Miséria da Filosofia
Resposta à Filosofia da Miséria do Sr. Proudhon

Karl Marx


Introdução


capa

Transcorrerá no próximo ano [1947] o centenário da publicação de “Miséria da Filosofia”. Esta edição brasileira do livro famoso que Marx escreveu em resposta à “Filosofia da Miséria” de Proudhon tem assim um caráter quase comemorativo, se bem que não intencional. O aparecimento da presente tradução explica-se antes pelo interesse existente em torno de uma doutrina histórico-econômica cuja extraordinária vitalidade nem mesmo os seus mais intransigentes adversários podem negar. E esse interesse não se tornou maior em nossos dias unicamente em consequência do desfecho da Segunda Guerra Mundial, da suposta derrota do totalitarismo. Ele está intimamente ligado à crise do mundo moderno, à tomada de consciência que, embora lentamente e nem sempre em benefício das classes trabalhadores, vai atingindo círculos cada vez mais amplos.

Com efeito, muito anos antes da II Guerra Mundial, um número cada vez maior de sociólogos e historiadores, principalmente nos Estados Unidos, ainda que de um modo inconsequente, já vinha utilizando nas suas pesquisas e interpretações métodos que podem ser qualificados como sendo os do determinismo materialista da história. Esses autores, pelo menos em parte, faziam marxismo sem o saber, ou melhor, sem o querer, o que determinou mais de uma vez reparos dos círculos marxistas ortodoxos. Assim, quando os sociólogos mais clarividentes perceberam toda a importância dos conflitos entre os grupos sociais (versão edulcorada na moderna sociologia da luta de classes), não se deixou de dizer, e com razão, que tudo o que se afirmava já havia sido constatado, com uma profundeza muito maior, por Karl Marx. Mas a maioria dos sociólogos continuava as suas pesquisas sem se incomodar muito com prioridades.

É verdade que isto só diz respeito, sobretudo nos Estados Unidos, a uma das três grandes concepções do sistema de Marx: a interpretação materialista da história. Quanto à análise do mecanismo da produção capitalista e aos métodos dialéticos de investigação, os sociólogos norte-americanos, com raríssimas exceções, permanecem ainda muito ligados aos sem grupos, ainda que suponham examinar a sociedade com a mais inatacável das objetividades.

Quanto aos que fazem marxismo sem o saber, não se devem afligir os marxistas mais jovens e ardorosos, ou os inclinados ao sentimentalismo, pelo fato de não se reconhecerem as fontes da doutrina: para Marx, que só quis constatar as leis do desenvolvimento da sociedade e não criar sistemas próprios, era sempre motivo de alegria saber que outros estudiosos chegavam por vias diferentes, e em lugares diversos, às mesmas conclusões que ele, pois via nisso a confirmação da objetividade de suas ideias. O caso de um Morgan, descobrindo de novo, à sua maneira, num continente distante, a concepção materialista da história, foi, no entanto, no século passado, uma cousa rara. E aqui está a explicação da atualidade da obra de Marx: ele foi um formidável antecipador e a dianteira intelectual que tomou foi tão grande que a capacidade de ação das categorias sociais mais interessadas na transformação social por ele prevista foi ultrapassada. Rosa Luxemburgo via nisso a explicação da relativa esterilidade dos teóricos do marxismo no nosso século. E é nesse poder de antecipação que reside o gênio de Marx, cuja análise de conjunto da sociedade moderna continua igualada, constituindo um dos feitos mais notáveis da inteligência humana.

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A “Miséria da Filosofia” ocupa na obra de Marx um lugar de importância capital. Foi nesse livro que ele expôs pela primeira vez de maneira concreta, no ardor de uma polêmica, a concepção materialista da história, a sua maior contribuição para as ciências histórico-sociais. A partir do dia em que, aos 24 anos, Marx deparou o problema do socialismo, ao ter de tratar na “Gazeta Renana” de questões relativas aos socialistas franceses e aos interesses do proletariado do oeste da Alemanha em face dos proprietários rurais e da burguesia, começam a aparecer as primeiras brilhantes indicações do rumo que ia tomar o seu pensamento. Mas não se deixou arrebatar pelo entusiasmo então reinante pelo “coletivismo” e, logo depois, pelo comunismo, tendo Moises Hess e o próprio Engels o antecipado na adoção das novas ideias. Marx resistiu à improvisação, percebendo logo que estava diante de problemas que exigiriam um estudo aprofundado da economia política e uma análise séria de todas as tendências socializantes. Foi por isso que exigiu, no jornal em que publicou os seus primeiros artigos, referindo-se aos seus amigos de Berlim, “menos raciocínios vagos” e “subjetividades complacentes” e um “maior conhecimento das situações concretas”; e disse que se um dia o seu jornal tivesse de “tratar da questão do coletivismo, seria preciso que isso fosse feito num outro tom e que se fosse até o fundo das cousas.” Seu agudo espírito crítico não lhe permitia discorrer superficialmente sobre problemas cuja magnitude sentira desde o primeiro instante.

Foi na sua estada de pouco mais de um ano em Paris que Marx teve a oportunidade de aprofundar as ideias que então andavam no ar, ideias que comparou a “demônios que o homem não pode vencer senão se submetendo a eles”, e das quais não se pode livrar “senão dilacerando o próprio coração”. Nos dois artigos que escrevem para os “Anais Franco-Alemães” ele, sem sair ainda do plano filosófico, já demonstra ter apreendido toda a antinomia da sociedade moderna. Numa carta a Arnold Ruge, fundador da revista, já havia declarado que não se tratava de dizer aos homens: “Abandonai vossas lutas, que isso é tempo perdido, nós vos daremos a bandeira da verdade.” O que os “Anais” deveriam fazer, na sua opinião, era mostrar aquilo por que verdadeiramente se luta e obrigar os homens a adquirirem essa consciência. Nasceu assim a famosa “consciência crítica” de Marx. Nos artigos a que aludimos ele já trata da luta, das classes trabalhadoras e faz uma análise filosófica da sociedade socialista sonhada pelos utopistas.

Na crítica a Feuerbach, a dialética materialista de Marx começa a afirmar-se. “É verdade que é o homem que faz a religião e não a religião que faz o homem”, dizia ele. Mas o homem “não é nenhum ser abstrato, flutuando fora do mundo; é o conjunto dos homens, o Estado, a sociedade, que fazem surgir a religião como uma consciência invertida do mundo ”. Desse modo a crítica do céu se transformava em “crítica da terra, a crítica da religião na crítica do direito e a crítica da teologia na crítica da política”. A arma da crítica não podia, contudo, “suplantar a crítica das armas”, pois um poder material só podia ser derrubado por outro poder material; porém, “uma teoria também se converte em força efetiva à medida em que se apodera das massas, e ela se apodera das massas na medida em que se torna radical”. Não basta, toda via, que a ideia procure realizar-se; é necessário que “a própria realidade clame pela ideia”.

Entretanto, a influência da estada de Marx em Paris só se tomou decisiva quando ele começou a estudar com a seriedade que caracterizava toda a sua atividade intelectual a revolução francesa em suas origens e consequências, e, logo depois, o materialismo francês, a arma terrível com que o Terceiro Estado travou a luta contra a nobreza no século XIX. Acontecimento não menos importante dessa mesma época foi o encontro com Engels. De volta da Inglaterra, aquele que deveria tomar-se através de uma existência inteira o inseparável companheiro de luta de Marx, numa amizade e colaboração intelectual de que a história não apresenta exemplo mais alto, passou por Paris. Ambos já se haviam encontrado rapidamente na redação da “Gazeta Renana”, mas foi na capital francesa que teve inicio a sua ligação. Engels já havia contribuído para. os “Anais Franco-Alemães” com um artigo de crítica à economia política e já havia recolhido em Manchester o material para “A Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra”; já havia, também constatado que os fatos econômicos constituíam, principalmente no mundo moderno, uma força decisiva, e sua permanência na Inglaterra, onde trabalhara na fábrica de tecidos de que seu pai era sócio, levara-o a considerar o lado econômico dos problemas que preocupavam então todo o grupo dos neo-hegelianos. E nisso teve, de certo modo, primazia sobre Marx.

Em Paris Marx ficou também conhecendo Proudhon, de quem já havia lido alguns trabalhos. Entusiasmara-se mesmo, a princípio com o tipógrafo que se libertara de muitas utopias e que havia, submetido a propriedade privada a uma, análise cerrada, vendo nele um primeiro indício da “capacidade científica do proletariado francês”. No entanto, mesmo antes do aparecimento do “Sistema das Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria”, as relações entre Marx e Proudhon haviam, esfriado. Proudhon caíra sob a influência de Karl Grun e de Bakunine, e as teorias econômicas que então tentava criar já pressagiavam o coletivista que jamais iria além de concepções tipicamente pequeno-burguesas. Aplicando um método que supunha ser o da dialética hegeliana, ele pretendeu esclarecer as contradições da sociedade capitalista, chegando, depois de tirar deduções igualitárias da obra de Ricardo, à sua teoria da “mutualidade”. E saia sempre das dificuldades que deparava com o recurso à Providência, à Razão Universal.

Mas o “Sistema das Contradições Econômicas” teve pelo menos o mérito de levar Marx a precisar melhor as ideias que, já enunciadas isoladamente em diversas ocasiões, ainda não haviam sido expostas com a clareza com que aparecem em “Miséria da Filosofia”. Pela primeira vez tomava forma acabada a teoria do materialismo histórico.

Marx começa por demonstrar o caráter utópico da teoria do “valor constituído” de Proudhon, que queria fazer passar como “concepção revolucionária do futuro” aquilo que Ricardo havia apresentado como a teoria da sociedade burguesa, e isto através de um erro fundamental: ele confundia, como Marx demonstrou, o valor das mercadorias medido pela quantidade de trabalho nelas fixada com o “valor do trabalho”, na terminologia proudhoniana. E essa tentativa de transformar a frio a sociedade capitalista numa sociedade de produtores trocando diretamente os seus produtos e quantidades iguais de trabalho, não tinha nem mesmo o mérito de originalidade, apesar de todas as pretensões de Proudhon. Em, várias cidades inglesas haviam sido fundadas, alguns anos antes, sociedades de trocas de produtos, nas quais foram invertidos grandes capitais. E todas acabaram insolváveis, de maneira mais ou menos escandalosa.

Marx trata depois do hegelianismo de Proudhon, que se gabava de “não fazer história segundo a ordem do tempo mas segundo a sucessão das ideias”. Ele considerava as categorias econômicas com as quais os economistas exprimiam as relações da produção burguesa como pensamentos e princípios abstratos que queria “pôr em ordem”. Marx mostra que tais categorias não são senão as expressões teóricas das relações sociais de produção, nas quais Proudhon, tomando as cousas pelo avesso, via a encarnação daqueles princípios e pensamentos que, na sua linguagem, “dormitavam na razão impessoal da humanidade”. “As relações sociaisdiz Marxestão intimamente ligadas às forças produtivas; adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam o seu modo de produção, e mudando o seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida, mudam todas as suas relações sociais. O moinho a mão dá-nos a sociedade com o suserano: o moinho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial”. Assim, “estas ideias, estas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem. Elas são produtos históricos e transitórios”.

Proudhon, numa falsa aplicação da dialética de Hegel, via em todas as categorias econômicas dois lados em contradição, um bom e outro mau. O problema, para ele, era conservar o lado bom e eliminar o mau. Marx, para tomar patente o seu erro, cita o exemplo da feudalidade, que possuía o seu proletariado, os servos, que encerravam todos os germes da burguesia. A produção feudal também tinha dois elementos antagônicos, o lado bom e o lado mau da feudalidade.

“É o lado maudiz Marxque produz o movimento que faz a historia, constituindo a luta. Se, na época do predomínio da feudalidade, os economistas, entusiasmados com as virtudes cavalheirescas, com a boa harmonia entre os direitos e deveres, com a vida patriarcal das cidades e a situação de prosperidade da indústria doméstica do campo, com o desenvolvimento da indústria organizada por corporações, enfim, com tudo aquilo que constitui o lado bonito da feudalidade, se tivessem proposto o problema de eliminar tudo o que ensombrece esse quadroservidão, privilégios, anarquiaque teria acontecido? Ter-se-ia destruído todos os elementos que constituíam a luta, e sufocado em seu germe o desenvolvimento da burguesia. Ter-se-ia colocado o absurdo problema de eliminar a historia.”

Marx mostra em seguida como a produção e a riqueza resultam desse antagonismo. E ao mesmo tempo que se desenvolviam as forças produtivas, desenvolvia-se também o antagonismo das classes, e uma das classes, o “lado mau”, o “inconveniente da sociedade”, continuava a crescer até que as condições de sua emancipação chegassem ao ponto de maturidade. Marx refere-se então ao nascimento da burguesia e ao antagonismo que também era a condição de desenvolvimento da sociedade capitalista, numa ilustração do que já havia dito capítulos antes:

“No momento mesmo em que a civilização tem início, a produção começa a basear-se no antagonismo das ordens, dos estados, das classes, no antagonismo do trabalho acumulado e do trabalho imediato. Sem antagonismo não há progresso. É a lei que a civilização seguiu até nossos dias”.

Proudhon não respondeu à impiedosa análise de Marx, apesar de ter-lhe anunciado numa carta a publicação de seu livro e dito que esperava a sua “férula crítica”, à qual declarava, submeter-se de boa vontade para depois “tirar a sua desforra”. Mas esta desforra não veio. Proudhon já era então conhecido, era autor de muitas obras e já gozava de prestígio não somente no seio de determinadas categorias do proletariado francês, como na Bélgica e na Suíça. Marx não passava de um obscuro proscrito alemão, que ainda não havia chegado aos trinta anos. Proudhon, que sentira toda, a força da argumentação de Marx, toda a seriedade de sua concepção econômico-social, não quis se arriscar a prolongar uma polemica que poderia comprometer irremediavelmente o seu nome. A única referência pública por ele feita ao livro de Marx está contida numa carta que escreveu ao seu editor: “Recebi o libelo de um doutor Marx, as “Misérias da Filosofia”, em resposta à “Filosofia da Miséria”. É um misto de grosserias, calúnias, falsificações, plágios”. Essas palavras, em que transparecem despeito e rancor, não depõem muito favoravelmente para o julgamento de Proudhon como homem e socialista, principalmente quando se sabe que as notas que escreveu no seu exemplar de “Miséria da Filosofia” indicam a grande importância que atribuía à critica de Marx.

Proudhon, apesar de suas contínuas oscilações entre o materialismo e o idealismo, entre um vago socialismo e um lamentável utopismo, manteve durante muito tempo inegável influência sobre certos círculos de trabalhadores. Marx teve por isso, no decorrer de muitos anos, de combater as suas ideias pseudo-científicas.

Publicada a “Miséria da Filosofia”, e já plenamente senhor do seu método, dos fundamentos de sua doutrina, Marx escrevia um ano depois, com Engels, o “Manifesto Comunista”, completando-se assim a exposição da parte essencial do sistema de ideias que mais tarde se tomaria conhecido pelo, denominação de marxismoo materialismo históricodo qual Franz Mehring viria a dizer, muitos anos depois, que representava para as ciências histórico-sociais o mesmo papel da teoria de Darwin em relação às ciências naturais. E, apesar de todas as proclamadas descobertas da sociologia contemporânea, continua valida a afirmação de Mehring.

Miguel Macedo


Inclusão 22/01/2013
Última alteração 14/04/2014