Entrevista Concedida a «O Século»

Vasco Gonçalves

27 de Abril de 1975


Fonte: Vasco Gonçalves - Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Organização e Edição Augusto Paulo da Gama.
Transcrição: João Filipe Freitas
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Fernando A. S. Araújo.

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Pergunta — Sr. Primeiro Ministro: quer comentar a forma como decorreram as primeiras eleições em liberdade, depois de quase meio século de fascismo?

Resposta — Penso que as eleições decorreram da melhor maneira. O modo como o Povo Português participou no acto eleitoral constitui um desmentido total aos rumores que, traduzindo desejos de reacção, circularam nos últimos dias, tanto interna como externamente. Não é segredo para ninguém que certos sectores esperavam que ocorressem incidentes e distúrbios, que a ida às urnas do Povo Português viesse a ficar assinalada pela criação de um clima de intranquilidade. Mais uma vez porém, tivemos ocasião de mostrar que a realidade do nosso País é diferente daquela que certos interesses, de resto inconfessáveis, desejam dar ao mundo. Afinal, o nosso povo deu uma vez mais um exemplo extraordinário de civismo, a votação decorreu numa atmosfera festiva de confiança. As pessoas foram para as «bichas» formadas junto às mesas de voto com os filhos ao colo. Aquilo a que se assistiu foi uma concorrência extraordinária às urnas, com todo o eleitorado a votar, logo de manhã, numa demonstração clara de interesse e de entusiasmo.

Terá havido aqueles que não se encontravam ainda plenamente esclarecidos, no termo da campanha eleitoral.

Mesmo esses, na sua maioria, não quiseram deixar de votar, entregando o seu boletim em branco. Considero isto um acto de honestidade cívica, e não de demissão. Um acto que corresponde a dúvidas, a incertezas provocadas por falta de esclarecimento que as pessoas não podem resolver pedindo conselho a amigos à boca das urnas.

PerguntaPensa, Sr. Primeiro Ministro, que o resultado destas eleições pode influenciar decisivamente o processo revolucionário que estamos a viver?

Resposta — Não. Foi elaborada uma plataforma com os partidos. Essa plataforma que corresponde aos interesses do Povo Português, é para ser cumprida. Os partidos que a firmaram foram livres de o fazer ou não. É um documento que garante as conquistas alcançadas pelo Povo Português, até agora, e é a continuação do processo de transformação democrática, com vista à instauração do socialismo, opção da Revolução Portuguesa.

Tem sido esclarecido, não só por mim, como por vários membros do MFA, que uma coisa é a Assembleia Constituinte, outra coisa o Governo Provisório e a continuação e o desenvolvimento da via revolucionária. Esta Assembleia, que o povo elegeu, nasce da necessidade de ser elaborada uma Constituição, pois é evidente que não poderíamos continuar a reger-nos pelo conjunto de leis que integram a Constituição de 1933, ainda vigente. Simplesmente: isso é uma coisa, e outra coisa é o trabalho do Governo Provisório, que é um Governo de campanha com a missão de restabelecer, em primeiro lugar, a economia portuguesa e de lançar as bases da sociedade do futuro.

PerguntaA importância que atribui a essa missão de «restabelecimento da economia» sugere a pergunta seguinte: alguns sectores têm insistido ultimamente no facto de ser grave a situação económica do Pais e de que estaríamos a viver das reservas financeiras existentes no Banco de Portugal, as quais se esgotariam dentro de um breve período. Considera, Sr. Primeiro Ministro, que têm razão de ser estas considerações?

Resposta — A preservação das reservas do Banco de Portugal é um dos objectivos prioritários do Governo Provisório. Essas especulações não têm razão de ser, pois não estamos, de modo algum, à beira de um esgotamento. Contudo, as reservas existentes não permitem uma vida desafogada. Temos de desenvolver um grande esforço de reconstrução da economia nacional, o que só pode ser feito travando uma grande batalha da produção ao nível dos trabalhadores portugueses.

São mais do que nunca necessários, no momento que vivemos, consciência, a devoção à Pátria, um autêntico trabalho revolucionário de todos os portugueses, que tudo deverão fazer para defender a sua unidade. E insisto neste conceito: sem unidade dos trabalhadores, não será possível travar e vencer a batalha da produção.

As nossas actuais reservas permitem — mas exigem também —, que essa batalha seja vencida num período relativamente curto. Digamos que temos um ano, temos temos meses, para ganhar essa luta.

PerguntaAlguns observadores consideram que o modo como os trabalhadores encararam o problema do aumento de produção, nas empresas nacionalizadas, é fulcral para decidir do êxito ou do fracasso da Revolução. Concorda com esta análise? Sr. Primeiro Ministro.

Resposta — Não direi que é esse o ponto fundamental, mas é, certamente, um dos pontos fundamentais. Concordo em absoluto com essa visão. Ao contrário do que às vezes se ouve dizer, as nacionalizações não significam apenas uma mudança de patrão. Significam que alguma coisa de mais profundo mudou em Portugal, ou seja, que as relações de produção dentro das empresas nacionalizadas se alteraram radicalmente. Nessas empresas, os trabalhadores não estão já a servir o lucro individual, o lucro privado. O seu trabalho está, agora, ao serviço do País. É necessário que, no mais curto prazo, as novas relações sejam inteiramente concretizadas, com a participação esclarecida dos trabalhadores.

Aqueles que trabalham nos sectores nacionalizados devem, com lucidez, em conjunto, através de discussões amplas, analisar muito bem a nova situação, a fim de verificarem que, na verdade, não podem, hoje, encarar a sua função na empresa, como anteriormente. O seu trabalho tem de revestir-se, agora de um carácter revolucionário. É só com o seu trabalho que pode construir-se a sociedade que será deles, na medida em que o queiram, na medida em que souberem lutar por isso. O MFA e o Governo Provisório estimulam e exortam os trabalhadores a criarem, pela sua actividade produtiva quotidiana, as condições para que possamos seguir uma via de transição, no sentido de alcançarmos o objectivo final, que é a instauração do socialismo.

Este ponto, repito, é essencial. Os trabalhadores precisam de combater todos os irrealismos, todos os motivos e atitudes que poderiam conduzir, neste momento, a um atraso do processo revolucionário. Certos movimentos de impaciência, certa pressa mostrada por vezes por alguns sectores no sentido de verem resolvidas rapidamente situações que só no plano de um quadro geral podem ser solucionadas, certas reivindicações exageradas, tudo isso constitui um tremendo perigo que pode transformar-se numa arma contra os próprios trabalhadores. É necessário que eles compreendam que, devido a uma acção impensada, neste momento pode ficar definitivamente comprometida a possibilidade de uma sociedade nova, com melhores condições de vida para todos, com a garantia de uma existência mais feliz e mais próspera.

PerguntaEm face dessa exigência de esclarecimento das massas trabalhadoras, e também em consequência do quadro geral de politização perceptível no decorrer da campanha eleitoral, como vê, Sr. Primeiro Ministro, a função futura das campanhas de dinamização cultural promovidas pelo MFA?

Resposta — A acção dinamizadora das Forças Armadas é cada vez mais necessária. Consideramo-la como outro dos pontos fundamentais para o êxito da Revolução. Com ela apoiaremos as grandes reformas que estão a ser empreendidas, nomeadamente a Reforma Agrária. As campanhas de dinamização cultural são essenciais à transformação social do nosso País, ao esclarecimento de um povo envenenado e alienado por 50 anos de fascismo e por três séculos de inquisição. Porque isto é uma coisa que muitas vezes se esquece: a falta de esclarecimento político do nosso povo tem causas que vêm muito lá de trás, que radicam no reaccionarismo secular cuja herança não pode deixar de se sentir.

PerguntaComo vê, neste plano, o papel da Imprensa e, de um modo geral, dos órgãos de Informação?

Resposta — Os órgãos informativos têm um papel muito importante na educação política e ideológica do nosso povo, na popularização e na pedagogia das tarefas essenciais que se põem à Revolução, no conjunto dos sectores que nela tem de mobilizar-se, e que são as classes trabalhadoras, a pequena burguesia e algumas camadas da média burguesia. É necessário transmitir às massas populares o sentido das transformações que têm de fazer-se, é necessário desenvolver novos aspectos da vida cultural colectiva, fazer com que a cultura a todos chegue e a todos abra horizontes com vista ao futuro, com vista à vitória sobre o obscurantismo.

Mas isto se é uma tarefa nobre, é uma tarefa difícil. Temos a consciência perfeita deste problema. Na Imprensa, esta função cabe a todos os trabalhadores, desde o director do jornal aos tipógrafos. Mas ela exige estudo, crítica, aperfeiçoamento do pessoal, desejo constante de melhorar os conhecimentos próprios, trabalho associativo, unidade, etc.

Pode dizer-se que, de um modo geral, a Imprensa — não incluo, claro, certos jornais reaccionários, designadamente alguns órgãos regionais que continuam a publicar-se por esse País fora — tem apoiado muito a nossa revolução. Não obstante, cometem-se às vezes certos erros e escorrega-se, numa ou noutra ocasião, para o campo das ingenuidades. Isto deve-se a alguma falta de profissionalismo, que é natural, ao fim de 48 anos de fascismo e de censura. No entanto, é necessário que esses erros sejam vencidos. É necessário que a Imprensa se mobilize também para a reconstrução nacional.

PerguntaSr. Primeiro Ministro: considera que existem condições para a ocorrência de tentativas reaccionárias semelhantes à de 11 de Março?

Resposta — Penso que não estamos livres disso. Pode não ser da mesma maneira, mas estou certo de que haveremos de sofrer novos ataques, às vezes através de manobras insidiosas, pois a reacção tem muitos meios de actuar, e nem sempre o faz de uma maneira directa e clara. Não nos podemos esquecer de que temos ainda graves problemas a resolver no domínio da descoloniza- ção, e é natural que os reaccionários não desprezem esta frente de luta.

Contudo, estou optimista. Este optimismo não significa nem inconsciência nem a convicção de que teremos à nossa frente dias fáceis. Representa, sim, inteira confiança nas potencialidades do nosso Povo, na aliança entre o Povo e o MFA. Creio que venceremos as grandes dificuldades e os dias muito difíceis que teremos de continuar a atravessar.

PerguntaQue papel julga poder caber aos emigrantes no processo da Revolução Portuguesa?

Resposta — É muito importante que os emigrantes sejam esclarecidos sobre a realidade dos acontecimentos em Portugal. Se conhecerem a verdadeira nova realidade do nosso País, terão confiança na sua Pátria, sentir-se-ão mais chegados a ela, uma vez que a longo prazo estamos criando condições para que não haja, no futuro, portugueses que tenham necessidade de emigrar. Os emigrantes devem manter bem estreitos os laços com a Mãe-Pátria. Isso contribuirá também para a consolidação e desenvolvimento da democracia em Portugal.

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Abriu o arquivo 05/05/2014