Comunicação ao País na R.T.P.

Vasco Gonçalves

18 de Agosto de 1974


Fonte: Vasco Gonçalves - Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Organização e Edição Augusto Paulo da Gama.
Transcrição: João Filipe Freitas
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Fernando A. S. Araújo.
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1. A pesada herança que nos deixou o regime fascista

Alguns dos principais mitos do regime deposto eram o da estabilidade económica e financeira, e o da ausência de défice orçamental.

Contudo, a verdade era bem outra. Nas vésperas do 25 de Abril a economia portuguesa estava à beira do caos:

1.1. Havia um défice real do orçamento

Todos os anos se apresentava um total de receitas que excedia ligeiramente o das despesas. Mas não se explicava que o saldo só era positivo porque havia omissões da dívida pública, destinadas a cobrir o défice real, e que entravam como receitas.

Era como se um trabalhador contasse como receitas suas não só os seus salários mas também aquilo que pedisse emprestado.

1.2. A balança de pagamentos que tinha sido normalmente superavitária em virtude sobretudo do contributo das remessas de emigrantes, apresentava no final de Abril um défice superior a 6 milhões de contos.

1.3. Os preços mostravam em Março um aumento de 30% em relação a um ano antes.

1.4. Campeava uma especulação desenfreada na Botòa, nos bens imobiliários, etc., sem qualquer benefício para o Pais.

1.5. A política fiscal sobrecarregava os mais desfavorecidos.

1.6. As despesas militares, com a manutenção de uma guerra que não conduzia de modo nenhum a uma solução justa dos problemas do Ultramar, atingiam níveis dificilmente suportáveis pela nossa capacidade económica, cerca de 45% do orçamento.

Verificavam-se grandes despesas com subsídios a alguns bens alimentares, cujos preços haviam subido em flecha no mercado mundial, mas que continuaram a ser vendidos no mercado interno a preços políticos, artificialmente baixos, o que se conseguia à custa de subsídios para os quais não se dispunha de recursos financeiros suficientes. Esses subsídios eram financiados pela Caixa Geral de Depósitos, Bancos Comerciais, Banco de Portugal, o que significava que se estava a consumir nos prejuízos suportados pelos preços «políticos» de alguns produtos uma parte da poupança nacional, tão necessária para o investimento produtivo.

Às dificuldades apontadas atrás há que acrescentar algumas surgidas depois do 25 de Abril:

É, portanto, necessário, o saneamento da vida económica da Nação.

Entre as questões principais, põe-se a do défice do Fundo de Abastecimentos, resultante da adopção dos preços artificialmente baixos, no mercado interno, de certos bens alimentares importados do estrangeiro a preços consideravelmente mais elevados.

Como se disse atrás esses bens alimentares subiram em flecha no mercado mundial.

Os inconvenientes da subida de preços, que estavam a ser evitados ao consumidor à custa de subsídios do Estado financiados pelas instituições de crédito, obrigaram a gastar no consumo aquilo que deveria ser investido na actividade económica reprodutiva, com evidente prejuízo para a Nação, a médio prazo e a longo prazo.

É necessário, portanto, aproximar os preços do valor real dos produtos.

Trata-se de uma operação dolorosa, com reflexos no nível de vida da população, mas indispensável para se evitar um desequilíbrio financeiro demasiado grave.

Assim, toma-se necessário aumentar os preços de certos produtos alimentares, entre os quais avultam o pão, o açúcar e o leite, bem como os adubos e as rações para animais.

Para evitar um maior agravamento do custo daqueles produtos alimentares, os subsídios do Estado continuam, embora em menor volume, e há ainda que aumentar os preços dos combustíveis.

Nestas condições o défice do Fundo de Abastecimentos aumentará ainda 1 milhão de contos até ao fim do ano.

2. Necessidade da reanimação económica

O Governo considera a reanimação e a expansão da economia como uma tarefa prioritária de todos os portugueses.

A reanimação económica geral é do interesse de todos qualquer que seja a sua classe social. Esta reanimação não é compatível com o desenvolvimento súbito e injustificado do entesouramento. O entesouramento prejudica a economia portuguesa na medida em que traz dificuldades à política de crédito e consequentemente à dinamização da produção.

O Governo tomou medidas e tomará outras para que essa reanimação se tome um facto.

São traços dominantes do programa de acção do Ministério da Economia:

No Sector da Construção Civil temos algumas dificuldades.

A política da construção do regime anterior estava errada: havia especulação nos terrenos, nas vendas e nas rendas.

Esta especulação só pode ser combatida desenvolvendo amplamente a construção de habitação social, e estimulando a construção coerente de menor preço.

Vamos pôr em prática uma nova política com dois objectivos simultâneos:

No tempo do regime deposto, em cada 100 casas construídas, apenas 5 eram sociais.

Agora, o Governo vai empreender um vasto plano de construção social, ao qual destinará 5 milhões de contos, 1.500 fogos por mês.

O fim das guerras em África conduzirá no futuro a libertar verbas importantes.

No entanto devemos ter em atenção:

As vantagens económicas e financeiras do fim da guerra só se deverão fazer sentir dentro de 2 anos.

Contudo, acabar com as guerras de África, é, em si mesma, uma boa e nobre solução para o nosso País e para os povos da Guiné, Angola e Moçambique.

3. Salários e Preços

Desde o 25 de Abril verificaram-se importantes aumentos de salários.

A fixação do salário mínimo de 3 300$00 representou a imediata e considerável melhoria da situação de muitas centenas de milhar de trabalhadores. Reconhecemos que há sectores em que se toma difícil a aplicação desse mínimo.

O Governo está a estudar esses casos, em alguns dos quais os próprios trabalhadores mostram grande compreensão.

Mas devemos também ter presente que os salários estabelecidos por lei e os contratos colectivos de trabalho são para se cumprir.

Na sua política de salários e preços, o Governo, de acordo com o Programa do M.F.A. tem sido norteado pela preocupação de atender prioritariamente às classes mais desfavorecidas.

Não se pode resolver tudo de um dia para o outro. Foi-se para um congelamento dos salários a partir de certo nível.

Trata-se de um congelamento provisório: o desenvolvimento económico precisa de bons técnicos e especialistas e estes devem ser bem pagos.

Contudo, não podemos arrancar do estado em que nos encontramos, com salários elevados, idênticos aos dos outros países muito mais desenvolvidos que o nosso, nem com horários de trabalho inferiores aos desses mesmos países.

Quanto aos vencimentos do funcionalismo

Embora contra sua vontade, o Governo não pode de momento atender a todas as situações.

O aumento previsto custará ao Estado 5,6 milhões de contos por ano e representa um acréscimo médio de 37,5% do conjunto das remunerações do funcionalismo; trata-se de um aumento nitidamente superior ao dos preços, que vai melhorar a situação económica real de numerosos funcionários, especialmente os de mais baixos vencimentos. Não se poderia ir mais além, sob pena de se agravar perigosamente o défice orçamental, que já é considerável

O Governo acabou por decidir-se, de acordo com o Programa das Forças Armadas, por um critério de justiça social e por uma escala fortemente degressiva.

O Governo tem a noção clara que os quadros dos escalões mais elevados têm vencimentos bastante inferiores aos equivalentes das empresas privadas.

E tem também a noção de que precisa do trabalho de funcionários altamente qualificados.

É objectivo do Governo corrigir essas desigualdades logo que possível e na medida dos recursos disponíveis.

A mesma preocupação de justiça social está na reforma fiscal que acaba de ser decidida, em que se elevam as isenções em diversos impostos e se estabelecem taxas mais progressivas no imposto complementar.

Os aumentos de salários e vencimentos, embora ainda insuficientes e não respeitando a todos os trabalhadores, resolveram já as situações mais difíceis.

Infelizmente, apesar das medidas de congelamento de preços, não se está de momento, em condições de evitar o progresso da inflação, embora se procure limitá-la através da expansão controlada da actividade creditícia.

Como se disse atrás, torna-se necessário e inevitável o aumento de certos preços, quer devido a causas externas, quer devido a causas internas.

Dentre as causas externas salienta-se: os preços dos alimentos importados subiram nos últimos 2 anos, metade a carne, quase para o dobro o trigo, mais de 2 vezes o açúcar, 3 vezes o petróleo e 4 vezes as matérias-primas para adubos.

Dentre as causas internas: a escassez da oferta em relação à procura; a necessidade de aproximar os preços praticados no mercado, dos preços reais, por impossibilidade de manter o subsídio ao nível que se praticava no antigo regime.

Estes aumentos vão agravar a situação da população portuguesa. Trata-se porém de medidas de emergência, que pretendem, antes de tudo, acautelar o futuro.

4. Política Social

Uma das principais preocupações do Governo Provisório tem sido lançar os fundamentos de «uma nova política social que em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida de todos os portugueses» (Programa do Movimento das Forças Armadas, B6b).

Os aumentos do abono de família e o seu alargamento a mais de meio milhão de crianças, a continuidade dos benefícios da Previdência no tempo de desemprego, a duplicação das pensões sociais para inválidos e maiores de 65 anos, medidas de ajuda aos desempregados, actualmente em estudo, etc., são exemplos dessas preocupações.

A par da atenção pela situação das camadas mais desfavorecidas, o Governo encara, no quadro de uma política de austeridade que a situação impõe, pôr termo a situações escandalosas de reformas de muitas dezenas de contos, fixando como máximos para pensões o correspondente ao vencimento dos ministros.

5. Medidas imediata» e perspectivas

O Governo coloca como sua tarefa imediata, essencial, resolver os problemas económicos e financeiros mais urgentes que decorrem das modificações políticas realizadas pelo 25 de Abril.

As medidas até agora decididas têm, na sua maior parte, um carácter de emergência.

Muitas delas abrem porém uma perspectiva mais larga e estabelecem novas bases e novos critérios para a solução dos grandes e graves problemas económicos nacionais.

Ao procurar-se a solução dos problemas mais imediatos não pode deixar de olhar-se para o futuro.

E esse futuro, o futuro de um Portugal democrático, próspero e independente, exigirá:

Conclusões

Procurei focar, de um modo geral, os aspectos mais característicos da presente situação económica e social do País.

Através dos vários meios de comunicação, a partir da semana que hoje se inicia, os senhores Ministros e Secretários de Estado explicarão, com mais detalhe, cada um dos aspectos agora tratados.

Portugal vive um momento muito particular da sua história, simultaneamente de grande esperança pela liberdade alcançada e de preocupação pela grave crise herdada, da qual urge libertar-mo-nos.

É passado o tempo em que o Governo mentia ao povo.

O País tem necessidade de conhecer a sua situação real.

Só assim poderá compreender os sacrifícios e a austeridade que se lhe pedem.

O Governo Provisório tem o dever de tomar a tempo as medidas que se impõem para o saneamento económico, não fazendo política demagógica, e criando assim as condições que facilitem o trabalho do Governo que, no próximo ano, há-de ser livremente escolhido pelo Povo Português.

De imediato estão a ser e vão ser tomadas medidas no sentido de sanear toda uma vida económico-social doentia, ao mesmo tempo que se lançam iniciativas cujos reflexos se não farão sentir a curto prazo.

Não podemos convencer-nos que o 25 de Abril tenha gerado a prosperidade e a abastança onde a miséria grassava. Não se passa de um momento para o outro de país dos mais atrasados da Europa para o nível de uma França ou de uma Itália.

É um processo que exige uma devoção e um patriotismo capazes de fazer aceitar, a todos, mas a todas, os maiores sacrifícios, quer na austeridade em que teremos que nos habituar a viver, quer no trabalho, muito trabalho, a que temos que nos entregar, tudo isto num verdadeiro clima de ordem democrática e de paz social, condições indispensáveis para a reconstrução nacional a operar.

Por outro lado a política de descolonização em curso não permitirá que se libertem rapidamente os homens e os meios hipotecados, que deixemos de ter encargos neste domínio, os quais ainda hão-de pesar fortemente no nosso orçamento, durante um ou dois anos pelo menos.

A primeira condição para vencer as dificuldades é conhecê-las, é ter bem consciência delas, o que exige, em todos os instantes, uma política de verdade por parte dos dirigentes.

É com base nessa política de verdade e no esforço de todos os portugueses, qualquer que seja a classe social a que pertençam, que se construirá o Portugal democrático, próspero e independente, que desejamos.

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Abriu o arquivo 05/05/2014