Texto Introdutório da Conferência de Imprensa na Gulbenkian

Vasco Gonçalves

8 de Abril de 1975


Fonte: Vasco Gonçalves - Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Organização e Edição Augusto Paulo da Gama.
Transcrição: João Filipe Freitas
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Fernando A. S. Araújo.

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Eu, em primeiro lugar, desejo, de facto, reafirmar que esta conferência, como disse o senhor Ministro da Comunicação Social, não tem um significado político específico, nem uma oportunidade política específica, como ele também afirmou. Estou de facto a repetir, mas é bom que fique isto no pensamento de todos: o objectivo desta conferência é aquele que foi nomeado pelo senhor Ministro da Comunicação Social; é procurar, simultaneamente responder a uma série de pessoas que me têm procurado no sentido de fazer perguntas sobre a nossa situação política e problemas concretos que temos. Ora, das perguntas que foram formuladas fiz um agrupamento em quatro capítulos. Primeiro capítulo: ACTUAL CONJUNTURA POLÍTICA.

Teria então, digamos, algumas alíneas: 11 de Março, a Democratização, as Liberdades em Portugal (Partidos Políticos e a sua Proliferação), Eleições (sua Importância e seus Limites), a Plataforma que está neste momento em negociação com os partidos políticos e seu significado, a Estrutura do Poder, o Conselho da Revolução, o Governo, o IV Governo Provisório, a sua Operacionalidade, a Via Socialista — a Nossa Opção Política.

Do segundo grupo de perguntas, cobriria os seguintes assuntos: Relações Externas, Ingerências, Preocupações, Diplomacia, NATO, Auxílios, Política de Independência Nacional.

O terceiro, dirá respeito à Descolonização, em particular, Angola e S. Tomé.

O quarto e último, aos Problemas Económicos, às Nacionalizações, ao Plano Económico (a curto prazo, a médio prazo), a Inflação, etc.

Ora, começando pelo problema relativo à actual conjuntura política, penso que o 11 de Março foi mais um dos ataques esperados. Já em 28 de Setembro eu tinha dito que aquele era o primeiro ataque frontal da reacção, mas não seria o último. É claro que o ataque do 11 de Março transcende um golpe militar restrito a um certo número de oficiais para se inserir num contexto muito mais vasto. Penso que se trata, de facto, de um golpe da reacção, um golpe a que estava ligado o capital monopolista nacional e, provavelmente, internacional. Estamos em curso de fazer um inquérito, inquérito esse que, dado o volume de pessoas que há a ouvir, leva um certo tempo a elaborar mas, para obviar a isso, nós pensamos dentro de um período curto fazer, digamos, um primeiro relatório sumário daquilo que se passou. Temos, por exemplo, em nosso poder uma proclamação do ex-general Spínola que caracteriza bem como esse golpe tinha as suas ligações de classe bem explícitas. Será, oportunamente, dada ao público essa declaração. Penso, portanto, que esse golpe se inseria num movimento no sentido de travar o processo revolucionário em curso. Para esse golpe, é claro que contribuia bastante o clima, um clima político que se foi desenvolvendo em Portugal, em particular a partir do princípio do ano e a partir da questão da unidade sindical; contribuiu, também, a acção de grupos minoritários esquerdistas que criam desordem, que perturbam a tranquilidade nas ruas, etc.

Há, também, um clima criado na Imprensa internacional, em certa Imprensa internacional que, sistematicamente, nos calunia e nos ataca; portanto, há uma série de condições nas quais se insere este golpe. Esse golpe foi abatido, como todos sabem, graças à aliança do POVO com as FORÇAS ARMADAS; devemos realçar isso aqui porquanto foi essa Unidade que permitiu reagir rapidamente e desencorajar mesmo aqueles que não chegaram a participar, activamente, mas para isso estavam preparados.

A reacção militar foi pronta, do RAL-1, do nosso povo que veio para a rua e teve acções que devem causar, a estranheza dos observadores estrangeiros como aquela, por exemplo, de se ter ido meter desarmado, entre os contendores e falar com eles. Isso prova o grau de generosidade, de heroísmo e de convicção com que o povo português defende a sua própria Revolução; foi, depois, a reacção a todos os níveis nas FORÇAS ARMADAS, devendo salientar-se não só a reacção dos oficiais como a dos soldados e a dos sargentos.

No que respeita à democratização, nós pensamos que o nosso país hoje é aquele que tem maiores liberdades na Europa, E eu citaria apenas, aqueles casos, sabidos de todos, — nós já fizemos, depois do 25 de Abril, duas nomeações de Presidente da República, sem ter imposto qualquer estado de recolher obrigatório e muito menos de estado de sítio, que era uma ideia que andava, permanentemente, na cabeça do ex-general Spínola.

Nós fizemos outro dia a nacionalização da Banca, não tomámos quaisquer precauções especiais no que respeita à ordem pública; nós realizámos essa nacionalização em plena liberdade pública.

Nós pensamos, portanto, que no aspecto das liberdades e de garantia dessas liberdades, podemos estar, plenamente, satisfeitos com o que se passa entre nós, porquanto, qual será o país da Europa em que haverá mais liberdades do que o nosso? Nós mesmos talvez soframos as consequências de tanta liberdade.

No que respeita aos Partidos Políticos, à sua proliferação, ela era inevitável depois de 48 anos de fascismo; mas devemos chamar a atenção para o seguinte: chegámos a ter, ao princípio, eu sei lá!, uns 60 ou 80 Partidos em formação. Isso hoje está muitíssimo mais reduzido; o número de Partidos que estão interessados na Campanha Eleitoral é relativamente pequeno; pode considerar-se uma dúzia de Partidos Políticos; ora isso é corrente na Europa Ocidental; — eu julgo que em alguns países da Europa Ocidental muitos mais Partidos concorrem às eleições.

Portanto, isto corresponde, quanto a mim, a um certo amadurecimento da consciencialização política, a um certo pisar do chão firme, quer dizer, ter os pés mais assentes na terra. Corresponde, portanto, a uma polarização das opiniões, da actividade política e julgo que isto corresponde a um progresso no sentido da consciencialização política do Povo Português — esta diminuição de partidos que se observou do 25 de Abril para cá.

No que respeita à plataforma que estamos neste momento tratando com os Partidos Políticos, ela corresponde a uma garantia da continuidade do processo histórico em que estamos envolvidos.

Vão-se realizar eleições, vamos ter uma Assembleia Constituinte, não poderíamos continuar regidos pela Constituição de 1933 não obstante toda a introdução de medidas, por via de Decretos e outras acções legislativas que têm sido realizadas no sentido de corrigir a legislação de 1933; nós precisamos, de facto, de uma Constituição e o nosso Povo deve pronunciar-se sobre ela. Simplesmente, essa Constituição deve ser uma alavanca do progresso, uma alavanca que ajude a projectar para a frente as conquistas já obtidas.

Não poderíamos ter uma Constituição que não fosse de carácter progressista, que não inserisse as conquistas que já obtivemos em diversos campos, como no campo político, direitos políticos, etc., que nós obtivemos depois do 25 de Abril, como conquistas no sector económico, como as nacionalizações, etc..

Portanto, nós não poderíamos, repito, ir perder por via eleitoral aquilo que tanto tem custado a ganhar ao Povo Português; esse, de resto, é o pensamento dos Partidos Políticos esclarecidos e progressivos e, portanto, essa Constituição terá em conta essas conquistas do Povo Português. Nesse sentido foi estudada, em colaboração com os Partidos, uma plataforma. Plataforma essa que garante, precisamente, a continuidade do processo revolucionário em curso, tendo em consideração dois pontos fundamentais: uma realidade concreta do nosso País, digamos até que é uma realidade do processo original que nós temos. Por um lado, a acção das massas populares, das classes trabalhadoras do nosso Povo, da pequena burguesia; portanto, temos essa acção que se traduz na actividade dos seus Partidos Políticos, na actividade das suas associações cívica, das suas associações sindicais, das suas associações profissionais.

Por outro lado, temos uma força dinamizadora deste processo, um motor e um garante deste processo que é o Movimento das Forças Armadas. Isso tem que ser tido em conta nas nossas realidades. A nossa estrutura ao nível de Organização Política tem que reflectir esta realidade profunda e então, ela deverá ser reflectida na próxima Constituição,

Seria não encararmos a realidade, não termos os pés bem firmes na terra, ignorarmos que o processo é assim que se tem desenvolvido; — com a aliança do POVO com as FORÇAS ARMADAS e, portanto, com o Movimento das Forças Armadas que tem a consciência da responsabilidade que tem sobre os seus ombros, de ter desencadeado este processo; a consciência do dinamismo que tem este processo para a renovação de Portugal. Isso tem de ser institucionalizado; isso tem de ser de facto reconhecido, tem de fazer parte das nossas Instituições a nível da Organização Política do Estado.

Nesse sentido foi estudada e elaborada a plataforma e esperamos que ela esta semana seja assinada com a devida solenidade que corresponde a um compromisso leal, aberto a todas as forças de progresso e patrióticas do nosso País.

Não deve ser portanto, de maneira nenhuma, interpretada esta plataforma como um meio de pressão das Forças Armadas sobre as Forças Políticas; ela traduz, antes, a aliança entre o Movimento das Forças Armadas e das Forças Políticas portuguesas que têm, também, a consciência de que é fundamental para a dinâmica deste processo, para a consecução dos nossos objectivos, que o Movimento das Forças Armadas continue a ter o papel de motor e garante que tem tido até aqui.

Neste momento, como sabem, temos institucionalizado o Conselho da Revolução. Ele resultou directamente, em oportunidade dos acontecimentos do 11 de Março. Mas ele estava já há muito mais tempo no nosso pensamento e essa ideia vinha sendo discutida e vínhamos pensando na data em que institucionalizaríamos o nosso Movimento; a data foi apressada, precisamente, pelos acontecimentos do 11 de Março e o Conselho da Revolução já demonstrou o seu dinamismo ao tomar uma série de medidas de grande alcance histórico no desenvolvimento do nosso País.

O Conselho da Revolução estabelece neste momento as orientações gerais políticas; é nele que se centra o poder político e o poder militar. O Governo conduz a política da Nação de harmonia com essas orientações gerais; há hoje uma ligação muito mais íntima entre o Governo Provisório e o Conselho da Revolução, do que havia antes entre o Governo Provisório e a Junta de Salvação Nacional.

Na constituição do Governo procuramos atender, basicamente, aos graves problemas económicos que temos a resolver, para estabilizar a nossa economia e lançá-la na senda do futuro. Portanto, esse foi o objectivo primário; o objectivo primário da constituição do Governo não foi um objectivo de equilíbrio partidário, de estabelecimento de um xadrez de forças políticas equilibradas, mas antes, o da solução de ter um Governo operativo que seja capaz de governar neste período até ao fim do ano que para nós supomos ser o período em que vão decorrer os trabalhos da nova Assembleia Constituinte, para nos dar uma nova Constituição e, para depois, entrarem em vigor as novas Instituições do Estado. Este Governo vai, portanto, ser um Governo de campanha, um Governo operativo que tem uma missão definitiva a desempenhar. E essa missão é estabilizar, em primeiro lugar, a nossa economia e, depois, lançá-la na via de transição para o Socialismo.

Foram criadas disposições que, penso, tornarão o Governo mais operacional; temos, assim, um Conselho de Ministro restrito constituído por um número restrito de Ministros que corresponde, digamos, à aliança POVO-FORÇAS ARMADAS, à aliança dos Partidos Políticos com o Movimento das Forças Armadas. Esse Conselho restrito analisa todas as propostas, projectos de diploma, resoluções, etc,, que lhe são submetidos pelo Primeiro-Ministro e, depois de analisados esses documentos, há uma deliberação sobre os mesmos, Tomada essa deliberação, ela é transmitida aos restantes membros do Gabinete para os vincular, dando-lhes conhecimento, dentro de um certo período, em que podem fazer as objecções que entenderem. Se for obtido um consenso de maioria, o diploma está automaticamente aprovado; se essa maioria não for obtida, teremos de discutir isso em Conselho de Ministros alargado. Portanto, eu penso que isto é um modo operacional de resolver as dificuldades que tínhamos antes, sobre os períodos e os tempos que levávamos a tomar as decisões.

Continua a haver o Conselho de Ministros alargado que estudará todos os problemas, resoluções e diplomas que lhe sejam submetidos pelo Primeiro Ministro, pelo Conselho de Ministros restrito. Desejo dizer, também, que o Conselho de Ministros restrito não tem uma composição fixa; tem um mínimo de Ministros constituído por aquela ligação Partidos Políticos-MFA, portanto, tem um Primeiro Ministro, dois Ministros em sistema rotativo ou outro, do MFA, mais os quatro Ministros sem pasta e depois, nesse Conselho restrito, tomarão parte todos os Ministros interessados nas matérias que nele são estudadas. Tem, portanto, uma constituição variável. Temos também um Conselho Económico para tomar também mais operacional o domínio das decisões em matéria económica. Nós temos um Conselho Económico presidido pelo Primeiro Ministro ou, em sua delegação, presidido pelo Ministro da Coordenação Económica, do qual fazem parte, obrigatoriamente, os Ministros da Agricultura, do Comércio Externo, da Indústria, das Finanças, não sei se me lembro de mais algum, daquelas Pastas intimamente ligadas à Economia do País; e também, deste Conselho Económico, poderão fazer parte outros Ministros ou nele tomar parte Secretários de Estado, também consoante os assuntos a tratar.

Este Conselho Económico não tem poderes deliberativos, tem apenas poderes para estudar, elaborar decisões, propostas de alternativas de decisões, etc., que submete ao Conselho restrito.

Sobre a nossa opção política: opção política do Movimento das Forças Armadas é uma opção política generalizada das forças progressivas patrióticas do nosso País; nós pretendemos construir uma sociedade socialista. Mas pensamos que o Socialismo não pode ser construído de um dia para o outro. Temos de entrar numa via de transição; nós vamos ter uma economia de transição para o Socialismo; nós não podemos dizer que vamos ter o Socialismo daqui a tantos anos, porque isto é um processo que deve desenrolar-se à medida da consciencialização política e ideológica do nosso Povo e à medida em que sejam reunidas as condições concretas para tomar e dar os passos em frente nesse caminho. Não há ninguém, que, de boa fé e, honestamente, possa dizer: nós teremos o Socialismo em Portugal dentro de tantos anos. Nós tendemos de facto para isso; é esse o nosso objectivo final, mas devemos alcançá-lo com o mínimo de distúrbios e de convulsões possível, no nosso País. Nós pensamos mesmo que o nosso País reúne hoje, à partida, condições que lhe possibilitam caminhar nessa via de forma pacífica. Pois se nós temos umas Forças Armadas progressistas, nitidamente ligadas ao nosso Povo, nós temos condições para que esta marcha seja uma marcha pacífica. Tudo faremos para que assim seja, tudo faremos para que não haja tiros; até agora só houve três mortos depois do 25 de Abril e, mesmo assim, ingloriamente mortos.

Tudo faremos para que a nossa via seja pacífica; isto não significa que não haja choques, choques de tipo ideológico, de tipo político, enfim, que seja uma via sem escolhos. De maneira nenhuma! Esta via é cheia de escolhos.

E duros dias se avizinham, ou se aproximam do Povo Português. Não há nenhum povo que, alguma vez na História, tenha conseguido executar, promover transformações profundas de carácter económico e social, sem sacrifícios, sem uma geração de sacrifícios. Nós teremos de ser a geração dos homens que se sacrificam. Assim como um pai se sacrifica para que o seu filho estude ou para que tenha melhor futuro do que ele teve, também nós, aqueles homens que compreendem o processo histórico em que estamos inseridos, temos de ter a noção e o nosso Povo também, que temos de ser uma geração de gente que se sacrifique pelo futuro da sua Pátria.

Não há nenhuma revolução, em qualquer parte do Mundo, que não tenha trazido grandes sacrifícios àqueles que se empenham nela. Isso é precisamente a nossa honra; a nossa justificação histórica para termos vivido como homens e não como moluscos, para não termos vivido uma vida vegetativa mas uma vida à escala humana.

É também necessário que tenhamos presente que esta via que empreendemos de transformações democráticas e em liberdade política para a conquista da liberdade económica e da liberdade social, esta via não é uma via sectária, nela não cabem só as classes trabalhadoras, cabem outras classes e outros estratos sociais do nosso País: cabe a pequena burguesia, cabem os quadros, cabem todas as forças patrióticas e progressistas; cabem os próprios médios empresários que tenham a noção do que é necessário fazer pelo futuro da sua Pátria e nós já temos indicações. Há empresários que se nos têm dirigido em afirmações patrióticas, progressivas, que estão interessados nesta via. Só nela não cabem os homens do capital monopolista, mas todos os outros, sinceramente, que queiram colaborar na via de transformação progressiva de Portugal para uma verdadeira sociedade democrática, em todos os aspectos, cabem na nossa aliança, no nosso trabalho. Portanto, é preciso também, ter isto muito bem nítido: não são só as classes trabalhadoras que vão construir o futuro de Portugal; também a pequena burguesia o deverá construir; também a média burguesia hoje é necessária para a sua construção. Nós temos uma via de transição à nossa frente. É, ao longo dessa via de transição, que nós transformaremos o nosso País.

Os próprios estratos sociais, as próprias classes sociais se transformarão. É claro que não devemos esquecer que, nesta via, têm um papel fundamental a actividade do Movimento das Forças Armadas e a actividade das classes trabalhadoras, das massas populares, pois são aquelas que mais directamente estão ligadas ao trabalho, ao trabalho penoso. Devemos ter o esclarecimento suficiente para que não sejamos sectários, para percebermos bem qual é o conteúdo da palavra Povo para o Movimento das Forças Armadas; o que é o Povo Português para o Movimento das Forças Armadas.

Agora passaria a outro capítulo, ao das RELAÇÕES EXTERNAS.

É claro que a nossa Revolução causa preocupações a muita gente, em Portugal e no estrangeiro. Não podemos dizer que tenhamos tido até agora ingerências externas no nosso Processo. Nós não podemos dizer que haja interferências directas, a nível diplomático. Tem havido, isso sim, expressão de preocupações, mas, propriamente interferências, não tem havido. De resto o que nós desejamos é que possamos caminhar em paz dentro deste Processo; que nos deixem seguir a nossa via em paz.

Nós pensamos que devemos ser abertos a todos os Povos do Mundo; devemos ser abertos às relações internacionais mais vastas possível. Independentemente dos credos políticos, religiosos, económicos, sociais, etc., nós não temos nada com os sistemas sociais, económicos e políticos dos outros países tal como eles não têm nada com o nosso sistema económico, social e político; isto nao significa que se viva em compartimentos estanques. Isso é próprio da actividade humana, é próprio do contexto das relações internacionais; próprio do desenvolvimento das comunicações internacionais; no tempo de D. Afonso Henriques, evidentemente, Portugal poderia ter uma determinada via e um condado qualquer noutro canto da Europa ignorava totalmente o que se passaria em Portugal. Hoje, isso não é possível. Mas o facto de haver esta interpenetração da comunicação social a nível internacional não significa que haja uma interpenetração que permita uma ingerência estrangeira nos negócios dos outros países. Nós devemos procurar uma via de nítida independência nacional. Simultaneamente, nós cumprimos os nossos compromissos. Nós assumimos um compromisso para com as potências da NATO e respeitamo-lo como temos demonstrado depois do 25 de Abril.

Aqui há pouco tempo eu dei uma entrevista a um jornal árabe; depois publicaram-se extractos dessa entrevista na nossa Imprensa, mas, provavelmente, por culpa da origem, eu disse que cumpriríamos os nossos acordos com a NATO e que só ao Povo Português caberia a última decisão do ponto de vista de pertencer, ou não, à NATO. Isso não pertence ao Governo Provisório que, amarrado como está, ao Programa do Movimento das Forças Armadas, deve cumprir os compromissos assumidos pelo Governo anterior ao 25 de Abril.

Eu julgo que isto é claro e límpido e toda a especulação que se faça sobre isto só tem por finalidade lançar poeira nos olhos das pessoas, criar complicações a nível internacional, traduzir certos desesperos com o Processo que vamos conduzindo, ou impaciências ou faltas de compreensão.

No que respeita a auxílios internacionais, é claro que nós respeitamos os investimentos externos; quando fizemos a nacionalização da Banca e dos Seguros, tivemos o maior cuidado em fazer isso. Até na nacionalização dos Seguros tivemos até muito cuidado em fazer isso. Tivemos um cuidado particular ao fazê-lo.

Nós cumprimos os nossos compromissos, mas pensamos que os passos que estamos dando não agradam a certos meios económicos e políticos internacionais. Pensamos que é natural que nos façam um boicote, que nos criem dificuldades a nível internacional. Não ficaremos surpreendidos com isso, mas desejamos que assim não seja porque verificamos que hoje todos os países têm relações económicas uns com os outros; os países capitalistas têm relações económicas com os socialistas e vice-versa. Porquê fazer um boicote económico ao nosso País? Só se nós somos um mau exemplo, um exemplo que não agrada, que impacienta. Mas nós somos um País pacífico que quer seguir a sua própria vida para o seu próprio futuro e que não nos ingerimos nos negócios dos outros; desejamos que os outros Países tenham essa mesma compreensão para connosco.

Mas no que respeita a isto de auxílios, nós pensamos que é, sobretudo, sobre o nosso trabalho que se deve centrar o nosso progresso; é sobre o trabalho do Povo Português. Nós não podemos estar à espera de auxílios mirabulantes, de auxílios milagrosos, de auxílios que nos permitam atravessar os caminhos cheios de escolhos que temos de percorrer de uma maneira suave. Nós vamos percorrer caminhos difíceis, os caminhos que têm de ser vencidos pelo nosso trabalho; é sobre o nosso trabalho que temos de nos mentalizar para construirmos o nosso futuro.

Não tenhamos demasiadas esperanças sobre os auxílios que possamos receber. Temos de contar connosco próprios, com o nosso esforço. Somos o País mais velho da Europa, temos as fronteiras definidas mais antigas da Europa, temos 8 séculos de História e, ou estamos à altura das nossas tradições, ou não estamos. Eu não tenho, porém, a mínima dúvida de que o nosso Povo está à altura das suas tradições históricas.

Essas tradições impõem-nos essa via de independência nacional e da convivência com todos os povos do Mundo.

A este propósito desejamos salientar que esperamos que tenham um fim compatível com os interesses da Europa a Conferência de Segurança Europeia. Nós pensamos que isso será uma contribuição positiva para o desenvolvimento internacional, para a paz e para a independência dos Povos. Nós desejamos êxitos a essa Conferência porque ela está de acordo com os interesses de todos os Povos da Europa, quer sejam do Ocidente, quer sejam do Oriente.

Nós sabemos e conhecemos bem o que é a guerra; tivemos 13 anos de guerra sobre a nossa própria carne e por isso, nada mais natural do que aspirarmos à paz, a uma justa paz, à paz que corresponda ao reconhecimento dos interesses mútuos dos Povos e não à que corresponda ao domínio de determinadas potências sobre outras.

Passaria agora à DESCOLONIZAÇÃO.

Há quem diga que fomos demasiadamente rápidos na descolonização e fizeram-nos perguntas nesse sentido.

Penso que não; que temos ido numa velocidade adequada. Quando elaboramos o Programa do Movimento das Forças Armadas não tínhamos na nossa mão todos os dados do futuro, nem podíamos fazer o ensaio geral de uma Revolução.

Mas o nosso Programa é suficientemente amplo, progressista e flexível; isto significa que não é rígido; qualquer pessoa que leia honestamente o nosso Programa, sabe muito bem que o cumprimos ao descolonizar mais rapidamente do que pensávamos os nossos territórios ultramarinos.

Julgo que podemos dizer que, de um modo geral, temos tido êxito nessa descolonização. É uma obra ímpar na História mundial.

Neste momento nós temos problemas em Angola, temos problemas em S. Tomé; foram feitas perguntas sobre isso. Tudo faremos para que o processo de descolonização em Angola siga em paz, seja um processo pacífico. Nós temos conhecimento das dificuldades e sabemos que a condução desse processo não está nas nossas mãos, está nas nossas e nas dos Movimentos de Libertação. Só a acção conjugada de todos estes Movimentos e de Portugal poderá conduzir, por uma via pacífica, à independência de Angola. Tudo faremos nesse sentido. Empenharemos todos os nossos esforços nesse sentido.

Pensamos que os últimos acontecimentos e a nossa acção mostram que estamos empenhados em que o problema angolano seja resolvido por via pacífica e mentiria se não vos dissesse que é uma preocupação permanente, desde o Sr. Presidente da República ao Conselho da Revolução e ao Governo, o que se passa em Angola.

Quanto a S. Tomé, julgo que o Alto Comissário expôs com clareza o problema. Julgo que o problema em S. Tomé, é, incomparavelmente, mais simples. Remeto-vos para as declarações feitas pelo Alto Comissário, porque ele colocou o problema nas bases que me parecem correctas. Que me parecem a mim e à Comissão de Descolonização.

Passaria agora ao 4.º capítulo, ao dos PROBLEMAS ECONOMICOS.

Nesse aspecto gostaria de dizer o seguinte: as nacionalizações foram de facto um primeiro passo; elas obrigam mesmo do ponto de vista estritamente económico a uma série de outras medidas que, em breve, serão tomadas.

Nesse aspecto económico devemos considerar dois planos: um, de actuação de emergência, imediata, a curto prazo, um plano de actuação a duas, três semanas. Na verdade, eu penso que dentro de duas a três semanas serão anunciadas as medidas de emergência a curto prazo. E os trabalhos já elaborados, pela nova equipa que trata dos assuntos económicos começarão por um programa nacional de emprego, depois, um programa relativo a preços e rendimentos, à estabilização do custo de vida, àquilo que procuraremos fazer no sentido de estabilizar esse custo de vida, à política de salários, à política de outros rendimentos diferentes, como os lucros, os dividendos, etc., às remunerações do sector público; em terceiro lugar um programa agrário. Nós desejamos fazer uma reforma agrária em Portugal, isso foi ontem afirmado pela Assembleia do Movimento das Forças Armadas. Mas nós desejamos fazê-la com segurança. Todas as pessoas conscientes sabem que isso é complexo. Tão complexo que há países que vão substituindo, sucessivamente, umas reformas por outras. Nós pensamos que a reforma está iniciada; já aprovámos a Lei do Arrendamento Rural que introduz substanciais modificações na agricultura do nosso País; pensamos que se seguirão a Lei sobre os baldios, a Lei sobre Associações de utentes, Associações de Agricultores; pensamos que é necessário encarar, logo à partida, o problema da comercialização e dos circuitos industriais, quer a. montante quer a jusante da agricultura—damos a prioridade à agricultura—; nós pensamos que a reforma agrária será elaborada ao longo do tempo; não deverá aparecer como um esquema muito bem desenhado e bem feitinho porque a nossa vida é uma vida de actuação constante, permanente, quotidiana, é uma vida de campanha como quando um homem tem de resolver operações em campanha e operações na guerra. Tem que se agarrar ao essencial, ao principal e deixar de lado o acessório. Nós temos bem a consciência de que a agricultura no Sul do País tem um aspecto e, no Norte, tem outro aspecto; e há uma coisa que eu noto e desejo que fique na consciência de todos: é que nada será feito coercivamente em relação aos assalariados agrícolas, aos pequenos agricultores, aos médios agricultores; tudo terá de ser obra de todos. Mesmo, todas as reformas que empreendemos terão de ser feitas com o Povo Português. O Povo Português tem de ser o principal obreiro dessas reformas; não são reformas de cúpula, não são reformas paternalistas, não são as medidas que caiam do céu para o Povo as abraçar e reconhecer e agradecer. Nada disso; isto é uma construção colectiva e se o nosso Povo está sincera e directamente empenhado nesta construção, é um agente activo do seu futuro.

Por isso, essa reforma agrária tem que ser também resultante da acção dos governantes e dos assalariados, dos trabalhadores, dos pequenos agricultores, dos médios agricultores. Ela não aparecerá, portanto, como um esquema mágico; ela será construída diariamente pelo Povo, pelas Forças Armadas, pelo Governo.

Segue-se um programa de habitação; depois tenho aqui cinco; um programa de controlo dos sectores básicos da indústria e a distribuição no tempo deste controlo; comércio externo, a seguir, um programa de transportes e comunicações; depois finalmente, um programa de austeridade cobrindo várias pastas; um programa que estabeleça salários máximos, um programa que combata energicamente os gastos supérfluos, os consumos de energia desnecessários, etc..

Nós até hoje temos falado em austeridade, mas não a temos posto em prática. Ela deverá ser posta em prática não só por um conjunto de medidas a nível governamental, como por medidas que resultem da consciencialização e da mentalização das pessoas.

Estes são pois os dois planos que temos na economia; Plano do curto prazo, do prazo imediato — que foi este de que falei — e agora vou falar no Plano do médio prazo.

Nós vamos refundir o programa económico e social. Vai ser elaborado um Plano Económico de Transição que compreende dois tipos fundamentais de documentos: um em que se trate da configuração futura do sistema económico em que estamos inseridos, quer dizer, o tal sistema económico de transição; o outro, que trate de uma política de desenvolvimento, de uma estratégia de desenvolvimento.

Esse programa tratará portanto daquilo que já se fez, das opções a tomar, do que há a fazer, do que falta percorrer; por exemplo, como se vai organizar o sector nacionalizado, que papel deverão ter os diferentes Ministérios no que respeita à gestão de empresas, de actividades produtivas; qual o papel que as Associações dos Trabalhadores, Cívicas, Patronais, terão na elaboração desse plano, etc..

Eu penso que dentro de um, dois meses, esse Plano deverá estar traçado e será apresentado ao nosso País. Esse Plano será discutido. Nós pensamos que a dinamização das Forças Armadas terá um papel muito grande a desempenhar no esclarecimento do nosso Povo sobre todos estes nossos objectivos e encaminharemos neste sentido essa dinamização.

Seria esta a minha resposta às perguntas. Há aqui também um capítulo, Inflação; esse capítulo será tratado na política de preços e rendimentos, esta política que eu anuncio para dentro de duas semanas ser comunicada ao País.

Portanto, com estas linhas muito gerais eu teria respondido a uma série de perguntas.


Abriu o arquivo 05/05/2014