Discurso na Câmara do Porto nas Comemorações do 5 de Outubro

Vasco Gonçalves

5 de Outubro de 1975


Fonte: Vasco Gonçalves - Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Organização e Edição Augusto Paulo da Gama.
Transcrição: João Filipe Freitas
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Fernando A. S. Araújo.

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Povo do Porto! Comemoramos o 5 de Outubro, comemorando, também, a primeira vitória que obtivemos depois do primeiro ataque em forma da reacção.

Faz hoje oito dias, correram perigo as conquistas do 25 de Abril, mas a unidade do Povo e das Forças Armadas travou a reacção. Foi fundamental o papel desempenhado pelas organizações populares, pelos partidos políticos, pelas associações cívicas como o M.D.P./C.D.E., por toda a população. Foi fundamental a grande manifestação que fizestes, sábado passado. Faz hoje oito diás que realizastes, defronte do Quartel-General, uma manifestação que pesou profundamente na solução da crise que vivemos. E todo esse movimento do Povo em estreita união com as Forças Armadas, não foi anarquia nem foi desordem.

Onde é que há um povo no Mundo que possa atravessar uma crise como a que atravessamos e que, no próprio dia em que o Presidente da República foi substituído, nem sequer teve necessidade de proclamar o recolher obrigatório? Haverá melhor prova de que não caminhamos para o caos nem para a desordem? Nós caminhamos para a ordem, para a ordem democrática, para a ordem que é feita na competência hierárquica, no respeito mútuo. Hierarquia da competência e não hierarquia da incompetência. Neste momento, em que comemoramos o 5 de Outubro, devemos ter bem presente a memória desse grande herói nacional que foi o general Humberto Delgado, esse homem que tombou na luta anti-fascista e que constitui uma honra para as Forças Armadas Portuguesas, caiu possuído pelo mesmo espírito que animou o Movimento das Forças Armadas, quando derrubaram o fascismo, em 25 de Abril.

Os oficiais que fizeram o Movimento das Forças Armadas empenharam a sua honra no Programa das Forças Armadas. Cada um poderá ter as suas convicções políticas, mas a sua honra está empenhada no cumprimento do Programa. É sobre o que fazemos em relação ao Programa que o Povo Português nos deve julgar. A nossa cara está bem defronte do Povo Português. É a esta cara que o Povo Português exigirá o cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas. Toda a luta que o Movimento das Forças Armadas, em unidade com o Povo, tem travado, é no sentido do cumprimento do nosso Programa sem ambiguidades.

Mas temos muitos caluniadores: caluniadores do Movimento das Forças Armadas e caluniadores do Povo Português. Os nossos caluniadores não estão interessados na Democracia em Portugal porque essa Democracia traz mais justiça social. Acusam-nos de coisas falsas como, por exemplo, a de que queremos roubar as casas aos pobres. Que queremos roubar as pequenas propriedades aos pobres. E acusam-nos de muitas outras calúnias infames.

A vigilância popular e a vigilância do Movimento das Forças Armadas devem estar sempre presentes para desmascarar todos aqueles que não querem que se consolide a Democracia em Portugal. Acusam-nos de desvios ao Programa das Forças Armadas. Acusam-nos de desvios: mas que desvios fizemos nós? Nós prometemos solenemente que as guerras coloniais só teriam solução por via política e pacífica. É isso que temos cumprido.

Cinco meses depois do 25 de Abril não há guerra na Guiné, nem em Moçambique. Estamos a colaborar com o povo da Guiné e com o povo de Moçambique na construção de novas pátrias lusíadas em África. Isso não é desvio ao Programa das Forças Armadas. Foi o cumprimento de um compromisso de honra nas condições com que deparámos, quando derrubamos o fascismo.

O Povo tem de estar atento contra os demagogos, contra aqueles que se servem de figuras da nossa Pátria ou de valores que calam fundo no nosso coração como a nossa bandeira ou como o nosso hino. É preciso que o Povo Português não se deixe arrastar pelos demagogos que se servem, precisamente, do que lhe é mais caro para enganar, para o levar por maus caminhos, como o fizeram aqueles rebeldes de Moçambique que, servindo-se e utilizando a emotividade de alguns honestos moçambicanos brancos se lançaram numa rebelião que só trouxe a destruição e a morte.

Mas nós esperamos que isso tenha sido uma vacina e que tenha sido um ensinamento para o Povo Português e para o de todos os outros territórios ultramarinos.

Era essa mesma táctica demagógica que a reacção utilizava na manifestação que projectava para sábado passado. Foi esse ataque da reacção que foi travado pela vossa luta e pela nossa luta. Nós não desejamos a anarquia e o caos económico nem para lá empurramos a Nação. Nós o que desejamos é a ordem e o trabalho.

Só o trabalho do Povo Português pode reconstruir esta Nação tão abalada por 50 anos de fascismo.

Nós saímos desta provação mais disciplinados e mais ordeiros do que éramos dantes. Como disse o sr. Presidente da República, «onde é que há no Mundo um país, que depois de uma revolução tão profunda, ao fim de cinco meses a tenha feito praticamente sem um tiro?»

O Movimento das Forças Armadas deseja cumprir, solenemente, com toda a honra, os pontos principais do seu Programa em que se empenhou e que são a descolonização, e isso têmo-lo feito, e estamos a caminho de o fazer em relação aos outros territórios.

Ninguém pode duvidar dos nossos objectivos. Não duvidam desta sinceridade os movimentos emancipalistas, como o da Guiné, o de Moçambique e os de Angola. Eles não duvidam da nossa sinceridade. Antes querem a nossa colaboração.

Queremos a democratização. Estamos instaurando, estamos institucionalizando a democracia em Portugal. Estamos elaborando leis democráticas para que o Povo veja alcançado, finalmente, tudo aquilo por que aqui lutou e ansiou durante 50 anos.

As leis que elaborámos poderão ser criticáveis mas são leis democráticas. Ninguém pode negar que aquelas leis que temos aprovado sejam leis democráticas, mas o povo tem de nos ajudar a institucionalizar a democracia, cumprindo essas leis que nós vamos elaborando, manifestando-se dentro da lei, associando-se dentro da lei, desenvolvendo a sua actividade sindical dentro da lei, porque, hoje, o que é fundamental é consolidar as conquistas políticas, é consolidar a democracia.

Nós vivemos numa situação democrática mas não temos ainda a nossa democracia completamente institucionalizada. Só com a vossa colaboração consciente, só com a vossa atitude consciente em relação à presente situação, consolidaremos a democracia. Não julguemos que tal é tarefa fácil. Levará anos a consolidar essa democracia e as Forças Armadas são garante da consolidação da democracia portuguesa.

Nós pretendemos o desenvolvimento económico e social, mas temos presente que herdámos uma Pátria que está na cauda da Europa. Nós não podemos partir para o desenvolvimento sem sacrifícios de todos. Do trabalho e do capital.

Nós não podemos arrancar para o desenvolvimento com padrões de vida como os que têm uma França ou uma Itália ou uma Inglaterra. Estes são países que já vivem há largos anos em democracia, que não sofreram cinquenta anos de fascismo opressor. O povo tem de ter consciência disso, tem de ter consciência dos limites que são impostos às nossas reivindicações, porque nós não podemos arrancar para o desenvolvimento com os mesmos salários mínimos com que, hoje, se vive nesses países. Para lá chegar, os povos desses países percorreram um longo caminho de luta e trabalho. Tem de haver compreensão e lucidez da vossa parte e ela já tem sido demonstrada em numerosos casos. Em muitos casos o povo tem compreendido que as reivindicações têm limites. Por seu lado, o patronato deve cumprir os contratos que livremente estabelece com os seus trabalhadores.

Há, agora, um ponto que é preciso que nós definamos sem ambiguidades, frente a frente, olhos nos olhos. Vocês acreditam ou não que o Governo Provisório é o vosso Governo?

As Forças Armadas também afirmam solenemente que estão ao lado do Governo Provisório e do povo português. É por isso que tendes de ter confiança em nós e tendes que ter paciência, porque hoje, ser impaciente é ser fascista.

Nós não podemos de um dia para o outro, dar o céu e a terra ao nosso povo porque ele foi subjugado durante 50 anos.

Na vossa vida sindical, nas vossas relações de trabalho, devereis estar permanentemente atentos às provocações que vos possam dividir do Governo Provisório e das Forças Armadas.

Será o povo português quem livremente escolherá o seu futuro político. As Forças Armadas pretendem, apenas, lançar os fundamentos da voz do povo. Será o povo português que conscientemente, pelo seu voto, decidirá o seu futuro em eleições para a Assembleia Constituinte. E essas eleições podeis estar certos, serão eleições livres.

O Movimento das Forças Armadas só fixa um objectivo: lançar os fundamentos para que o povo português possa escolher livremente as instituições por que se quer reger. Depois recolherá aos quartéis para defender as conquistas democráticas.

Ao contrário do que dizem aqueles que nos caluniam e que vilmente nos acusam de ter vendido os territórios ao inimigo, nós estamos criando condições para que a pátria portuguesa seja perene em África e no Mundo.

Nós somos um País pobre. Nós não somos um Pais rico e, portanto, a ajuda que podemos dar aos povos das nossas colónias é uma ajuda sincera, não é uma ajuda neocolonialista. É uma ajuda para que aí se criem novas pátrias livres, de expressão portuguesa e em que os portugueses até possam dar as mãos aos africanos, depois de quinhentos anos em que lá estivemos. É preciso não o esquecer que temos um dever histórico de ajudar os africanos a criar novas pátrias para colmatarmos os erros e os crimes dos regimes anteriores.

Nós, no Programa das Forças Armadas, dissemos, solenemente, que cumpríamos os compromissos anteriormente assumidos pelo País e assim o faremos.

Nós desejamos a cooperação e a amizade com todos os povos do Mundo, independentemente do seu sistema político ou social. As condições que nós pomos é que não interfiram nos nossos assuntos internos, é que respeitem os nossos interesses. O nosso desejo é que a colaboração com os outros países seja de ajuda mútua, recíproca e não aquele tipo de colaboração em que uns povos exploram outros povos.

Nós não desejamos agravar as dissensões sociais que existem em qualquer sociedade capitalista, entre o patronato e os assalariados.

Queremos é que haja compreensão mútua, mas essa compreensão não pode ser só de uns, tem de ser de uns e de outros.

O País não está à beira de ir para o caos económico. Ainda ontem, a Confederação da Indústria, que agrupa dezenas de milhar de empresas, o negou.

Eu, daqui, quero também apelar para os estudantes. Um novo ano lectivo começa. Os estudantes sabem muito bem que, no nosso País, beneficiando de uma situação especial e da sua origem de classe, têm tido certas condições especiais de vida no contexto da nossa Nação. Claro que os estudantes com a sua instrução e, com a sua lucidez, têm sido dos maiores lutadores contra o fascismo. Viram as suas associações académicas destruídas, viram os seus camaradas mortos, passaram pelas prisões ou foram expatriados.

Os estudantes, como os intelectuais, têm um grande papel a desempenhar na reconstrução desta pátria. E, o seu papel, devem desempenhá-lo nos seus locais de trabalho, que são as aulas, que são os liceus, as escolas técnicas, as universidades. Procurando colaborar no sentido da instituição de verdadeiros organismos democráticos e progressivos não fazendo tábua rasa do que está feito, mas aproveitando o que está feito, aproveitando as actuais plataformas para partirem para o futuro. Os estudantes também devem ter presente que, hoje, a nossa principal luta é a consolidação do processo democrático e que, na medida em que tivermos escolas geridas por professores competentes, por associações académicas competentes, teremos uma democracia autêntica. Os estudantes devem ser exigentes consigo mesmos, porque a sua condição de estudantes já está muito beneficiada em relação aos mineiros, ou aos pescadores, ou aos operários que trabalham arduamente nas oficinas.

Os estudantes também são trabalhadores de Portugal, mas para que toda a gente o sinta, é preciso trabalhar nas escolas. 13 preciso muito trabalho, é preciso que sejam exigentes para com o ensino, é preciso que sejam exigentes para com o professor. Mas é preciso também que compreendam que, nas aulas, nas universidades, nos liceus e nas escolas é necessária a hierarquia democrática, a hierarquia da competência. É preciso que tenham bem presente que há homens que cometeram erros e que podem ser recuperáveis.

É preciso não amarrar os homens eternamente aos erros que cometeram. Há homens que são recuperáveis.

E qual é o critério pelo qual podem saber e ter a certeza que esses homens são recuperáveis? É o critério da prática, é por aquilo que eles vejam fazer a esses homens, que poderão ter a certeza se são ou não recuperáveis.

Temos de ter presente, todos, que o País não abunda em quadros, que o País precisa dos seus quadros e que, se esses quadros se integrarem na ordem democrática, se, por aquilo que fazem todos os dias, mostrarem que são democráticos, esses quadros são recuperáveis e têm, também, direito de cidadania na nossa sociedade democrática.

Isso não significa que se ande com os fascistas ao colo. É preciso ter a lucidez para saber distinguir. E não é preciso ser nenhum intelectual para poder distinguir onde está o mal.

Eu também apelo aqui, para os nossos camponeses, que tenham confiança no Movimento das Forças Armadas, que não vos quer roubar as terras, nem as casas, nem a lavoura. Estas e outras mentiras são espalhadas pelos nossos inimigos, que aproveitam, precisamente, a despolitização de que nós falámos, tanto tempo, durante 48 anos. E ela está à vista, agitando «slogans» que vos são caros. Esses mentirosos caluniam o Movimento e procuram abrir brechas entre o Movimento das Forças Armadas e o Povo.

Nós não podemos modificar o País de um dia para o outro. Toda a gente sabe que a agricultura estava arruinada. Toda a gente sabe que os problemas da agricultura levam mais tempo a resolver do que os problemas da indústria. Nós estamos, também, ao lado dos camponeses.

Porque é que não havemos de estar ao lado dos camponeses, se eles também sofreram as agruras do fascismo, se eles também têm sido explorados, se eles também fazem parte do nosso Povo?

Na nossa Democracia cabem todos os que não sejam fascistas nem reaccionários.

Nós queremos a união do Povo Português, queremos que o Povo se una e que escolha os representantes que, no próximo ano, na Assembleia Constituinte votem as leis que sirvam o Povo e que não sejam contra o Povo. O Povo — e quando digo Povo é a população de todo o País — são as classes trabalhadoras, são os camponeses, são os intelectuais, são os estudantes, são os pequenos comerciantes, são os pequenos, médios e grandes industriais. Todos nós devemos estar atentos aos demagogos e aos reaccionários.

O nosso Povo é um Povo cristão, é um Povo católico. Nós não queremos lutas anticlericais, embora, por vezes, assistamos a actos a que não devíamos assistir.

Há um campo para a religião e há um campo para a política.

Nós não desejamos que estes dois campos sejam misturados. Nós não queremos nem permitiremos que alguém tente por este ou outro motivo, dividir o nosso Povo. Dividir o Povo é comprometer o seu futuro.

Finalmente: o que significa a jornada de trabalho de amanhã? Significa que não vamos para o caos e para a anarquia. Significa que o povo compreende que é preciso construir este País e, para a sua construção todos são poucos. É o povo que livremente decide que vai trabalhar e vai trabalhar voluntariamente, não vai trabalhar metido em caixotes, pago a tanto por cabeça para se ir manifestar.

O povo, ao trabalhar amanhã, vai dizer a toda a Nação, vai dizer aos alarmistas, vai dizer aos medrosos: aqui estão as forças que são capazes de reconstruir Portugal. Não é só o povo que vai trabalhar, amanhã. Vão trabalhar, amanhã, os estudantes. Vão trabalhar, amanhã, os funcionários públicos. Vão trabalhar, amanhã, todos os portugueses de recta intenção que têm a consciência do momento que vivemos.

Mas atenção! Nós deveremos estar firmes, pacientes e vigorosos mas não devemos pensar que não estamos sujeitos a novos ataques da reacção porque estamos com certeza.

Só a vigilância, vigilância que não quer dizer Pide — é preciso distinguir bem a vigilância democrática da vigilância da Pide — só a vigilância democrática que se exerce de olhos nos olhos, actuando imediatamente contra o boato, contra a calúnia, contra a mentira e contra os pontos de vista errados, só essa vigilância em conjugação com a vigilância das Forças Armadas, poderá garantir a consolidação da democracia em Portugal.

Eu peço que me acompanhem em três vivas solenes, que são três compromissos de honra que nós tenhamos convosco e vocês connosco.

Primeiro: saudemos o militar mais ilustre que temos em Portugal, que é o sr. general Costa Gomes, Presidente da República. Esse militar é o símbolo da unidade das Forças Armadas, é o garante do Programa do Movimento das Forças Armadas, o garante da paz social, da paz interna de Portugal.

Saudemos as Forças Armadas e, em especial os jovens oficiais dos 30 e 40 anos, que são os homens mais puros, mais íntegros e mais fortes que eu conheci até hoje.

Gritemos, bem alto, um viva por Portugal, pela nossa Pátria, pelo nosso Povo.

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Abriu o arquivo 05/05/2014