Potências do Comunismo

Daniel Bensaïd


Fonte: Correspondencia de Prensa.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo
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Em um artigo de 1843 sobre "os progressos da reforma social no continente", o jovem Engels (que tinha acabado de fazer 20 anos) via o comunismo como "uma conclusão necessária, que se está claramente obrigado a tirar, diante das condições gerais da civilização moderna". Um comunismo lógico em  suma, produto da revolução de 1830 em que os operários "votaram às fontes vivas e ao estudo da grande revolução e se apoderaram vivamente do comunismo de Babeuf".

Para o jovem Marx, por outro lado, esse comunismo não era ainda mais do que uma "abstração dogmática", uma "manifestação original dos primórdios do humanismo". O proletariado nascente havia "se atirado nos braços dos doutrinários de sua emancipação", das "seitas socialistas" e dos espíritos confusos que "divagavam como humanistas" sobre o "milênio da fraternidade universal" como "abolição imaginaria das relações de classe". Antes de 1848, este comunismo espectral, sem programa preciso, estava presente, então, no ar do tempo sob as formas "pouco polidas" das seitas igualitárias ou dos sonhos icarianos[1].

Entretanto, já então a superação do ateísmo abstrato implicava um novo materialismo social que não era outra coisa senão o comunismo: "da mesma forma em que o ateísmo, em relação à negação de Deus, é o desenvolvimento do humanismo teórico, também o comunismo, quanto à negação  da propriedade privada, é a reivindicação da vida humana verdadeira". Longe de todo anticlericalismo vulgar, esse comunismo era "o desenvolvimento de um humanismo prático", para o qual não se tratava só de combater a alienação religiosa, senão a alienação e a miséria sociais reais das quais nasce a necessidade de religião.

Da experiência fundadora de 1848 até a da  Comuna, "o movimento real" que busca abolir a ordem estabelecida tomou forma e força, dissipando as "loucuras sectárias" e deixando no ridículo "o tom de oráculo da infalibilidade científica". Dito de outra forma, o comunismo, que foi primeiro um estado de espírito ou "um comunismo filosófico", encontrava sua forma política. Em um quarto de século, levou a cabo sua transformação: de seus modos de aparição filosóficos e utópicos à forma política, por fim encontrada na emancipação.

1. As palavras de emancipação não saíram imunes das tormentas do século passado. Pode-se dizer delas, como dos animais da fábula, que não morreram todas, mas que todas foram gravemente feridas. Socialismo, revolução, anarquia inclusive, não estão muito melhor do que comunismo. O socialismo esteve implicado no assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, nas guerras coloniais e nas colaborações governamentais, até o ponto de perder todo conteúdo na medida em que ganhava em extensão. Uma metódica campanha ideológica conseguiu identificar aos olhos de muitos a revolução com a violência e o terror. Mas, de todas as palavras outrora portadoras de grandes promessas e de sonhos de porvir, a palavra comunismo foi a que mais danos sofreu devido à sua captura pela razão burocrática de Estado e ao seu submetimento a uma empresa totalitária. Fica por saber, todavia, se de todas essas palavras feridas há algumas que valem a pena reparar e pôr de novo em movimento.

2. É necessário para isso pensar no que ocorreu com o comunismo do século XX. A palavra e a coisa não podem ficar fora do tempo das provas históricas às quais foram submetidas. O uso massivo do título "comunista" para designar o Estado liberal autoritário chinês pesará muito mais durante longo tempo, aos olhos da grande maioria, do que os frágeis testes teóricos e experimentais de uma hipótese comunista. A tentação de subtraí-la de um inventário histórico crítico conduziria a reduzir a ideia comunista a "variáveis" atemporais, a fazer dela um sinônimo das ideais indeterminadas de justiça ou de emancipação, e não a forma específica de emancipação na época da dominação capitalista. A palavra perde então em precisão política o que ganha em extensão ética ou filosófica. Una das questões cruciais é saber se o despotismo burocrático é a continuação legítima da revolução de Outubro ou o fruto de uma contrarrevolução burocrática, verificada não só pelos processos, pelas purgas, pelas deportações massivas, senão também pelas comoções dos anos trinta na sociedade e no aparelho de Estado soviético.

3. Não se inventa um novo léxico por decreto. O vocabulário se forma com o tempo, através de usos e experiências. Ceder à identificação do comunismo com a ditadura totalitária estalinista seria capitular ante os vencedores provisórios, confundir a revolução e a contrarrevolução burocrática e fechar assim o capítulo das bifurcações, único aberto à esperança. E seria cometer uma irreparável injustiça com os vencidos, todas as pessoas, anônimas ou não, que viveram apaixonadamente a ideia comunista e que a mantiveram viva contra suas caricaturas e falsificações. É vergonhosa a postura dos que  deixaram de ser comunistas ao deixarem de ser estalinistas e que não foram comunistas mais do que foram estalinistas![2]

4. De todas as formas de nomear "a alternativa" necessária e possível ao capitalismo imundo, a palavra comunismo é a que conserva mais sentido histórico e carga programática explosiva. É a que evoca melhor a repartição comum e a igualdade, a partilha do poder, a solidariedade contra o cálculo egoísta e a competição generalizada, a defesa dos bens comuns da humanidade - naturais e culturais-, a extensão aos bens de primeira necessidade de um espaço de gratuidade (desmercantilização) dos serviços, contra a rapina generalizada e a privatização do mundo.

5. É também o nome de uma medida diferente da riqueza social da adotada pela lei do valor e da valorização mercantil. A competição "livre e não falseada" repousa sobre "o roubo do tempo de trabalho do outro". Pretende quantificar o não quantificável e reduzir à sua miserável medida comum, mediante o tempo de trabalho abstrato, a incomensurável relação da espécie humana com as condições naturais de sua reprodução. O comunismo é o nome de um critério diferente de riqueza, de um desenvolvimento ecológico qualitativamente diferente da corrida quantitativa pelo crescimento. A lógica da acumulação de capital exige não só a produção para o lucro, e não para as necessidades sociais, senão também "a produção de um novo consumo", a ampliação constante do círculo de consumo "mediante a criação de novas necessidades e pela criação de novos valores de uso. Por isso, a exploração da natureza inteira e da terra em todos os sentidos". Essa desmesura devastadora do capital funda a atualidade de um eco-comunismo radical.

6. A questão do comunismo é primeiro, no Manifesto Comunista, a da propriedade. "Os comunistas podem resumir sua teoria nesta fórmula única: supressão da propriedade privada dos meios de produção e de troca, que não deve ser confundida com a propriedade individual dos bens de uso. Em todos os movimentos colocam a questão da propriedade, em qualquer grau de evolução que tenham conseguido chegar, como a questão fundamental". Dos dez pontos que concluem o segundo capítulo, sete dizem respeito, com efeito, às formas de propriedade: a expropriação da propriedade   latifundiária e o emprego da renda da terra em proveito do Estado; a instauração de impostos fortemente progressivos; a abolição da herança dos meios de produção e de circulação; o confisco dos bens dos emigrados rebeldes, a centralização do crédito em um banco público; a socialização dos meios de transporte e a construção de uma educação pública e gratuita para todos; a criação de manufaturas nacionais e o cultivo das terras improdutivas. Estas medidas tendem todas a estabelecer o controle da democracia política sobre a economia, a primazia do bem comum sobre o interesse egoísta, do espaço público sobre o espaço privado. Não se trata de abolir toda forma de propriedade, senão "a propriedade privada de hoje, a propriedade burguesa, o modo de apropriação" fundado na exploração de uns por outros.

7. Entre dois direitos, o dos proprietários de se apropriarem dos bens comuns e o dos despossuídos à existência, "é a força que decide", dizia Marx. Toda a historia moderna da luta de classes, da guerra dos camponeses na Alemanha até as revoluções sociais do século passado, passando pelas revoluções inglesa e francesa, é a história desse conflito. Resolve-se pela emergência de uma legitimidade oposta à legalidade dos dominantes. Como "forma política enfim encontrada de  emancipação", como "abolição" do poder do Estado, como realização da república social, a Comuna ilustra o surgimento desta nova legitimidade. Sua experiência tem inspirado as formas de auto-organização e de autogestão populares surgidas nas crises revolucionárias: conselhos operários, sovietes, comitês de milicias, cordões industriais, associações de vizinhos, comunas agrarias, que tendem a desprofissionalizar a política, a modificar a divisão social do trabalho, a criar as condições de extinção do Estado enquanto corpo burocrático separado.

8. Sob o reino do capital, todo progresso aparente tem sua contrapartida de regressão e de destruição. Não consiste, afinal, "em nada mais do que uma mudança na forma de servidão". O comunismo exige uma ideia diferente e critérios distintos dos do rendimento e da rentabilidade monetária. Para começar, uma redução drástica do tempo de trabalho obrigatório e uma mudança da noção mesma de trabalho: não poderá haver completo desenvolvimento individual no ócio ou "o tempo livre" enquanto o trabalhador permanecer alienado e mutilado no trabalho. A perspectiva comunista exige também uma mudança radical na relação entre o homem e a mulher: a experiência da relação entre os gêneros é a primeira vivência da alteridade e enquanto subsistir esta relação de opressão, todo ser diferente — por sua cultura, sua cor ou sua orientação sexual — será vítima de formas de discriminação e de dominação. O progresso autêntico reside enfim no desenvolvimento e na diferenciação de necessidades cuja combinação original faça de cada um e de cada uma um ser único, cuja singularidade contribua para o enriquecimento da espécie.

9. O Manifesto concebe o comunismo como "uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos". Apresenta assim a máxima de um livre desenvolvimento individual que não deveria ser confundido nem com as ilusões de um individualismo sem individualidade submetido ao conformismo publicitário, nem com o igualitarismo grosseiro de um socialismo de quartel. O desenvolvimento das necessidades e das capacidades singulares de cada um e de cada uma contribui para o desenvolvimento universal da espécie humana. Reciprocamente, o livre desenvolvimento de cada um e de cada uma implica no livre desenvolvimento de todos, pois a emancipação não é um prazer solitário.

10. O comunismo não é uma ideia pura, nem um modelo doutrinário de sociedade. Não é o nome de um regime estatal, nem o de um novo modo de produção. É o nome de um movimento que, de forma permanente, supera/suprime a ordem estabelecida. Mas é também o objetivo que, surgido desse movimento, o orienta e permite — contra políticas sem princípios, ações sem continuidade e improvisações cotidianas — determinar o que aproxima do objetivo e o que afasta dele. Desse modo, não é um conhecimento científico do objetivo e do caminho, mas uma hipótese estratégica reguladora. Nomeia, indissociavelmente, o sonho irredutível de um mundo diferente, de justiça, de igualdade e de solidariedade; o movimento permanente que aponta para a derrocada da ordem existente na época do capitalismo; e a hipótese que orienta este movimento para uma transformação radical das relações de propriedade e de poder, longe dos acordos com um mal menor  que seria o caminho mais curto para o pior.

11. A crise social, econômica, ecológica e moral de um capitalismo que não posterga já seus próprios limites senão ao preço de uma desmesura e de uma injustiça crescentes, ameaçando por sua vez a espécie e o planeta, volta a colocar na ordem do dia "a atualidade do comunismo" radical que invocou Benjamin frente ao ascenso dos perigos do entre guerras.


Notas:

[1] Tal expressão faz referência a Icária, nome dado por Cabet – um dos representantes do chamado socialismo utópico - ao seu país utópico e, mais tarde, à sua colônia comunista na América [nota do tradutor]. (retornar ao texto)

[2] Ver Mascolo, D. (2000) A la recherche d´un communisme de pensée. Paris : Editions Fourbis, p. 113. (retornar ao texto)

Inclusão 17/01/2010
Última alteração 21/01/2010