A URSS e a Contra-Revolução de Veludo

Ludo Martens


Prefácio


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Esta obra trata das atribulações que se produziram nos domínios ideológico e político na Europa de Leste e na União Soviética no decurso dos anos 1986-1990. A degenerescência política, ocorrida a partir de 1956, desencadeou em consequência uma subversão progressiva na base económica do socialismo.

Como toda a crise de importância mundial, a derrocada do socialismo na União Soviética pôs a claro algumas verdades que haviam ficado durante longo tempo na sombra ou na obscuridade. A confusão ideológica e política, intensificada e amplificada no decurso de 35 anos, desencorajou e paralisou muitos revolucionários e lançou certo número deles nos braços da ordem estabelecida. Presentemente podemos ver claramente a conclusão do novo curso determinado nos anos 50 por Nikita Khruchov: a restauração do capitalismo já não é numa hipótese ou um espectro mas uma realidade inegável. No mundo inteiro, comunistas e revolucionários, seguindo a argumentação da direcção soviética, percorreram os meandros da denúncia dos «crimes stalinistas», do «aprofundamento da democracia socialista» e da «aplicação criadora do marxismo às novas realidades», para desembocarem hoje no grande oceano do capitalismo mundial. À luz deste estrepitoso desaire, podem observar, com um olhar novo, o caminho percorrido e penetrar as tácticas, as manobras e as palavras sedutoras que acompanharam tal viagem.

O capitalismo selvagem clama aos quatro ventos que será, a partir de agora, o único a escrever a história. Para nos libertarmos do abraço asfixiante deste liberalismo triunfante, será primeiro necessário voltar às questões essenciais da ideologia e da política marxistas. Dificilmente se pode imaginar propaganda apologística mais grosseira do que as dissertações americanas sobre o «fim da história». A «grande vitória» que o Ocidente acaba de ganhar, não faz mais do que agudizar as suas contradições internas e agravar a desestabilização ao nível planetário. Com efeito, esta «vitória histórica» é acompanhada pelo reforço da opressão intolerável sobre o Terceiro Mundo, do relançamento das lutas entre potências imperialistas e de uma pesada ameaça de tumultos políticos e sociais e de guerras civis na Europa de Leste e na União Soviética.

Fim da história? E se for apenas o início do combate realmente planetário em que o imperialismo, com a sua panóplia de tecnologias de ponta ao serviço de uma barbárie sem igual, terá de afrontar toda a humanidade civilizada que, mais do que nunca, aspira à paz, à independência, ao progresso social, à democracia popular e ao socialismo?

Os clamores de vitória do liberalismo sobre o marxismo são apenas grosseira propaganda, dizíamos. Porque o capitalismo mundial de modo algum venceu o marxismo, apenas lançou ao tapete estruturas anquilosadas que já não tinham de socialistas senão a etiqueta.

Na Europa de Leste e na União Soviética, assistimos, em 1989-1990, à derrota histórica do revisionismo. Os adeptos desta corrente que, no decurso de 35 anos, liquidaram todos os princípios marxistas-leninistas para ressuscitar os valores e as ideias burguesas, acabam simplesmente de viver um passo crucial no seu crescimento: a classe burguesa adolescente acaba de atingir a idade adulta. Hoje é patente que o revisionismo no seio do movimento marxista representa perfeitamente a burguesia.

O capitalismo mundial ganhou indiscutivelmente uma batalha contra o povo trabalhador dos países ex-socialistas, mas tratava-se de um povo indefeso a quem uma direcção pérfida arrebatou as armas. O marxismo-leninismo não foi vencido nas «revoluções de veludo» pela simples razão de que não se havia empenhado nessas batalhas.

Para compreender, do ponto de vista materialista e de um ponto de vista de classe, o significado real das perturbações no Leste, é necessário tornar ao marxismo. E é numa análise marxista-leninista da catástrofe de veludo que, no mundo inteiro, os homens que se batem contra a opressão e a exploração podem buscar uma renovada confiança no futuro.

No momento em que os reformistas se aprestam a organizar as cerimónias fúnebres com majestosos faustos, felizes por poderem desembaraçar-se de uma vez por todas de Lénine, os comunistas do mundo inteiro podem encontrar uma linguagem comum. A reflexão e o intercâmbio de pontos de vista sobre as causas ideológicas e políticas da morte do «socialismo real» tomam aqui toda a sua importância. Nos cinco continentes, os comunistas marcharam em estradas paralelas, separados por uma floresta de divergências a ponto de se perderem de vista: das Filipinas ao Peru, alguns reivindicavam-se apenas de Mao Tsé-Tung, do Benim ao Brasil, outros não se inspiravam senão em Enver Hoxha, do Vietname a Cuba, passando pela Palestina e pela África do Sul, outros ainda colavam-se aos ensinamentos de Leonid Bréjnev. A grande derrocada de Leste, que revelou um oportunismo de uma força destrutiva muitas vezes ignorada, pode contribuir para aplanar numerosas divergências de antanho.

Nesta obra quisemos expor tanto a coerência de um pensamento revolucionário como a evolução das nossas reflexões.

A coerência não pode ser encontrada senão no combate multiforme, a nível mundial, contra o imperialismo, esse estado supremo da barbárie tecnológica. A derrocada a Leste prova que, face a um a adversário tão poderoso e impiedoso, o socialismo só pode manter-se enquanto ditadura dos trabalhadores contra os exploradores e não pode desenvolver-se senão prosseguindo a luta de classes contra os antigos e os novos burgueses. Para preservar o seu ideal, a sua vitalidade e combatividade, o socialismo tem o dever de ser generoso colocando-se ao serviço da revolução nacional e democrática, anti-imperialista e antifeudal, no Terceiro Mundo; encontra aí, aliás, as suas mais importantes reservas e o seu futuro. E o socialismo não pode travar a ameaça da degenerescência interna e derrotar a subversão externa senão colocando-se ao lado das forças anticapitalistas e revolucionárias dos países industrializados: encontra aí um alerta constante do que uma restauração eventual implica para os trabalhadores.

A evolução da reflexão tem interesse, já que todas as bases ideológicas e políticas da União Soviética foram sacudidas, no decurso dos anos 1986-1991, por terramotos sucessivos que foi necessário cartografar. Por esse motivo, cada capítulo tem à cabeça a data da sua redacção.

O livro abre com as esperanças que a nova política de Gorbatchov suscitou, entre 1985 e 1987, para a renovação do movimento comunista, após o inverno brejneviano.

Na primeira parte, começa por uma reavaliação da Primavera de Praga de 1968, esse prelúdio distante da revolução de veludo.

Continua com a descrição do restabelecimento integral do capitalismo que primeiro teve lugar na Polónia e na Hungria.

A vitória da contra-revolução pacífica neste último país leva-nos a olhar de novo a luta de classes e a repressão na Hungria, no decurso dos anos 1945-1953, e seguidamente sobre o durante e o depois da insurreição armada de Budapeste em 1956.

Os confrontos políticos violentos que abalaram a Roménia, nos finais de 1989, princípios de 1990, permitem aprofundar a análise dos mecanismos da luta de classes sob o socialismo.

Na segunda parte, o livro aborda a derrocada do socialismo na União Soviética.

Em finais de 1989, impõe-se a conclusão de que dois anos de glasnost levaram a União Soviética à beira do abismo. Em nome do anti-stalinismo todas as concepções socialistas são postas de lado e, em nome dos valores universais, a ideologia liberal faz a sua entrada. No momento em que os nacionalismos burgueses se desencadeiam e ameaçam estilhaçar a União Soviética, o país aproxima-se do Ocidente e orquestra, como prova das suas boas intenções, golpes de Estado de feição liberal na Europa de Leste.

No princípio de 1991, o XXVIII Congresso do PCUS aparece como o congresso da ruptura e da restauração do capitalismo. A glasnost preparou os espíritos para o capitalismo, destruindo todas as concepções políticas. Assim, o XXVIII Congresso pôde transmutar o partido comunista em partido social-democrata e transformar as estruturas políticas soviéticas segundo o modelo ocidental. A crise política e económica tornou-se inextricável, agravada ainda pela guerra entre a burguesia liberal pró-ocidental, em redor de Éltsine e Lansbergis, por um lado, e, por outro, os partidários de uma economia capitalista mista e de um poder central forte, em redor de Gorbatchov. A política externa insere-se cada vez mais nitidamente na lógica do capitalismo mundial.

Bruxelas, 6 de Abril de 1991


Inclusão 19/01/2013
Última atualização 14/04/2014