A Arte Romântica

Hegel


Capítulo 2 - A Cavalaria


Já vimos que o conteúdo da fé e da arte é a subjetividade infinita, o Absoluto, o espírito de Deus que só existe em verdade, para ele mesmo, na consciência humana. Esta mística romântica, que busca a felicidade só no Absoluto, perdura como interioridade abstrata, pois se opõe ao mundo exterior e o recusa, em lugar de penetrá-lo e o assimilar. Por tal abstração, separa-se a fé da vida, da realidade concreta da existência humana, das positivas relações que ligam os homens entre si, e ao sentirem-se idênticos, os homens só se amam na fé e pela fé, no espírito da comunidade. Esse espírito é a fonte límpida que lhes reflete as imagens, sem que o homem precise olhar os outros homens cara-a-cara e olhos-nos-olhos, ou relacionar-se de maneira direta com eles, sem sentir, na sua forma concreta e viva, a unidade que promana do Amor, da confiança, da comunidade de fins e da convergência de realizações. Na sua abstrata interioridade religiosa, em suas esperanças e aspirações, o homem concebe a si mesmo como parte da vida no reino de Deus, da comunidade com a Igreja, e esta identificação com uma terceira potência ainda está enraizada demais em sua consciência para lhe permitir encontrar no saber e no querer dos demais o que ele mesmo é em seu ser concreto. O conteúdo religioso adquire assim, no seu conjunto, forma real, embora continue a ser uma realidade puramente interior que não ultrapassa os limites da representação, que se opõe à expressão da vida e não consegue satisfazer as exigências supremas da vida neste mundo terreno e real.

Mergulhada na sua beata felicidade, a alma também precisa abandonar o reino celeste, que constitui seu âmbito substancial, para regressar a si mesma, dar a si própria um conteúdo presente que seja o do sujeito enquanto sujeito, isto é, ela tem de transformar a interioridade, até então religiosa, em interioridade profana. É certo que Cristo disse: "Deves abandonar pai e mãe para me seguir"; e ainda: "O irmão odiará o irmão; vão te sacrificar e perseguir", etc. entretanto a partir do momento em que o Reino de Deus ganhou seu lugar no mundo, em que os interesses e objetivos humanos estão transfigurados e pai, mãe e filho reuniram-se na mesma comunidade, a partir desse momento o mundano também adquire o direito de se afirmar e impor. Chegando a este ponto, desaparece a atitude negativa da alma, até então exclusivamente religiosa em relação ao humano como tal, e o espírito se desenvolve, amplia-se para abranger tudo o que havia até então rejeitado e desprezado. O princípio fundamental continuará imutável, mas a subjetividade infinita incide sobre outra esfera do conteúdo. Esta alteração pode ser definida dizendo-se que a individualidade subjetiva torna-se livre como subjetividade, dispensando a mediação de Deus e alheia à conciliação com ele. Foi no transcorrer desta mediação, em que ela se despojara da sua finitude limitada e natural, que a subjetividade percorreu o caminho da negatividade, enquanto agora se afirma como sujeito livre na sua infinitude com certeza ainda formal, mas já exigindo que os outros ou ele mesmo o considerem como sujeito na infinitude. Nessa espécie de subjetividade reside agora toda a interioridade, justo onde até então só Deus habitara.

Com relação ao conteúdo que a alma humana agora possui, ele pode ser definido afirmando-se que o sujeito, nesta nova fase, está pleno de si mesmo, animado pelo sentimento da sua individualidade infinita, sem que este sentimento fique preso a qualquer conjunto de finalidades, de atos objetivos e substanciais. São três os sentimentos que, acima de todos os outros, assumem grau infinito no sujeito: Amor, Honra e Lealdade. Eles não são qualidades ou virtudes morais propriamente ditas, mas apenas forças da interioridade romântica do sujeito na plenitude do sofrimento de si mesmo. A independência pessoal que luta pela Honra não se manifesta como atos de coragem realizados pela comunidade ou visando adquirir uma reputação de honestidade e de retidão na vida pública e privada. Pelo contrário, trata-se de obrigar terceiros a reconhecerem a invulnerabilidade do sujeito individual. Assim também o Amor, situado no centro dessa esfera, é apenas a paixão acidental que sente um sujeito por outro, e nem quando a imaginação o amplia e aprofunda no trabalho interior, ele exprime os laços morais pressupostos no matrimônio e na família. A Lealdade, por outro lado, apresenta um caráter sem dúvida mais moral, no sentido de que não tem em vista somente um fim pessoal, mas de que sua missão é garantir algo mais elevado, de interesse geral, e de que ela está subordinada à vontade de um outro, um chefe; portanto a Lealdade implica renunciar ao egoísmo e à vontade autônoma do sujeito. Entretanto o sentimento da Lealdade não se inspira diretamente no interesse objetivo de uma comunidade que conquistou sua liberdade na organização do Estado, mas liga-se apenas à pessoa de um chefe, sendo a sua ação individual ou coletiva.

A reunião desses três sentimentos em suas várias combinações, abstraindo da possível intervenção de elementos religiosos, forma o conteúdo principal da cavalaria e constitui o momento necessário da passagem do princípio da interioridade religiosa para a vida espiritual no mundo profano, no qual a arte romântica encontra agora possibilidades de criar com independência, e fontes de beleza mais livres, por assim dizer. A arte ocupa agora o livre meio entre o conteúdo absoluto das representações religiosas imutáveis em si e as particularidades multiformes do mundo profano, limitado e finito. A poesia foi o que melhor soube utlizar este assunto, porque ela é mais capaz de exprimir a interioridade refletida sobre si mesma, com seus fins e variantes.

Como se trata de um material que o homem carrega em seu íntimo, e que se encontra no mundo puramente humano, seria possível concluir que a arte romântica, neste aspecto, coloca-se no mesmo âmbito da arte clássica e, na verdade, parece estar indicado que devemos fazer neste ponto uma comparação entre essas duas formas de arte.

Antes definimos a arte clássica como o ideal da humanidade verdadeira objetivamente, verdadeira em si. O conteúdo da arte clássica é de natureza substancial e implica um pathos moral. Nos poemas homéricos, nas tragédias de Sófocles e Ésquilo, trata-se de interesses concretos, de uma expressão rigorosamente exata de sentimentos, de uma eloqüência e execução conformes com a idéia principal da obra, e acima desse ciclo de heróis e figuras independentes, tocados de um pathos individual, há todo um ciclo de deuses que possuem subjetividade ainda mais pronunciada. Até onde a arte se torna mais subjetiva, como nos jogos infinitos da escultura, nos baixos-relevos, etc., nas elegias, nos epigramas e outras produções da poesia lírica em épocas posteriores, a forma de apresentar um assunto é determinada por ele mesmo, porque o assunto já possui em si mesmo uma forma objetiva. São imaginários personagens mas de perfil definido e firme: Vênus, Baco, as Musas. Ainda nos epigramas posteriores, objetos conhecidos, como por exemplo flores, reúnem-se em um ramalhete atado pelo sentimento. De uma reserva riquíssima em toda a espécie de coisas, escolhem-se objetos para todos os usos; poeta e artista são magos que os escolhem, reúnem, agrupam e animam.

Muito diferente é o que ocorre com a poesia romântica. Na medida em que se interessa pelas coisas desse mundo, e não apenas pela história sagrada, ela dá aos seus heróis virtudes e objetivos que não são as virtudes e fins do herói grego, cuja moralidade, na opinião dos primeiros cristãos, não passava duma coleção de vícios brilhantes. A moral grega é a de uma humanidade consciente de si mesma, que se orgulha do seu presente e cuja vontade se exerce, de acordo com o seu conceito, sobre um conteúdo bem delineado, num determinado meio, onde a liberdade está submetida a condições absolutas. Estas condições regulam o relacionamento entre pais e filhos, marido e mulher, cidadãos da Cidade Estado em sua liberdade realizada. Sendo alicerçado numa base natural, reconhecida e considerada como positiva e certa, este conteúdo objetivo relaciona-se ao desenvolvimento do espírito, e não pode corresponder à interioridade localizada da alma religiosa, que busca justo o contrário: destruir o que existe de natural no homem; e deve também exaltar as virtudes da humildade, renúncia à liberdade e confiança em si própria. Com seu rigor abstrato, as virtudes da piedade cristã aniquilam tudo que é profano e só vêem a liberdade do sujeito na negação do que ele possui de humano.

Entretanto a liberdade subjetiva que vimos abordando já não consiste na simples resignação ou no sacrifício de si; ela já quer afirmar a sua eficácia no mundo das coisas profanas. No entanto, ainda é a interioridade que fornece ao sujeito o material para a realização de suas tendências profanas. A poesia não tem perante si qualquer objetividade preexistente, ou mitologia, imagem, figura que possa utilizar, ou assunto que se ofereça à sua expressão. A poesia é perfeitamente livre, puramente criadora; é como uma ave que canta. Embora porém seja esta a subjetividade da alma profunda que tem uma nobre vontade, suas ações e as condições em que se realizam continuam a possuir caráter arbitrário e acidental, visto serem a liberdade e seus fins produto de uma reflexão desprovida, quanto ao conteúdo moral, de qualquer substância sólida. Por esta razão, entre os indivíduos não se encontra um pathos particular no sentido grego da palavra, isto é, no sentido de uma individualidade autônoma e viva, mas graus de heroísmo nas manifestações do amor e na defesa da honra, nas demonstrações da Lealdade, graus que dependem da qualidade da alma principalmente. O que existe de comum porém entre o herói clássico e o medieval é a coragem. Entretanto a coragem não é a mesma nem cumpre as mesmas funções em gregos e medievais. Para os heróis da Idade Média, a coragem não é natural, própria de indivíduos saudáveis em que a cultura ainda não enfraqueceu a força da vontade e do corpo que lhes é útil para defender fins objetivos, mas uma coragem originada no interior do espírito, ditada pela honra, pela cavalaria, uma coragem fantasiada, submetida aos caprichos da vontade aventureira e de combinações exteriores, aos impulsos de uma piedade mística, em suma, às decisões do sujeito que vê apenas a si mesmo.

Esta forma de arte romântica triunfou em dois hemisférios: no Ocidente, graças ao descenso do espírito em si mesmo; no Oriente, onde ocorreu a primeira expansão da consciência que tenta se libertar do finito. A poesia no Ocidente é produto da alma que se fechou em si mesma, centrada em si mesma e cujas tendências profanas estão sempre submetidas ao mundo superior da fé. No Oriente, são os árabes principalmente, os que de início aparecem como apenas um ponto, tendo adiante o deserto e o céu imensos, mas que se ampliam e expandem, até se confundirem com o mundo profano, sem abdicar porém da sua liberdade interior. É principalmente o Islã que, no Oriente, preparou o terreno por assim dizer, suprimindo quaisquer ideologias das coisas finitas e imaginárias, dando porém à alma a liberdade subjetiva que permite conciliar coração e espírito, afastados de qualquer figura objetiva de um deus, e viver, como um mendigo, na adoração apenas teórica dos seus objetos e também viver, ao mesmo tempo, no amor, na felicidade, na alegria.

1. A Honra

A arte clássica da Antigüidade ignorava o que chamamos hoje de "Honra". É certo que n'A Ilíada as coisas se estruturam ao redor da cólera de Aquiles, e dela dependem os acontecimentos narrados posteriormente. Entretanto essa cólera não é provocada por nenhum ultraje à Honra. Aquiles está furioso por causa de Agamenon principalmente, que o despojou da sua parte no butim, da sua recompensa de herói. Assim o ultraje recai sobre algo real, um dom, um sinal de prerrogativas e reconhecimento da sua glória e coragem. Se Aquiles está encolerizado é porque Agamenon o trata de modo indigno e o humilha perante os gregos; mas o ultraje não atinge o profundo em sua individualidade, e Aquiles inclina-se a ficar contente com a restituição da parte que lhe foi roubada, e com mais alguns presentes; Agamenon acaba por concordar com a proposta. Segundo nossas idéias, eles infligiram um ao outro um ultraje bem mais grosseiro, ao concordarem nessa resolução. Eles manifestaram sua cólera apenas ofendendo-se mutuamente, mas bastou uma transação concreta para apagar um ultraje igualmente concreto.

1a. O Conceito da Honra

Na concepção romântica, a Honra é algo muito diferente. O objeto do ultraje não é mais um valor concreto e real, como a propriedade, a situação, o dever, etc., mas atinge a personalidade em si mesma, a idéia que se faz dela, o valor que o sujeito lhe atribui. Esse valor é tão infinito como o próprio sujeito. O homem tem consciência da sua infinita subjetividade pelo sentimento da honra, seja qual for o seu conteúdo. A tudo o que possui o indivíduo, a tudo que possui de particular e cuja perda ele poderia suportar sem problemas, a tudo isso a Honra atribui o absoluto valor da subjetividade total, tanto na própria representação do indivíduo como na dos outros. Na representação, quaisquer particularidades adquirem um caráter de universalidade, pois toda a minha subjetividade passa para essa particularidade que é minha. Costuma-se dizer que a Honra não passa de uma aparência. Concordamos com isto; entretanto, sob o ponto de vista que tomamos agora, ela deve ser considerada como a aparência e o reflexo da própria subjetividade, que confere infinitude à aparência, por ser ela mesma infinita. Por esta infinitude, a aparência que constitui a Honra torna-se a existência verdadeira do sujeito, sua realidade mais autêntica, e cada qualidade particular iluminada pela Honra e nela mergulhada, adquire valor infinito. É esta concepção de Honra o que constitui a determinação fundamental do mundo romântico, e ela supõe que o homem, após abandonar o âmbito das representações religiosas e da interioridade, entra na realidade viva e agora procura nela afirmar a sua independência puramente pessoal e seu valor absoluto.

A Honra pode possuir os conteúdos mais variados, pois tudo que sou e faço, além do que os outros me fazem, constitui minha honra. Posso portanto considerar que participa dela tudo o que é substancial em mim, a lealdade ao príncipe, a dedicação à pátria, a obediência aos deuses dos meus antepassados, a fidelidade conjugal, a honestidade no comércio e em todas as transações, bem como nas investigações científicas, etc. entretanto essas atitudes, todas louváveis e valiosas em si mesmas, do ponto de vista da Honra só recebem o reconhecimento definitivo e a sanção, só chegam a ser aquilo a que s chama atitudes de honra, quando eu transferir para elas a minha subjetividade. O homem de honra pensa em todas as coisas e, em primeiro lugar, em si mesmo, perguntando-se não se isto ou aquilo é justo ou injusto, mas se é digno da sua honra fazer aquelas coisas. Assim ele cria objetivos arbitrários, atribui a si mesmo um certo caráter e assume obrigações que nenhuma necessidade justifica, consigo mesmo e com os outros. Então o homem tropeça em dificuldades e complicações que não vêm da coisa, mas da idéia que tem de si mesmo, porque considera ponto de honra não trair o caráter que uma vez adotou. É assim que Dona Diana considera oposto à sua honra confessar o amor que sente, pois tinha no passado a reputação de ser insensível ao Amor.

É possível dizer, então, que de um modo geral o conteúdo da Honra, por ser esta uma criação do sujeito, não estando ligada à Honra como essencialidade imanente, depende de todos os acasos. Por tal razão, vemos o código romântico proclamar como Lei de Honra o que é legítimo e justificado em si, e o indivíduo ligar, à sua consciência do que é justo, a consciência infinita da sua personalidade. Dizer que a Honra exige ou proíbe alguma coisa significa, em tais condições, que toda a subjetividade se confunde como conteúdo dessa exigência ou proibição, de modo que transgredi-la só poderia criar uma situação irreparável, e que o sujeito não pode, por conseguinte, ouvir qualquer outro conteúdo. A Honra poderá vir a ser, pelo contrário, algo completamente formal e vazio de conteúdo, se incluir apenas o eu descarnado, infinito em si, ou caso aceite com caráter obrigatório algum conteúdo nefasto ou indesejável. Então a Honra se torna, principalmente nas obras dramáticas, coisa fria e morta por completo, com objetivos exprimem não um conteúdo essencial, mas uma subjetividade abstrata. Um conteúdo substancial possui caráter de necessidade. Explicitando a si mesmo em suas numerosas associações, impõe-se à consciência como uma força que vem desta necessidade.

Onde falta profundidade ao conteúdo, é aí que o engenho da reflexão introduz, no terreno da Honra, coisas que, apesar de relacionadas ao sujeito, são acidentais e insignificantes em si mesmas. Nunca existe falta de matéria nestes casos, pois o engenho tem dons sutis de analisar e distinguir, mostrando-se capaz de introduzir, naquele domínio, coisas em si indiferentes. É sobretudo entre os espanhóis que esse casuísmo da reflexão sobre os pontos de honra alcançou grande desenvolvimento, e nas suas obras dramáticas os heróis da Honra se entregam a longos raciocínios sobre o assunto. A fidelidade da esposa constitui objeto de análises detalhadas que se aplicam a todas as circunstâncias que possamos imaginar, mesmo as mais insignificantes; a mera suspeita dos outros, até a possibilidade de uma suspeita, mesmo quando o mundo sabe que ela não tem fundamento, é bastante para que a Honra se considere afetada. Quando isto ocasiona conflitos, seu desenvolvimento não conduz a fim satisfatório, pois não estamos face a nada de substancial, de modo que, em vez da paz que uma solução sempre oferece, o que se alcança é um sentimento penoso e torturante. Nos dramas franceses, é também a honra vazia e abstrata que constitui o foco principal da ação. O Alarchos de Schlegel é que encarna priincipalmente esta honra vazia e fria como o gelo: o herói assassina a sua nobre esposa. Por quê? Por causa da Honra, a qual consiste em seu desejo de se casar com a filha do rei, não porque sente amor por ela, mas por ser o genro do rei. Pathos odioso e idéia detestável, com pretensões à grandeza e ao infinito.

1b. A Vulnerabilidade da Honra

Uma vez que a Honra não é apenas o que ela parece ser para mim, mas também deve existir na representação dos outros e ser reconhecida por eles, os quais, por sua vez, têm o direito e exigir o reconhecimento da própria Honra, ela representa uma coisa por demais vulnerável. A extensão que havemos de dar a esta exigência depende só do meu arbítrio. A menor ofensa pode ser muito importante, e como na realidade concreta o homem relaciona-se com milhares de coisas variadas, como depende só dele alargar até o infinito o âmbito do que lhe pertence e a que sua Honra pode se ligar, da independência dos indivíduos e do seu quanto-a-si tristonho seguem-se contestações, disputas, querelas sem fim. Assim, no ultraje bem como na Honra em geral, a função essencial não é a do conteúdo. Em outros termos: não me sinto ultrajado no conteúdo, mas na minha personalidade, da qual esse conteúdo é parte, e considero que é o Eu, esse ponto de ideal infinito, o que está ultrajado.

1c. A Reparação da Honra

Portanto vemos como todo ultraje da Honra é considerado algo de infinito e a reparação, por sua vez, só pode ser infinita. Existem numerosos graus de ultraje, e também de reparação. Mas o que devo considerar como ultrajem, até que ponto devo me sentir lesado e exigir uma reparação, tudo isso depende do meu arbítrio subjetivo, que tem direito de se voltar tanto para a mais escrupulosa reflexão, como para a suscetibilidade mais sutil. Quanto à compensação a que tem direito, quem cometeu o ultraje deve começar por ser reconhecido como homem de Honra igual a mim. Minha Honra deve ser reconhecida por outras pessoas; mas para que ela seja por ele e para ele, este homem deve ser, a meus olhos, também um homem honrado, ou seja, eu devo poder considerá-lo, apesar do ultraje que me fez e da minha inimizade subjetiva, como infinita personalidade.

Portanto um dos princípios básicos da Honra consiste nisto: ninguém deve reconhecer, com suas atitudes, que os outros tenham direitos sobre a sua pessoa e, não interessando o que ocorrer, o homem tem de se afirmar como um infinito invariável a seus olhos e aos olhos alheios.

Mas como a Honra, as questões e satisfações que ela contém, baseiam-se na autonomia que não reconhece limites, obedecendo a sua inspiração apenas, de novo estamos perante o que já mostramos constituir a determinação principal das figuras heróicas: a independência da individualidade. Entretanto na Honra não se trata da independência pura e simples, no sentido de que o homem defende sua individualidade, agindo como acha que é o melhor,; sim, de uma independência cujo corolário é a idéia que se tem de si mesmo; esta idéia constitui o próprio conteúdo da Honra; ela é a representação que se tem de si mesmo e que faz da subjetividade o centro para o qual convergem todas as manifestações da vida exterior, todas as ações, palavras e intenções circunstanciais. Portanto a Honra consiste numa independência refletida, de essência nessa mesma reflexão, de modo que lhe importa bem pouco se ela possui conteúdo de natureza moral e necessária ou acidental e insiginificante.

2. O Amor

Depois da Honra, o Amor assume papel de predominância na arte romântica.

2a. O Conceito do Amor

Se a determinação principal da Honra está na subjetividade pessoal, como ela se representa em sua absoluta independência, a do Amor é antes constituída pelo abandono do sujeito a um indivíduo do outro sexo, pela renúncia à sua consciência independente e ao ser-para-si individual, pela tomada de consciência de si mesmo na consciência de um outro e através dela. A Honra e o Amor se opõem quanto a isso. Mas por outro lado, no Amor se pode ver a realização do que já está implicado na Honra, enquanto ela exigir o reconhecimento da infinitude da sua pessoa por outra pessoa. Este reconhecimento só é verdadeiro e completo se o respeito não se refere à minha personalidade in abstracto, ou da forma como ela se manifesta em um caso isolado concreto e por isso limitado, mas dirige-se a toda a minha subjetividade e enquanto eu passo, com essa minha toda subjetividade, com tudo o que ela contém do que sou, fui ou serei, para a consciência de outrem, impregnando seu querer e saber, suas tendências e aspirações. Assim, o outro vive em mim, e eu nele. Eu e o outro vivemos num estado uno e de plenitude, e nessa identidade colocamos toda a nossa alma, fazemos dela um mundo. Por essa interioridade infinita, o Amor ocupa lugar tão importante na arte romântica, e sua importância ainda é aumentada pela riqueza mais elevada que o conceito do Amor implica.

O Amor não tem seu alicerce, como acontece com a Honra quase sempre, nas reflexões e casuísmos do intelecto; sua origem é o sentimento, e devido à importância que a diferença de sexos nele assume, o Amor ao mesmo tempo forma a base espiritual das relações naturais. O lugar importante ocupado pelo Amor nestas relações, consiste no sujeito comprometer nelas toda a sua interioridade, sua infinitude. É esta fusão total da consciência de um sujeito com a de um outro, esta aparência de abnegação e desinteresse que servem, para o sujeito se reencontrar e tornar-se ele mesmo; esse esquecimento de si mesmo leva quem ama a não viver nem existir por si, a não pensar em si, mas a encontrar em um outro as razões da sua existência. Tudo isso confere ao Amor seu caráter de finitude. Sua beleza consiste principalmente no fato dele permanecer em estado de mero sentimento ou impulso, enquanto a imaginação o cerca de um mundo inteiro, transformando todos os interesses, fins e circunstâncias da vida real em ornamento do Amor. Nas mulheres, o Amor aparece em toda sua beleza, porque aquele abandono e abnegação, para elas é a expressão mais elevada do seu caráter, e sua vida inteira é uma preparação, uma expansão que leva a esse sentimento, no qual elas encontram o ponto firme e a estabilidade da sua existência. Se não atingem esse ponto, devido a qualquer desgraça, elas se apagam qual chama ao vento.

A arte clássica desconhece esta interioridade subjetiva do sentimento, o qual desempenha nela um papel secundário sempre, pois quando o Amor é tratado como assunto da representação, é apenas como prazer sexual. Homero não lhe atribui a mínima importância, vendo a realização mais digna do Amor no casamento, na vida doméstica, no caráter de Penélope, mãe e esposa dedicada, ou de uma Andrômaca, enfim das mulheres que possuem virtudes morais. Os laços que unem Helena e Páris são considerados imorais, por outro lado, pois foram eles a causa dos horrores e misérias da Guerra de Tróia. O Amor de Aquiles por Briseida não tem profundidade, porque Briseida é uma escrava, de quem Aquiles pode dispor como quiser. Nas Odes de Safo, a linguagem do Amor eleva-se ao entusiasmo lírico, sem dúvida, porém o que nelas se expressa é mais o apetite febril que devora o sangue do que a interioridade da alma, a força de um sentimento que se eleva do coração. Nas agradáveis odes de Anacreonte, o Amor aparece como um sentimento geral que ignora os sentimentos infinitos, o abandono da alma oprimida, que morre de nostalgia e suporta todos os males sem queixas, enquanto uma vida inteira depende deste sentimento. Anacreonte fala do Amor em palavras cheias de serenidade, como de uma fonte de alegrias imediatas, sem que a qualidade ou intensidade destas alegrias signifiquem uma escolha definitiva, vinculação a uma pessoa determinada, fixação irreversível do sentimento.

A tragédia clássica também ignora a paixão amorosa no sentido romântico da palavra. Principalmente Ésquilo e Sófocles não lhe conferem qualquer interesse especial. Apesar de Antigona estar destinada a ser esposa de Hémon, e este intervenha a seu favor junto ao pai e chegue a matá-la porque não a podia salvar, o que ele impõe a Creonte não é a força subjetiva da sua paixão, que não sente aliás como um apaixonado de hoje, mas somente as circunstâncias objetivas. Se Eurípedes trata o Amor, como por exemplo no Fedra, de maneira mais patética, entretanto apresenta este sentimento como quase criminoso, como paixão sensual provocada por Vênus para condenar Hipólito, pois este não lhe fazia sacrifícios. Vemos o mesmo na Vênus de Médici, imagem plástica do Amor, de admirável beleza e graça, mas sem a interioridade exigida pela arte romântica. Ocorre o mesmo com a poesia romana, onde se concebe o Amor, após a queda da República e a decadência dos costumes morais, como apenas um prazer sensual. Entretanto Petrarca, apesar de considerar os seus sonetos apenas uma brincadeira e de buscar a glória com suas poesias e trabalhos latinos, tornou imortal esse Amor criado pela imaginação, a qual foi capaz, sob aquele céu italiano, de imprimir ao fervor amoroso um caráter subjetivo. O ponto de partida para Dante foi também o amor de Beatriz, amor transfigurado em fervor religioso, e Dante soube com coragem e audácia ascender a uma concepção religiosa da arte, através da qual ele ousou fazer o que ninguém antes dele conseguira: tornar-se juiz dos homens e distribuí-los para o inferno, purgatório e paraíso. Ao contrário de Dante, Boccacio tratou o Amor como uma paixão violenta ou de maneira muito superficial, sem conceder nenhum lugar à moral, usando este sentimento para pintar os costumes da sua época e do seu país. No Minnegesang alemão, o Amor aparece sentimental, terno, sem riqueza de imaginação, em forma de um jogo melancólico e monótono. Entre os espanhóis, o Amor se exprime numa linguagem rica em imagens, é cavalheiresco, engenhoso para buscar e defender seus direitos e deveres, constituindo ponto de honra pessoal quase sempre quimérico. Entre os franceses, a partir de certo momento, ele surge galante, com uma vaidade bem evidente, um sentimento que se poetiza através de engenhosos sofismas, e ora aparece como um prazer sensual, isento de paixão, ora em forma de sensibilidade sublimada e racional. Por ora, limito me a estas observações, as quais vou ampliar e desenvolver adiante.

2b. Os Conflitos Criados pelo Amor

Observados de perto, os costumes profanos adquirem aspecto duplo. Por um lado, temos os interesses mundanos como tais: vida familiar, leis, o direito, os costumes, etc. Vemos por outro lado surgir o amor, no coração desta vida ancorada e estável, nas mais ardentes e mais nobres das almas; o Amor, essa religião profana do sentimento, que logo estabelece com a religião propriamente dita relações variadas e a subordina, esquece a religião e se impõe a ela como fim essencial da vida, até o único e o mais elevado, pregando não apenas o abandono de tudo e a fuga com a bem-amada para o deserto, mas também caindo num extremo sem beleza, o sacrifício da dignidade humana ao ser amado e a submissão mais servil. Produzem-se, na realidade concreta dos conflitos, por causa desta separação, choques entre a realidade do amor e a vida mundana, a qual impõe suas exigências e direitos.

O conflito inicial e mais freqüente é o que se trava entre o Amor e a Honra. A Honra possui o mesmo caráter infinito do Amor, e por isso lhe opõe um obstáculo absoluto. Com freqüência o dever da Honra pode exigir o sacrifício do Amor. De certo ponto de vista, seria por exemplo contrário à Honra de um homem de classe social superior desposar uma jovem de classe inferior. As diferenças de classe impõem-se pela natureza das coisas. Mas a vida profana não é desprezada pelo conceito infinito da verdadeira liberdade; nesta, a situação social, a profissão, etc., são determinadas livremente pelo sujeito livre. São portanto o nascimento e a natureza que, por um lado, atribuem ao homem a sua situação e classe social; por outro lado, resultam daí diferenças entre os homens, que assumem caráter absoluto e infinito porque a interferência da Honra exige a liberdade e defende o inatacável da situação desfrutada ou da classe social a que se pertence.

Entretanto não é apenas a Honra o que entra em conflito com o Amor; são as eternas potências substanciais, os interesses estatais, o Amor à Pátria, deveres familiares, etc. Esse tema é tratado com freqüência hoje em dia, pois as condições objetivas da vida sobrepõem-se a tudo como nunca antes ocorreu. O Amor então é oposto, como direito inútil do sentimento subjetivo, a outros direitos e deveres, ora porque o coração rechaça tais direitos e deveres como secundários, ora porque os reconhece, colocando-se desta forma o homem em conflito consigo mesmo e com sua paixão.

Em terceiro lugar, e último, há circunstâncias e travas exteriores que se podem opor ao Amor: o cotidiano, a prosa da vida, e acidentes, paixões, preconceitos; a mesquinhez espiritual, o egoísmo alheio, ocorrências e fatos de variada qualidade. Em se tratando de uma paixão selvagem, grosseira e maligna, oposta à beleza terna do Amor, o conflito assume características terríveis, é baixo e vil. Principalmente nos dramas, novelas e romances modernos, é onde aparecem os conflitos exteriores desse gênero, sendo nosso interesse despertado pelos sofrimentos, esperanças e aspirações de amantes infelizes, e os autores tentando nos comover com alguma solução feliz ou infeliz, ou nos tranqüilizar, ou nos proporcionar apenas um lazer. Esse gênero de conflitos, causados por meros acidentes, entretanto possuem interesse secundário.

2c. O Caráter Acidental do Amor - Amor e Acaso

Visto sob quaisquer aspectos, o Amor sempre tem a elevada virtude de nunca se aprisionar em um estado de mero desejo sexual, surgindo como sentimento rico, nobre, belo. O indivíduo que o sente está disposto sempre a realizar qualquer sacrifício para se unir ao ser amado e para não recuar em face de nenhuma exigência de coragem para conquistar ou conservar o seu amor. Entretanto o Amor romântico possui também o seu limite. Falta-lhe a universalidade em si. É o sentimento pessoal de um sujeito individual, fora dos interesses eternos e à margem do conteúdo objetivo da existência humana: família, política, pátria, deveres profissionais, sociais ou religiosos. O que ele contém é só um Eu que busca encontram em outro Eu a duplicata, o reflexo do sentimento que o domina. Este conteúdo interior, que é puramente formal na verdade, está longe de corresponder ao todo verdadeiro representado por um indivíduo concreto. Na família, na união conjugal, no âmbito dos deveres, no Estado, o sentimento subjetivo como tal, exigindo a união com este ou aquele indivíduo e excluindo os outros, não constitui o principal fator, enquanto no Amor romântico gira tudo em torno do amor sentido por uma mulher, dela por um homem. Este amor exclusivista de um indivíduo por outro indivíduo determinado pertencente ao sexo oposto, só tem razão de ser na particularidade subjetiva e no caráter sempre mais ou menos arbitrário e aleatório da escolha. Cada um enxerga na mulher amada, aos olhos dos outros uma pessoa comum, o ser mais belo, o mais nobre, mais original do mundo. Mas como todos ou quase todos os seres humanos fizeram alguma vez esse movimento de exclusão e como a mulher amada não é Afrodite, visto cada um ter a sua própria Afrodite, a quem coloca acima até mesmo da Verdade, ocorre que são muitas aquelas a quem se atribui o mesmo valor exclusivo, apesar de cada homem saber que há no planeta muitas jovens lindas que possuem, todas ou pelo menos a maior parte delas, seus amantes e adoradores, e sabendo também que não existe mulher que não encontre um homem que a julgue a mais bela, virtuosa, cheia de encantos, etc. Dar a preferência a uma só e fazê-lo de modo absoluto, é um assunto da vida privada, pertence ao sentimento subjetivo, à singularidade individual. A perseverança do sujeito em querer se unir a essa criatura única de modo exclusivo e torná-la, por toda sua vida, dependente desta união, age como uma força que torna a arbitrariedade necessária. Nestas situações a liberdade do sujeito e o caráter absoluto de sua escolha são reconhecidos e respeitados, porém tal liberdade, longe de assemelhar-se ao modo patético da Fedra, de Eurípides, entregar-se à divindade, antes parece, pela origem da escolha na vontade individual, mais um capricho e teimosia.

Os conflitos causados pelo Amor, sobretudo os que nascem da oposição e luta com interesses substanciais, mostram sempre uma aparência de luta que nenhuma necessidade justifica. Isto ocorre porque a subjetividade como tal (com as suas exigências, se quiserem, válidas em si) opõe-se ao que não pode ser esquecido ou tornado inválido, por seu caráter essencial. Na grande tragédia antiga, personagens como Agamenon, Clitemnestra, Orestes, Édipo, Antigona, Creonte, etc., visam fins individuais, é certo, mas o substancial, constituindo o conteúdo patético de seus atos, é legítimo e justificado e por isso tem um interesse universal. Se nos comove o destino que os destrói, não é porque seja um destino infeliz, mas por constituir uma infelicidade que honra: o pathos não descansa enquanto não obtém a satisfação com um conteúdo necessário que tem de esgotar. Que não seja punido o crime que Clitemnestra cometeu, que não desapareça o ultraje feito a Antígona, como irmã, são injustiças em si. Entretanto os sofrimentos causados pelo Amor, as esperanças malogradas, paixões obsessivas, as infinitas felicidades sonhadas pelo homem, nada disso oferece um interesse para todos, e só diz respeito ao sujeito: todo homem nasce para amar, e por isso tem o direito de procurar a felicidade no amor; mas se em determinadas circunstâncias, em certos casos, ele não consegue atingir seu objetivo com esta ou aquela mulher, isso não implica nenhuma injustiça. Pois nenhuma necessidade o empurra para certa mulher precisamente, com exclusão de todas as outras; entretanto a arte romântica pretende nos interessar pelo o que é acidental, por excelência, a arbitrariedade subjetiva, o que não possui ampliação ou universalidade. Eis por que, mesmo sendo a paixão descrita com todo ardor, não podemos conservar uma atitude fria perante ela.

3. A Lealdade

A Lealdade é o terceiro dos elementos principais da subjetividade romântica, tal como se manifesta no mundo profano. Mas não entendemos, por Lealdade, nem os juramentos de amor, nem a dedicação às amizades, cujo belo exemplo entre os antigos são os laços que unem Aquiles e Patroclo, e em grau ainda mais elevado, os de Orestes e Pílades. Amizades deste gênero existem principalmente entre os jovens. Todo homem é chamado a realizar uma carreira vital por seus próprios meios, a criar para seu uso uma realidade, e conservá-la. Entretanto nesta idade, a juventude, quando a noção das condições reais da vida é apenas vaga, também é aquela em que os indivíduos, graças ao caráter fluido das fronteiras que os separam, procuram se aproximar, adotando um modo comum de pensar, estabelecer a mesma vontade, realizar as mesmas coisas, tornar os empreendimentos individuais em coisas também dos outros. A vida do adulto segue também seu curso próprio, mas sem contrair relações tão estreitas com as vidas dos outros, sem que as coisas cheguem a tal ponto que o auxílio alheio seja indispensável. Os adultos se juntam e separam, e apesar da amizade continuar, como expressão da interioridade dos sentimentos, de princípios e mesmo de orientações comuns, ela não é mais a amizade juvenil que torna o que um decide negócio também dos outros. Está de acordo com o princípio de nossa vida profunda que cada um viva dentro de sua própria realidade por si.

3a. A Lealdade no Serviço

Se a Lealdade, no amor e na amizade, se baseia na relações entre iguais, a Lealdade que vamos agora considerar é a que se coloca perante um superior, um homem que ocupa situação mais elevada, perante um senhor. Na Antigüidade já se encontra a Lealdade dos servidores para com a família e a casa do senhor. Na lealdade do porqueiro de Ulisses temos disso um belo exemplo, quando ele desafia as tempestades e passas as noites a guardar os porcos, com a maior solicitude para com seu senhor, a quem prestará mais tarde um auxílio eficaz na luta contra os pretendentes de Penélope. Encontra-se no Rei Lear de Shakespeare um quadro comovente de lealdade, embora como sentimento interior puro, quando (Ato I, Cena IV) Lear pergunta a Kent:

— "Tu me conheces, homem?"

Ao que respondeu Kent:

— "Não senhor, mas há no vosso rosto algo que me obriga a vos tratar por senhor".

Este quadro já de aproxima do que vamos chamar de Lealdade romântica. A Lealdade romântica não é a do escravo ou do servo, a qual mesmo sendo bela e comovedora, não possui a autonomia livre da sua individualidade, seus fins e atos, o que diminui sua importância.

A Lealdade que vamos abordar é a do vassalo de cavalaria, na qual o sujeito, apesar de sua dedicação a um superior, imperador, rei ou príncipe, conserva sua liberdade e independência. Esta Lealdade ocupa lugar tão importante na cavalaria porque ela vincula os principais traços da vida coletiva com a sua organização social, pelo menos em um início.

3b. Independência Subjetiva na Lealdade

Não é o patriotismo, ou o propósito objetivo e geral, que determina esse gênero de relações entre os indivíduos, mas sim o relacionamento com um sujeito, um senhor, e esta relação se baseia no sentimento da Honra, na opinião subjetiva, e tem como objetivo alguma vantagem particular. A Lealdade surge com seu brilho em um mundo disforme, brutal, sem direitos nem leis. Nessa realidade sem leis, os mais fortes e valentes assumem o papel de chefes, de príncipes, que logo obtêm a livre adesão dos outros, no esforço para criar uma ordem estável. Estas relações depois levaram aos laços iguais entre a gente do feudo, onde os vassalos continuam a ser livres e podem defender deus direitos ou obter vantagens. O principal fundamento, a origem destas relações é a livre escolha, no que se refere ao sujeito desta ligação, ou à sua duração. Assim, a lealdade da cavalaria sabe preservar muito bem a propriedade, a independência pessoal, a Honra dos indivíduos, mas não é considerada como um dever que é necessário cumprir, mesmo contra a vontade circunstancial do sujeito. Pelo contrário, cada um considera a ordem geral dependente do seu gosto, de suas disposições e opiniões particulares.

3c. Os Conflitos Criados pela Lealdade

Portanto a Lealdade e a obediência a um senhor podem entrar com facilidade em conflito com as paixões subjetivas, a suscetibilidade às pequenas ofensas à Honra, com o sentimento do Amor ou muitas outras circunstâncias acidentais, interiores ou exteriores. Portanto ela representa uma atitude em extremo precária. Temos como exemplo um cavaleiro fiel a seu senhor, quando surge uma questão entre este e um amigo do cavaleiro. Ele tem de escolher entre duas lealdades, sem deixar de ser fiel à sua Honra e a seus interesses. A história do Cid nos oferece belos exemplos dessa espécie de conflitos. Ele é leal ao rei e a si mesmo. Quando o rei age em função da justiça, o Cid lhe oferece o seu braço, mas quando seu procedimento é injusto ou quando o próprio Cid sente-se ofendido, retira-lhe com energia o seu apoio.

Os pares de Carlos Magno procedem do mesmo modo. Entre eles e o imperador há uma ligação de soberania e obediência que se pode comparar, com todas as reservas que se impõem, à de Zeus e aos outros deuses. O senhor ordena, grita, troveja, entretanto os indivíduos resistem a ele como e quando querem, pois são fortes e independentes. É no Maître Renard que essa fraqueza da ligação está descrita de modo mais divertido. Neste poema, assim como os grandes do império só servem a eles mesmos e só pensam em preservar a sua independência, também os príncipes alemães e os cavaleiros medievais estavam ausentes sempre que era preciso realizar algo pelo imperador e pelo império; poderíamos dizer que, se o conceito sobre a Idade Média já foi elevado, isso ocorreu porque naquele tempo cada um se considerava um homem de honra, embora obedecendo apenas a seu arbítrio, o que é inadmissível em um estado com organização racional.

Em se tratando de Honra, Amor, Lealdade, sempre ocorrem a afirmação da independência subjetiva, a afirmação da independência individual, as manifestações da vida interior que não pára de se ampliar até atingir os interesses mais elevados e mais ricos, nos quais ela realiza a conciliação consigo mesma. É isso que constitui aspecto mais belo do âmbito não-religioso, na arte romântica. Seus fins referem-se ao que é humano e é neste aspecto, ao menos enquanto implicam afirmação da liberdade subjetiva, que merecem toda a nossa simpatia; na área religiosa, pelo contrário, os assuntos representados e a maneira de representá-los encontram-se quase sempre em oposição às nossas noções e idéias. Entretanto é impossível estabelecer uma relação entre as duas esferas, no sentido de que os interesses religiosos quase sempre confundem-se com os da cavalaria profana, tal como acontece na aventura dos Cavaleiros da Távola Redonda que saem em busca do Santo Graal. Esta confusão introduz na poesia cavalheiresca um elemento que é, em parte, místico e fantástico, em parte, de modo bastante evidente, alegórico. O domínio profano do Amor, porém; o domínio da Honra e da Lealdade pode ser independente por completo de objetivos e idéias religiosas, por serem três sentimentos que somente exprimem a profunda subjetividade puramente humana. Falta à fase que acabamos de abordar uma interioridade que tenha um conteúdo concreto, dado pela condição humana, pelas paixões e caracteres humanos, em suma, um conteúdo apreendido na vida real. Faltando essa diversidade, a interioridade, em si infinita, continua abstrata e formal, por isso cabendo-lhe a missão de também assimilar essa matéria e a elaborar para torná-la adequada à representação artística.


Inclusão 27/06/2014