Materialismo e Empiro-Criticismo
Notas e Críticas Sobre uma Filosofia Reacionária

V. I. Lênin

Capítulo IV - Os Filósofos Idealistas, Irmãos de Armas e Sucessores do Empiro-Criticismo


24. A "Teoria dos Símbolos" (ou dos Hieróglifos) e a Critica de Helmholtz


Não estará fora de proposito observar aqui, para completar o que acabamos de dizer dos idealistas, companheiros de luta e continuadores do empiro-criticismo, o caráter da critica, segundo Mach, de certas teses filosóficas tratadas em nossa literatura. Nossos discípulos de Mach, que desejam ser marxistas, manifestaram uma alegria toda particular diante dos '‘hieróglifos" de Plerrânov, isto é da teoria segundo a qual as sensações e as ideias do homem representam, não uma cópia das coisas reais e dos processos naturais, não suas imagens, mas sinais convencionais, símbolos, hieróglifos, etc. Bazarov moteja desse materialismo hieroglífico, e deve-se dizer que ele teria razão se estivesse repelindo-o em nome do materialismo não-hieroglífico. Mas Bazarov utiliza neste ponto, mais uma vez, um processo de prestidigitador; introduz, sorrateiramente, sob a capa da critica do "hieroglifismo", sua negação do materialismo. Engels não fala de símbolos, nem de hieróglifos, mas de cópias, de fotografias, de imagens, de reflexos das coisas. E em vez de mostrar como Plerrânov erra ao afastar-se da fórmula materialista de Engels, Bazarov oculta aos leitores, utilizando o erro de Plerrânov, a verdade formulada por Engels.

Afim de explicarmos ao mesmo tempo o erro de Plerrânov e a confusão de Bazarov, tomemos um notável representante da teoria dos símbolos (a substituição da palavra hieróglifo pela palavra símbolo nada altera), Helmholtz, e vejamos a que critica esse autor foi submetido pelos materialistas, bem como pelos idealistas aliados dos discípulos de Mach.

Helmholtz, cuja autoridade é imensa em ciências naturais, foi, em filosofia, tão inconsequente quanto a grande maioria dos naturalistas. Inclinou-se para o kantismo, mas sem se mostrar limitado por sua gnoseologia. Eis, por exemplo um raciocínio que encontramos em sua Ótica fisiológica, sobre a correspondência das concepções e dos objetos:

"Não designei, linhas atrás, as sensações senão como símbolos das circunstancias exteriores, e recusei-lhes ioda analogia com as coisas que representam" (p. 579 da tradução francesa, p. 442 do original alemão).

Isso é agnosticismo, e podemos ler mais adiante, na mesma página:

"As nossas noções e nossas representações são efeitos que os objetos que vemos, ou que nos figuramos, exercem sobre nosso sistema nervoso e sobre nossa consciência".

Isso é materialismo. Helmholtz não tem uma ideia nítida das relações entre a verdade absoluta e a verdade relativa e seus raciocínios ulteriores o atestam. Ele diz um pouco mais adiante:

"Creio, pois, que isso não significa, absolutamente, uma verdade das nossas representações que não seja uma verdade prática. As ideias que fazemos das coisas não podem ser senão símbolos, sinais naturais dos objetos, que aprendemos a utilizar para reger nossos movimentos e nossos atos. Quando soubermos interpretar corretamente tais símbolos, estaremos em condições de, com seu auxilio, dirigir nossos atos de maneira a produzirem o resultado desejado".

Isso não é verdade: Helmholtz insinua aqui o subjetivismo, a negação da realidade objetiva e da verdade objetiva. E chega a um erro flagrante quando termina a alínea com estas, palavras:

"A ideia e o objeto que ela representa são duas coisas pertencentes a dois mundos inteiramente diferentes".

Somente os kantistas destacam desse modo a ideia da realidade e a consciência da matéria. Podemos ler, entretanto, um pouco mais adiante:

"No que diz respeito, em primeiro lugar, às propriedades dos objetos exteriores, basta um pouco de reflexão para ver que todas as propriedades que podemos atribuir-lhes apenas se relacionam com a ação que exercem sobre nossos sentidos ou sobre outros objetos da natureza" (p. 581 da tradução francesa, p. 444 do original alemão; utilizo a tradução francesa).

Neste ponto, Helmholtz volta, ainda uma vez, ao materialismo. Helmholtz era um kantista inconsequente; ora reconhecendo as leis apriorísticas do pensamento, ora deduzindo as sensações do homem dos objetos exteriores atuando sobre nossos órgãos dos sentidos, ora afirmando que as sensações não passam de simbolo, isto é, de designações arbitrarias destacadas de um mundo "absolutamente diferente" das coisas que representam [cf. Viktor Heyfelder, Über den Begriff der Erfahrung bei Helmholtz, (A noção da experiência em Helmholtz), Berlim, 1897]

Eis como Helmholtz exprime suas opiniões em seu discurso sobre "os fatos na percepção", pronunciado em 1878 ("notável acontecimento no seio dos realistas", diz Leclair):

"Nossas sensações são, precisamente, ações provocadas em nossos órgãos por causas exteriores, e é do caráter do aparelho que sofre essas ações que depende, naturalmente, a maneira pela qual se traduzem. A sensação pode ser considerada como um sinal (Zeichen) e não como uma imagem, na medida em que sua qualidade nos informa das qualidades da ação exterior que lhe dá origem. Mesmo porque exigimos da imagem certa semelhança com o objeto que representa... Mas não se pede ao sinal nenhuma semelhança com o que ele significa" (Vorträge und Reden, Brunswick, 1896, t. II, p. 222).

Se as sensações, não sendo imagens das coisas, não passam de sinais e de símbolos sem "nenhuma semelhança" com elas, a premissa materialista de Helmholtz fica prejudicada, a existência dos objetos exteriores torna-se duvidosa, uma vez que os sinais ou os símbolos podem referir-se também a objetos fictícios, e todos conhecem sinais e símbolos dessa ordem. Helmholtz tenta, após Kant, traçar, em princípio, uma especie de linha de demarcação entre o "fenômeno" e a "coisa em si". Ele nutre ama prevenção irredutível contra o materialismo direto, claro e franco. Mas ele mesmo diz um pouco mais adiante:

"Não vejo como se poderia refutar um sistema idealista subjetivo levado às últimas consequências e que não queira ver na vida mais do que um sonho. Poder-se-ia qualificá-lo de inverossímil e insuficiente no mais alto grau — e, relativamente a isso, eu subscreveria as negações mais vigorosas — , sem impedir que ele pudesse ser desenvolvido a fundo, com espírito consequente... A hipótese realista, ao contrário, baseia-se nos juízos (ou nos testemunhos, Aussage) da auto-observação comum, segundo a qual as transformações nas percepções consecutivas a essa ou aquela ação não têm qualquer relação psíquica com o impulso anterior da vontade. Essa hipótese considera tudo quanto é confirmado pelas nossas percepções cotidianas, o mundo material exterior a nós como existindo independentemente de nossas ideias.

Sem dúvida, a hipótese realista é a mais simples que podemos formular, a melhor comprovada e confirmada em domínios de aplicação extremamente vastos, bem determinada em todas as suas partes e, portanto, eminentemente prática e fecunda como base de ação" (pp. 242 e 243).

O agnosticismo de Helmholtz também se parece com o "materialismo pudico", apenas com a diferença que observamos: em vez das manifestações de Huxley inspiradas em Berkeley, manifestações kantianas.

Eis por que Albrecht Rau, discípulo de Feuerbach, condena a teoria dos símbolos de Helmholtz como um desvio inconsequente do "realismo". A concepção essencial de Helmholtz, diz Rau, está encerrada no postulado realista de que "conhecemos, com auxilio dos nossos sentidos, as propriedades objetivas das coisas"(1). A teoria dos símbolos está em desacordo com esse ponto de vista (inteiramente materialista, como já vimos), porque implica uma certa desconfiança em relação à sensibilidade, em relação às indicações dos nossos órgãos dos sentidos. Está fora de dúvida a imagem nunca ser igual ao modelo, mas uma coisa é a imagem e outra coisa é o simbolo, o sinal convencional. A imagem supõe, necessária e inevitavelmente, a realidade objetiva que ela "reflete". O "sinal convencional", o simbolo, o hieróglifo são noções que introduzem um elemento inteiramente supérfluo do agnosticismo. A. Rau tem também suficiente razão ao dizer que Helmholtz paga, com sua teoria, seu tributo ao kantismo.

"Se Helmholtz — diz Rau — ficasse fiel à sua concepção realista, se ele se limitasse, com espírito consequente, ao princípio de que as propriedades dos corpos exprimem, ao mesma tempo, as relações dos corpos entre si e suas relações conosco, certamente não teria necessidade de toda essa teoria de símbolos; e o poderia, então, dizer com clareza: as sensações determinadas em nós pelas coisas são a imagem da essência dessas coisas" W. cit., p. 320).

Tal é a critica de Helmholtz por um materialista. Esse materialista repele, em nome do materialismo consequente de Feuerbach, o materialismo ou o semimaterialismo hieróglifo ou simbólico de Helmholtz.

O idealista Leclair, que representa a "escola imanente" cara: ao espírito e ao coração de Mach, também acusa Helmholtz de inconsequência e de hesitação entre o materialismo e o espiritualismo (Der Realismus, etc., p. 154). Mas a teoria dos símbolos não é a seus olhos o índice de um materialismo insuficiente, mas parece-lhe demasiado materialista.

"Helmholtz supõe — escreve Leclair — que as percepções da nossa consciência nos proporcionam bastantes pontos de apoio para conhecer o encadeamento no tempo e a identidade ou não- identidade das causas transcendentes. Mas não bastam a Helmholtz para supor, no domínio do transcendente (isto é, no da realidade objetiva), uma ordem regida por leis" (p. 33).

E Leclair rebela-se contra esse "preconceito dogmático de Helmholtz".

"O Deus de Berkeley — exclama —, causa hipotética da ordem, regida por leis, das ideias em nossa consciência, é pelo menos tão capaz de satisfazer nossa necessidade de uma explicação causal como o mundo das coisas exteriores" (p. 34).

"A aplicação consequente da teoria dos símbolos... é impossível sem uma ampla proporção de realismo vulgar (de materialismo)" (p. 35).

É assim que um "idealista crítico" repreende Helmholtz, em 1879, por seu materialismo. Vinte anos depois, Kleinpeter, discípulo de Mach elogiado pelo mestre, refutava as ideias ‘‘envelhecidas" de Helmholtz com a filosofia "mais moderna" de Mach. O artigo intitula-se: Princípios da física segundo Ernst Mach e Heinrich Hertz(2). Deixemos, no momento, Hertz (tão inconsequente, no fundo, quanto Helmholtz) e vejamos a comparação entre Mach e Helmholtz estabelecida por Kleinpeter. Depois de ter citado diversos trechos desses dois autores e acentuado vigorosamente as conhecidas afirmações de Mach segundo as quais os corpos são símbolos mentais, complexos de sensações, etc., Kleinpeter diz:

"Se seguimos a marcha das ideias de Helmholtz, encontraremos os seguintes postulados fundamentais:

  1. existem objetos pertencentes ao mundo exterior;
  2. pode-se conceber a transformação desses objetos sem a ação de uma causa qualquer (considerada como real);
  3. "A causa é, na acepção primitiva da palavra, o que fica invariável, o que subsiste ou existe após os fenômenos transitórios, principalmente: a matéria e a lei de sua ação, a força" (citação de Helmholtz);
  4. é impossível deduzir, com lógica rigorosa, sob uma significação única, todos os fenômenos de suas causas;
  5. o acesso a esse objetivo equivale à posse da verdade objetiva, cuja conquista (Erlangung) é, desse modo, reconhecida concebível" (p. 163).

Kleinpeter, revoltado com as contradições dessas premissas e os problemas insolúveis que criam, observa que Helmholtz não se atém com rigor a essas concepções e emprega, às vezes, "expressões pouco relacionadas com o sentido puramente lógico atribuído por Mach às palavras" matéria, força, causa, etc.

"Não é difícil saber a razão pela qual Helmholtz não nos satisfaz, se nos lembramos das tão claras e tão belas palavras de Mach. Todos os raciocínios de Helmholtz pecam pela significação errônea atribuída aos termos "massa", "força" etc. Realmente, não passam de noções, de produtos da nossa fantasia e não constituem realidades existentes fora do nosso pensamento. Não estamos, absolutamente, em condições de conhecer não se sabe que realidade. De maneira geral, não estamos na situação de deduzir dos testemunhos dos nossos sentidos, com sua imperfeição, uma conclusão de um significado único. Nunca podemos, por exemplo, afirmar que obteremos sempre, observando uma escala determinada (durch Ablesen einer Skala), o mesmo número determinado; sempre existe, em certos limites, uma quantidade infinita de números possíveis concordando igualmente com os fatos em observação. Quanto a conhecer o que quer que haja de real fora de nós, não o podemos sob qualquer pretexto. Mesmo supondo que isso seja possível e que conhecemos as realidades, não ternos o direito de aplicar-lhes as leis da lógica, porquê sendo as nossas leis, não são aplicáveis senão às nossas concepções, aos produtos do nosso pensamento. Não há ligação lógica entre os fatos, existe apenas uma simples continuidade; os juízos categóricos são aqui inconcebíveis. É falso, portanto, afirmar que um fato é causa de um outro; e toda a definição de Helmholtz, construída sobre essa concepção, cai com essa afirmação. Enfim, é impossível atingir a verdade objetiva, isto é, existente independentemente de todo sujeito, não somente em virtude das propriedades dos nossos sentidos, mas também porque não podemos, como homens (wir als Menschen), fazer nenhuma ideia do que existe absolutamente independente de nós" (p. 164).

O leitor vê nosso discípulo de Mach repetindo as expressões favoritas do seu mestre e de Bogdanov, que não se reconhece discípulo de Mach e condena sem reservas toda a filosofia de Helmholtz de um ponto de vista idealista. A teoria dos símbolos não é mesmo acentuada particularmente pelo idealista, que nela não vê senão um desvio de pouca importância, talvez acidental, do materialismo. Mas Kleinpeter tem Helmholtz como representante das "concepções tradicionais da física", "que a maioria dos físicos ainda subscreve" (p. 160).

Em suma, verificamos que Plerrânov cometeu, em sua exposição do materialismo, um erro evidente; quanto a Bazarov, embrulhou tudo, reunindo materialismo e idealismo e opondo à "teoria dos símbolos" ou ao "materialismo hieroglífico" o absurdo idealista que diz que "a representação sensorial constitui também a realidade exterior a nós". A partir do kantista Helmholtz, como a partir do próprio Kant, os materialistas caminham à esquerda e os discípulos de Mach à direita.


Notas de rodapé:

(1) Albrecht Rau, Empfinden und Denken (Sensação e pensamento), Giessett, 1896, pág. 304. — N. L. (retornar ao texto)

(2) Archiv für Philosophie, t. V, 1899, págs. 163 e 164. — N. L. (retornar ao texto)

Inclusão 19/12/2014