Texto da «Análise da Situação Política» Apresentado na Assembleia do MFA, na 2.ª Semana de Julho de 1975

Vasco Gonçalves

Julho de 1975


Fonte: Vasco Gonçalves - Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Organização e Edição Augusto Paulo da Gama.
Transcrição: João Filipe Freitas
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Fernando A. S. Araújo.

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1. Os factores da crise actual

É inegável que o nosso país atravessa uma situação de crise generalizada, cuja superação é urgente. Essa crise decorre de uma série de impasses, sofridos pelo processo revolucionário em desenvolvimento, cujos factores devem ser analisados.

1.1. O ataque do capital

É preciso que fique bem claro que o fascismo não é o capitalismo, mas apenas uma forma de expressão do seu domínio. Assim, quando se destrói o fascismo, agride-se mas não se destrói o capitalismo. A situação desenvolvida após o 11 de Março prova, sem margem para dúvidas que o capitalismo possui um arsenal de manobras insidiosas cujo perigo e eficácia são tremendos até porque não sendo frontais, confundem muitos camaradas. A alguns passos firmes dados a seguir ao 11 de Março, no sentido de avançar com o processo revolucionário, respondeu o capitalismo com uma série de acções que se podem enumerar:

Perante estas e outras acções que se desenvolvem, devem os camaradas do MFA fazer um grande esforço de lucidez, não se deixando arrastar para a luta no campo do inimigo, o que acontece sempre que se analisam casos isolados, esquecendo ou minimizando a manobra geral que os enquadra. Há que evitar constantemente que «a árvore esconda a floresta»: se as opções são ainda «revolução» ou «contra-revolução» é preciso compreender que não são os casos pontuais que definem a atitude do MFA e a sua opção de classe.

É revolucionário tudo quanto faz avançar globalmente a revolução e é contra-revolucionário tudo quanto, globalmente, a faz recuar ou lhe cria novas dificuldades. Não é através de juízos de valor para casos isolados que se caracteriza a revolução ou a contra-revolução. A opção do MFA pelas classes trabalhadoras parte de uma definição política clara e de uma prática clara e de uma prática constante coerente com essa definição.

1.2 Indefinição política

A prática demonstra que o MFA é coeso e sabe avançar e manter a sua aliança com o povo quando existe uma definição política e uma definição do inimigo claras e operantes. Na fase da luta antifascista directa, actuou-se com coerência e unidade, e o próprio processo se encarregou de isolar e eliminar os que o contrariavam; as dificuldades agudizaram-se quando a questão principal passou da destruição do fascismo para a construção do socialismo. Efectivamente é muito mais fácil caracterizar uma atitude antifascista do que uma atitude socialista, até porque, só esta última obriga a uma opção de classe e põe em causa os tabus correspondentes à origem peque- no-burguesa da maioria dos elementos do MFA. Daqui as discussões, as dúvidas e as dificuldades relativas à definição política. Tais dúvidas, discussões e dificuldades não são mais do que a expressão das contradições «classe-opção socialista», no seio do MFA.

Para que a revolução se não perca, temos de superar rapidamente essas contradições, o que exige uma discussão ideológica em tomo dos seguintes conceitos fundamentais:

A discussão a efectuar, não pode limitar-se ao âmbito do Conselho da Revolução, mas estender-se aos comandos e delegados das unidades, por forma a encontrar uma linha que vincule todo o MFA, e permita construir em torno dela, a unidade e disciplina necessárias.

1.3 Diluição do Poder

A situação de facto, é que o poder se acha diluído e devido a essa diluição, enfraquecido. As causas dessa diluição são diversas, parecendo mais importantes as seguintes:

— Após o 25 de Abril e no sentido de combater o fascismo ainda activo, atacou-se toda a forma do poder ou autoridade não baseada na aceitação, no esclarecimento e no consenso colectivo quer a nível militar quer a nível civil. Esta via que possibilitou grandes avanços no processo, implicava a necessidade de criar novos conceitos de autoridade e disciplina, aferidas as necessidades objectivas da revolução e implicava também a clarificação aos olhos de todos dessa mesma revolução desfazendo as ambiguidades e realidades quotidianas (contradições entre as acções contra-revolucionárias e de sabotagem económica e a legislação aplicada, contradições entre o nível de salários dos trabalhadores e o das administrações, contradições entre a situação económica de inúmeros saneados e a dos desempregados, contradições entre objectivos de independência nacional e a política de comércio externo, contradições entre a opção socialista e a composição da coligação governamental, etc.).

A fraca clarificação política, a identificação fluida do inimigo e as contradições indicadas impossibilitaram quase totalmente o estabelecimento de novas referências para o exercício da autoridade e da disciplina, abriram a porta ao esquerdismo e criaram nos órgãos de execução mais isentos o hábito de verificar a justeza das directivas recebidas dos órgãos superiores, verificação que, fazendo-se geralmente sobre casos pontuais, carece com frequência de perspectiva geral. Tal conduta tem sido, no entanto, praticamente a única que permite salvaguardar um mínimo de disciplina de actuações e evitar graves confrontações.

O restabelecimento da confiança entre os órgãos de direcção política, os órgãos de execução e as bases passa ainda pela discussão ideológica e pela já referida definição política afigurando-se perfeitamente utópica qualquer veleidade de restabelecimento de autoridade e disciplina por outra via devendo chamar-se a atenção para o perigo de que o cansaço e a contínua degradação do processo animem a defesa da ordem pela ordem, cujas consequências são sobejamente conhecidas.

1.4 O esquerdismo

Tem-se verificado ao longo do tempo uma contínua escalada do esquerdismo.

A análise desta escalada deve fazer-se com o máximo de senso e lucidez. Se o esquerdismo é objectivamente um aliado da reacção, o seu desenvolvimento entronca não só nessa reacção como na falta de capacidade de resposta dos órgãos do poder às necessidades do processo revolucionário na indefinição e nas contradições já referidas.

2. Condições de superação

2.1 De âmbito político geral

No âmbito político a superação da crise passa, tal como foi dito antes, pela definição e discussão das questões centrais do processo de transição para o socialismo, nomeadamente:

  1. A questão do poder;
  2. A caracterização do inimigo;
  3. A questão da vanguarda.

Após esta definição há que resolver o problema prático, essencial de como se processa a transferência do poder para os trabalhadores o que levanta duas outras questões: a transformação do aparelho de Estado e a ligação MFA-Povo.

Retomando por ordem as questões postas deverá reflectir-se sobre o seguinte quadro:

a) A questão do Poder

Ao afirmar-se que a questão principal do socialismo é a tomada de poder pelos trabalhadores faz-se uma afirmação estritamente baseada na análise lógica da realidade. De facto, a luta de classes não termina com a destituição do governo burguês, tal como a reprodução das relações sociais burguesas não cessa automaticamente ao nível das empresas e dos diversos aparelhos políticos e ideológicos com a simples estatização dos meios de produção.

Assim o estabelecimento das novas relações sociais terá que ser imposto durante um certo período, o que exige o poder nas mãos dos trabalhadores já que seria puramente fantasioso esperar que a burguesia impusesse relações contrárias aos seus interesses.

Ao definir a necessidade da tomada do poder pelos trabalhadores devem ficar bem claros os parâmetros que pautam o exercício desse poder:

b) A caracterização do inimigo

Aceitando que a questão fundamental do socialismo é a tomada de poder pelos trabalhadores e que ela decorre da permanência de luta de classes é claro que os inimigos do processo são os que defendem interesses de classes antagónicos dos trabalhadores através de organizações políticas, afectas àqueles interesses.

Nesta perspectiva nenhuma organização política que luta concretamente pelo estabelecimento do Socialismo ainda que a proposta seja susceptível de discussão, pode ser considerada inimiga do processo ou inimiga do MFA sob pena de se fazer o jogo da reacção.

c) A questão da vanguarda

Definida a questão do poder e caracterizado o seu inimigo surge a necessidade da vanguarda política.

A necessidade decorre de ser impossível o acesso imediato dos trabalhadores ao poder, cabendo à vanguarda conduzir o processo e criar ao longo do tempo as condições necessárias para que tal acesso se dê.

A amplitude da vanguarda terá de ser obviamente limitada às organizações políticas que lutam pelo socialismo «de facto» ou seja pelo domínio dos trabalhadores sobre os meios de produção e as suas condições de existência.

d) A transformação do aparelho de Estado e a ligação MFA-Povo

Enumeradas as questões principais, é conveniente assentar nas duas condições mais importantes de realização prática do processo socialista. A primeira consiste na transformação do aparelho de Estado implicando o seu domínio pela vanguarda política agindo unitariamente na realização dos interesses dos trabalhadores. A segunda consiste na criação de órgãos de poder popular apartidários que apoiados na democracia directa possam exercer a dinamização e controlo do aparelho de Estado em transformação. A ligação MFA-Povo permitirá, se bem compreendida e levada à prática, realizar esta segunda condição.

2.2 De carácter concreto
2.2.1 No âmbito político-económico

Para além do suporte ideológico da revolução socialista a tomada de um determinado número de medidas concretas clarificará de forma inequívoca perante o Povo português o sentido da revolução e permitirá o lançamento das necessárias medidas de austeridade num quadro de actuação coerente. Julgam-se fundamentais acções com os objectivos a seguir relacionados.

Objectivo: eliminação dos privilégios da grande burguesia e outros sectores favorecidos.

Objectivo: apoio à produção nacional e ao emprego no quadro do arranque para o P.E.T.

Objectivo: eliminação do poder económico e privilégios dos grandes grupos monopolistas e latifundiários e apropriação colectiva dos meios de produção.

Objectivo: contenção do desequilíbrio da balança de pagamentos.

2.2.2 No âmbito político-militar
2.2.2.1 Formação política

O papel que o MFA desempenha no processo revolucionário implica a existência de uma sólida formação política dos militares a todos os níveis. Só através da compreensão a cada momento das tarefas que competem às Forças Armadas é possível transformá-las no braço armado do Povo.

a) Instrução

A formação política deve constituir um aspecto fundamental na instrução militar. Assim deverão ser elaborados programas para a recruta e especialidade em que a formação política entre com peso pelo menos idêntico ao da formação militar.

Tais programas devem ser elaborados pelos gabinetes dinamizadores e incluídos nos planeamentos das direcções de instrução. Para além da recruta e especialidade devem destinar-se tempos fixos para a formação política na denominada instrução do quadro permanente.

A Academia Militar, a Escola Central de Sargentos e outros organismos de ensino militar deverão também ministrar programas próprios e aprofundados sujeitos ao controlo dos gabinetes de dinamização.

b) Gabinetes de dinamização

Os gabinetes de dinamização devem ser dotados de pessoal e meios que lhes permitam assumir o papel de direcção política, na dependência directa do Conselho da Revolução. Caberá a esses gabinetes a elaboração e controlo de todos os programas de formação política aos diversos níveis. Deverão ainda organizar cursos de quadros instrutores e monitores e difundir através dos GDU documentos doutrinários e temas para discussão.

c) Aproveitamento do pessoal

Deverá ser dada a possibilidade de continuar nas fileiras àqueles elementos do contingente que demonstrem ao longo do tempo de serviço possuir qualidades de chefia e estarem perfeitamente identificados com o espírito do MFA. Esta medida facilitará a obtenção de bons monitores e conferirá continuidade ao processo de informação. A selecção desses elementos seria feita através de informação dos comandantes das unidades, dos delegados do MPA e do pronunciamento das ADU, sendo qualquer delas eliminatória.

2.2.2.2 Informação e discussão ideológica

A fim de manter a unidade de pensamento e acção dentro do MFA torna-se imprescindível a informação correcta e oportuna a todos os escalões e a discussão ideológica.

No que respeita à informação, devem ser elaborados e difundidos boletins semanais de informação contendo elementos sobre todas as questões importantes da vida política nacional, particularmente sobre o funcionamento das decisões tomadas pelos órgãos de direcção política.

Estes boletins seriam obrigatoriamente lidos nas sessões das ADU e complementados com a informação transmitida pelos delegados do MFA.

No que respeita à discussão ideológica, seriam fornecidos temas a discutir ao nível das ADU, a nível de região militar e a nível nacional através de reuniões periódicas das assembleias regionais e da assembleia do Exército, exclusivamente destinados ao debate ao nível ideológico. Força Aérea e Marinha adoptariam processos idênticos adaptados às suas estruturas; desta forma separar-se-iam as destinadas ao tratamento de casos concretos, obtendo-se maior operacionalidade.

2.2.2.3 Disciplina

É absolutamente necessário implantar uma nova disciplina nas Forças Armadas. A sua base reside em questões já tratadas como sejam a definição política e a compreensão do papel das Forças Armadas no processo revolucionário. Na prática há que tomar medidas no sentido de instaurar de uma por todas a hierarquia da competência o que pressupõe admitir graduações nos escalões mais baixos e terminar com o saneamento de base passando a ser o comportamento no decurso do tempo a forma de aferir a integração dos militares no processo revolucionário, devendo recorrer-se essencialmente aos pareceres das ADU, delegados do MFA e comandantes, entidades que podem fornecer elementos extraídos do quotidiano, para as futuras avaliações.

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Abriu o arquivo 05/05/2014