Questões de Organização

Carlos Marighella

Dezembro de 1968


Fonte: Documento, rascunhado, com data posterior a 13 de dezembro de 1968, de autoria de CARLOS MARIGHELLA. encontrado com o grupo preso em S. PAULO, em choque com o DOPS/SP e que resultou na morte de "MARQUITO".
Transcrição: Alberto Santos
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Fernando A. S. Araújo.
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Nos últimos tempos deu-se uma mudança de qualidade no movimento revolucionário brasileiro, obrigando a ditadura a decretar o Ato Institucional nº 5, como fruto do golpe fascista de 13 de dezembro.

A mudança de qualidade do movimento revolucionário evidencia-se no fato de que novas fôrças se engajaram na luta antiditadura Essas fôrças surgiram no movimento de massas e se estenderam até à oposição eclesiástica. Pela primeira vez no Brasil os atos terroristas passaram a desempenhar um papel na luta política. E por seu turno, irromperam no cenário da luta antiditadura operações e táticas guerrilheiras, que estão levando o inimigo à perplexidade e ao desespero.

Em face disso, quais as mudanças que estão se operando na nossa organização revolucionária e que novas mudanças devemos introduzir?

Nossa organização foi constituída para levar à prática uma linha revolucionária que tem como estratégia a guerrilha. Os princípios de tal organização não se confundem com os das organizações políticas de esquerda tradicionais no Brasil, cujo funcionamento se dá à base de reuniões para elaborar documentos, e vez por outra controlar tarefas mais ou menos burocráticas, ditadas pela cúpula, e que nunca se realizam.

O funcionamento de nossa organização, pelo contrário, é de baixo para cima, e se faz à base do desencadeamento da ação e da luta revolucionária, dando ênfase à iniciativa tomada pelos grupos que constituem nossas bases. A cúpula em nossa organização é sempre composta por um número reduzido de companheiros que para merecerem confiança devem destacar-se pelo seu desprendimento e pela participação nas ações mais arriscadas e responsáveis.

O pequeno núcleo inicial de combatentes que se lançou à ação e constituiu nossa organização revolucionária partiu, portanto, de princípios revolucionários opostos aos princípios oportunistas de organização.

Dai por que desde o primeiro momento se orientou para a construção de uma infraestrutura que permitisse a ação, em vez de preocupar-se com a construção de uma estrutura orgânica e hierárquica, originária de reunião de delegados ou da convocação de antigos órgãos dirigentes convencionais.

Dadas essas premissas, nossa organização — ao surgir — já contava com uma parte estratégica e tática dedicada a realizar o trabalho secreto na área estratégica das operações de guerrilha e a iniciar a montagens clandestina de um centro de aperfeiçoamento guerrilheiro. Esta parte estratégica e tática de nossa organização tem um caráter móvel, pois, pelo papel que desempenha, funciona de acordo com os interesses estratégicos e táticos imediatos da guerrilha e está sujeita a operações complexas de deslocamento.

A outra parte de nossa organização ficou constituída de grupos revolucionários classificados em dois tipos:

  1. grupos provenientes da transformação de nossos antigos órgãos convencionais em grupos revolucionários;
  2. grupos não convencionais, desvinculados de compromissos partidários, que optaram por nossos princípios e vieram reforçar nossas fileiras.

Articulando os grupos existentes, surgiu a antiga coordenação urbana, que se ampliou com outros tipos de coordenação, surgidos com o avanço do movimento.

Simultaneamente, era vários pontos do país, pequenas organizações revolucionária com vida própria, alguns setores de atividades revolucionárias, incluindo uma parte de eclesiásticos, e revolucionários independentes decidiram integrar nossa organização.

Toda esta parte de nossa organização é dedicada à atividade local e mantém com a parte estratégica e tática móvel um elo permanente de ligação.

E isto que permite a colaboração e o apoio mútuo entre a atividade estratégica e tática móvel e a atividade local, em benefício do objetivo comum, ou seja a estratégia da guerrilha.

Nosso conceito de organização não é estático, nem dogmático, pois não existe— segundo ensina a teoria marxista-leninista— nenhuma organização abstrata. A organização está sempre a serviço de uma determinada linha política e tem que sofrer os reflexos do avanço ou dos reveses da linha política. A nosso ver, qualquer mudança de qualidade do movimento revolucionário deter mina mudanças de qualidade na organização revolucionária.

Com o avanço do movimento revolucionário foram sendo introduzidas mudanças na organização revolucionária. Por sua vez, certas mudanças no quadro da organização revolucionária influíram no avanço do movimento.

Na parte estratégica e tática móvel de nossa organização, produziu-se uma mudança com o centro de aperfeiçoamento guerrilheiro. Isto se verificou a partir do momento em que o centro de aperfeiçoamento começou a dar os primeiros frutos, fornecendo alguns quadros para tarefas estratégicas e táticas e para o reforçamento da atividade local. Nossa preocupação era dar prioridade ao centro de aperfeiçoamento e em selecionar melhor o pessoal que dele se beneficia produzirá mais adiante resultados compensadores. Tais resultados serão capazes de provocar nova mudança de qualidade na nossa organização revolucionária e no conteúdo e na forma das operações e táticas guerrilheiras, bem como na atividade local.

Ao mesmo tempo, também na parte estratégica e tática de nossa organização revolucionária a mudança produzida verificou-se com o surgimento de unidades móveis, tais como o grupo do trabalho estratégico e o grupo tático armado.

O grupo do trabalho estratégico e o grupo tático armado desenvolveram atividades essenciais, independentemente um do outro , estabelecendo-se entre eles apenas um elo de ligação. O grupo tático armado foi um grande apoio do trabalho estratégico, aumentou consideravelmente sua potência de fogo, realizou impor tates operações de deslocamento, e com sua experiência e notável capacidade de ação permitirá no futuro imediato o lançamento da área estratégica no campo da luta Coberta contra a ditadura.

O grupo tático armado teve ura desempenho heroico no cumprimento de sua função.

O grupo tático armado assinala, com relevo especial, em nossa organização, a passagem de uma situação em que estávamos na estaca zero e não tínhamos potência de fogo, para uma situação em que temos razoável potência de fogo. Trata-se aqui da mudança de qualidade mais importante. E este fato, por si só, evidencia que demos um passo à frente, em termos revolucionários.

No essencial, devemos nosso avanço aos atos terroristas revolucionários e ás operações e táticas guerrilheiras postas em prática clandestinamente por nossa organização.

Isto foi um fator bastante favorável e demonstra a importância que tem desenvolver a luta guerrilheira simultaneamente com o avanço do movimento de massas.

A lição mais importante a extrair dos fatos é que sô foi possível avançar através do desencadeamento da ação revolucioná ria, enfrentando toda a sorte de sacrifícios, entre os quais a perda de vidas preciosas de companheiros que tombaram no cumpri mento do dever, e a cujas memórias rendemos a homenagem de nosso respeito e admiração.

Apesar dessa lição é evidente que na parte de nossa organização dedicada à atividade local, era todo o pais, e em cada um dos pontos em que atuamos, nem sempre conseguimos colocar a organização revolucionária à altura dos acontecimentos. Não chegamos a analisar as mudanças que foram sendo introduzidas no movi mento revolucionário em consequência do avanço da resistência contra a ditadura, avanço caracterizado pela intensidade das lutas de rua, a deflagração de atos terroristas revolucioná rios e o irrompimento das operações e táticas guerrilheiras.

O fato novo na situação do pais e no movimento revolucionário, e que nos leva a introduzir novas mudanças em nossa organização, foi o surgimento de três frentes de atividades:

Essas três frentes deram o tom na atividade local em todo o pais. Dada, porém, a peculiaridade de que o movimento revolucionário se desenvolve desigualmente no território nacional, resultou que em alguns pontos importantes do país uma ou outra dessas frentes deixasse de manifestar-se ou que uma predominasse era prejuízo das demais.

Nosso próximo objetivo, no que diz respeito à atividade local, é fazer que as três frentes surjam em todo o país e que os efeitos de sua movimentação sejam os mais contundentes.

A frente guerrilheira caracterizou-se pela captura de armas e explosivos, pelos atos terroristas revolucionários, pela sabotagem, pelas ações armadas de todos os tipos, pela ação antiamericana, pelo volume da agitação através dos grupos armados que pintaram muros e distribuíram volantes ou fizeram comícios relâmpagos, pelo aparecimento da imprensa clandestina de combate à ditadura. A frente guerrilheira surge como resultado da criação de uma infraestrutura, apoiada na fabricação e produção de armas e explosivos capturados, é ura dos fatores decisivos na mu- dança de qualidade do movimento revolucionário e de sua organização. Uma frente guerrilheira que cresce incessantemente deve ir até à execução de uma política de terra arrasada, para por em sobressalto a ditadura e reter uma boa parte de suas fôrças de repressão, impedindo-as de perseguir a guerrilha.

Em qualquer ponto do país, a atividade local deve contar com a existência da frente guerrilheira e é nesse sentido que se devem voltar os esforços da organização revolucionária local.

A frente de massas— tendo à frente o movimento estudantil— desempenhou um papel sem precedentes na luta antiditadura. Ocupações, passeatas, protestos, greves, a luta contra a censura, a prisão de policiais para a troca por prisioneiros políticos, constituíram formas de luta de massas de nível elevado. O prosseguimento da atividade dos grupos revolucionários locais entre os operários, os camponeses e as camadas exploradas da população significará um grande avanço na luta antiditadura. O papel dos estudantes e dos eclesiásticos foi notório, o que quer dizer que a classe média brasileira repudia a ditadura e constitui uma das fôrças mais combativas no atual processo revolucionário. Toda organização revolucionária local ajudará imensamente a guerrilha brasileira, sempre que cuidar com incansável atenção da frente de massas, indo até ao trabalho de conscientização e à penetração entre as massas através de meios culturais.

A frente de massas exige a organização de grupos revolucionários nos locais de trabalho e de estudo, na cidade e na área rural. Ao lado disto, é preciso dar à frente de massas uma potência de fogo razoável. As ações do movimento de massas devem ser ações armadas, e uma infraestrutura idêntica á da frente guerrilheira deve ser montada na frente de massas. É sobretudo entre as massas camponesas que devemos cuidar de erguer tal infraestrutura, dada a necessidade de radicalizar as lutas na área rural.

A rede de sustentação é a grande frente logística de apoio da revolução brasileira e da guerrilha. Aí também são necessários os grupos revolucionários de sustentação, os pontos de apoio individuais e coletivos, na cidade e principalmente no campo.

Casas, endereços, esconderijos, sistema de comunicações, viaturas, equipamentos, recursos financeiros, mantimentos, informações, tais são os meios com que deve contar a rede de sustentação, cuja formação merece o carinho especial dos revolucionários.

Apreciando do ponto de vista de nossa organização o aparecimento das três frentes de atividade e a maneira como ainda estamos atuando, verificamos que devemos evoluir da antiga coordenação urbana para um sistema atualizado de organização.

Este sistema atualizado deve compor-se — em cada local — de três frentes de atividade e de unidades móveis, como o grupo tá tico armado, tendo cada frente e unidade móvel o seu funcionamento independente.

O grupo tático armado é o instrumento especial das operações mais complexas de deslocamento, cuja efetivação exige potência de fogo mais considerável. O manejo dessa potência de fogo, que requer maior técnica e mais conhecimentos especializados, condiciona e determina a natureza do grupo tático armado como instrumento especial. Por isso mesmo, o grupo tático armado não pode ser confundido com os grupos revolucionários operando nas três frentes de atividade, que são grupos menos preparados tecnicamente, sem potência de fogo elevada e sem meios materiais adequados à complexidade das operações de deslocamento.

A fonte de recrutamento para o grupo tático armado são os revolucionários independentes mais decididos ou dispostos a tudo e os militantes de grupos operando nas três frentes, militantes já experimentados na ação, que optem pela passagem ao grupo tático armado e se submetam às exigência oriundas dessa mudança de situação.

Onde não existir, o grupo tático armado deve ser criado e fortalecido, pois isto, por si só, já determina uma mudança de qualidade na organização.

Cada uma das frentes de atividade e o grupo tático armado devem, por sua vez, ser dotados de seus comandos próprios, estabelecendo-se os elos de ligação entre cada um deles ou uma coordenação de reduzido número de pessoas.

É preciso evitar uma cadeia de comando complexa. A simplicidade do funcionamento, a rapidez da ação, a mobilidade e a capacidade de iniciativa são as características fundamentais de nossa organização, onde os grupos revolucionários desempenham o papel mais importante. A espinha dorsal de nossa organização são os grupos revolucionários, e isso liquida qualquer tendência a complicar as coisas.

Tudo o que se refere ao sistema atualizado de nossa organização, com as modificações introduzidas, não constitui a palavra final sobre o assunto.

Com este tipo de organização revolucionária, estamos em face de uma experiência inédita no movimento revolucionário brasileiro. Subsistem, assim, problemas não amadurecidos no que diz respeito ao funcionamento nacional e global de nossa organização, que só podem ser resolvidos depois de avançarmos mais na execução de operações e táticas guerrilheiras. Era qualquer circunstância, ainda que a autonomia e a liberdade de ação política e revolucionária sejam necessárias e mesmo imprescindíveis ao funcionamento da organização local, o comandamento revolucionário — e por isso mesmo político-militar — não é espontâneo. Tal comandamento é decorrência direta da ação estratégica e tática móvel, de caráter global, bem como da potência de fogo, do seu maior volume, eficiência e capacidade técnica manejadas pelo centro estratégico e tático.

Um fato notório consiste em que até agora nossa organização não tem uma sigla. É que para nós uma organização revolucionária se afirma pela ação que desenvolve e não pela sigla que adota.

Tão logo aumente o volume das ações revolucionárias que desenvolvemos e mude a qualidade do conteúdo das operações e tátiças guerrilheiras, será indicado efetuarmos trocas de experiências e avaliarmos até que ponto atingiu nosso grau de crescimento.

Há ainda vim longo caminho a percorrer antes que a revolução brasileira venha a ter um comando único, em face da dispersão das organizações em luta e da disparidade de seus objetivos.

Quanto a nós, somos uma organização que acredita na fôrça do exemplo e busca cumprir seu dever revolucionário. E tanto mais nos empenhemos na ação, quanto mais e melhores condições teremos para atrair às nossas fileiras revolucionários decididos e dispostos a tudo.

Para isso é necessário ter presente que os nossos princípios são os seguintes:

  1. o princípio básico de nossa organização revolucionária é partir da guerrilha e, uma vez assentada tal premissa, fazer da organização um instrumento da linha política que segue esta estratégia;

  2. para ser revolucionária, uma organização deve exercer permanentemente a prática revolucionária, mas jamais deve deixar de ter sua conceituação estratégica, seus princípios ideológicos e de organização e sua disciplina própria;

  3. a organização revolucionária não se torna vanguarda pelo fato de intitular-se como tal. Para isso precisa passar à ação e acumular uma prática revolucionária convincente, pois só a ação faz a vanguarda;

  4. nossa atividade principal não é a construção de um partido, mas desencadear a ação revolucionária;

  5. o fundamental na organização revolucionária não é fazer reuniões improdutivas sobre temas gerais e burocráticos, mas, sim, dedicar-se sistematicamente a planejar e executar sob o seu comando até mesmo as menores ações revolucionárias;

  6. o elemento propulsor decisivo para o funcionamento da organização revolucionária é a capacidade de iniciativa dos seus grupos revolucionários. Nenhum comando ou coordenação tem autoridade para impedir qualquer iniciativa dos grupos revolucionários visando a desencadear a ação revolucionária;

  7. não temos uma linha política e uma linha militar separadas, com a linha militar submetida â linha política. Nossa linha é uma linha revolucionária única, que contém em si como uma só coisa a linha política e a linha militar fundidas;

  8. a guerrilha não é braço armado de um partido ou de uma organização política, seja qual for. A guerrilha é o próprio comando político e militar da revolução;

  9. o que determina o surgimento e a afirmação do comandamento político é a prática das ações revolucionárias, seu acerto e consequência, e a participação definitiva, constante, direta e pessoal dos integrantes do comandamento na execução dessas ações;

  10. não há comandamento político sem desprendimento e capacidade de sacrifício, e sem participação direta na ação revolucionária. O comandamento político não significa um mérito nem um reconhecimento pela importância e hierarquia na ocupação de cargos. Os cargos não têm valor, na organização revolucionária só há missões e tarefas a cumprir;

  11. o dever de todo revolucionário é fazer a revolução;

  12. não pedimos licença a ninguém para praticar atos revolucionários;

  13. só temos compromissos com a revolução;

  14. o limite de nossa organização revolucionária vai até onde alcançam nossa influência e a nossa capacidade revolucionária;

  15. manter a mais estrita vigilância contra o inimigo de classe e em particular contra a polícia é o dever mais elementar da organização revolucionária. Delatores, espiões, dedos-duros e informantes dentro de uma organização revolucionária devem ser punidos exemplarmente;

  16. nosso princípio básico em matéria de vigilância é que cada um só deve saber aquilo que diz respeito ao seu trabalho.Sem isto é impossível garantir o funcionamento clandestino da organização revolucionária.

Carlos Marighella Brasil,
dezembro, 68


Inclusão 27/03/2014