): enfim, em face dos indivíduos, não se encontra mais o Homem.

O Homem é, em Uidéologie allemande, uma Ideologia pura e simples, a "palavra" de "ordem" de um protesto moral impotente, o dos intelectuais pequeno-burgueses alemães que, incapazes de fazer o que quer que seja que se assemelhe à História, assumem uma segurança e um discurso compensatório em nome daquilo que sonham ser: o Homem, sua essência. Enfim, o Homem cessou de ser uma categoria racional fundamental proporcionando o entendimento da História; o Homem é, ao contrário, uma noção irracional, irrisória e vazia, por essência incapaz de explicar o que quer que seja, pois é ideológica — mas que, em contrapartida, deve ser explicada, isto é, reduzida ao que ela é: a impotência religiosa de um "desejo" ridículo, o de ser parte ativa em uma História que se lixa(43) completamente para os pequeno-burgueses que pretendem nela ditar a lei. Discurso vazio e vão, o Homem é, no seu fundo, a diversão de uma ideologia reacionária.

Evidentemente, tudo não é tão simples; quer dizer, as questões mais importantes não são resolvidas só por isso. Uidéologie allemande não diz que o indivíduo (categoria liberada enfim da ideologia do Homem), é o indício e o nome de um problema teórico a colocar e resolver. Para o empirismo de Uidéologie allemande, o indivíduo não é, em nenhum instante, um problema: ele é, ao contrário, a própria solução, mas a sua própria solução. O indivíduo é aquilo do qual se parte, o começo, o dado, o sujeito, o "que é desnecessário mencionar", pois cai "sob o sentido". O que se "vê" na História? Indivíduos. "Os indivíduos sempre e em toda parte partiram de si mesmos(44) (von sich ausgegangen)". Basta fazer o mesmo. Partamos, portanto, nós também, rumo à teoria dos indivíduos, e mostraremos "o que dela resulta" quando se os segue, em uma gênese empírica digna deles, passo a passo; quando se segue passo a passo os produtos da operação (exteriorização — alienação) de suas "forças produtivas" no seu "processo de vida". Assistimos, então, à gênese(45) ("genético-crítica", "genético-empírica" — fórmulas feuerbachianas) das Forças Produtivas, e das Relações de Produção, cuja unidade constitui o modo de produção da vida material dos ditos indivíduos; assistimos à gênese das formas de propriedade (relações de produção), a seguir a das classes sociais e do Estado, e da Ideologia (sua "consciência").

Estamos, a despeito das palavras realmente novas, que já são os primeiros elementos dos conceitos do materialismo histórico, ainda presos numa transcrição daquilo que subsiste ainda de Feuerbach. Se as forças produtivas são ditas, tão freqüentemente, "forças produtivas dos indivíduos", é que elas aderem ainda ao conceito feuerbachiano dos Atributos essenciais ou das Forças essenciais da Essência Humana, que se tornou o indivíduo, os indivíduos. Se as Relações de produção não são pensadas senão sob o conceito de Verkehrsverhälhnisse, se portanto essa relação é pensada na categoria de "comércio mútuo" (Verkehr), portanto de relação interindividual, é que os indivíduos são ainda pensados obscuramente ou explicitamente como os sujeitos constituintes de todas as relações sociais.

E o próprio Homem paira sobre a extraordinária teoria final do comunismo(46) onde os indivíduos, enfim liberados da alienação, da qual eles são os autores (sujeitos) históricos, tornar-se-ão, pela primeira vez, verdadeiros "indivíduos livres", não "contingentes", constituídos por relações interindividuais puras, isto é, liberadas dessas Relações sociais (de produção de outras) nas quais eles, até agora, fizeram e, ao mesmo tempo, se submeteram à sua história.

Que o Homem, apesar de tudo, ainda pesa assim sobre o indivíduo, mesmo historicizado, de Uidéologie allemande, podemos reconhecer também ao considerar que a alienação nele ainda está presente e ativa, sob as espécies da divisão do trabalho. Para que o indivíduo seja afinal livre, para que a revolução comunista possa liberá-lo, é preciso todo o trabalho da História, isto é, todo o trabalho do processo de alienação. Permanecemos ainda, no hegelianismo difuso de Uidéologie allemande, prisioneiros de uma idéia da necessidade da alienação, portanto de uma teleologia do processo, portanto de um processo com sujeito. Esse sujeito, trata-se dos indivíduos: eles são, por um lado, proclamados empíricos e históricos, e sua definição declara poder passar radicalmente sem idéia de Homem. Mas como eles são, por outro lado, os sujeitos de um processo de alienação, portanto de um processo teleológico, só se pode tratar, uma vez mais, da História como história da alienação de um sujeito: os indivíduos. O Homem é certamente condenado no grande julgamento da crítica. Mas ele permanece nos bastidores da teoria, e constitui os indivíduos em sujeitos do processo de alienação de suas "forças". Ele espera então esse processo no seu Fim, para recolher os indivíduos na liberdade da qual ele é, desde sempre, o conceito.

Para que os indivíduos escapem enfim a esse controle discreto, mas terrivelmente eficaz, do Homem, será necessário que Marx abandone a convicção do empirismo, e conceba o indivíduo não como sujeito ou princípio claro em si mesmo de explicação de estrutura social, mas como um objeto obscuro a definir, como um problema a resolver e, acima de tudo, a colocar de modo conveniente. Para compreender o indivíduo, será necessário não mais partir dele, mas da estrutura social. Com mais razão ainda, para compreender a estrutura social. A noção de indivíduo também é um obstáculo epistemológico de monta.
É a razão pela qual Uidéologie allemande é uma obra tão equívoca. Há nela efetivamente algo de novo acontecendo, que Marx não errou ao identificar como o lugar de nascimento de sua descoberta, em sua ruptura com "sua consciência filosófica de outrora". A novidade de Uidéologie allemande se exprime em conceitos batizados efetivamente com nomes novos (modo de produção, forças produtivas, relações sociais, etc), mas ainda regidos por categorias filosóficas, no essencial, intactas: as do compromisso teórico FeuerbachHegel (Feuerbach e um certo hegelianismo antropológico) presente, depois da grande crise dos Manuscrits de 1844, nas Thèses sur Feuerbach, um empirismo historicista, isto é ainda humanista.

À luz dessa conclusão, pode-se ver, sem dúvida, o que significa o que chamamos a ausência do materialismo dialético em Uidéologie allemande. Em Uidéologie allemande, começa a ruptura com o passado no terreno da ciência da história. Mas a ruptura com o passado no terreno da filosofia ainda não começou. Primeira presença do materialismo histórico, ausência do materialismo [dialético](47): pode-se ver seus efeitos na confusão dos conceitos que analisamos. Mas o efeito mais pertinente dessa conjuntura desequilibrada é a teoria da ideologia que nos dá Uidéologie allemande.

Uidéologie allemande não cessa de falar da ideologia; é o seu objeto por excelência. E dela propõe uma teoria; efeito da alienação (da divisão do trabalho intelectual separado do trabalho manual) A ideologia, literalmente, não é nada; ela é o reflexo vazio (e invertido: a câmara escura) e exato do que acontece na realidade. Inversão de sentido, uma vez mais, com esse pequeno suplemento: esse sentido é perfeitamente supérfluo. Antes da divisão do trabalho (manual e intelectual), não havia ideologia. No comunismo não haverá também (fim da alienação, portanto, fim da ideologia e de todas as "besteiras"(48)). A prova nós já temos no proletariado: há muito tempo que ele renunciou a toda ideologia, religião, filosofia, etc. Sob tal aspecto, ele já é, em si, o comunismo. Como os proletários que suprimiram a Ideologia de sua existência, Uidéologie allemande proclama a supressão da filosofia. Fim de todas as ideologias, fim de todas as abstrações: o real, o concreto, o empírico, eis o verdadeiro, o único verdadeiro. Não nos surpreenderemos com a ausência de teoria da ciência em Uidéologie allemande. Não se pode fazer teoria da ciência senão em uma filosofia. Em suma, com a correção de um empirismo historicista radical que declara que o Homem não é senão ideologia, e que a ideologia não é nada, estamos ainda na herança filosófica de Feuerbach.

A ruptura com Feuerbach está declarada e iniciada. Mas ela também é um processo que não apenas está começando. Ele ainda não foi consumado.

Podem-se seguir suas etapas em Le Manifeste..., Misère de la philosophie, na Contribution... e em Le Capital. Não darei detalhes; irei ao termo, sem mais esperas.

5) Para apresentar a ruptura de Marx com o humanismo teórico, pode-se, como acabei de fazer em grandes linhas, escandir seus momentos essenciais na sua história. Mas pode-se, também, uma vez estabelecido o conteúdo teórico do qual Marx partiu, transportar-se ao termo e proceder, no novo conteúdo teórico, a uma constatação de presença e de ausência dos conceitos contidos, na origem, no dispositivo próprio do Humanismo teórico.

Pode-se então mostrar, sem dificuldades que, fora algumas persistências isoladas e isoláveis, em todo caso, extremamente localizadas, na verdade, em Le Capital, as categorias constitutivas do Humanismo teórico desapareceram. É uma questão relativamente simples: questão de constatação teórica. Ela requer, evidentemente, uma raça de fiscais à altura da natureza distintiva dos objetos que lhe ordenam destacar e que não toma, como aconteceu em tantos discursos polêmicos, simples palavras por conceitos científicos ou categorias filosóficas.

Resumamos os resultados dessa constatação, que cada um pode verificar: A — A ciência da história.
A ciência da história não tem por objeto a essência do homem, ou do gênero humano, ou a essência dos homens, etc. A ciência da história tem por objeto a história das formas de existência específicas da espécie humana.

A(49) diferença específica que distingue as formas de existência da espécie humana das formas de existência das espécies animais é: 1. que os homens não vivem senão em formações sociais; 2. que essas formações sociais humanas têm uma história específica que, como tal, e diferentemente da "história" das "sociedades animais" não é regida pelas leis biológicas e ecológicas da espécie, mas pelas leis "sociais" da produção e da reprodução das condições de produção dos meios de existência dessas formações sociais.

Do mesmo modo que a ciência da história não tem por objeto a essência do Homem, etc, ela não se apoia, considerando-se o sistema teórico de seus conceitos fundamentais, sobre noções como o homem, a espécie humana, os homens, o indivíduo, etc. Os conceitos fundamentais da teoria da ciência da história das formações sociais são os conceitos de modo de produção, de forças produtivas e de relações de produção (e sua unidade), de superestrutura jurídico-política, de superestrutura ideológica, de determinação em última instância pelo econômico, de autonomia relativa das instâncias, etc, etc.

Estamos efetivamente em um outro "continente" e em um outro mundo teórico, que não tem mais nenhuma relação com o mundo ideológico dos Manuscrits de 1844, nem mesmo com os de Uidéologie allemande onde, contudo, alguns dos novos conceitos se fazem presentes. Não se trata mais de de dizer que o Homem é a raiz do Homem, e a essência de todos os Objetos de seu mundo humano. Não se trata mais de "partir dos indivíduos" que "sempre partiram de si mesmos", como em Uidéologie allemande, e de seguir passo a passo os efeitos de uma gênese empírica e constituinte para "gerar", a partir das "forças dos indivíduos", as Forças produtivas, as Relações de produção, etc. Não se trata mais de partir do "concreto" na teoria, desses famosos conceitos "concretos" que são o Homem, os homens, os indivíduos "com os pés no chão, bem postados sobre suas pernas", as noções, etc. Bem ao contrário, Marx parte do abstrato, e o proclama. Isso não quer dizer que, para Marx, os homens, os indivíduos, e sua subjetividade tenham sido eliminados da história real. Isso quer dizer que as noções de Homem, etc. foram eliminadas da teoria, pois, na teoria, desconheço que alguém tenha jamais encontrado algum homem em carne e osso, mas somente a noção de homem. Longe de poder fundar e servir a teoria, essas noções ideológicas têm apenas um efeito: elas impedem a teoria de existir. Essas noções do Humanismo teórico foram eliminadas e devem ser eliminadas radicalmente da teoria científica de Marx, de pleno direito, simplesmente porque elas não podem ser nada mais do que "obstáculos epistemológicos".

Claramente, deve-se de uma vez por todas dizer a todos aqueles que têm, como Feuerbach, e como o Marx dos Manuscrits... e mesmo freqüentemente o Marx de Uidéologie allemande (o texto mais pernicioso, por ser o mais difícil de manejar e de citar de pleno direito), a boca cheia do homem, dos homens, do real, do concreto, e que pretendem impor seu emprego na teoria, a título de conceitos fundamentais de ciência da História — deve-se, de uma vez por todas, dizer-lhes que essa chantagem idealista já durou bastante e também essa demagogia insuportável, quando não criminosa. Pois não são suas choradeiras que fornecerão o começo de um conhecimento útil aos homens reais, dos quais Marx não cessou de se ocupar por toda a sua vida, e para o serviço real, e não verbal, dos quais ele forjou os conceitos indispensáveis para produzir os meios de compreender sua existência real e de transformá-la realmente. Pois se eles não produzem nenhum conhecimento, seus discursos humanistas terão efetivamente esse efeito catastrófico de fazer-nos voltar aquém de Marx, a uma ideologia pequeno-burguesa, que não pode mais ser, doravante, senão revisionista e reacionária.

B — O mesmo ocorre com a filosofia marxista.

Seus conceitos filosóficos de base não são o Homem, o Sujeito, o cogito, mesmo no plural (o "nós"), o ato, o projeto, a práxis, a criação, todas noções que se vão tirar ainda hoje, e até nas fileiras dos filósofos comunistas, do velho fundo do idealismo. Nem mesmo do idealismo crítico (que, ao menos, tinha a sua grandeza, pois ajustava-se, ele, à ciência), mas do idealismo espiritualista (a forma mais reacionária do idealismo, pois ela tem a covardia de se ajustar, ela, à religião).

As categorias de base da filosofia marxista (materialismo dialético) são o materialismo e a dialética. O materialismo se apoia não sobre as noções ideológicas de Sujeito e de Objeto, mas sobre a distinção entre a matéria e o pensamento, entre o real e seu conhecimento, em outros termos mais precisos, sobre a distinção entre o processo real e o processo de conhecimento; sobre a primazia do processo real sobre o processo de conhecimento; sobre o efeito de conhecimento produzido pelo processo de conhecimento no processo de compatibilização do processo de conhecimento com o processo real. O materialismo estuda, como dizia Lenin, a história da "passagem da ignorância" (ou ideologia) ao "conhecimento" (ou ciência) e, por isso, deve produzir a teoria das diferentes práticas: as que estão em funcionamento no conhecimento, e as que servem de base à prática teórica, etc. A dialética determina as leis que governam os processos (processo real e processo de conhecimento), na sua dependência (primazia do processo real) e na sua autonomia relativa, etc, etc.

Levando em conta o que foi dito sobre o atraso da filosofia marxista sobre a ciência da história, todo filósofo marxista consciente sabe bem que o perigo de revisionismo teórico sempre foi, e ainda é, maior na filosofia do que na ciência da história. A ideologia tem horror do vazio, e como todo "atraso" é um vazio, ela nele se precipita. Razão a mais para lutar lúcida e firmemente contra ela, e para reconquistar passo a passo, contra todas as idiotices idealistas e espiritualistas, contra os artifícios e arranjos ecléticos atuais, perto dos quais a incoerência de Feuerbach é um auge de pensamento e de rigor, o terreno que pertence de pleno direito à filosofia marxista. Nosso primeiro dever teórico, ideológico e político, digo bem político, é hoje de expulsar do domínio da filosofia marxista toda a quinquilharia "Humanista" que nela se despeja abertamente. Ela é uma ofensa ao pensamento de Marx e uma injúria a todos os militantes revolucionários. Pois o humanismo na filosofia marxista não é nem mesmo uma grande forma da filosofia burguesa instalada em Marx: é um dos subprodutos mais baixos da mais vulgar ideologia religiosa moderna. Seu efeito, senão seu objetivo, é conhecido de longa data: desarmar o proletariado.

Eis o que resulta do método da constatação. Não podemos nada quanto a isso: como dizia o próprio Hegel (e tinha o consolo de dizê-lo diante das montanhas): assim é.

6) Antes de examinar as conseqüências teóricas dessa constatação, gostaria de voltar aos princípios que comandam ou que sugerem a bastante breve análise dos momentos que escandem a história da formação do pensamento de Marx.

Eu dizia, antes de entrar nessas análises, que seria preciso dispor, para conduzi-las em segurança, dos princípios de uma teoria da história, que ainda não existe. As condições da produção dessa teoria não podem, todavia, reduzir-se, em extensão, à história das teorias (ideologias, ciências, filosofia) do sistema conceitual do qual podemos dispor para pensar a história das formações sociais. De fato, já que, em qualquer caso, trata-se de teoria da história, devemos tomar emprestado, do que já existe de teoria da história das formações sociais, tudo o que ela pode nos dar para pensar a história das teorias. Mas esse trabalho, sobre o fundo teórico existente, não pode, em nenhum caso, por si só, dar-nos o conhecimento de nosso objeto específico. Deve-se estudar esse mesmo objeto específico, nas suas formações concretas, isto é trabalhar sobre os dados concretos da história das teorias, escolhendo de preferência exemplos e segmentos dessa história, dos quais temos boas razões para pensar que são pertinentes, isto é, ricos em si mesmos de determinações que nos darão a chave de outros fenômenos. Os momentos da história das teorias onde surgem novas ciências, sobretudo quando elas são "continentais", podem ser razoavelmente presumidos pertinentes ao título que nos ocupa. É a razão pela qual acredito que o estudo da formação e das transformações do pensamento de Marx pode também concernir diretamente a elaboração dessa teoria da história das teorias da qual necessitamos.

É por essa razão que gostaria de voltar um instante a alguns dos conceitos que fiz intervir nas análises pelas quais tentei escandir a história do pensamento de Marx: a oposição ciência/ideologia, o "corte", etc. Penso começar a responder por aí a algumas das críticas que me foram endereçadas, freqüentemente a justo título.

Antes, uma primeira palavra sobre a oposição ciência/ideologia, que dá seu sentido ao conceito de "corte epistemológico". Mesmo guarnecida de todas as precauções que a arrancam à contaminação da oposição "Aufklãrer" da verdade e do erro(d), a oposição da ciência e da ideologia, na forma incisiva do seu enunciado, não pode deixar de ser entendida geralmente como uma oposição de aparência maniqueísta, portanto dogmática. Do ponto de vista ideológico, essa oposição desempenha eficazmente seu papel: traçar, na conjuntura presente, uma linha de demarcação, nítida e imperativa, entre as exigências científicas que devem ser características dos marxistas, e as facilidades e a demagogia do ecletismo e do revisionismo teórico.(50) Era necessário, urgentemente, traçar essa linha de demarcação, e está fora de questão renunciar a ela por um só instante. No entanto, do ponto de vista teórico, é indispensável não ficar em uma formulação de caráter ideológico, mas apresentar precisões próprias para pensar, especificando-a, essa oposição.

Retomemos o exemplo do caráter ideológico do Humanismo teórico. Está claro, acima de tudo, que o que qualifica de ideológicas as noções fundamentais do Humanismo teórico não pode ser enunciado senão ex-post. Se Marx não tivesse produzido os conceitos novos próprios para pensar o objeto de sua descoberta, não poderíamos pronunciar o Julgamento de ideologia que aplicamos às noções com as quais ele teve de romper. A oposição ideologia/ciência é portanto sempre fundada sobre uma retrospecção ou recorrência. É a existência da própria ciência que instaura na história das teorias esse "corte" a partir do qual é possível declarar ideológica sua pré-história.

Entretanto, esse corte e essa retrospecção são correias de um processo real, o da constituição da ciência, que nasce na própria ideologia, por um trabalho teórico que culmina em um ponto crítico explodindo em uma ruptura que instaura o campo novo onde vai se estabelecer a ciência. Donde o paradoxo: a ciência de fato nasce da ideologia, na ideologia — e, no entanto, essa ideologia da qual ela nasce, arrancando-se dela, não pode receber seu nome de ideologia senão da ciência dela nascida e dela separada.

Segue-se toda uma série de conseqüências importantes. Mencionarei apenas duas.

1. A primeira concerne a natureza do "corte". Se é possível à vista de certos sinais pertinentes, que manifestam de um lado a tensão extrema de uma impossível síntese desesperada (os Manuscrits de 1844), e de outro lado a distensão repentina de uma mutação conceitual inédita (as Thèses, e Uidéologie allemande), atribuir ao "corte" algo como uma data (1845), ela não é senão o começo de um evento de longuíssima duração, e que, em certo sentido, não tem fim.

Corrijo portanto aqui o que as indicações de meu artigo tinham de manifestamente brutal, e que me foi, muito justamente, criticado. Naturalmente, as correções que apresento permanecem descritivas: elas não constituem nem mesmo o rudimento de uma teoria do corte, sobre a qual um dentre nós publicará um ensaio em breve. Destaca-se, no entanto, do que eu disse brevemente demais das Thèses... e de Uidéologie allemande, que se a "liquidação" anunciada conscientemente por Marx está efetivamente iniciada nos seus textos, ela está apenas iniciada, e que o essencial está por fazer para livrar realmente o espaço teórico no qual se desenrolará, vinte anos mais tarde, Le Capital. O "corte" é, portanto, ele mesmo, um processo de longa duração, que comporta momentos dialéticos cujo estudo detalhado, comparado aos dos outros grandes "cortes" que podemos abordar com documentos suficientes (por exemplo, o de Galileu), fará talvez aparecer a tipicidade e a especificidade. O estudo dos momentos constitutivos de um tal "corte" (inaugurando a abertura de um "continente" novo) poderia constituir uma teoria do processo do "corte", e fazer aparecer a necessidade das modificações (momentos) sucessivos, ou cortes secundários, que, através da aparição, a posição e a solução de uma seqüência de problemas novos, conduzem uma ciência dos seus primórdios à sua maturidade, através da sua maturação.

Essa concepção do "corte" como processo não é um modo destorcido de abandonar seu conceito, como nos sugerem com demasiada ênfase certos críticos. Que seja necessário tempo para que o "corte" se complete em seu processo não impede que ele seja efetivamente um evento da história da teoria, e que ele possa, como todo evento, ser datado, com precisão, em seu começo; no caso de Marx, 1845 (as Thèses..., e Uidéologie allemande).

Esse evento é evento de longa duração, e se ele tem efetivamente, em um sentido, um começo, em um outro sentido, ele não tem fim. Pois a ciência, que nasce na e da ideologia da qual ela se arranca, não está, uma vez nascida, assegurada e estabelecida em seu domínio como em um mundo fechado e puro onde ela não lidaria senão consigo mesma. Ela não cessa, vivendo, de trabalhar sobre uma matéria-prima sempre afetada, a um título ou a um outro, de ideologia, e ele não se estende senão ao avançar sobre "domínios" ou "objetos" designados por noções que sua conquista permitirá, retrospectivamente, qualificar de ideológicos. O trabalho de crítica e de transformação do ideológico em científico, que inaugura toda ciência, não cessa, portanto, jamais de ser a tarefa da ciência estabelecida. Toda ciência não é senão um corte continuado, escandido nos cortes ulteriores, interiores.

2. Sendo assim, podemos então voltar aquém do "corte", e nos interrogar também sobre a especificidade do processo que o produz. Aí ainda, encontramos um problema teórico de grande importância, sobre o qual não poderemos avançar senão ao preço de investigações minuciosas. Qual é o tipo de necessidade que produz, na história das teorias, o advento de uma ciência?

Que se me permita simplesmente chamar a atenção para uma singular "coincidência". Citei a tese de Lenin sobre a produção do materialismo histórico como efeito do encontro de três disciplinas: filosofia alemã, economia política inglesa e socialismo francês. Ora, que se queira relacioná-la ao triplo encontro teórico do qual pudemos descrever o evento nos Manuscrits de 1844. Lembro os nomes dos três personagens teóricos presentes nesse encontro: Hegel, a Economia Política e Feuerbach. Falta, com relação à enumeração de Lenin, apenas o socialismo francês. Ora, sabendo-se com que insistência Feuerbach proclamava que a Revolução Humana resultaria da união do materialismo revolucionário francês e do idealismo alemão, sabendo-se que ele se tomava pelo filósofo do coração (que é francês e revolucionário) e se declarava "comunista", não é impossível considerá-lo, ao menos em parte, o representante simbólico da utopia socialista francesa no Encontro dos Manuscrits...(51) Poderemos talvez um dia tirar dessa figura do encontro elementos para uma teoria do processo de produção do "corte".


Notas:

(b) O primeiro título de L'Essence du Christianisme era: "Crítica da Desrazão Pura". (retornar ao texto)

(c) Cf. Lire Le Capital, texto de Rancière, capítulo 1. (retornar ao texto)

(d) Cf Lire Le Capital, tomo I, p. 56. (retornar ao texto)

(26) Engels, Ludwig Feuerbach et la fin de la philosophie classique allemande, op. c/f., p. 23. (retornar ao texto)

(27) Marx, Critique de la philosophie du droit de Hegel, La Pléiade, tomo III, Philosophie, p. 390. (retornar ao texto)

(28) Ibid., p. 382. (retornar ao texto)

(29) Cf. Marx, Critique de la philosophie politique politique de Hegel, op. cit., p. 904; cf. também La question juive, op. cit, p. 357. (retornar ao texto)

(30) Os Deutsch-Franzõsische Jahrbücher (Annales franco-allemandes), cujo único número surgiu em fevereiro de 1 844. (retornar ao texto)

(31) Marx, "Lettre à Ruge", setembro de 1843, La Pléiade, tomo III, p. 346. Cf. Feuerbach (L'Essence du Christianisme, Manifestes, op. cit., p. 71; tradução de Jean Pierre Osier, Maspero, 1968, p.130): "A religião é o desvendamento dos tesouros escondidos do homem, a confissão de seus pensamentos mais íntimos, a confissão pública de seus segredos de amor". (retornar ao texto)

(32) "No seu significado característico, a doutrina da criação nasce apenas aí onde o homem submete praticamente a natureza unicamente à sua vontade e às suas necessidades... Aí onde o homem se coloca apenas do ponto de vista prático, contemplando o mundo apenas sob esse ponto de vista, e faz mesmo desse ponto de vista prático um ponto de vista teórico, ele reduz a natureza ao nível da servente mais escrava de seus interesses egoístas, de seu egoísmo prático... O utilitarismo, a utilidade é o princípio supremo do judaísmo" (L'essence du christianisme, op. cit., tradução Osier, p. 243-245). (retornar ao texto)

(33) Marx, Manuscrits de 1844, Éditions sociales, 1962, p. 132-133. (retornar ao texto)

(34) Ibid., p. 80. (retornar ao texto)

(35) Cf. por exemplo Michel Simon, contribuição ao debate sobre "Marxismo e humanismo", La Nouvelle Critique, na 165, abril de 1965; cf. também Jean Kanapa, intervenção no Comitê central de Argenteuil. (retornar ao texto)

(36) Carta de Engels a Joseph Bloch (21 de setembro de 1890), in Karl Marx, Friedrich Engels, Études philosophiques, Éditions sociales, 1951. Essa carta é analisada em Pour Marx, no Apêndice a "Contradiction et surdétermination". (retornar ao texto)

(37) Gramsci, Oeuvres choisies, Éditions sociales, 1959, p. 51-52, edição bastante anotada por Louis Althusser: "Todo indivíduo é não apenas a síntese das relações existentes, mas também da história dessas relações, isto é, o resumo de todo o passado". (retornar ao texto)

(38) Louis Althusser havia aqui previsto uma nota, que não foi redigida. Tratava-se provavelmente de uma referência a L'idéologie allemande, Éditions sociales, 1968, p. 55: "Como se houvesse aí duas 'coisas' desconexas, como se o homem não se encontrasse sempre diante de uma natureza que é histórica e de uma história que é natural". (retornar ao texto)

(39) Louis Althusser havia aqui previsto uma nota, que não foi redigida. Tratava-se provavelmente de uma referência a L'idéologie allemande, op. cit.: "É aí onde cessa a especulação, é na vida real que começa portanto a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo de desenvolvimento prático dos homens... Logo que exposta a realidade, a filosofia deixa de ter um meio onde ela exista de modo autônomo. No seu lugar, poder-se-á (...) colocar uma síntese dos resultados mais gerais que se possa abstrair do estudo do desenvolvimento histórico dos homens" (p. 51). Ou ainda (p. 269): "Deve-se 'deixar de lado a filosofia', deve-se sair dela de uma só vez e por-se a estudar a realidade enquanto homem ordinário." (retornar ao texto)

(40) Louis Althusser havia previsto uma nota, que não foi redigida. Tratava-se provavelmente de uma referência a L'idéologie allemande, op. cit., tomo II, terceira parte. (retornar ao texto)

(41) Louis Althusser havia projetado escrever um livro sobre o tema do "acerto de contas com nossa consciência filosófica de outrora" (cf. Marx, prefácio à Contribution à la critique de l'économie politique) do qual apenas as cinco primeiras páginas foram conservadas em uma pasta intitulada "66-67 (inacabado) 'o corte'". Esse texto, datado de janeiro de 1967, começa com esas palavras: "Esse livro é um acerto de contas: Abrechnung". (retornar ao texto)

(42) L'idéologie allemande, op. cit., p. 51. (retornar ao texto)

(43) Correção sugerida: "não dá a mínima", escrita à mão acima de "se lixa", que não está rasurado. Essa correção não parece provir de Althusser. (retornar ao texto)

(44) L'idéologie allemande, op. cit., p. 108. (retornar ao texto)

(45) Ibid., p. 49: "Essa concepção da história... concebe a forma das relações ligada a esse modo de produção e gerado por ela... como sendo o fundamento de toda a história, o que consiste em representá-la na sua ação enquanto Estado assim como em explicar por ela o conjunto das diversas produções teóricas e das formas da consciência, religião, filosofia, moral, etc, e em seguir sua gênese e a partir dessas produções". (retornar ao texto)

(46) L'idéologie allemande, op. cit., p. 97-105. (retornar ao texto)

(47) Corrigimos o texto, que contém aqui "materialismo histórico", manifestamente por erro. (retornar ao texto)

(48) L'idéologie allemande, op. cit, p. 72. Notaremos com interesse que a palavra "besteiras" não consta na tradução das Éditions Sociales, habitualmente utilizada por Althusser, mas na edição da Pléiade. (retornar ao texto)

(49) Os dois parágrafos que seguem estão na página 66 de um outro texto inédito de Althusser do mesmo período: "Socialismo ideológico e socialismo científico" (88 páginas datilografadas). (retornar ao texto)

(50) Uma "nota sobre Lenin", jamais redigida, estava aqui prevista. (retornar ao texto)

(51) Uma nota, jamais redigida, estava aqui inicialmente prevista por Althusser. (retornar ao texto)

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Inclusão 16/12/2008
Última alteração 12/08/2014