Extractos da Entrevista Concedida à BBC

Vasco Gonçalves

Setembro de 1974


Fonte: Vasco Gonçalves - Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Organização e Edição Augusto Paulo da Gama.
Transcrição: João Filipe Freitas
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Fernando A. S. Araújo.

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PerguntaUm dos problemas mais candentes que agora se levantam é o da passagem em Portugal de um regime colonial para um regime pós-colonial. Nós tínhamos um exército numeroso, totalmente virado para a guerra colonial. Qual vai ser a tarefa de reorganização do exército e a sua função no pais após o período colonial, neste período pós-colonial tão perto ainda das guerras em África?

Resposta —Foi precisamente esse exército que estava virado para a guerra colonial, que fez o 25 de Abril por ter a consciência de que essa guerra era profundamente injusta e que dela sofriam não só os povos africanos como o próprio povo português. Houve não só vítimas do fascismo entre esses povos que nos combatiam como também no nosso próprio povo, e nas Forças Armadas.

O papel que está hoje reservado às Forças Armadas em Portugal é de importância transcendente, no contexto da nossa vida económico-social. As Forças Armadas deverão ser o garante da prossecução do Programa do M.F.A., e para além disso, para além de garantir que o nosso povo escolha livremente as novas instituições, essas Forças Armadas terão o dever de honra de garantir que as instituições escolhidas pelo povo se mantenham.

Numa palavra, as nossas Forças Armadas terão de ser profundamente democratizadas, com base no Movimento das Forças Armadas. Umas Forças Armadas democráticas, isto é, Forças Armadas que ponham acima de tudo a defesa do seu povo, que sejam a emanação do povo, que sejam o povo em armas. Só umas Forças Armadas desse tipo e não de carácter elitista e aristocrata, mas Forças Armadas verdadeiramente ligadas à nação Portuguesa poderão garantir as conquistas que ela dolorosamente vai operando, poderão garantir que amanhã as instituições por que esse mesmo povo se queira reger sejam defendidas e não destruídas por qualquer golpe da direita.

As Forças Armadas têm de ser readaptadas às novas condições em que vive o País e estamos dispostos, de facto, a fazer essa readaptação, e que consiste, com base no Movimento das Forças Armadas que tem carácter democrático unitário, em restituir ao povo aquilo de que o povo carecia, ou seja, garantir a democracia em Portugal. Assim estaremos sempre ao abrigo de qualquer golpe da reacção ou de grupos aventureiristas-extremistas, susceptível de alterar o processo democrático em que estamos empenhados.

PerguntaEsse histórico papel agora atribuído às Forças Armadas e que afinal foi o do 25 de Abril, pode-se dizer que se coaduna com a participação de Portugal dentro da NATO, visto que as Forças Armadas da NATO têm um papel totalmente diferente?

Resposta — Numa das alíneas do Programa do Movimento das Forças Armadas estabelece-se lá, sem ambiguidades que o novo regime cumprirá os acordos anteriormente celebrados. É portanto essa, neste momento, a nossa política. Quanto à NATO aliás pensamos que só mais tarde caberá ao povo português definir a orientação a seguir. De resto, como sabe, estão decorrendo negociações entre o Pacto do Atlântico e o Pacto de Varsóvia com vista à cooperação e à criação de um sistema de segurança na Europa. Essas negociações não estão mal encaminhadas e crê-se que, futuramente, é possível chegar-se a uma solução desse tipo.

PerguntaÉ necessário agora em Portugal uma verdadeira reconversão ideológica da população para aceitar o novo Portugal democrático e o trabalho que nele se faz. Em que medida é que o Governo Provisório entende que o êxito da aplicação do Programa do MFA depende da Informação que for dada ao pais, do modo como o mesmo programa e a política do Governo Provisório forem apercebidos pela população e do modo como são transmitidos e apercebidos no estrangeiro?

Resposta — É um problema muito importante. Acho que na reconversão ideológica do nosso país têm um papel fundamental e indispensável os partidos políticos, legitimamente democráticos e interessados no desenvolvimento e consolidação da democracia em Portugal. O papel desses partidos é muito importante. Eu penso que eles através dos seus comícios, das suas reuniões e da acção dos seus militantes devem ser ponta-de-lança, ou propagandistas das novas ideias democráticas em Portugal. Não obstante haver divergências de programa entre eles eu penso que há raízes bem comuns a todos esses partidos, tal como as ligadas aos direitos fundamentais do homem. Têm portanto um papel fundamental a desempenhar.

Também no desenvolvimento da ideologia democrática em Portugal têm papel decisivo a desempenhar a Televisão e a Rádio. Isso por vezes não tem acontecido. Creio mesmo que por vezes — julgando que estão dando passos largos em frente — tanto a Rádio como a Televisão têm cometido erros que prejudicam a consolidação da democracia em Portugal. Para consolidar a democracia é preciso, em primeiro lugar, que haja tolerância por velhos esquemas mentais que é necessário modificar ou transformar. Não podemos porém transformar esquemas mentais ou reacções psíquicas pela força, mas sim pela persuasão, pela pedagogia, e pela informação correcta.

Eu faço daqui um apelo para que esses meios de comunicação social, os jornais, a Televisão e Rádio tenham bem a noção de que politizar um povo sistematicamente embrutecido durante 48 anos, não é tarefa fácil. É preciso haver mais lucidez nesse trabalho. Ter em conta as condições reais do país, chamar ao de cima tudo o que possa unir os portugueses, e portanto tudo o que possa contribuir para uma sã politização. Nunca lançar os portugueses uns contra os outros, prejudicando por vezes a consolidação da Democracia.

Claro que neste campo de reconversão ideológica temos numerosos inimigos quer internos quer externos. É fácil encontrar em Portugal ao abrigo da liberdade de Imprensa numerosos pasquins que nos acusam, que nos caluniam, que fazem as afirmações mais torpes. Há também correspondentes da Imprensa estrangeira que aqui se instalam mandando para os seus países notícias que são verdadeiras calúnias, que não representam a verdade do que se passa em Portugal.

Finalmente, eu não posso deixar de manifestar a minha estranheza em relação à BBC, aquando dos acontecimentos em Lourenço Marques. A BBC goza de grande respeitabilidade em Portugal. A BBC era uma fonte de informação séria no regime anterior ao 25 de Abril. O país acreditava mais na BBC do que nas suas próprias emissoras. Daí o prestígio que gozava em Portugal. Ora, aquando da rebelião em Lourenço Marques, a BBC deu guarida às afirmações, mentiras e calúnias que esse grupo de mercenários e criminosos atirava para o ar através do Rádio Clube de Moçambique que tinha ocupado.

Eu gostaria que me apontassem um país que tivesse sofrido 50 anos de fascismo, tivesse feito uma revolução sem sangue e que cinco meses depois vivesse o clima que nós vivemos, gostaria que me apontassem o país e que esse país não fosse Portugal. É por todas estas razões objectivas, práticas, concretas, que podem ser observadas por todos aqueles que tenham os olhos bem abertos, sem preconceitos para ver a realidade do nosso País, que eu tenho a maior confiança no futuro da democracia em Portugal.

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Abriu o arquivo 05/05/2014