A Teoria do Materialismo Histórico
Manual Popular de Sociologia Marxista

N. Bukharin


Capítulo VI - O Equilíbrio Entre os Elementos da Sociedade


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§ 35. Laços que unem os diversos fenômenos sociais. Como deve ser colocada a questão

Estudamos acima o problema do equilíbrio entre a sociedade e a natureza. Vimos que esse equilíbrio é rompido e restabelecido constantemente, que havia uma contradição constantemente sobrepujada e que aparecia novamente para ser combatida e que nisto reside a causa essencial do desenvolvimento ou da decadência social. É necessário agora olhar de perto, por assim dizer, "a vida interior" da sociedade.

Quando formulamos perguntas sobre o grau de desenvolvimento social, recebemos muitas vezes respostas como estas: "O grau de desenvolvimento cultural é determinado pela quantidade de sabão que a sociedade emprega"; outros medem a sua altura pelo desenvolvimento da instrução, outros ainda pela quantidade de jornais publicados, alguns pelo desenvolvimento da técnica ou então da ciência, etc. Um professor alemão, Schulze-Gavernitz, no seu livro "A grande indústria têxtil na Rússia", estabeleceu como princípio que o grau de cultura é caracterizado pelo estado das latrinas. Assim, desde estas até às obras mais sublimes do espírito humano, tudo é tomado como padrão para medir o grau de desenvolvimento social.

Quem está com a razão? Qual das medidas é a verdadeira? E por que são dadas tantas respostas disparatadas â mesma questão?

Se examinarmos um pouco mais de perto as respostas acima, verificaremos com facilidade que cada uma delas é mais ou menos justa. O uso do sabão não aumenta com efeito com o desenvolvimento da "cultura e da civilização"? O número de jornais não cresce? A técnica ou a ciência não fazem progressos? Certamente que sim. Que conclusão podemos tirar daí? A de que os fenômenos sociais, em cada momento dado, estão ligados uns aos outros. De que maneira, isto é outra questão, e nós vamos estudá-la. Mas os laços que existem entre eles são indubitáveis, Eis a razão pela qual cada uma das respostas que mencionamos era justa.

Do mesmo modo que a idade do homem pode ser definida aproximadamente, seja segundo a composição ou a resistência de seus ossos, seja segundo a sua fisionomia (matiz, rugas, sistema nervoso, etc.), seja segundo o caráter de seus pensamentos, seja conforme a sua linguagem, assim também podemos julgar o grau de desenvolvimento social segundo diferentes sinais, uns estando ligados aos outros. Se nos mostrassem belas obras de arte, se nos explicassem sistemas científicos complicados, poderíamos dizer que uns e outros não podem aparecer senão numa sociedade desenvolvida. O mesmo diríamos, si tivéssemos descoberto uma técnica rica e complexa. Nos dois casos, teríamos razão.

Este laço, esta interdependência dos fenômenos sociais os mais diversos, salta aos olhos. Basta formular uma série de perguntas para disto nos convencermos. Seria possível, por exemplo, que aparecesse, há 100 anos, uma poesia futurista? Certamente que não. Ou que os esquimós perdidos nas geleiras inventem o telégrafo sem fios? Ou ainda, que a ciência contemporânea preveja o futuro pelas estrelas? Ou, enfim, que o marxismo tenha aparecido na idade média? Evidentemente, tudo isto é impossível. O futurismo não pôde existir há 100 anos, porque a vida nessa época era mais calma, mais igual; e o futurismo nasceu sobre o calçamento das grandes cidades com o barulho e o movimento» no momento das paradas militares e da decadência da cultura burguesa. É a poesia do "jazz-band" universal, poesia que não teria podido aparecer há 100 anos, como um cardo não poderia crescer sobre um teto recentemente pintado. Os esquimós, no meio do gelo, não poderiam inventar o telégrafo sem fio, pois não são capazes de manejar nem o telégrafo comum. A ciência contemporânea não perderá o seu tempo com infantilidades tais como as profecias feitas pela consulta das estrelas, pois que a ciência atingiu o nível bastante elevado para afastar estas bobagens. O marxismo não poderia ter aparecido na idade média, porque o proletariado não existia ainda e porque a teoria marxista não dispunha assim de uma base natural. Por outro lado, por exemplo, a alta técnica, o proletariado, a enorme quantidade de jornais, o reclame colossal dos "trustes", o futurismo, os aeroplanos, a teoria dos elétrons, os dividendos de Rockfeller, as greves de mineiros, os partidos comunistas, a Sociedade das Nações, a Terceira Internacional, a eletrificação, os exércitos compostos de milhões de homens, Lloyd George, Lenine, etc.... tudo isto são fenômenos do mesmo tempo, da mesma época, como o poder do papa, uma técnica relativamente pobre, a servidão, a ciência dos padres (escolástica), a procura da pedra filosofal (graças à qual pode-se transformar qualquer matéria em ouro), a Inquisição, as más estradas, os reis iletrados, a comuna de vila, as feiticeiras e as corporações de ofícios, uma má língua latina (falada e escrita pelos sábios), os cavaleiros andantes, etc., representam os fenômenos de uma mesma época (a idade média). Não se pode transplantar Lenine, Lloyd George e Krupp para a idade-média. Também não se pode ver hoje em dia, na praça Vermelha, em Moscou, um torneio de cavaleiros, em luta de morte, pelo sorriso de uma dama. "Outros tempos, outras canções", "outros tempos, outros costumes".

Assim, não se pode duvidar que existem laços entre os fenômenos sociais, uns estando "adaptados" aos outros. Em outros termos, existe um certo equilíbrio no interior da sociedade entre os seus elementos, entre as partes que a compõem, entre as diferentes espécies de fenômenos sociais.

Augusto Comte já havia observado que os diferentes aspectos da vida social concordam uns com os outros em cada momento dado (é o que denominamos "concensus"). O mesmo fato é acentuado com maior vigor por Muller-Lyer (Die Phasen der Kultur, p. 334 — As fases da cultura):

"Na realidade não importa que função sociológica, não importa que fenômeno cultural pode ser tomado como escala para medir a altura atingida pela cultura, por exemplo: a arte, a ciência, a moral, a economia, a organização do Estado, a liberdade individual, a filosofia, a situação social da mulher, etc.. incluindo o uso do sabão. Seria perfeitamente diferente saber qual a escala escolhida, se todos os fenômenos da civilização se desenvolvessem com um paralelismo rigoroso e perfeitamente proporcionados uns com os outros."

Um dos escritores mais modernos da burguesia alemã, acachapada pelos acontecimentos, O. Spengler (Der Untergang des Abendlandes — O declínio do ocidente — tomo 1. p. 8) escreve:

"Quem não ignora que existe um liame estreito entre a forma antiquada de "polis" (polis: estado, cidade da antiga Grécia, N. B.) e a geometria euclidiana, entre a perspectiva na pintura a óleo da Europa ocidental e a conquista do espaço pelas vias férreas, entre os telefones e os canhões de longo alcance, entre os contrapontos da musica instrumental e o sistema econômico de credito?"

Os exemplos de Spengler podem ser discutidos, mas não é possível negar a idéia segundo a qual os mais variados fenômenos sociais estão ligados entre si.

§ 36. Coisas, pessoas, idéias

Definimos mais acima a sociedade como um agregado humano. Entretanto, num sentido mais largo, as coisas também fazem parte da sociedade. Tomemos, por exemplo, a sociedade atual. Todas essas massas de pedra das cidades, as construções gigantescas, as estradas de ferro, os portos, as máquinas, as casas, etc., tudo isto constitui os "órgãos" materiais e técnicos da sociedade.

Uma maquina fora da sociedade humana perde toda a sua significação como maquina: ela se torna simplesmente um objeto exterior, uma combinação de partes de aço, de madeira, etc., e nada mais. Admitamos que um transatlântico gigantesco tenha ido a pique; quando esse monstro, com os seus poderosos motores que fazem vibrar o seu corpo de aço, com seus milhares de instrumentos, de utensílios, a começar pelos panos de cozinha e a terminar pela estação radiotelegráfica, jaz como um peso morto no fundo dos mares, toda a sua construção complicada perde sua importância social. As conchas incrustam-se nos seus flancos, as algas marinhas cobrirão as partes de madeira, os caranguejos habitarão as cabinas, etc.; o vapor deixa de ser um vapor, pois ele perdeu a sua existência social, ele saiu da sociedade, ele deixou de ser uma de suas partes integrantes, ele interrompeu o seu serviço social e de um objeto social se tornou simplesmente uma coisa, como qualquer objeto da natureza exterior que não importa diretamente à sociedade humana. A técnica não se compõe somente de partes da natureza exterior, é o prolongamento dos órgãos da sociedade, é a técnica social. Assim, podemos falar de sociedade em um sentido mais largo que o emprestado até agora a esta palavra. E então os objetos nela entrarão na sua "existência social", isto é, antes de tudo no sistema técnico da sociedade. É isto que constitui a parte material da sociedade, seu aparelho material de trabalho. Estritamente falando, as coisas não se limitam somente aos meios de produção; elas podem não ter senão uma relação muito afastada com a produção (se não tomarmos em consideração que elas próprias são às vezes o resultado da produção material); tais são, por exemplo, os livros, as cartas, os gráficos, os museus, as galerias de quadros, as bibliotecas, os observatórios astronômicos e meteorológicos, (trata-se sempre da sua parte material), os laboratórios, os instrumentos de medida, os telescópios e microscópios, as retortas, etc., etc. Todos estes objetos não tocam diretamente o processo da produção material e, por conseguinte, não fazem parte da técnica especial, do conjunto das forças produtivas materiais. Apesar disso, é fácil compreender o seu papel; eles não são tão pouco simples pedaços da natureza exterior, eles têm também a sua "existência social", eles entram também, por conseguinte, na concepção de sociedade, compreendida no seu sentido mais lato, ao qual nos referimos acima.

Vimos, no capítulo IV, que a sociedade representa um sistema de homens reunidos. Vemos agora que as coisas também fazem parte desse sistema. Entretanto, no sentido mais estreito da palavra, compreende-se, sob o nome de sociedade, os homens e não uma simples reunião de homens, mas um sistema unido. Estudamos estes homens a princípio como corpos materiais que trabalham. Explicamos assim que a sociedade é antes de tudo uma organização de trabalho, um sistema de trabalho, um aparelho de trabalho humano. Mas sabemos muito bem que os homens não são simplesmente corpos físicos; eles pensam, sentem, desejam, propõem-se fins, e trocam continuamente suas idéias e seus desejos. Às relações entre os homens não são somente relações materiais de trabalho; são também relações psíquicas, "espirituais"; e a sociedade não produz somente objetos materiais; ela produz também "valores espirituais": a ciência, a arte, etc., em outros termos, ela não produz somente coisas, mas também idéias. E estas ultimas, uma vez produzidas, compõem em conjunto sistemas inteiros de idéias. Temos assim na sociedade elementos de três ordens diferentes: coisas, homens e idéias. Certamente, seria absurdo pensar que estes elementos são completamente independentes; todo mundo compreende que sem homens não haveria idéias, que as idéias vivem somente nos homens e não nadam no espaço como o óleo sobre a água. Mas não se segue daí que não possamos distingui-las. É também evidente que deve existir, entre todos estes elementos, um certo equilíbrio. Pode-se dizer mais ou menos que a sociedade não poderia existir se a ordem das coisas, a ordem dos homens e a ordem das idéias não correspondessem umas às outras. Mas é preciso, certamente, prová-lo de maneira muito mais detalhada. Compreenderemos também, então, o laço que existe entre os fenômenos, laço que salta aos olhos e ao qual nos referimos no parágrafo precedente.

§ 37. A técnica social e a estrutura econômica da sociedade

Já provamos anteriormente que para estudar os fenômenos sociais é preciso partir do exame das forças produtivas materiais e sociais, da técnica social, do sistema dos instrumentos de trabalho. E preciso agora que acrescentemos algumas explicações ao que já foi dito acima. Quando falamos de técnica social, é preciso compreender com isto não um instrumento qualquer, nem um amontoado de diversos instrumentos, mas um sistema destes instrumentos, o seu conjunto, no seio da sociedade. É preciso que nos representemos que, em uma dada sociedade, se acham dispersos em lugares diferentes, mas numa certa ordem, ofícios e motores, instrumentos e aparelhos, utensílios simples e complicados. Em alguns lugares, estão concentrados em grandes massas (por exemplo nos centros de grande indústria), em outros lugares, outros instrumentos estão dispersos. Mas, a cada momento dado, os homens estando unidos pelo laço de trabalho, tendo formado uma sociedade, todos os instrumentos de trabalho, grandes e pequenos, simples e complicados, manuais e mecânicos, em uma palavra, todos os que existem em uma sociedade dada e em dado momento, são na realidade ligados entre si. (há certamente sempre um tipo de instrumento que domina, máquinas e aparelhos complicados, na hora atual; anteriormente eram utensílios movidos à mão; com o tempo a importância dos aparelhos e das máquinas que funcionam automaticamente aumenta ainda mais). Em outras palavras, podemos considerar a técnica social como um todo, sendo que cada parte, em determinado momento, é socialmente necessária. No que consiste esse fato? Por que podemos nós considerar a técnica social como um todo? Como se exprime esta unidade de todas as partes do sistema técnico da sociedade?

Afim de compreendermos este fato o mais claramente possível, vamos supor que um belo dia, na Alemanha contemporânea, por exemplo, tivessem milagrosamente desaparecido todas as máquinas que servem para a extração do carvão. O que aconteceria? Todo mundo o compreenderá: quase toda indústria cessaria de funcionar de um dia para outro. Não haveria combustível para as fabricas e as usinas; todas as máquinas e todos os instrumentos nestas usinas parariam, isto é, seriam eliminados do processo da produção. A técnica de uma indústria teria influído assim sobre a técnica de quase todas as outras indústrias. E isto significa que todas as "técnicas" dos ramos de produção particulares formam objetivamente, na realidade, não somente no nosso pensamento, mas um todo, uma técnica social única. A técnica social, como já dissemos, não apresenta um amontoado de instrumentos de trabalhos particulares, mas o seu sistema unido. Isto significa que todas as partes desse sistema dependem de cada uma delas. Isso significa também que, em cada momento dado, as diferentes partes dessa técnica são unidas em uma certa proporção, em uma relação definida. Se em uma fabrica é preciso haver um certo número de fusos para um certo número de teares, um certo número de operários, etc., em toda sociedade, quando a reprodução social caminha normalmente, a uma certa quantidade de fôrmas corresponde um número determinado de máquinas e de utensílios mecânicos, uma quantidade definida de meios de produção, tanto na indústria metalúrgica como na indústria têxtil, química ou qualquer outra. Certamente, as relações não são aqui tão preciosas como em uma fabrica tomada separadamente; entretanto, entre o "sistema técnico" dos diferentes ramos de produção existe uma certa relação necessária que se estabelece em uma sociedade desorganizada de maneira elementar e conscientemente na sociedade organizada, mas que existe sempre. Não é possível, por exemplo, que existam em uma fabrica dez vezes mais fusos do que os necessários. Mas é também impossível que a produção de carvão seja dez vezes maior do que é preciso, e que haja dez vezes mais máquinas e instalações servindo para extrair o carvão do que o necessário para alimentar os outros ramos de indústria. Do mesmo modo que existe um laço determinado, uma relação definida entre os diferentes ramos de produção, também há um laço determinado e uma relação definida entre as diferentes partes da técnica social. É este fato que transforma a simples soma de máquinas, de utensílios e de instrumentos em um sistema de técnica social.

Uma vez compreendido isto, compreender-se-á igualmente que cada sistema dado de técnica social determina também o sistema de relação de trabalho entre os homens.

Com efeito, será possível que o sistema técnico da sociedade, a estrutura do seu aparelhamento, sejam de uma espécie e as relações entre os homens de outra? Será possível, por exemplo, que o sistema técnico social seja a técnica mecânica e que as relações de trabalho de produção sejam as dos artesãos que trabalham a mão? É evidente que isto é impossível. Se a sociedade existe, é preciso que haja um equilíbrio definido entre a sua técnica e a sua economia, isto é, entre o conjunto de seus instrumentos de trabalho e a sua organização de trabalho, entre o seu aparelho material de produção e o seu aparelho produtivo humano.

Tomemos um exemplo. Comparemos a "sociedade antiga" com a sociedade capitalista moderna. Comecemos pela técnica. A. Neuburger ("Die Technik des Altertums". — A técnica da antiguidade — Voiglanders Verlag. Leipzig, 1919), que é antes inclinado a exagerar do que a diminuir a importância da técnica antiga, escreve:

"Aristóteles, nos seus "Problemas da Mecânica", nos dá toda uma lista de instrumentos auxiliares (técnicos) empregados pelos antigos. Entre estes instrumentos, ele cita a alavanca com contrapeso, as balanças de braços iguais, o balouço, as tenazes, a cunha, o machado, o cabrestante, a roda, a polia, a funda, o leme, assim como as rodas de cobre e de ferro com diferentes planos de rotação e que não eram provavelmente senão rodas dentadas" (p. 206).

São os meios técnicos mais elementares que são denominados "máquinas simples" (alavanca, plano inclinado, cunha, etc...). Está claro que esses instrumentos não nos levarão longe. O mesmo acontece com a trabalho dos metais. Está claro que é somente a ossatura metálica das forças produtivas que cria a princípio uma base solida para o seu desenvolvimento; entretanto, é o ouro que é trabalhado em primeiro lugar; a maior parte do metal é utilizado em geral para fabricar objetos que não servem para a produção. Somente a arte do ferreiro apresenta uma exceção, produzindo instrumentos bastante primitivos, graças ao emprego do martelo, da bigorna, das pinças, das tenazes, da lima e de outros instrumentos simples (fabricavam-se sobretudo machados, martelos, picaretas, ferraduras, pregos, correntes, forquilhas, pás, colheres, etc.). A fundição servia sobretudo para fazer estatuas e outros objetos improdutivos. Não é sem razão que Vitruvio definia, como vimos, a maquina: "Um aparelho de madeira".

"Durante séculos inteiros, a técnica permaneceu cristalizada no mesmo nível", diz Salvioli (Der Kapitalismus im Altertum — O capitalismo na antiguidade), entendendo-se naturalmente por estas palavras, não uma estagnação absoluta, mas um desenvolvimento relativamente lento da técnica antiga.

A técnica deste gênero determinava por si mesma o tipo do operário, as suas qualidades de trabalho, assim como as relações de trabalho e as relações de produção.

O tipo do operário, em presença de uma nova técnica, não podia ser senão o do artesão. Os ferreiros, carpinteiros, canteiros, tecelões, joalheiros, mineiros, albardeiros, torneiros, seleiros, oleiros, tintureiros, vidreiros, curtidores, serralheiros, etc., constituíam o tipo de operário produtor (Gustave Glotz: "Le travail dans la Gréce ancienne", Felix Alcan, 1920, p. 265-276; Paul Louis: "Le travail dans le monde romain" 912, p. 234-244). Assim a técnica social determinava a qualidade da maquina viva de trabalho, isto é, o tipo de operário e suas "qualidades" de trabalho. Mas a mesma técnica determinava também as relações entre os trabalhadores. Com efeito, pelo fato mesmo de vermos aqui espécies determinadas de trabalhadores, aparece claramente que estamos em presença de uma divisão da produção em uma série de ramos e em cada um deles executa-se somente uma espécie de trabalho. É a divisão do trabalho.

Que é que determinava esta divisão de trabalho? Evidentemente, os instrumentos apropriados de trabalho que existiam. Mas a forma desta divisão de trabalho era igualmente determinada.

"A divisão do trabalho, diz em resumo Glotz, não permitia que se chegasse aos mesmos resultados que nas sociedades modernas, pois não era uma função do maquinismo. Ela não indicava o regime das grandes usinas, mas uma indústria pequena e média...". "A grande produção era desconhecida no mundo antigo; ele nunca saiu dos limites do oficio" (Salvioli).

Vejamos ainda uma forma de relações de trabalho e de produção, que se apóia também sobre a técnica. Mesmo quando se trata de um trabalho gigantesco, ele é muitas vezes executado pela organização de oficio. Também, por ocasião da construção de um aqueduto em Roma, o Governo fez um contrato com 3.000 (!) mestres pedreiros; eles mesmos trabalharam com os seus escravos (ib., p. 139). Por outro lado, quando a produção era relativamente grande, ela não pôde existir em presença de semelhante técnica senão graças ao emprego de uma força extra econômica: era o caso do trabalho dos escravos, dos quais exércitos inteiros eram trazidos depois de cada guerra vitoriosa, vendidos no mercado, e enchiam os domínios e as oficinas "ergastula". Com outra técnica, o trabalho dos escravos seria impossível; os escravos estragam as máquinas complicadas e o seu trabalho não apresenta nenhuma vantagem. Assim, mesmo um fenômeno tal como o do trabalho dos escravos importados se explica, em condições históricas dadas, pela presença de certos instrumentos de trabalho social. Examinemos ainda um outro problema. Como se sabe, apesar do desenvolvimento bastante considerável das relações comerciais capitalistas, a economia do mundo antigo era em geral uma economia natural. Os homens não se achavam em relações econômicas estreitas: as trocas eram muito menos desenvolvidas do que hoje em dia; um grande número de produtos era fabricado nos grandes domínios (latifundia), nas suas oficinas publicas e para o seu próprio uso. Tudo isto representa igualmente um regime de trabalho determinado, um gênero particular de relações de produção. E isto ainda se explica pelo fraco desenvolvimento das forças produtivas, pela fraqueza da técnica. A produção, com uma técnica semelhante, não podia atirar sobre o mercado um grande excesso de produtos. Em uma palavra, vemos que as relações entre os homens, no processo do trabalho, são determinadas pelo nível do desenvolvimento técnico: a economia antiga está por assim dizer adaptada à técnica antiga.

Comparemos agora com ela a sociedade capitalista, e em primeiro lugar a sua técnica. Para dela termos um apanhado geral, basta lançar um golpe de vista sobre a lista de certos ramos de produção. Não encaramos senão dois grupos: a construção de máquinas, de instrumentos e de aparelhos de um lado, e a indústria eletrotécnica de outro. Vejamos o quadro que obtemos:

I. Construção de máquinas, de instrumentos e de aparelhos.

a) máquinas geradoras de força.

1. Locomotivas.

2. Locomoveis.

3. Outras máquinas geradoras.

b) máquinas de emprego geral.

1. Máquinas-utensílios para o trabalho dos metais, da madeira, da pedra e de outros materiais. 2- Bombas.
3- Aparelhos de elevação e de transporte

4.Outras máquinas.

c) máquinas especializadas.

1. Teares.

2. máquinas agrícolas.

3. máquinas especiais para a extração de matérias primas.

4. máquinas especiais para a fabricação de armas e munições.

5. máquinas especiais para as indústrias de arte e de luxo.

6. Construções de máquinas variadas.

d) Oficinas para reparações de máquinas.

e) Caldeiras e aparelhos diversos.

1. Caldeiras a vapor.

2. Caldeiras, aparelhos e material para certos ramos especiais de indústria (excluindo as máquinas simples).

f) Utensílios para máquinas, peças sobressalentes.

1. Utensílios para máquinas.

2. Peças sobressalentes.

g) Construção de moinhos.
h) Construção de navios e máquinas para navios.
i) Construção de aeronaves e aeroplanos.
j) Aparelhos de proteção contra gazes,
k) Fabricação de meios de transporte.

1. Bicicletas e suas peças sobressalentes.

2. Motores.

3. Construção de vagões de estrada de ferro.

4. Construção de carros.

5. Fabricação de outros meios de transporte, exceto os transportes aéreos e marítimos.

l) Fabricação de relógios e peças sobres alentes.

m) Fabricação de instrumentos de musica.

n) Instrumentos de ótica e aparelhos de precisão, assim como as preparações microscópicas e zoológicas.

1. Construção de instrumentos de ótica, aparelhos de precisão e aparelhos fotográficos.

2. Construção de instrumentos e aparelhos de cirurgia.

3. Fabricação de aparelhos zoológicos e microscópicos.

o) Fabricação de lâmpadas e quebra-luzes (excetuando as lâmpadas elétricas).

II. indústria eletrotécnica. Fabricação de:

a) Dínamos e motores elétricos.

b) Acumuladores e elementos.

c) Cabos e fios isolados.

d) Aparelhos de medidas elétricas.

e) Aparelhos elétricos e de material acessório.

f) Lâmpadas elétricas e projetores.

g) Aparelhos médicos.

h) Aparelhos de corrente fraca.
i) Isoladores elétricos.
j) Aparelhos elétricos para grandes estabelecimentos.
k) Oficina de reparação de instrumentos elétricos diversos.

(Rudolph Meerwarth "Einleitung in die Wir-tschaftstatistik". — Introdução à estatística econômica. — Jena, Gustav Fischer, 1920. p. 43-44).

Basta comparar esta lista com as "máquinas" às quais se refere Aristóteles e Vitruvio, para compreender a diferença enorme que existe entre a técnica da sociedade antiga e da sociedade capitalista. Do mesmo modo que a técnica antiga determinava a economia do mundo antigo, assim também a técnica capitalista determina a economia moderna, a economia do regime capitalista. Se fosse possível fazer o recenseamento da população da Roma antiga, e a de Berlim ou de Londres hoje em dia, e dividir esta população de acordo com as profissões e ofícios, veríamos nitidamente o abismo profundo que nos separa da "antiguidade". Temos hoje em dia operários que dependem da técnica mecânica e que não existiam então. Invés de artesãos (de "fabri ferrarii" quaisquer), encontramos entre nós eletrotécnicos, montadores, mecânicos, caldeireiros, torneiros, óticos, tipógrafos, litógrafos "chaufeurs", ferroviários, condutores de martelos-pilões, de ceifadeiras e combinados agrícolas, de tratores a vapor, engenheiros eletrotécnicos, químicos, linotipistas, etc., etc. Tais operários não existiam nem mesmo de nome, pois não existiam nem os ramos de indústria nem os instrumentos de trabalho correspondentes. Mas, mesmo se passarmos aos operários que têm o mesmo nome e trabalham em uma especialidade já existente anteriormente, não se tratará mais dos mesmos operários. Com efeito, o que há de comum entre um tecelão moderno que trabalha em uma grande usina têxtil e um artesão ou escravo da Grécia ou da antiga Roma? Tratava-se de um homem completamente diferente, que se sentiria em uma usina têxtil moderna como Júlio César se sentiria em um vagão da estrada de ferro subterrânea de Nova-York. Dispomos de outras forças operárias para um outro gênero de trabalho. Nossas forças de trabalho constituem produtos de outra técnica, à qual elas estão adaptadas.

Observamos mais acima que existe atualmente uma quantidade considerável de ramos de indústria que outrora eram desconhecidos. Isto significa antes de tudo que existe na sociedade capitalista uma divisão diferente do trabalho social. Ora, a divisão de trabalho social representa uma das condições essenciais da produção. Qual é a base da divisão de trabalho moderno? Vê-se imediatamente que ela se baseia nos instrumentos modernos de trabalho, no caráter, aspecto, e reunião das máquinas e dos instrumentos, isto é, sobre a técnica da sociedade capitalista. Vejamos um pouco qual é o aspecto que toma uma empresa moderna. Não é uma pequena unidade de produção, não é um oficio de artesão, nem tampouco uma oficina domestica de um grande proprietário de terras. Trata-se de uma organização pujante, na qual entram milhares de homens colocados numa certa ordem, em pontos determinados e executando um trabalho estritamente determinado. Tomemos por exemplo uma empresa capitalista modelo como a fabrica de automóveis Ford em Detroit (Estados Unidos); o seu aspecto especifico nos saltará imediatamente aos olhos: uma exata divisão de trabalho, seu caráter mecânico, o automatismo das máquinas, e o controle exercido pelos operários, uma série lógica de operações, etc. Sobre plataformas em movimento são colocadas peças do produto. Os operários de diferentes gêneros e diferentemente qualificados, de pé perto de suas máquinas e de suas ferramentas, "operam" sobre os produtos semi-trabalhados que se encontram sobre a plataforma. Toda a marcha do trabalho é calculada com a aproximação de um segundo. Cada movimento do operário é previsto, assim como o movimento de seu pé ou de sua mão, ou cada inclinação de seu corpo. O "pessoal" segue a marcha geral do trabalho, tudo se baseia no relógio, no cronometro. Esta divisão de trabalho e sua "organização cientifica" são feitas segundo o sistema Taylor e uma usina destas, se examinarmos a sua estrutura humana, isto é, as relações entre os homens, constitui também ela própria uma relação de produção. O que determina a colocação dos homens? O que determina as suas relações mutuas? A técnica, o sistema de máquinas e suas combinações, a organização do aparelhamento material da usina.

"Deve-se considerar o desenvolvimento da técnica moderna como o fator mais decisivo da organização do trabalho... Não há somente uma maquina na usina. As máquinas são divididas em grupos. Elas se ligam umas às outras, seja pelo seu tipo, seja pelas operações a executar. A passagem do trabalho de um estágio para outro, os transportes no interior da usina... se apresentam aos olhos dos diretores técnicos como uma grandeza que é preciso calcular e delimitar. O plano de trabalho, a distribuição dos lugares ocupados pelos operários, o transporte, são assim regulamentados, automatizados, normalizados... transformando-se pouco a pouco em uma maquina de precisão que garante o controle do trabalho da empresa... No sistema geral desse movimento de coisas, o movimento dos homens e a ação que exercem sobre outros homens aparecem frequentemente como fatores determinantes... O sistema de organização cientifica nasceu" (A. Gastef: Nos taches. Organisation de travail. Revue de Tlnstitute de Travail", n.° 1, 1921 — Nossas tarefas. Organização do trabalho. Revista do Instituto do Trabalho. —).

Para tomarmos conhecimento dos diferentes gêneros de usinas metalúrgicas, vamos enumerar algumas indústrias russas, indústrias mecânicas e elétricas, forjas, fundições, fabricas de caldeiras, laminadores, fornos Martin, fornos Seemens, usinas de produtos químicos, usinas de construção, fabricas de cadinhos, fabricas de carretas, etc. Nas usinas Putilof, em 1914-1916, eram encontradas as seguintes categorias de operários: serralheiros, ajustadores, torneiros de madeira, torneiros de metais, fundidores, furadores, forjadores, chaufeurs, laminadores, mecânicos, marceneiros, carpinteiros, tapeceiros, pintores, homens, mulheres, etc. ("La Revue Métallurgiste" 1917). Vários nomes mostram que certas especialidades estão ligadas a determinados instrumentos, máquinas, ferramentas. As combinações determinadas destes instrumentos de trabalho, à sua repartição na empresa, corresponde também a colocação dos homens. Esta ultima é determinada pela primeira.

Assim, na grande indústria, as relações de produção são determinadas pela técnica. E do mesmo modo que a técnica da Grécia e de Roma antigas decorria das relações de produção correspondentes à pequena e média produção, assim também as relações da grande produção decorrem da técnica moderna. Entre a técnica social e a economia social, existe também um equilíbrio relativo.

Enfim, vimos que o atraso da técnica da sociedade antiga trazia consigo a fraca intensidade das trocas: ela dava à economia um caráter natural: os laços entre as diferentes economias eram muito frouxos. Isto determina também relações de produção bem determinadas. Pelo contrario, a técnica capitalista moderna permite atirar sobre o mercado enormes massas de produtos. Por outro lado, a divisão do trabalho tem como consequência o fato de toda a produção se fazer para o mercado: o fabricante não usa ele próprio os milhões de suspensórios que a sua usina fabrica! Assim, as relações de produção, no que diz respeito à circulação de mercadorias, são também uma consequência da técnica correspondente.

Examinamos a questão sob vários pontos de vista: 1.°) do ponto de vista das forças de trabalho; 2.° do ponto de vista da produção, isto é, vimos em que medida e em que proporção os homens estão organizados nas diferentes empresas; 3.°) procuramos as relações existentes entre essas empresas. E em toda parte, baseando-nos no exemplo de duas economias diferentes (antiga e moderna), chegamos à conclusão de que sempre as combinações de instrumentos de trabalho e a técnica social determinam as combinações e as relações dos homens, isto é, a economia social. Entretanto, isto não representa ainda senão um aspecto, uma parte das reações existentes na produção. É preciso agora que estudemos um outro problema muito vasto e absolutamente essencial: o das classes sociais. Falaremos disto adiante em detalhe, mas examiná-la-emos aqui do ponto de vista das condições da produção.

Quando examinamos as relações entre os homens no processo da produção, encontramos quase sempre (com exceção do por assim dizer comunismo primitivo) que os homens se agrupam de maneira a que um agrupamento não esteja ao lado, mas sim acima de outro. Vejamos as relações que existem no regime da "servidão": no alto estão os proprietários, abaixo os intendentes, gerentes, os empregados, mais baixo ainda os camponeses. Tomemos as relações que existem na produção capitalista. Aqui também, vemos que no processo do trabalho os homens não se dividem somente em fundidores, montadores, ferroviários, etc., que, apesar da variedade de suas ocupações, trabalham entretanto da mesma maneira e estão colocados no mesmo nível da produção, mas que, aqui também, um grupo de homens se acha no processo do trabalho acima de outro: os empregados acima dos operários (o pessoal técnico médio: contra-mestres, engenheiros, agrônomos, técnicos); acima dos empregados médios,estão os empregados superiores (administradores, diretores); mais acima ainda os pretendidos proprietários das empresas, os capitalistas, os grandes chefes e os grandes mestres do processo da produção. Tomemos enfim um grande domínio de um rico proprietário romano: existe aqui toda uma hierarquia; bem em baixo os escravos, os "instrumentos falantes", "instrumenta vocalia", como os denominam os romanos, para distingui-los dos "instrumentos semi-falantes", isto é, do gado e dos instrumentos mudos" isto é, das coisas; depois dos escravos vêem os fiscais, etc., em seguida os intendentes, por fim o proprietário do domínio e sua honrada família (a mulher habitualmente à frente de certos trabalhos domésticos). É preciso ser cego para não ver que estamos aqui em presença de tipos diferentes de relações entre os homens que trabalham. Todas as pessoas indicadas acima participam de uma ou de outra maneira no processo do trabalho e se encontram assim em determinadas relações umas com as outras. É preciso dividi-las em diferentes grupos: seja de acordo com a sua especialidade e profissão, seja conforme a sua classe. Quando nós dividimos segundo a profissão ou especialidade, temos os forjadores, serralheiros, torneiros, etc., em seguida, engenheiros químicos, engenheiros mecânicos, engenheiros especialistas em caldeiras, na tecelagem ou nos locomóveis, etc. Entretanto, está claro que um serralheiro, um torneiro, um mecânico constituem uma certa categoria, enquanto que um engenheiro, um agrônomo, etc., constituem outra, e o capitalista que dispõe de tudo é coisa muito diferente. Não se pode pôr todos esses homens no mesmo nível. É fácil verificar que, apesar das diferenças que separam o trabalho de um serralheiro, de um torneiro ou de um tipografo, as relações entre eles no processo geral do trabalho são do mesmo gênero e que as existentes entre um serralheiro e um capitalista são de um gênero absolutamente diferente. há uma coisa ainda mais evidente: um serralheiro, um torneiro, um tipografo, todos em conjunto e cada um separadamente, têm as mesmas relações com todos os engenheiros e as mesmas, bem que ainda mais afastadas, com os gerentes superiores, mestres da produção, "capitães de indústria" capitalistas.

É aqui que vemos as maiores diferenças entre os papéis, a importância, os tipos, o caráter das relações entre os homens: o capitalista coloca os operários na usina da mesma forma pela qual ele coloca as ferramentas; os operários de modo algum "colocam" o capitalista (enquanto se trata do regime capitalista, bem entendido): são eles que são "colocados" pelos capitalistas. Vemos aqui as relações de dominação à submissão "Herrschafts und Knechtsehaftsverhalfhiss", como diz Marx, "o comandante do capital", (Kommando des Kapitals). É este papel completamente diferente que os homens desempenham no processo da produção que constitui a base da divisão dos homens em diversas classes sociais. Convém chamar a atenção sobre um fato muito importante. Sabemos já por tudo o que precede que o processo de repartição faz também parte do processo de reprodução social. O processo de repartição constitui, por assim dizer, o reverso do processo de reprodução social. O que é o processo de repartição, considerado mais de perto? E de que modo está ele ligado ao processo de produção?

Marx escreve a este respeito ("Introduction à une critique de l'economie politique" — Introdução a uma critica da economia política):

"A repartição, no sentido vulgar, apresenta-se como repartição dos produtos; mais ainda, como alguma coisa afastada da produção e independente em relação a ela. Mas antes de se tornar a repartição dos produtos, ela é antes de tudo uma repartição de instrumentos de produção e é em segundo lugar, — o que constitui a definição seguinte da mesma relação, a repartição dos membros da sociedade entre os diferentes ramos da produção (submissão coletiva dos indivíduos às relações que existem na produção). A repartição dos produtos é evidentemente o resultado da repartição que faz ela própria parte do processo de produção e que determina a composição da produção. Estudar a produção sem tomar em consideração a repartição que dela faz parte, não é senão um trabalho abstrato; pelo contrario, ao mesmo tempo em que se dá esta repartição, que constitui um elemento da produção, dá-se também a repartição dos produtos".

É preciso analisar esta proposição de Marx.

Vemos antes de tudo que o processo de produção determina por si mesmo o processo de repartição dos produtos. Se, por exemplo, a produção se faz em explorações particulares e independentes (por empresas capitalistas particulares ou por artesãos isolados), então, em cada exploração, não se produz mais tudo de que necessita esta, mas um artigo especial (em uma relógios, em outras pão, etc.); está claro que a repartição dos produtos se fará por meio da troca. Os homens que fabricam fechaduras não podem com elas vestir-se ou come-las. Os homens que fazem o pão, não podem com ele fechar os armazéns de farinha; eles necessitam de fechaduras e de chaves. Forçosamente, eles trocarão os seus produtos, farão comércio. Assim, a distribuição dos produtos fabricados pelos homens que vivem em sociedade se dará por via da troca. Da maneira por que se produz, decorre o modo pelo qual se repartem os produtos. A repartição dos produtos não é uma coisa independente do próprio produto, ao contrario, ela é determinada por ele e constitui com ele uma parte da reprodução material da sociedade.

Entretanto, a própria produção implica duas outras espécies de repartição: em 1.° lugar, a repartição dos homens, o lugar que ocupam no processo da produção, conforme os papéis variados que desempenham no processo da produção (é disto sobretudo que falamos no parágrafo precedente); em segundo lugar, a repartição de instrumentos de produção entre esses homens. Essas duas espécies de divisões fazem parte da produção. Com efeito, tomemos os nossos exemplos que precedem, os exemplos referentes à sociedade capitalista. Ali vemos uma "repartição dos homens". Esses homens "repartidos", isto é, colocados na produção de maneira determinada, dividem-se, como já vimos, em classes, e a base desta divisão é determinada pelo papel que eles desempenham no processo da produção. Vejamos isto mais de perto. A esta "repartição dos homens", aos diferentes papéis que esses homens desempenham na produção, está ligada igualmente a repartição dos meios de trabalho. O capitalista, o grande proprietário de terras, tem à sua disposição os meios de trabalho (a fabrica e as máquinas, o domínio e as oficinas de trabalho, a terra, as edificações), enquanto que um operário não possui nenhum meio de produção, exceto a sua força de trabalho; o escravo, não pode nem sequer dispor de seu próprio corpo, e o servo não se distingue muito do escravo. Vemos assim que os diferentes papéis das classes na produção se baseiam na repartição entre eles dos meios de produção. No jornal londrino'"Le Peuple" (ns. 6|20, 20 de Agosto de 1859), referindo-se ao livro de Marx: "Contribution a la critique de l'economie politique", Engels escrevia:

"A economia política não fala das coisas, mas de relações entre os homens, e em ultima analise, de relações entre as classes e essas relações são sempre ligadas às coisas e se apresentam como coisas".

O que isto significa? Vamos explicá-lo com alguns exemplos: tomemos as relações habituais entre as classes duma sociedade capitalista, relações entre os capitalistas e os operários. A que "coisa" estão elas ligadas? Aquela que se encontra entre as mãos dos capitalistas, aos meios de produção dos quais dispõem os capitalistas e que os operários não possuem. Estes meios de produção servem aos capitalistas de instrumento para tirar lucro, instrumento de exploração da classe operaria. Não são simplesmente coisas, mas coisas tomadas na sua significação social particular. Em que sentido? No sentido de que eles são não somente um meio de produção, mas também um meio de exploração dos operários assalariados. Em outros termos essa "coisa" exprime as relações entre as classes ou, como diz Engels, as relações entre as classes estão ligadas às coisas. No nosso exemplo, essa "coisa" é o capital.

Assim, a forma particular das relações de produção, forma que consiste em relações entre as classes, é determinada pelos diferentes papéis que esses grupos de homens desempenham no processo de produção e pela repartição entre eles dos produtos. A repartição dos produtos está ali inteiramente contida.

Por que motivo percebe o capitalista lucro? Porque ele possui os meios de produção, porque ele é capitalista.

As relações de produção entre as classes, isto é, as relações ligadas aos diferentes modos de repartição dos meios de produção, têm uma importância capital para a sociedade. São elas que determinam antes de tudo o aspecto dessa sociedade, sua estrutura ou, como dizia Marx, sua estrutura econômica.

As relações de produção, como se vê agora, são extremamente variadas e complexas. Se nos lembrarmos ainda que consideramos a repartição dos produtos como uma parte da reprodução, compreenderemos facilmente que as relações entre os homens no processo da repartição fazem parte das relações de produção. As relações entre os homens na nossa sociedade complexa são numerosas. As relações entre os comerciantes, banqueiros, empregados, corretores, varejistas, operários, consumidores, vendedores, caixeiros-viajantes, vendedores ambulantes, fabricantes, armadores, marítimos, engenheiros, contra-mestres, etc., são todas elas relações de produção. Na vida real, elas se emaranham nas combinações mais variadas e estranhas; elas formam desenhos complicados. Entre esses desenhos há um essencial e de particular importância, a saber, a relação existente entre os grandes agrupamentos de homens, agrupamentos estes que são denominados classes sociais. Dos gêneros das classes existentes, das relações entre essas classes, do papel que elas desempenham na produção, da maneira por que são distribuídos os instrumentos de trabalho, — de tudo isso depende também o caráter da sociedade que temos diante de nós: os capitalistas no alto, o operário assalariado em baixo, — eis aí a sociedade capitalista; o grande proprietário de terras no alto, dispondo de todas as coisas e de todos os homens integralmente, — eis o regime das escravidão; no alto os operários dirigindo tudo, é o regime da ditadura do proletariado, etc. Quando as classes não existem, isto não significa que a sociedade desapareceu. Isto significa simplesmente que a sociedade de classe não existe mais. Tal é, por exemplo, a sociedade comunista primitiva; tal será também a sociedade comunista do futuro.

Temos agora um outro problema a resolver. Vimos anteriormente que as relações de produção variam com a técnica social. Esta proposição será aplicável às relações de produção que são ao mesmo tempo as relações entre as classes? Basta lançar um golpe de vista sobre a marcha efetiva da evolução de não importa que sociedade, para que nos convençamos imediatamente de que essa proposição é justa. Assim, as enormes mudanças entre as classes se produziram sob as vistas da geração atual. Apenas há algumas dezenas de anos a classe dos artesãos independentes era ainda muito numerosa. Ela principiou a fundir-se muito rapidamente. Por que? A técnica mecânica desenvolveu-se e, com ela, a grande indústria, o sistema das fabricas. E, ao mesmo tempo, o proletariado por sua vez aumentou; é assim que a grande burguesia industrial se desenvolveu e os ofícios desapareceram pouco a pouco. O agrupamento das classes tornou-se outro. E não pode ser de outro modo. Com efeito, quando a técnica varia, a repartição do trabalho na sociedade varia por sua vez, certas funções na produção desaparecem ou se tornam menos importantes, outras aparecem e assim por diante. Ao mesmo tempo, o agrupamento das classes também muda. Quando forças produtivas da sociedade estão pouco desenvolvidas, a indústria é muito fraca, e a economia social tem um caráter agrário, rural.

Nada de admirar que, em semelhante sociedade, sejam os campos que dominem, e que à frente da sociedade se encontre a classe dos grandes proprietários de terras. Ao contrario, quando as forças de produção constituem na sociedade uma grandeza já bastante desenvolvida, vemos então uma indústria pujante, cidades, vilas industriais, etc.. Mas por isto mesmo são as classes urbanas que adquirem uma influência preponderante. Os nobres passam ao segundo plano, cedendo o lugar à burguesia industrial ou a outras frações da burguesia. O proletariado torna-se uma potência. É natural que o reagrupamento continuo das classes pode mudar completamente a forma da sociedade. Isto acontece quando a classe que estava em baixo sobe para o poder. De que maneira isto se produz? Falaremos a este respeito no capítulo seguinte. No momento basta dizer que as relações entre as classes que constituem a parte mais importante das relações de produção, variam também elas relativamente à variação das forças produtivas.

"Segundo o caráter dos meios de produção, variam igualmente as relações sociais entre os produtores, as condições de sua colaboração, assim como a sua participação na marcha da produção. A invenção de um instrumento de guerra novo, a arma de fogo, por exemplo, muda forçosamente toda a organização interna do exército, assim como as relações mutuas que ligam as pessoas que fazem parte do exército e graça às quais ele representa um conjunto organizado; enfim as relações mutuas entre os exércitos por sua vez também variaram. As relações sociais entre os produtores as relações sociais da produção variam por conseguinte com a transformação e desenvolvimento dos meios materiais de produção, isto é, com o desenvolvimento das forças produtivas" (K. Marx, "Capital et Salariat").

Em outros termos:

"A organização de cada sociedade é determinada pelo estado de suas forças produtivas. Com a variação desse estado se transforma forçosamente também, cedo ou tarde, a organização social. Por conseguinte, ela se acha em estado de equilíbrio instável sempre que sobem (ou baixam, N. B.) as forças produtivas sociais". (G. Plekanov: "La conception materialiste de l'histoire. Critique de nos critiques").

O conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, ou por outra, os seus meios de produção. Este é o aparelho do trabalho humano da sociedade, a sua "base real".

Se examinarmos as relações de produção, nós as levaremos para o terreno da repartição dos homens no espaço. Como se exprime essa relação? Pelo fato de cada homem, como já vimos, ter o seu lugar determinado como um parafuso num mecanismo de relojoaria. É precisamente esta situação determinada no espaço, "sobre o campo de trabalho", que faz dessa "repartição", dessa "colocação", uma relação de trabalho social. Cada coisa, evidentemente, se encontra no espaço e se move. Mas os homens estão ligados aqui precisamente, por assim dizer, pelas posições determinadas de trabalho que eles ocupam. É uma relação de ordem material, semelhante ô das parcelas de um mecanismo de relojoaria. É preciso não esquecer que as criticas ao materialismo histórico confundem constantemente essas noções, aproveitando-se do fato da palavra "material" ter varias significações. Assim, por exemplo, eles "levam" o processo histórico às "necessidades" ou aos "interesses" materiais e triunfam facilmente do materialismo histórico, provando com justeza que o "interesse" não é de modo algum uma coisa material, no sentido filosófico da palavra, mas aparentemente qualquer coisa de psíquico. E, com efeito, o interesse não é de modo algum a matéria. Mas o que é uma desgraça, é que certos "partidários" do materialismo histórico (que consideram Marx como um filósofo burguês qualquer e que não estão de acordo com o materialismo filosófico) confundem também facilmente as coisas. Assim, por exemplo, Max Adler, que concilia Marx com Kant, vê na sociedade um conjunto de ações mutuas psíquicas: tudo para ele é psíquico (nota-se a mesma coisa em A. A. Bogdanov: "Contribuition à la psychologie de la societé" — Contribuição à psicologia da sociedade). Vejamos um espécime de raciocínio deste gênero;

"Mas a relação não é de modo algum uma coisa material no sentido filosófico do materialismo que coloca na mesma categoria a matéria e a substancia animada. Em geral é difícil colocar "a estrutura econômica", "base material" do materialismo histórico, numa relação qualquer com a "matéria" do materialismo filosófico, qualquer que seja o sentido que lhe dermos... E isto concerne não somente ao que exerce a ação, mas também ao que é criado por esta ação. Os meios de produção... são antes produtos do espírito humano..." (Max Zetterbaum: "Contribuição à concepção materialista da história", na coleção intitulada: "O Materialismo Histórico". Edição do Soviet de Moscou, 1919.)

M. Zetterbaum desnorteia-se pelo fato das máquinas não serem feitas por homens desprovidos de alma. Mas como os próprios homens não são tampouco feitos por mortos, segue-se que tudo na sociedade é o produto do espírito desprovido de corpo, de um espírito benfazejo. Por conseguinte, a maquina é alguma coisa de psíquica; por conseguinte a sociedade não dispõe de nenhuma "matéria". E entretanto percebe-se que a coisa não é exatamente assim. Com efeito, mesmo o espírito mais puro não poderia ter criado nem os homens, nem as máquinas sem a carne pecadora. E mais ainda, sem essa carne pecadora, ele não teria ardido de desejo de fazer coisas semelhantes. Mas o que fazer da "relação"? Explicá-lo-emos ainda uma vez ao Sr. Zetterbaum. Esperamos que o Sr. Zetterbaum não protestará se falarmos do sistema solar como sendo um sistema material. Mas o que é esse sistema e porque é ele um sistema? Por uma razão muito simples, a saber que suas partes integrantes (o sol, a terra e todos os outros planetas) se acham em relações definidas uns com os outros, pois ocupam a cada momento dado um lugar determinado no espaço. E do mesmo modo pelo qual o conjunto dos planetas que estão em relações definidas entre si forma o sistema solar, assim também o conjunto dos homens ligados pelas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, sua base material, seu aparelho humano. Encontramos também em Kautsky, que confunde sem razão a técnica e a economia, passagens muito duvidosas (por exemplo na pagina 104 da obra mencionada acima). A estas afirmações podemos opor a seguinte passagem do escritor arquiburguês W. Sombart. Vejamos o que diz este sábio muito pouco materialista:

"se nos servirmos de imagem, podemos falar da vida econômica como de um organismo e emitir uma proposição segundo a qual este ultimo é composto de um corpo e de uma alma. O corpo determina a forma exterior, na qual se desenvolve a vida econômica: as formas econômicas e produtivas, as organizações múltiplas, no meio das quais e por causa delas se dirigem a "vida econômica", etc... Está claro que é preciso em primeiro lugar colocar na rubrica da forma e da organização econômica toda a estrutura econômica da sociedade. É ela que constitui, se nos exprimirmos por imagens, o corpo dessa sociedade. (Werner Sombart: "Der Bourgeois". Edição Duncker und Humblot, Munich e Leipzig, 1913, p. 2).

§ 38. A superestrutura e suas formas

É necessário que procedamos agora ao exame das outras faces da vida social. Temos diante de nós as seguintes séries de fenômenos sociais: a estrutura política e econômica da sociedade (organização de seu poder político, de suas classes, dos partidos, etc.), os costumes, leis e a moral (as normas sociais, isto é, a regra de conduta dos homens); a ciência e a filosofia; a religião, a arte, e enfim a linguagem — meio de comunicação entre os homens. Denominam-se em geral todos esses fenômenos, com exceção da estrutura política e social da sociedade, "cultura espiritual".

A palavra "cultura", de origem latina, supõe a ação de "cultivar". A cultura indica por conseguinte tudo o que é "obra da atividade humana", no sentido lato da palavra, isto é, tudo o que é produzido de uma maneira ou de outra pelo homem social. "A cultura espiritual" é também um produto da vida social: ela é feita pelo processo vital geral da sociedade. Assim, para compreende-la, é preciso apresentá-la justamente como uma parte integrante desse processo vital geral. E entretanto, certos sábios burgueses desejam, custe o que custar, destacar essa "cultura espiritual" do processo vital da sociedade, isto é, divinizá-la na realidade, fazer dela uma entidade particular, independente do corpo e do espírito sem pecado. Assim, por exemplo, Alfred Weber ("La notion sociologique de la culture. Discussion au II éme. Congrés Sociologique Allemand". Tubingem. Edição Mohr, 1913), que denomina o crescimento da vida social, sua complexidade e suas riquezas, processo da civilização exterior, escreve:

"Mas nós sentimos (!) agora que a cultura está acima de tudo isto, que nós compreendemos sob o nome de evolução da cultura alguma coisa muito diferente... Não é senão quando... a vida se torna alguma coisa que se coloca acima das necessidades e da utilidade, que nós estamos em presença de uma cultura" (XXX p. 10-11).

Em outros termos, a cultura é uma parte da vida, mas ela não é determinada pelas "necessidades e utilidades da vida", isto é, ela provém da sociedade sem ser determinada por ela. É evidente que uma tal concepção conduz ao divorcio com a ciência e à sua substituição pela fé. Isto explica porque Weber emprega o termo "nós sentimos".

Para passar a essa cultura "espiritual", é mais cômodo examinar em primeiro lugar os traços mais gerais da estrutura político-social da sociedade, esta ultima sendo determinada diretamente, como veremos adiante, pela sua estrutura econômica.

A expressão mais patente da estrutura político-social da sociedade é o poder de Estado. O que é o poder de Estado? Para responder a esta pergunta, é preciso primeiro perguntar: como é possível a existência de uma sociedade de classes? Pois se a sociedade é composta de classes diferentes, essas classes têm também interesses diferentes. Uns possuem tudo, os outros quase nada. Uns ordenam, comandam, apropriam-se dos frutos do trabalho alheio; outros obedecem, executam ordens, entregam os frutos de seu próprio trabalho. A posição das classes na produção e na repartição, isto é, as suas condições de existência, o seu papel na sociedade, a sua "existência social", determinam também uma certa consciência. Sabemos que tudo no mundo é determinado por alguma coisa, que nada existe sem causa. Não é de admirar que as dificuldades da situação das classes determinam também uma diferença nos seus interesses, nos seus desejos, assim como também a luta entre elas, luta às vezes de morte. Nestas condições, como pode ser atingido o equilíbrio na estrutura de uma sociedade de classes? Como acontece que não haja uma ruptura a cada instante? Como é possível a existência de uma sociedade na qual, como dizia um homem publico inglês, existem, no meio de uma nação, na realidade duas nações (isto é, duas classes).

Sabemos, entretanto, que a sociedade de classes existe e por conseguinte deve haver uma condição de equilíbrio suplementar. É preciso que exista alguma coisa desempenhando o papel de um laço que mantém as classes, não deixando a sociedade quebrar-se, cair aos pedaços. Este laço, é o Estado. É uma organização que entrava com seus inúmeros fios toda a sociedade e a mantém na sua rede. Mas qual é essa organização? Donde provém? Pois certamente ela não caiu do céu. Ela não pode ser uma organização sem classe, os homens não pertencendo a uma classe para construir uma organização fora das classes ou bem "acima das classes" apesar do que dizem os sábios burgueses, A organização do Estado é "essencialmente a organização de uma classe dominante".

Formulemos agora a seguinte pergunta: qual é a classe que "domina"? De que classe é o poder do Estado o instrumento, este poder que obriga as outras classes à obediência pelo constrangimento, pelas cadeias ideológicas e espirituais seu aparelho imenso dividido em múltiplos ramos? Não será difícil responder a essa pergunta, se nos lembrarmos de tudo o que foi dito anteriormente. Representemo-nos, com efeito, a sociedade capitalista. É a classe dos capitalistas que domina aqui a produção. Será possível que o proletariado, por exemplo, domine no Estado de uma maneira durável? Não, certamente. Pois então uma das condições essenciais de equilíbrio viria a faltar e se produziria uma ou outra das seguintes alternativas: ou bem o proletariado tomaria igualmente em mãos o poder sobre a produção, ou bem a burguesia retomaria o poder de Estado. Assim, enquanto uma sociedade tendo uma determinada estrutura econômica existe, sua organização de Estado deve ser adaptada à sua organização econômica, em outros termos a estrutura econômica de uma sociedade determina também a estrutura estatal e política.

Examinemos ainda uma questão. O Estado é uma organização imensa que abrange todo o país e que domina vários milhões de homens. Essa organização necessita de todo um exército de empregados, funcionários, soldados, oficiais, legisladores, homens de leis, ministros, generais, etc. etc., Ela contém ainda camadas inteiras de homens dispostos uns acima de outros. Na sua estrutura se refletem como em um espelho todas as relações de produção. Numa sociedade capitalista, por exemplo, é a burguesia que chefia a produção; o mesmo acontece com o Estado. Um proprietário de usina é seguido imediatamente de um diretor de fabrica que ele próprio é às vezes capitalista; as coisas se passam do mesmo modo, no Estado capitalista, com os ministros, com os grandes chefes burgueses. É nesses meios que se recrutam os generais do exército. A colocação média na produção é ocupada pelo técnico e pelo engenheiro, pelo intelectual; os mesmos intelectuais exercem as funções de empregados médios no aparelho de Estado e é entre eles que são geralmente recrutados os oficiais. A classe operaria correspondem os pequenos funcionários, soldados, etc. Certamente, existem aqui algumas diferenças, mas em geral a estrutura do poder político corresponde à estrutura da sociedade. Com efeito, imaginemos por um instante que os pequenos funcionários, por um milagre qualquer, se tornem superiores aos superiores. Isto equivaleria a dizer que a antiga classe dominante tivesse deixado escapar de suas mãos o poder político. E isto não é possível senão quando a sociedade por inteiro perde o seu equilíbrio, isto é, quando nos achamos em presença de uma revolução. Mas essa revolução, por sua vez, não pode deflagrar sem que modificações correspondentes se tenham efetuado na produção; assim, como vemos, a estrutura do próprio poder político reflete a estrutura econômica da sociedade, isto é, que as mesmas classes ocupam os mesmos lugares.

Citemos alguns exemplos tirados de domínios e de épocas diferentes. No antigo Egito, por exemplo, a direção da produção se confundia quase com a administração do Estado. Os grandes proprietários fundiários se achavam tanto à frente da produção como do Estado. A maior parte da produção era a do Estado, baseada sobre a grande propriedade agrária. O papel dos agrupamentos sociais da produção se confundia com a sua situação como funcionários superiores, médios e inferiores desse Estado e como escravos (O. Neurath: "Antike Wirtschaffosgeschichte", edição Teubner, 1909, p. 8).

"As famílias notáveis são certamente famílias rurais, mas ao mesmo tempo elas representam a aristocracia dos funcionários" (Max Weber: "Agrargeschichte" — História Agrária — no Handworterbuch der Staatwissenschaften — Dicionário das ciências sociais).

As vezes a ligação entre o poder de Estado e o comando da produção era patente. No XV.° século, na Republica capitalista comercial de Florença, dominava o banco dos Medicis:

"O banco dos Medicis e o tesouro florentino confundiram-se completamente, e a falência da casa comercial dos Medicis confundiu-se com a queda da Republica de Florença". (M. Pokrovsky: "Le materiel economique, Moscou, 1906).

Na segunda metade do século XVIII, os grandes proprietários fundiários que exploravam os seus servos dominavam a produção russa, e também detinham o poder de Estado, organizado em classe "nobre" privilegiada. E quando os "Mojiks" levantaram o estandarte da revolta, conhecida na história pelo nome de "revolta de Pougatchef", a "nobre" imperatriz Catarina IIª exprimiu o verdadeiro sentido do poder político, participando como "proprietária fundiária de Kazan" à formação de um regimento de cavalaria destinado a restabelecer a ordem no meio da "populaça", o que provocou no meio dos nobres de Kazan uma explosão de sentimentos de fidelidade. As relações que Catarina entretinha com os filósofos franceses, amantes da liberdade, não a impediram de introduzir, por exemplo, o direito de servidão na Ukrania. A. Tolstoi exprimiu muito bem a ligação destes fatos:

Ao grande povo
Do qual sois a mãe,
Deveis dar a liberdade,
É a liberdade que lhe deveis dar.
Ela lhes respondeu:
"Senhores, vós me confundis".
E ela se apressou
A reatar os ucranianos à gleba.

Na America contemporânea (Estados Unidos), é o capital financeiro, um grupo de banqueiros e de organizadores de "trustes", que dirige tudo. O poder político lhes pertence a tal ponto que as decisões do Parlamento são tomadas em primeiro lugar nos bastidores do capital unificado.

Entretanto, a estrutura política e social da sociedade não se exprime inteiramente pelo poder político. Tanto a classe dominante como as classes oprimidas dispõem de numerosas organizações e de uniões as mais variadas. Cada classe tem habitualmente a sua guarda avançada, os seus membros mais "conscientes" que formam partidos políticos, lutando pelo poder. A classe dominante tem geralmente o seu próprio partido; as classes oprimidas têm os seus; as classes "médias" também. Existindo ainda outras subdivisões no interior de cada classe, não é de admirar que uma classe possua às vezes vários partidos, se bem que seus interesses mais constantes, mais sólidos, mais essenciais sejam expressos por um só dentre eles. Além dos partidos organizados, há ainda outras organizações: assim, por exemplo, os capitalistas americanos têm hoje em dia as suas associações de luta contra os operários, organizações especiais para as fraudes eleitorais (o que se denomina Tammany-Hall), organizações de recrutamento, furadores de greve, organizações de provocadores (agencia de policia e detetives particulares de Pinkerton) e grupos escondidos aos olhos do mundo, graças a uma solida conspiração das firmas capitalistas as mais influentes, assim como dos políticos mais em voga, grupos cujas decisões são em seguida confirmadas pelos órgãos oficiais do Estado. Na antiga Rússia, o papel de organização auxiliar do Estado dos nobres era assumido pelos "Cem-negros", que tinham mesmo ligações com a casa reinante dos Romanoff; em 1921, o mesmo papel era desempenhado na Itália pelos fascistas, na Alemanha pelo Orguesch. As classes oprimidas têm também, fora de seus partidos, uniões "econômicas" diversas (os sindicatos profissionais, por exemplo), organizações de combate, clubes; nessas organizações poderemos classificar os "bandos" de Stenka Razin ou de Pugatchef. Numa palavra, todas as organizações que empreendem uma luta de classe, a começar pela "juventude dourada", as "corporações" alemãs de estudantes e acabando pelo Estado de um lado; a começar pelos partidos e acabando pelos clubes do outro, todas fazem parte da estrutura política e social da sociedade. Não é necessário fazer um grande esforço intelectual para compreender o que determina a sua existência. É o reflexo e a expresso das classes. Por conseguinte, aqui também a "economia" determina a "política".

Mas, examinando essa "superestrutura política" da sociedade, podemos e devemos tomar em consideração o seguinte fato: resulta, com efeito, dos exemplos já citados que a superestrutura política não se limita a um só aparelho humano. Do mesmo modo que toda a sociedade, ela é composta, por sua vez, de combinações de coisas, homens e idéias. Tomemos o aparelho de Estado, por exemplo. Nele encontramos a sua parte material, sua hierarquia, suas idéias sistematizadas (normas, leis, decisões, etc.). Tomemos o exército; é também uma parte do Estado, mas ele tem também, por sua vez, a sua "técnica" (canhões, fuzis, metralhadoras, intendência), sua organização dos homens "repartidos" segundo um certo modelo, e suas "idéias" que são inculcadas a todos os membros do exército (idéia de obediência, disciplina, etc.) por uma instrução militar complicada e por uma educação especial dos homens. Se examinarmos o exército deste ponto de vista, chegamos sem dificuldade aos seguintes resultados: a técnica do exército é determinada pela técnica geral do trabalho produtivo em uma sociedade dada; não é possível fazer um canhão se não se sabe fundir o aço, isto é, sem dispor dos instrumentos correspondentes à produção. A repartição dos homens, a ordem do exército, dependem da técnica militar e ao mesmo tempo da divisão da sociedade em classes; do gênero dos armamentos depende a divisão do exército em artilharia, infantaria, cavalaria, engenharia, etc.; daí os diferentes gêneros de soldados, chefes, homens tendo funções particulares (os telefonistas, por exemplo). De outro lado, a divisão da sociedade em classes determina as camadas sociais que fornecem, por exemplo, os corpos de oficiais, de chefes que dirigem a ação do exército, etc. Enfim, as idéias especiais que animam o exército são determinadas, de um lado pelo regime do exército (os regulamentos, o sentimento de disciplina, etc.) e de outro, pela estrutura das classes da sociedade (no exército tzarista dizia-se: obedece ao tzar, defende "a fé, o tzar e a pátria" e, no exército vermelho se diz: "seja disciplinado para defender os trabalhadores contra os imperialistas"). Bastam estes exemplos para se poder dizer: a superestrutura política e social é uma coisa complexa, composta de elementos diversos ligados entre si. Em geral, ela é determinada pela estrutura de classe da sociedade, estrutura que por sua vez depende das forças produtivas, isto é, da técnica social. Certos elementos dependem diretamente da técnica, "técnica militar"; outros tantos do caráter de classe da sociedade (de sua economia), como também da "técnica" da própria superestrutura ("a estrutura do exército"). Assim, todos esses elementos dependem direta ou indiretamente do desenvolvimento das forças produtivas sociais.

Um lugar particular é ocupado, entre as organizações humanas, pela organização familiar, isto é, pelo conjunto dos maridos mulheres e filhos. Essa organização dos sexos, que variava constantemente, tinha como base relações econômicas definidas:

"a família é igualmente uma formação, não somente social, mas ainda (e antes de tudo) econômica baseada sobre a divisão do trabalho entre o homem e a mulher, sobre a diferenciação sexual..." o casamento primitivo não é outra coisa senão a expressão dessa união econômica (Muller-Lyer, ob. cit. p. 110). (Marx: Capital, 1. "No interior de uma família... efetua-se uma divisão natural de trabalho, baseada na diferença dos sexos e da idade...").

A família não aparece como uma coisa solida... senão como consequência de modificações do regime da tribo, que oferecia o caráter do comunismo primitivo. (As formas primitivas das relações sexuais eram as de "relações sexuais desordenadas", isto é, de ajuntamento livre e instável do homem e da mulher). Vejamos como o Sr. N. Pokrovsky caracteriza a família primitiva dos eslavos ("a grande família", a "zadruga" servia, "vélika kutsia", "a grande casa" em sérvio); os membros de uma família destas, — operários da mesma exploração, soldados dos mesmos destacamentos, enfim adoradores dos mesmos deuses, participantes do mesmo culto ("Historia da Rússia", tomo 1, 1920). As bases econômicas de uma tal família são ainda melhor caracterizadas pelo fato seguinte:

"Nós cometeríamos um grande erro, diz o Sr. N. Pokrovsky, se atribuíssemos à esses laços do sangue uma importância preponderante: eles existem geralmente, mas não são absolutamente necessários. Uma semelhante economia coletiva estava organizada frequentemente no Norte por homens completamente estranhos uns aos outros: unidos por um acordo particular, eles fundavam um "lar" não para sempre, mas por um certo período de tempo, por 10 anos, por exemplo... Assim o laço econômico antecede aqui o laço de sangue, de "parentesco", no sentido que damos a essa palavra (ib.)".

As modificações de formas das relações familiares relativamente às condições econômicas podem ser observadas também nos tempos modernos; basta comparar uma família camponesa com uma família operaria ou com a de um burguês contemporâneo.

A família camponesa é uma união sólida, tendo uma base de produção direta.

"Como posso eu me arranjar sem mulher? A mulher é indispensável, diz o camponês. É preciso mugir as vacas, tratar dos porcos, preparar as refeições, lavar, tratar das crianças, etc..".

A importância econômica da família é tão grande que o casamento é o resultado de um cálculo econômico: "Precisa-se de uma dona de casa". Os membros da mesma família são considerados do ponto de vista econômico, como "trabalhadores" e como "consumidores". Tendo uma tal base, a família relativamente estável, a família camponesa se distingue por uma solidez patriarcal, enquanto ela não foi tocada pela influência "desmoralizadora" da cidade. As coisas se passam de outro modo com o operário. De fato ele não dispõe de casa própria. Sua "economia domestica" é toda ela de consumo; ele não faz nada mais senão gastar o seu salário. De outro lado, a cidade com seus restaurantes, suas lavanderias, etc., torna em geral a economia domestica menos necessária. Enfim, a grande indústria contribui para a "decomposição da família", obrigando a mulher-proletária a trabalhar na usina. Todas estas circunstancias formam outras relações familiares, mais nobres, menos estáveis. Na grande burguesia, a propriedade privada conserva a família, mas o parasitismo crescente da burguesia, a formação no seu seio de camadas inteiras de percebedores de rendas, transforma a mulher em objeto, numa bonita boneca, mas sem cérebro, instrumento de prazer, "bibelot" de toucador. As diversas formas de casamento (monogamia, poligamia, poliandra, etc.) correspondem também a condições de evolução econômica. É preciso não esquecer que as relações sexuais, tomadas em geral, não se limitavam quase nunca às relações dentro dos quadros da família. Fenômenos tais como a prostituição já aparecem na mais remota antiguidade. As formas e as dimensões da prostituição são ligadas, por sua vez, com a estrutura econômica da sociedade; basta lembrar o papel desempenhado pela prostituição no regime capitalista. Há lugar para crer que, na sociedade comunista, a prostituição e a família desaparecerão, ao mesmo tempo em que desaparecerá definitivamente a propriedade privada e a opressão da mulher.

Passemos agora ao exame de outras "superestruturas". Os homens estando tanto na sociedade, tomada no seu conjunto, quanto em certas frações dessa sociedade, em luta direta uns contra os outros, resulta daí a necessidade social das normas sociais (regras de conduta). Entre estas contam-se os costumes, a moralidade, o direito e toda uma série de outras regras: "regras de polidez", "etiquetas*, "cerimônias", etc...; de outro lado, os estatutos das diferentes sociedades, organizações, corporações, etc...). Qual é a causa de seu desenvolvimento? Ele é determinado simplesmente pelo desenvolvimento dos antagonismos numa sociedade que cresce e se complica ao extremo... O antagonismo mais profundo como nós já vimos, é o antagonismo entre as classes. Também ele "exige" um regulador poderoso, susceptível de o dominar. Como regulador aparece, como sabemos, o poder de Estado com seus anexos, decretos denominados normas legais. Mas existe ainda um grande número de antagonismos entre as classes e no interior das classes, profissões, grupos, associações e as diferentes categorias de homens em geral. Todo homem, fora da situação de classe, entra em contacto com todos os homens imagináveis, é submetido a um grande número de influencias, que se entrecruzam mutuamente; eles se encontram em diferentes situações que mudam rapidamente, que se seguem, desaparecem e tornam a aparecer. Estamos aqui em presença de continuas contradições. E, entretanto, a sociedade continua a existir e existem sempre no seu seio grupos diversos que têm, apesar de tudo, um caráter relativamente estável. Os capitalistas, proprietários de empresas, comerciantes, aparecem no mercado como concorrentes e entretanto, no interior do próprio Estado, eles se combatem a golpes de faca e a sua classe não se desloca, porque seus membros rivalizam entre si. Os compradores e vendedores têm interesses completamente opostos. E entretanto, não chegam sempre a vias de fato. Entre os operários, há desempregados que os capitalistas compram de bom grado, durante as greves. Mas eles não conseguem comprar todo mundo e a união de classe dos operários vence. Como isto é possível? Essa circunstancia é facilitada pela existência de normas suplementares variadas além da lei. Essas normas suplementares (regras de conduta) implantam-se no cérebro humano, agem, por assim dizer, de dentro, parecem sagradas aos homens por sua própria natureza e são seguidas mais devido ao impulso da consciência do que por medo. Tais são, por exemplo, as regras da moral que, numa sociedade onde circulam mercadorias, aparecem como eternas, inflexíveis e sagradas, refulgindo de um fogo interior e obrigatórias para qualquer homem honesto. Tais são os costumes "preceitos dos antepassados". Tais são "as regras de polidez", "de bom viver", etc.

Entretanto, qualquer que seja a aparente "origem supra terrestre dessas regras sagradas, não é difícil descobrir as suas raízes na terra, apesar do medo que elas inspiram aos seus adoradores. Estudando-as, encontramos, antes de tudo, dois fatos essenciais: em primeiro lugar, o caráter variável destas regras, e em segundo lugar, o laço que as une com uma classe, um grupo, uma profissão determinada, etc. Depois de descobrir estes fatos e aprofundando-nos um pouco mais, veremos "que no fim de contas" eles dependem da evolução das forças produtivas. Em geral, pode-se dizer que essas regras traçam a linha de conduta pela qual se conserva uma dada sociedade, ou uma classe ou um agrupamento ou um grupo no qual os interesses provisórios de um homem isolado são subordinados aos interesses do grupo.

Assim, essas normas são as condições de equilíbrio, emoções que neutralizam até um certo ponto as contradições internas dos sistemas humanos. É portanto fácil de compreender a razão por que elas devem necessariamente concordar mais ou menos com o regime econômico da sociedade. Formulemos somente a seguinte pergunta: quando a sociedade existe, será possível que o sistema dos costumes e da moral que nela dominam possa ser contrario durante muito tempo à sua estrutura essencial, isto é, econômica? A resposta é clara. Uma tal situação não se pode prolongar por muito tempo. Se os costumes e a moral que dominam em uma dada sociedade fossem fortemente contrários ao seu regime econômico, uma das condições essenciais de equilíbrio social viria a faltar. Na realidade, o direito, os costumes e a moral que dominam numa dada sociedade concordam sempre com as relações econômicas, têm as mesmas bases, modificam-se e desaparecem com elas. Imaginemos o seguinte exemplo: sabemos que numa sociedade capitalista são os capitalistas que dominam as coisas (os meios de produção). Nas leis de um Estado capitalista isto se exprime pela lei da propriedade privada, que é defendida por todo o aparelho do poder de Estado. As relações de produção de uma sociedade capitalista são denominadas em linguagem vulgar de relações de propriedade, e são estas que são protegidas pelas leis. Seria possível, numa sociedade capitalista, que as normas jurídicas (as leis) não defendessem as relações de propriedade, mas ao contrario as destruíssem? Uma tal hipótese é evidentemente absurda, e o mesmo pode ser dito da moral. "A consciência moral" da sociedade capitalista reflete e exprime seu estado material. Tomemos ainda o mesmo exemplo da propriedade privada. A moral diz que não é correto roubar, que é preciso ser honesto e não tocar, sob nenhum pretexto, nos bens de outrem, isto é compreensível. Se, por exemplo, este preceito não estivesse gravado no cérebro dos homens, a sociedade capitalista se teria decomposto muito rapidamente.

Poderiam opor-nos o seguinte argumento: dizeis que tudo isto é muito simples, e entretanto, os comunistas, por exemplo, não admitem que a propriedade privada seja sagrada, mas não ousam dizer que o roubo é moral. Assim, há coisas que são sagradas para todos e que não podem ser explicadas por causas terrestres. Mas este argumento não está certo, apesar de sua força aparente. Vejamos porque: em primeiro lugar, os comunistas não defendem de modo algum a intangibilidade absoluta da propriedade privada. A nacionalização das empresas constitui a expropriação da burguesia; ela é despojada sem indenização. A classe operaria apodera-se "daquilo que não lhe pertence", atenta portanto contra o direito da propriedade privada, "invade despoticamente o domínio das relações de propriedade" (Marx). Em segundo lugar, os comunistas são contra o roubo, por que? Porque se o operário isolado se apoderasse das coisas pertencentes aos capitalistas, no seu interesse pessoal, ele não poderia tomar parte numa luta geral e se transformaria, ele próprio, num burguês. Ladrões de cavalos e arrombadores não serão nunca elementos ativos da luta de classe, mesmo se eles forem da mais pura origem proletária. Se um grande número de proletários se tornassem ladrões, a própria classe se desagregaria e enfraqueceria. Eis a razão por que os comunistas adotaram esta regra: não roube, para não decair. Isto não constitui uma norma de defesa da propriedade privada, mas um meio de conservar a integridade da classe operaria, de protegê-la contra a "desmoralização", contra a decomposição, o meio de preveni-la contra os meios irregulares de dirigir os proletários no seu próprio caminho. Isto é a regra de conduta da classe do proletariado. Depois de tudo que foi dito, é inútil explicar mais amplamente que as regras de conduta examinadas acima são determinadas pelas condições econômicas da sociedade.

Certamente, as normas proletárias são contrarias às condizes econômicas da sociedade capitalista. Mas nós falamos das normas dominantes. Quando as normas de conduta proletárias se tornam por sua vez dominantes, é o fim do capitalismo. Falaremos disto no capítulo seguinte).

Para explicar o que foi dito acima, citemos alguns exemplos. No domínio sexual, em um certo estágio de desenvolvimento, quando o clã se apoiava também sobre o lado do sangue e que os homens de um outro clã (isto é, na realidade de outra sociedade) eram inimigos, não se considerava mal o casamento entre parentes próximos e era considerado particularmente sagrada a união com a própria mãe ou a filha (como, por exemplo, na antiga família iraniana).

Quando as forças produtivas estavam ainda fracamente desenvolvidas e que a economia social era insuficiente para entreter bocas inúteis, os costumes e a moral julgavam necessário matar os velhos (segundo Heródoto, Estrabão e outros historiadores antigos). É por causas análogas que se explica o costume ao qual se refere Estrabão, segundo o qual os Velhos se envenenavam voluntariamente. Pelo contrario, quando esses velhos desempenhavam um certo papel na produção, ou na direção desta, o costume prescrevia o respeito à velhice (ver E. Meyer: "Elemente der Aníropologie" — Elementos de Antropologia, p. 31-32 e seguintes). A solidez do clã, a sua solidariedade na luta com inimigos cruéis, exprimiam-se na vingança na qual participavam também as mulheres. Basta lembrar as figuras de Brunhilda ou de Gudrun do "Canto das Niebelungen"; vejamos como é caracterizada Gudrun, menos cruel do que Brunhilda:

Ela vingou seus irmãos,
Ela soltou os cães,
Ela derramou o sangue
Com a ponta de seu sabre.
(O canto de Sigurd)

E. Meyer escreve com razão:

"O próprio conteúdo da moral, dos usos e do direito, dependem do regime social que existe num momento dado e das concepções da sociedade... Também podem eles ter, em sociedades diferentes, e em épocas diferentes, um caráter diametralmente oposto".

Na China antiga, o poder de Estado feudal dispunha de um grande número de funcionários de diversas categorias, tinha uma importância enorme. A dominação dessa camada burocrática e fundiária baseava-se ideologicamente sobre a doutrina de Confúcio, composta de todo um sistema de regras de conduta. Um dos artigos mais importantes dessa ciência moral era a doutrina do respeito para com os superiores (Hiao):

"É preciso suportar a calunia, e até sofrer a morte, se isto for útil para a honra do soberano; pode-se (e é preciso) em geral corrigir por seu serviço fiel os erros do soberano e é nisto que consiste o respeito (Hiao). (Max Weber: "Gesammelte Aufsatze zur Religionssoziologie, — Estudos sobre a religião e a sociologia, Tubingen, edição Mohr, 1920, 1.° vol., pag. 419).

O atentado contra o "Hiao" constitui o único pecado. É bárbaro aquele que não o compreender, aquele que não compreende o "decoro" (concepção essencial da doutrina de Confúcio).

"A piedade (Hiao) para com o senhor feudal é posta no mesmo pé que o respeito (Hiao) para com os pais, mestres, chefes da hierarquia burocrática e seus dignitários" (Ib. 446.).

A disciplina, tanto quanto o respeito, é uma das maiores virtudes.

"A desobediência é pior do que um pensamento covarde" (Ib. 447).

A idéia que domina tudo é a de ordem.

"É melhor viver como um cão, mas em paz, do que ser um homem em estado de anarquia, diz Tchen-Ki-Tong" (Ib. 457).

Como toda moral burocrática, a moral de Confúcio proibia evidentemente a participação dos funcionários no trabalho destinado a adquirir as riquezas... como a uma obra duvidosa do ponto de vista moral e indigna dessa "casta" (Ib. 447). Pode-se escolher seus amigos somente entre iguais, do ponto de vista social; os ricos são melhores do que os pobres, porque eles podem cumprir todas as cerimônias; o povo, o "estúpido povo" (Youn Min) é oposto ao "gentleman" (literalmente: Ao homem-príncipe). É característico que todo esse enorme sistema de regras de conduta que sustinha o regime feudal nobre, denominava-se "Hung-Fan", isto é, o "grande plano" (ib. 457). O laço que une essa doutrina à ordem social é evidente. E todas as numerosas "cerimônias chinesas" se uniam na realidade à corrente ideológica dominante e serviu de rede com malhas de seda destinada a embaraçar toda a sociedade e a sustentar o regime correspondente.

Examinemos ainda os costumes dos cavaleiros franceses do Norte no XII e XIII século. Os cavaleiros celebravam "as belas damas" e lutavam "por elas" nos torneios. Mas a sua "concepção ideal do amor e da felicidade" tinha a forma de "honra de casta" (Ver: Weltgeschichte — História do mundo, de H. Helmold, volume 5, pag. 496, Leipzig und Wien, 1919). O papel principal da cavalaria na sociedade era a guerra e as ações militares. Não é de admirar então que "as normas" contribuíssem para criar um tipo militar de homens formando uma classe particular:

"O cavaleiro que se revelava covarde era expulso, em publico desonrado pelo arauto, maldito pela igreja; o carrasco quebrava seus brasões e suas armas, seu escudo era amarrado à cauda de um cavalo... etc.". "Os torneios serviam de exercício na arte militar..." (Ib.).

Ao mesmo tempo que aparece a ordem capitalista, os costumes, a moral, etc., mudam. A prodigalidade cede o lugar à paixão da economia e às virtudes correspondentes.

"Não é a conduta de um senhor feudal que honra um homem honesto, mas sim o de ter os negócios em ordem". (W. Sombart: O burguês).

É preciso viver de uma maneira "correta"... é preciso abster-se de qualquer excesso, não se mostrar senão em boa sociedade Não se deve ser bêbado, jogador, mulherengo, é preciso ir à missa e ao sermão do domingo, em uma palavra, é preciso ser um bom... cidadão" com relação ao mundo exterior, e no interesse de seus negócios; pois essa vida moral aumenta o credito" (Ib.). Certamente, essa moral de tartufo protestante cedeu o lugar a uma outra, quando a situação da burguesia mudou e quando os negócios da firma cessaram de depender da conduta de seu proprietário.

Mostrar a variação do direito, relativamente ao regime econômico, é coisa ainda mais fácil, o caráter de classe das leis sendo visível sempre e em toda parte. Mas mesmo normas fortuitas como as da moda dependem, como se pode provar, das condições sociais. Um burguês considera "inconveniente" não estar corretamente vestido: é por ai que se afirma a marca de classe, é pelo habito que se reconhecem "as pessoas corretas". Mesmo nos meios revolucionários, encontra-se alguma coisa de semelhante. Assim, por exemplo, durante a Revolução de 1905, havia uma moda de partido: os social-democratas vestiam camisas pretas (sinal do proletariado), os socialistas-revolucionários preferiam camisas vermelhas (camponeses revolucionários); encontrar-se-ia dificilmente, numa grande cidade, uma dúzia de intelectuais, tendo participado na Revolução, sem ter vestido um ou outro uniforme de partido, tacitamente adotado.

Fora da moral de classe existem ainda outras formas de moral, como por exemplo a moral profissional dos médicos, advogados, etc... Do mesmo modo existe igualmente a moral dos ladrões, que é rigorosamente observada por eles, de não se denunciar os seus. Assim, todas as normas que examinamos acima constituem os laços que mantêm a unidade da sociedade, de uma classe, de um grupo profissional determinado.


Inclusão 20/06/2011
Última alteração 13/04/2014