Porque Crê em Deus a Burguesia

Paul Lafargue

IV — Evolução da ideia de Deus


A ideia de Deus, que os enigmas do meio natural e do meio social fizeram germinar no cérebro humano, náo é invariável; pelo contrário, modifica-se com o tempo e com o lugar, evolucionando à medida que o modo de produção se desenvolve e transforma o meio social.

Para os gregos, romanos e povos da antiguidade, Deus permanecia em lugar determinado e só existia para ser útil aos seus adoradores e hostil aos seus inimigos. Cada família tinha os seus deuses particulares, que eram os espíritos dos antecessores divinizados, e cada cidade tinha a sua divindade municipal ou «poliade», como diziam os gregos. O Deus ou a Deusa municipal residia no templo que lhe era consagrado, e estava incorporado na sua efígie, que consistia, muitas vezes, num bloco de madeira ou numa pedra. Estes deuses só se interessavam pela sorte dos habitantes da cidade. Os Deuses dos antepassados de nada mais se ocupavam que dos assuntos da família. O Jehovah da Bíblia era um Deus desta espécie. Permanecia num cofre de madeira, chamado Arca Santa, que transportavam quando as tribus mudavam de lugar. Também a colocavam à frente.dos exércitos, para que Jehovah se batesse pelo seu povo. Se o castigava cruelmente por faltar à sua. lei, também lhe prestava numerosos serviços, daqueles a que se refere o Antigo Testamento. Quando o Deus municipal não estava à altura das circunstâncias, acrescentáva-se-lhe outra divindade. Durante a segunda guerra púnica, os romanos fizeram vir de Pessinonte a estátua de Cybeles, afim de que a Deusa da Ásia Menor os ajudasse a defender-se de Aníbal. Quando os cristãos demoliam os templos e destruíam as estátuas de seus Deuses para desalojá-los de seus nichos e para impedir que protegessem os pagãos, não tinham outra ideia da divindade. Os selvagens criam que a alma constituía um segundo corpo. Por isso os seus espíritos divinizados, ainda que os encorporassem em pedras, em pedaços de madeira e em animais, conservavam a forma humana. De igual modo para S. Paulo e para os apóstolos, Deus era um antropomorfo; por isso fizeram dele um Homem-Deus semelhante a eles, conforme o corpo e o espírito, enquanto que o capitalista moderno o concebe sem cabeça nem braços e presente em tôda a parte, em vez de estar aposentado em sítio certo do globo.

Os romanos e os gregos, assim como os judeus e os primeiros cristãos, não criam que o seu Deus fosse o único da creação. Os judeus criam em Moloch, em Baal e noutros Deuses dos povos com os quais guerreavam com a mesma firmeza que com Jehovah, e os cristãos dos primeiros séculos e da Idade Média, se chamavam a Júpiter e a Alah falsos Deuses, capazes de realizar prodígios milagrosos, tais como Jesus e seu Pai Eterno(9). Precisamente porque criam na multiplicidade dos Deuses, era possível que cada população tivesse um Deus ao seu serviço, encerrado num templo e encorporado num objecto qualquer: — Jehovah estava-o numa pedra. O capitalista moderno, que pensa que o seu Deus está presente em tôda a parte da terra, nada mais pode aceitar que a noção de um Deus único, e a ubiquidade que atribuo a um Deus impede que o represente com cara, nádegas, braços e pernas, como Júpiter de Homero e Jesus de S. Paulo.

As divindades adoptadas pelas cidades guerreiras da antiguidade, sempre em luta com os povos circunvizinhos, não podiam corresponder às necessidades que a produção mercantil creava nas cidades comerciais e industriais, obrigadas, pelo contrário, a manter relações pacíficas com as nações fronteiriças. As necessidades do comércio e da indústria obrigaram a burguesia nascente a desmunicipalizar as divindades e a crear Deuses cosmopolitas.

Sete ou seis séculos antes da era cristã, nas cidades marítimas da Jónia, da Grande Grécia e da Grécia, observam-se tentativas destinadas a organizar relações, cujos Deuses não haviam de ser monopolizados exclusivamente por uma cidade mas reconhecidos e adorados por diversos povos, mesmo inimigos. Estas novas divindades, Isis, Demetér, Dionisos, Mitra. Jesus, etc, algumas das quais pertencem à época matriarcal, revestiam ainda a forma humana, embora começasse já a sentir-se a necessidade de um Sêr supremo, que não fôsse antropomorfo. Só na época capitalista, porém, se chegou a impor a ideia de um Deus amorfo, como consequência da forma impessoal revestida pela propriedade das sociedades por acções.

A propriedade impessoal, que introduziu um modo de posse absolutamente novo e diametralmente oposto ao que até então existira, havia de modificar, necessariamente, os hábitos e os costumes do burguês, e de transformar, por conseguinte, a sua mentalidade. Até à sua aparição, não se podia ser possuidor, em França, mais do que dum vinhedo no Bordelais, de um tear em Ruão, de uma forja em Marselha, ou de uma drogaria em Paris. Cada uma destas propriedades, diferentes pelo género da indústria, pela situação geográfica e possuída por um único indivíduo, ou, quando muito, por dois ou três: — era raro que a mesma pessoa tivesse mais.

Com a propriedade impessoal, sucede o contrário. Uma linha férrea, uma mina, um banco, são propriedade de centenas e de milhares de capitalistas, e um mesmo capitalista pode ter na sua própria carteira, títulos de rendimento e das dívidas públicas da França, da Rússia, da Turquia e do Japão, e acções das minas de ouro do Transvaal, dos trànvias eléctricos da China, duma carreira de vapores transatlânticos, de uma plantação de café no Brasil, duma roça em Portugal ou de uma mina de carvão em França.

O capitalista não pode ter, pela propriedade impessoal de cujos títulos é possuidor, o mesmo carinho que o burguês manifesta pela que êle administra ou faz dirigir sob as suas ordens: — o único interesse que sente por ela está em proporção com o prémio pago pela acção adquirida e do dividendo que dela recebe. Pouco lhe importa a êle que êste dividendo seja proporcionado por uma empresa de extração de massas, por uma refinaria de açúcar ou por uma cultura de algodão, e que êste se domicilie em Paris ou em Pekin. Uma vez que só lhe importa o dividendo, desaparecem os caracteres diferenciais das propriedades que o proporcionam. E estas propriedades, de indústrias e de situações geográficas diferentes, identificam-se para o capitalista numa propriedade única, proporcionadora de dividendos cujos títulos, circulando na Bolsa, continuam conservando diversos nomes de ofícios e de países.

A propriedade impessoal, que abrange todos os ofícios e se torna extensiva a todo o globo, desenvolve os seus tentâculos munidos de sugadores de dividendos, quer numa acção cristã, num país mahometano, budhista ou fetichista. Sendo a acumulação de riquezas a paixão dominante do burguês, esta identificação de propriedades, de natureza e de nacionalidades distintas numa propriedade única e cosmopolita, devia reflectir-se na sua inteligência e influir na sua concepção de Deus(10).

A propriedade impessoal tenta-o, sem que êle dê conta disso, a identificar os Deuses da terra num Deus único e cosmopolita, que nuns países tem o nome de Jesus, noutros de Alah ou de Budha e é adorado segundo os diferentes ritos.

É um facto histórico que a ideia de um Deus único e universal, que Anaxágoras foi um dos primeiros a conceber, e que durante séculos apenas foi alimentado pelo cérebro de alguns pensadores, não foi convertido em ideia geral até ao predomínio da civilização capitalista. Como, porém, ao lado desta propriedade impessoal, única e cosmopolita, subsistem ainda inumeráveis propriedades pessoais e locais, os Deuses locais e antropomorfos, faziam germinar no cérebro do capitalista a ideia do Deus único e cosmopolita.

A divisão dos povos em nações comercial e industrialmente rivais, obriga a burguesia a dividir o seu Deus único em outros tantos Deuses quantas nações existem. Assim, cada povo da cristandade crê que o Deus cristão,—que é, sem embargo, o Deus de todos os cristãos, é seu Deus nacional, como o era o Jehovah dos judeus e o Pallas-Athena, dos atenienses. Quando duas nações cristãs, se declaram em guerra, cada uma roga ao seu Deus nacional e cristão que combata por ela, e, se obtém a vitória, entoa um Te-Deum em sinal de graças por ter derrotado a nação rival e o seu Deus nacional e cristão. Os pagãos faziam lutar, entre si, Deuses diferentes; os cristãos fazem lutar seu Deus único com êle mesmo. O Deus único e cosmopolita, não poderia destronar completamente os Deuses nacionais do cérebro burguês, a não ser que todas as nações burguesas estivessem centralizadas numa só nação.

A propriedade impessoal possui outras qualidades que transmitiu ao Deus único e cosmopolita.
O proprietário dum campo de trigo, de uma oficina de carpintaria ou de uma mercearia, pode vêr, tocar, medir e valorizar a sua propriedade, cuja forma clara e precisa impressiona os seus sentidos. Mas o proprietário de títulos de rendimento duma dívida pública e de acções duma linha férrea, de uma mina de carvão, duma companhia de seguros ou de um banco não pode vêr, tocar, medir ou valorizar a partícula de propriedade que representam os seus títulos e as suas acções de papel: em que floresta ou edifício do Estado, em que vagão, tonelada de hulha, apólice de seguro ou caixa de banco possa supor que ela se encontra.

O seu fragmento de propriedade está perdido, fundido num todo enorme, de que não pode, sequer, formar uma ideia, pois se viu locomotoras e estações e mesmo galerias subterrâneas, não poude apreciar em seu conjunto uma linha férrea e uma mina; e, quanto à dívida pública de um Estado, a um Banco ou a uma companhia de seguros, não são susceptíveis de ser representados por uma imagem qualquer. A propriedade impessoal, da qual é um dos co-proprietários, não pode adquirir na sua imaginação mais do que uma forma vaga, imprecisa, indeterminada; para êle é melhor um ser que raciocina, que revela a sua existência por meio de dividendos, que uma realidade sensível.

Não obstante, esta propriedade impessoal, indefinida, como um conceito metafísico, provê todas as suas necessidades, como o Pai do céu dos cristãos, sem exigir dele outro trabalho nem mais quebra-cabeças que esperar os dividendos, que recebe com beatífica satisfação de corpo e de espírito como uma graça do capital, do qual a graça de Deus, «o mais verdadeiro dos dogmas cristãos», segundo Renán, é a reflexão religiosa. Já não se preocupa por conhecer o carácter da propriedade impessoal que lhe proporciona rendas e dividendos, nem por saber se o seu Deus único e cosmopolita é homem, mulher ou bêsta, inteligente ou idiota, — se possue as qualidades de fôrça, ferocidade, bondade, justiça, etc, das quais estavam munidos os Deuses antropomorfos. Nem mesmo perde tempo a dirigir-lhe orações, pois sabe, de ante-mão, que súplica alguma modificará a taxa do rendimento e do dividendo da propriedade impessoal da qual o seu Deus único e cosmopolita é a reflexão intelectual.

Ao mesmo tempo que a propriedade impessoal metamorfoseava o Deus antropomorfo dos cristãos num Deus amorfo e num ser razoável, num conceito metafísico, despojava em sentimento religioso da burguesia a virulência que engendrara a febre fanática dos mártires, dos cruzados e dos inquisidores, e transformava a religião numa questão de gôsto pessoal, como o cozinhar, que cada qual prepara a seu modo, com manteiga, com alho ou sem êle. Mas a burguesia capitalista tem necessidade de uma religião e se encontra o cristianismo liberal por sua conveniência, não pode aceitar, sem emendas de vulto, a Igreja católica, cujo despotismo inquisitorial desceu até aos pormenores da vida privada e cuja organização de bispos, curas, monges e jesuítas, disciplinados e obedecendo cegamente às ordens que recebiam, constituíam uma ameaça para a ordem pública. A Igreja católica podia ser suportada pela sociedade feudal, na qual todos os seus membros, desde o servo ao rei, estavam unidos por direitos recíprocos; porém, não pode ser tolerada pela democracia burguesa, cujos membros, iguais ante a fortuna e a lei, embora divididos por interesses, se acham entre si em perpétua guerra industrial e comercial e querem ter sempre e direito de criticar as autoridades constituídas e torná-las responsáveis pelos seus fracassos económicos.

O burguês, que para enriquecer não quere ser perturbado por nenhum obstáculo, nem sequer toleraria a organização corporativa dos seus mestres de ofícios, que vigiava a maneira de produzir e a qualidade dos produtos. For isso aboliu-a. Desembaraçado de qualquer intervenção, só teria de consultar o seu interêsse para fazer fortuna, cada um segundo os meios de que dispunha. A qualidade das mercadorias que fabrica e vende, só depende da sua elástica consciência:— cumpre ao cliente não deixar-se enganar quanto à qualidade, ao preço e ao peso do que compra. Cada um por si, e Deus, quere dizer o dinheiro, por todos.

A liberdade da indústria e do comércio devia reflectir-se, forçosamente, na maneira de conceber a religião, que cada um entende como melhor lhe parece. Cada um porta-se com Deus, como com a sua consciência, em matéria comercial; cada um interpreta, segundo os seus interêsses e as suas luzes, os ensinamentos da Igreja e as palavras da Bíblia, posta em mãos dos protestantes como o Código é nas mãos de todos os burgueses.

O burguês capitalista que não pode ser nem mártir nem inquisidor, por ter perdido a ferocidade do proselitismo que inflamava os primeiros cristãos — tinha um interêsse vital em aumentar o número dos crentes, afim de engrossar o exército dos descontentes, dando batalha à sociedade pagã — tem, não obstante, uma espécie de proselltiimo religioso, sem entusiasmo e sem convicção, que está condicionado para a exploração da mulher e do assalariado.

A mulher deve ser manejável pela sua vontade. Deseja-a fiel e infiel, segundo as suas conveniências. Se é a esposa de um camarada e êle lhe faz a corte, pede-lhe a infidelidade como um dever para o seu Eu e despeja a sua retórica para desembaraçá-la dos seus escrúpulos religiosos; se se trata da sua mulher legítima, converte-a em propriedade sua e deve ser intangível: — exige dela uma fidelidade a tôda a prova e serve-se da religião para melhor fazer penetrar na sua cabeça a ideia do dever conjugal.

O assalariado deve estar resignado com a sua sorte. A função social do explorador do trabalho exige que o burguês propague a religião cristã, predicando a humildade e a submissão a Deus, que elege os amos e designa os servidores e que aperfeiçoa os ensinamentos do cristianismo com os eternos princípios da democracia. Tem o máximo interêsse em que os assalariados esgotem a sua potência cerebral controversando sôbre as verdades da religião e discutindo sôbre a justiça, liberdade, moral, pátria e coisas quejandas, afim de que lhes não sóbre um minuto para reflectir àcêrca da sua miserável condição e àcêrca dos meios de melhorá-la. O famoso radical e livre cambista, Jacob Bright, presava tanto êste meio de astúcia, que dedicava os domingos a lêr a Bíblia aos seus operários. Mas, a função de embrutecedor bíblico, que os burgueses ingleses dos dois sexos podem realizar por mero entusiasmo, é forçosamente irregular, como todo o trabalho de amador. A burguesia industrial tem à sua disposição professores do embrutecimento para realizar esta tarefa. Os padres de todos os cultos prestam-se a isso. Mas, tôda a medalha tem o seu verso. A leitura da Bíblia pelos assalariados tem perigos que Rockfeller soube apreciar, e afim de remediá-los, o grande capitalista organizou um trust para a publicação das bíblias populares, expurgadas das queixas contra as iniquidades dos ricos e dos protestos de cólera contra o escândalo da sua fortuna. A Igreja Católica, que previra êstes perigos, conjurou-os, impedindo aos fieis a leitura da Bíblia e queimando vivo Wicklif, o seu primeiro tradutor em língua vulgar. Com as suas novenas, com as suas peregrinações e outras baboseiras, o clero católico é sôbre todos os outros cleros aquele que melhor desempenha o papel de embrutecedor; é também o melhor remunerado para proporcionar irmãos e irmãs ignorantes para as escolas primárias e religiosas, vigilantes para as oficinas de mulheres. Pelos altos serviços que lhe presta, a alta burguesia industrial sustenta-o política e pecuniariamente, apezar-da grande antipatia que sente por eles, pela sua rapacidade e pela sua ingerência nos assuntos familiares.


Notas:

(9) Tertuliano, em seu «Apologético», e Santo Agostinho na «Cidade de Deus», contam como factos certíssimos que Esculápio tinha ressuscitado alguns mortos, cujos nomes dão; que uma vestal trouxera água do Tíbre numa cesta, que outra vestal rebocara um navio, etc. (retornar ao texto)

(10) «A riqueza não produz a saciedade, disse Teognis: —o homem que tem muitos bens esforça-se por ter o dobro.» (retornar ao texto)

Inclusão 06/02/2010
Última alteração 14/04/2012