O Militarismo Militante e a Táctica Antimilitarista da Social-Democracia

V. I. Lénine

23 de Julho (5 de Agosto) de 1908

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Primeira Edição: Publicado no Jornal Proletári de 23 de Julho (5 de Agosto) de 1908.
Fonte: Obras Escolhidas em seis tomos, Edições "Avante!", 1984, t1, pp 354-363.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.15, pp. 186-196.
Transcrição: Manuel Gouveia
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Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo.

capa

Os diplomatas estão agitados. Chovem as «notas», os «relatórios», as «declarações»; os ministros murmuram por trás das costas dos manequins coroados que, de taça de champanhe na mão, «consolidam a paz». Mas os «súbditos» sabem perfeitamente que, se os corvos voam, é porque cheira a corpo morto. E o conservador Lord Cromer declarou na câmara inglesa que

«vivemos em tempos em que os interesses nacionais (?) se jogam numa carta, em que se inflamam as paixões e surge o perigo e a possibilidade de choques, por mais pacíficas (!) que sejam as intenções dos governantes».

Nos últimos tempos acumulou-se bastante material inflamável, e ele continua a crescer. A revolução na Pérsia ameaça remover todas as barreiras — «esferas de influência» — aí colocadas pelas potências europeias. O movimento constitucional na Turquia ameaça arrancar este património das garras dos abutres capitalistas europeus; além disso, ergueram-se ameaçadoras as velhas «questões», que agora se agudizaram — as questões da Macedónia, da Ásia central, do Extremo Oriente, etc., etc.

Entretanto, com a rede dos actuais tratados e acordos abertos e secretos, basta uma insignificante afronta de qualquer «potência» para que «da centelha nasça a chama»(1).

E quanto mais ameaçadoramente os governos brandem as armas uns contra os outros mais implacavelmente esmagam o movimento antimilitarista no seu país. As perseguições aos antimilitaristas crescem extensiva e intensivamente. O ministério «radical-socialista» de ClemenceauBriand não recorre menos a violências do que o ministério junker-conservador de Bülow(2). A dissolução das «organizações de juventude» em toda a Alemanha, ocorrida em resultado da promulgação de uma nova lei sobre as associações e assembleias que proíbe a presença em assembleias políticas de pessoas com menos de 20 anos, dificultou extremamente a agitação antimilitarista na Alemanha.

Em resultado disso, a discussão sobre a táctica antimilitarista dos socialistas, que cessara desde o congresso de Estugarda, anima-se de novo na imprensa partidária.

À primeira vista é um fenómeno estranho: sendo tão evidente a importância desta questão, sendo tão nítido e evidente o dano causado pelo militarismo ao proletariado, é difícil encontrar outra questão acerca da qual existam tantas vacilações e tantas dissonâncias no seio dos socialistas ocidentais como nas discussões sobre a táctica antimilitarista.

As premissas de princípio para resolver correctamente esta questão foram estabelecidas há muito e de modo perfeitamente firme e não suscitam divergências. O militarismo contemporâneo é resultado do capitalismo. Em ambas as suas formas ele é uma «manifestação vital» do capitalismo: como força militar utilizada pelos Estados capitalistas nos seus conflitos externos («Militarismus nach aussen»(3), como se exprimem os alemães) e como arma que nas mãos das classes dominantes serve para reprimir qualquer espécie de movimentos (económicos e políticos) do proletariado («Militarismus nach innen»(4)). Uma série de congressos internacionais (Paris 1889, Bruxelas 1891, Zurique 1893 e finalmente Estugarda 1907) deram nas suas resoluções uma expressão acabada a esta concepção(5). A resolução de Estugarda é a que estabelece de modo mais circunstanciado esta ligação entre o militarismo e o capitalismo, embora, de acordo com a ordem de trabalhos («Conflitos internacionais»), o congresso de Estugarda se tenha ocupado mais do aspecto do militarismo a que os alemães chamam «Militarismus nach aussen» («externo»). Eis a passagem correspondente desta resolução:

«As guerras entre Estados capitalistas são habitualmente um efeito da sua concorrência no mercado mundial, visto que cada Estado aspira não só a assegurar para si um domínio de venda como também a conquistar novos domínios, sendo aqui o principal papel desempenhado pela escravização de outros povos e países. Estas guerras são geradas, em seguida, pelos ininterruptos armamentos militares provocados pelo militarismo, que é o principal instrumento da dominação de classe da burguesia e da submissão política da classe operária.

«As guerras são favorecidas pelos preconceitos nacionalistas, sistematicamente cultivados nos países civilizados no interesse das classes dominantes, com o objectivo de desviar as massas proletárias das suas tarefas de classe próprias e de obrigá-las a esquecer o dever da solidariedade de classe internacional.

«Deste modo, as guerras enraízam-se na própria essência do capitalismo; elas só terminarão quando deixar de existir o regime capitalista, ou quando a imensidade dos sacrifícios humanos e monetários causados pelo desenvolvimento técnico-militar e a indignação popular causada pelos armamentos conduzirem à eliminação deste sistema.

«A classe operária, que é quem principalmente fornece soldados e sobre a qual recaem principalmente os sacrifícios materiais, é em particular um inimigo natural das guerras, visto que as guerras contradizem o objectivo que ela persegue: a criação de um regime económico baseado no princípio socialista que realize de facto a solidariedade dos povos...»

II

Assim, a ligação de princípio entre o militarismo e o capitalismo está firmemente estabelecida entre os socialistas, e neste ponto não há divergências. Mas o reconhecimento desta ligação não determina ainda concretamente a táctica antimilitarista dos socialistas, não resolve a questão prática de como lutar contra o fardo do militarismo e de como impedir as guerras. E é nas respostas a estas questões que se nota uma considerável discrepância de opiniões entre os socialistas. No congresso de Estugarda pôde-se constatar de modo particularmente palpável estas divergências.

Num pólo encontram-se os sociais-democratas alemães do tipo de Vollmar. Uma vez que o militarismo é uma criação do capitalismo, argumentam eles, uma vez que as guerras acompanham necessariamente o desenvolvimento capitalista, não é necessária nenhuma actividade antimilitarista especial. Foi exactamente isto que Vollmar declarou no congresso de Essen. Quanto à questão de como devem os sociais-democratas comportar-se em caso de declaração de guerra, a maioria dos sociais-democratas alemães, com Bebel e Vollmar à cabeça, defende obstinadamente a posição de que os sociais-democratas devem defender a sua pátria da agressão, de que eles são obrigados a tomar parte numa guerra «defensiva». Esta tese levou Vollmar em Estugarda a declarar que «todo o amor pela humanidade não pode impedir-nos de ser bons alemães», e o deputado social-democrata Noske a declarar no Reichstag que em caso de uma guerra contra a Alemanha «os sociais-democratas não ficarão atrás dos partidos burgueses e porão a espingarda ao ombro»; e daqui só faltava a Noske dar um passo para declarar: «queremos que a Alemanha esteja o mais armada possível».

No outro pólo encontra-se o pouco numeroso grupo dos partidários de Hervé. O proletariado não tem pátria, argumentam os herveístas. Então todas e quaisquer guerras são no interesse dos capitalistas; então o proletariado deve lutar contra cada guerra. O proletariado deve responder a toda a declaração de guerra com uma greve militar e uma insurreição. É a isto que principalmente se deve reduzir a propaganda antimilitarista. Hervé propôs por isso em Estugarda o seguinte projecto de resolução:

«.. .O congresso convida a responder a toda a declaração de guerra, venha de onde vier, com uma greve militar e uma insurreição.»

Tais são as duas posições «extremas» nesta questão nas fileiras dos socialistas ocidentais. «Como o sol numa pequena gota de água», reflectem-se nelas as duas doenças que continuam a prejudicar a actividade do proletariado socialista no Ocidente: as tendências oportunistas, por um lado, e a fraseologia anarquista, por outro.

Antes de mais, algumas observações sobre o patriotismo. Que «os proletários não têm pátria», isto é realmente dito no Manifesto Comunista, que a posição de Vollmar, Noske e Cª contradiz esta tese fundamental do socialismo internacional, também é verdade. Mas não decorre daqui a correcção das afirmações de Hervé e dos herveístas no sentido de que ao proletariado é indiferente em que pátria vive: se vive na Alemanha monárquica, ou na França republicana, ou na Turquia despótica. A pátria, isto é, um dado meio político, cultural e social, é o factor mais poderoso na luta de classe do proletariado; e se Vollmar não tem razão ao constatar uma atitude «verdadeiramente alemã» do proletariado em relação à «pátria», Hervé não tem mais razão ao ter uma atitude imperdoavelmente acrítica em relação a um factor tão importante da luta libertadora do proletariado. O proletariado não pode ter uma atitude indiferente e desinteressada em relação às condições políticas, sociais e culturais da sua luta; por conseguinte, também não lhe podem ser indiferentes os destinos do seu país. Mas os destinos do país só o interessam na medida em que isto diz respeito à sua luta de classe, e não devido a qualquer «patriotismo» burguês, perfeitamente indecoroso na boca de sociais-democratas.

Mais complexa é a outra questão, a da atitude em relação ao militarismo e à guerra. É evidente logo à primeira vista que Hervé confunde imperdoavelmente estas duas questões, esquece a ligação causal entre a guerra e o capitalismo; adoptando a táctica herveísta, o proletariado condenar-se-ia a um trabalho estéril: ele utilizaria toda a sua disposição combativa (pois se fala de insurreição) para a luta contra o efeito (a guerra), deixando que continuasse a existir a causa (o capitalismo).

Revela-se aqui plenamente o método anarquista de pensamento. Uma fé cega na força milagrosa de toda e qualquer action directe(6); o desligar desta «acção directa» da conjuntura sociopolítica geral sem a analisar minimamente; numa palavra, é evidente «uma concepção arbitrariamente mecânica dos fenómenos sociais» (segundo a expressão de K. Liebknecht).

O plano de Hervé «é muito simples»:

no dia da declaração da guerra os soldados socialistas desertam, enquanto os reservistas declaram greve e ficam em casa. Contudo, «a greve dos reservistas não é resistência passiva: a classe operária depressa passaria à resistência aberta, à insurreição, e esta última teria tanto mais probabilidades de terminar com o triunfo quanto o exército activo se encontraria nas fronteiras do país» (G. Hervé, Leur patrie).(7)

Tal é este «plano real, directo e prático», e, convencido do seu êxito, Hervé propõe que se responda pela greve militar e pela insurreição a cada declaração de guerra.

Como disto decorre claramente, a questão aqui não está em saber se o proletariado, quando o achar conveniente, pode responder pela greve e pela insurreição à declaração de guerra. A discussão gira em torno de saber se o proletariado deve ficar atado pela obrigação de responder pela insurreição a cada guerra. Resolver a questão neste último sentido significa retirar ao proletariado a escolha do momento do combate decisivo e entregá-la aos seus inimigos; não é o proletariado que escolhe o momento da luta de acordo com os seus interesses, quando a sua consciência socialista é alta, a organização sólida, o motivo favorável; não, os governos burgueses poderiam provocá-lo à insurreição mesmo quando as condições para ela fossem desfavoráveis, por exemplo através da declaração de uma guerra que fosse particularmente capaz de suscitar sentimentos patrióticos e chauvinistas em vastas camadas da população e que desse modo isolasse o proletariado insurrecto. É ainda preciso não perder de vista que a burguesia, que da Alemanha monárquica à França republicana e à Suíça democrática persegue com tanta crueldade a actividade antimilitarista em tempo de paz, com que fúria se lançaria sobre qualquer tentativa de greve militar em caso de guerra, numa altura em que estariam em vigor as leis militares, o estado de sítio, os tribunais de guerra, etc.

Kautsky tem razão ao dizer sobre a ideia de Hervé:

«a ideia da greve militar nasceu sob a influência de "bons" motivos, ela é nobre e cheia de heroísmo, mas é uma heróica estupidez».

O proletariado, se o achar conveniente e oportuno, pode responder à declaração de guerra pela greve militar; pode, entre outros meios para alcançar a revolução social, recorrer também à greve militar. Mas não é do interesse do proletariado atar-se com esta «receita táctica».!

Foi precisamente assim que o congresso internacional de Estugarda respondeu a esta questão controversa.

III

Mas, se as concepções dos herveístas são «heróica estupidez», as posições de Vollmar, de Noske e dos seus correligionários da «ala direita» são cobardia oportunista. Uma vez que o militarismo é uma criação do capital e cairá com ele — argumentaram eles em Estugarda e particularmente em Essen —, não é necessária uma agitação especialmente antimilitarista: ela não deve existir. Mas a solução radical da questão operária e feminina, por exemplo — replicaram-lhes em Estugarda —, também é impossível existindo o regime capitalista; contudo, nós lutamos pela legislação do trabalho e pelo alargamento dos direitos civis das mulheres, etc. Uma propaganda antimilitarista particular deve ser realizada tanto mais energicamente quanto se estão a tornar cada vez mais frequentes os casos de ingerência da força militar na luta do trabalho contra o capital e se torna mais evidente a importância do militarismo não só na luta presente do proletariado mas também na luta futura — no momento da revolução social.

Uma propaganda antimilitarista especial tem por si não só provas baseadas nos princípios mas também uma importante experiência histórica. Neste aspecto a Bélgica vai à frente dos outros países. O Partido Operário Belga(8), além da propaganda geral das ideias do antimilitarismo, organizou grupos da juventude socialista com o nome de Jovem Guarda (Jeunes Gardes). Os grupos do mesmo distrito constituem uma Federação Distrital; todas as federações distritais, por sua vez, estão unidas na Federação Nacional, tendo à frente um Conselho Principal. Os órgãos dos «jovens guardas» (La jeunesse — c' est l'avenir; De Caserne, De Loteling(9), etc.) são distribuídos em dezenas de milhares de exemplares! A federação mais forte é a da Valónia, que inclui 62 grupos locais com 10 000 membros; ao todo a Jovem Guarda é constituída actualmente por 121 grupos locais.

Ao lado da agitação escrita também se realiza intensamente a agitação oral: em Janeiro e Setembro (meses de recrutamento) organizam-se nas principais cidades da Bélgica assembleias e cortejos populares; à portas das câmaras municipais, ao ar livre, oradores socialistas explicam aos recrutas o significado do militarismo. Junto ao Conselho Principal dos «jovens guardas» foi criado um Comité de Queixas, cujo dever é recolher informações sobre todas as injustiças cometidas nos quartéis. Estas informações, sob a rubrica «Do exército», são diariamente divulgadas no órgão central do partido, Le Peuple(10). A propaganda antimilitarista não se detém à porta do quartel, e os soldados socialistas formam grupos para realizar propaganda dentro do exército. Actualmente contam-se cerca de 15 desses grupos («uniões de soldados»).

Seguindo o exemplo belga, variando em intensidade e nas formas de organização, realiza-se propaganda antimilitarista em França(11), na Suíça, na Áustria e em outros países.

Assim a actividade especialmente antimilitarista é não só especialmente necessária como é também na prática conveniente e frutífera. Por isso, na medida em que Vollmar se ergueu contra ela apontando a existência de condições policiais impossíveis para isso na Alemanha, o perigo de destruição das organizações do partido devido a isso, a questão reduz-se à análise concreta das condições de um dado país; é uma questão de facto e não de princípio. Embora também aqui seja justa a observação de Jaurés de que a social-democracia alemã, que aguentou na sua juventude, nos duros anos das leis de excepção contra os socialistas, a mão de ferro do conde Bismarck, agora, tendo crescido e tendo-se reforçado incomparavelmente, poderia não temer as perseguições dos governantes actuais. Mas Vollmar está inteiramente errado quando tenta apoiar-se nos argumentos da inconveniência de princípio de uma propaganda especialmente antimilitarista.

Não está impregnada de menor oportunismo a convicção de Vollmar e dos seus correligionários de que os sociais-democratas são obrigados a participar numa guerra defensiva. A brilhante crítica de Kautsky não deixou pedra sobre pedra destas concepções. Kautsky indicou a completa impossibilidade de por vezes perceber, particularmente em momentos de embriaguez patriótica, se uma dada guerra é causada por objectivos defensivos ou ofensivos (um exemplo citado por Kautsky: o Japão atacou ou defendeu-se no começo da guerra russo-japonesa?). Os sociais-democratas emaranhar-se-iam nas redes das negociações diplomáticas se pensassem em estabelecer na dependência deste sintoma a sua atitude em relação à guerra. Os sociais-democratas podem mesmo encontrar-se na situação de exigir guerras ofensivas. Em 1848 (também não faria mal aos herveístas recordarem isto) Marx e Engels consideravam necessária uma guerra da Alemanha contra a Rússia. Mais tarde eles tentaram influir na opinião pública da Inglaterra para a estimular a uma guerra contra a Rússia. Kautsky, a propósito, apresenta o seguinte exemplo hipotético:

«suponhamos», diz ele, «que o movimento revolucionário alcança a vitória na Rússia e que a influência desta vitória conduz em França à passagem do poder para as mãos do proletariado; por outro lado, suponhamos que contra a nova Rússia se forma um coligação dos monarcas europeus. Pôr-se-á a social-democracia internacional a protestar se a república francesa for então em auxílio da Rússia?» (K. Kautsky, O Nosso Ponto de Vista sobre o Patriotismo e a Guerra).

É evidente que nesta questão (tal como na concepção do «patriotismo») não é o carácter defensivo ou ofensivo da guerra mas os interesses da luta de classe do proletariado, ou, melhor dizendo, os interesses do movimento internacional do proletariado, que representam o único ponto de vista possível a partir do qual pode ser examinada e resolvida a questão da atitude dos sociais-democratas em relação a um ou outro fenómeno nas relações internacionais.

Uma recente intervenção de Jaurès mostra a que colunas de Hércules(12) pode chegar o oportunismo também nestas questões. Expondo as suas opiniões sobre a situação internacional num jornalzinho liberal-burguês alemão, ele defende a aliança da França e da Inglaterra com a Rússia das acusações de ter intenções contra a paz e encara esta aliança como uma «garantia da paz», saúda o facto de que «agora vivemos o suficiente para podermos ver uma aliança da Inglaterra com a Rússia, dois antigos inimigos».

R. Luxemburg faz uma magnífica apreciação dessa opinião e dá uma réplica ardente a Jaurès na «Carta Aberta» que lhe é dirigida no último número da Neue Zeit.

Em primeiro lugar, R. Luxemburg constata que falar de aliança da «Rússia» e da «Inglaterra» significa «falar com a linguagem dos políticos burgueses», porque os interesses dos Estados capitalistas e os interesses do proletariado em matéria de política externa são opostos e não se pode falar de harmonia de interesses no domínio das relações exteriores. Se o militarismo é uma criação do capitalismo, também as guerras não podem ser suprimidas pelas intrigas dos governantes e dos diplomatas, e a tarefa dos socialistas não consiste em despertar ilusões a este respeito mas, pelo contrário, em desmascarar constantemente a hipocrisia e a impotência das «diligências pacíficas» diplomáticas.

Mas o ponto central da «carta» é a apreciação da aliança da Inglaterra e da França com a Rússia, que Jaurès tanto glorifica. A burguesia europeia deu ao tsarismo a possibilidade de rechaçar a investida revolucionária.

«Agora, tentando transformar a vitória temporária numa vitória definitiva, o absolutismo recorre antes de mais ao meio provado de todos os despotismos abalados — os êxitos de política externa.»

Todas as alianças da Rússia significam agora

«uma santa aliança da burguesia da Europa ocidental com a contra-revolução russa, com os estranguladores e carrascos dos lutadores pela liberdade russos e polacos; elas significam o reforço da reacção mais sangrenta não só dentro da Rússia mas também nas relações internacionais». «Por isso a tarefa mais elementar dos socialistas e proletários de todos os países consiste em, com todas as suas forças, obstar a uma aliança com a Rússia contra-revolucionária.»

«Como explicar», R. Luxemburg dirige-se a Jaurès, «que você vá esforçar-se "do modo mais enérgico" por fazer do governo dos carrascos sangrentos da revolução russa e da insurreição persa um factor influente da política europeia, por fazer das forcas russas colunas da paz internacional, você que em tempos pronunciou no parlamento francês um brilhante discurso contra o empréstimo russo(13)? Você que há algumas semanas publicou no seu jornal L'Humanité um ardente apelo à opinião pública contra a obra sangrenta dos tribunais militares na Polónia russa? Como é possível conciliar os seus planos de paz assentes na aliança franco-russa e anglo-russa com o recente protesto da fracção parlamentar socialista francesa e da comissão administrativa do Conselho Nacional do Partido Socialista contra a ida de Fallières à Rússia, com um protesto que tem a sua assinatura e que defende em ardentes expressões os interesses da revolução russa? Se o presidente da República Francesa quiser invocar as suas ideias sobre a situação internacional, responderá ao seu protesto: quem está de acordo com os fins também tem de estar de acordo com os meios, quem encara a aliança com a Rússia tsarista como harmonia da paz internacional tem de aceitar tudo o que reforça esta aliança e conduz à amizade.

«Que diria se em tempos tivesse havido na Alemanha, na Rússia, na Inglaterra, socialistas e revolucionários que no "interesse da paz" recomendassem uma aliança com o governo da restauração ou com o governo de Thiers e de Jules Favre e cobrissem essa aliança com a sua autoridade moral?!!...»

Esta carta fala por si, e os sociais-democratas russos só podem saudar a camarada R. Luxemburg por este seu protesto e pela defesa da revolução russa perante o proletariado internacional.


Notas de rodapé:

(1) Lénine cita o poema do poeta russo A. I. Odóevski Sons Ardentes de Cordas Proféticas (retornar ao texto)

(2) Junkers: grandes proprietários fundiários nobres da Alemanha.

O governo do chanceler B. Bülow apresentou em 1900-1909 um amplo programa de conquistas coloniais que reflectia a aspiração do imperialismo alemão a lutar pela dominação mundial. (retornar ao texto)

(3) Militarismo para fora. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(4) Militarismo para dentro. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(5) A questão do militarismo foi analisada em todos os Congressos da II Internacional mencionados por Lénine. O congresso de Paris adoptou uma resolução sobre a substituição dos exércitos permanentes pelo armamento geral do povo. A resolução exigia o reforço da paz entre os povos e vinculava os socialistas a votar contra os créditos de guerra. Ligava a luta pela paz à luta pelo socialismo. A resolução adoptada pelo Congresso de Bruxelas exortava ao protesto contra quaisquer tentativas de preparação de uma guerra e sublinhava que só o estabelecimento da sociedade socialista traria a paz aos povos e poria fim ao militarismo. Na resolução do congresso de Zurique havia um ponto que vinculava os partidos socialistas a votar contra os créditos de guerra. No conjunto, a resolução repetia no fundo as teses gerais da resolução de Bruxelas. A questão do militarismo e da táctica anti-militarista foi examinada mais em pormenor no Congresso de Estugarda (ver tomo I, Obras Escolhidas de V. I. Lénine em 6 tomos, [O Congresso Socialista Internacional de Estugarda] p. 331-337) (retornar ao texto)

(6) Acção directa. Em francês no texto. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(7) A Pátria deles. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(8) O Partido Operário Belga, fundado em 1855, era um dos partidos dirigentes da II Internacional. Em 1940 mudou o nome para Partido Socialista Belga. (retornar ao texto)

(9) A Juventude é o Futuro; O Quartel, O Recruta. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(10) Le Peuple (O Povo): jornal diário, órgão central do Partido Operário Belga. Publica-se em Bruxelas desde 1884. (retornar ao texto)

(11) Uma particularidade dos franceses é a organização do chamado «tostão do soldado»: todas as semanas o operário entrega um sou ao secretário do seu sindicato; as somas assim recolhidas são enviadas aos soldados «para lhes lembrar que, mesmo vestidos de soldados, eles pertencem à classe explorada e que não devem esquecer isso em nenhumas circunstâncias». (retornar ao texto)

(12) A expressão «chegar às colunas de Hércules» significa chegar aos limites, exagerar desmedidamente alguma coisa. As colunas de Hércules, de acordo com a mitologia grega antiga, tinham sido erguidas por Hércules e, segundo a crença dos gregos, eram o extremo do mundo, para além do qual não se podia passar. (retornar ao texto)

(13) Para esmagar a revolução na Rússia, em Abril de 1906 o governo tsarista concluiu com a França um tratado sobre um empréstimo no valor de 843 milhões de rublos. (retornar ao texto)

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Inclusão 17/01/2015