Ernesto Martins, Erico Czaczkes Sachs(1)

Victor Meyer

Julho de 1987


Primeira Edição: ...

Fonte: Centro de Estudos Victor Myer.
HTML: Fernando Araújo


A recente publicação do livro “Marxismo e Luta de Classes”(2) fez despertar em determinadas áreas interesse pela obra de Érico Sachs. Quem foi e onde viveu esse marxista, aparentemente desconhecido, que deixou no Brasil uma obra presumidamente tão importante? A explicação é simples: para mais de uma geração de marxistas brasileiros, Érico Sachs não era um desconhecido. Sob os nomes de Eurico Mendes, Eurico Linhares ou, especialmente, Ernesto Martins, seus textos foram passados de mão em mão e, durante pelo menos 25 anos, sustentaram uma das mais originais correntes da esquerda brasileira, associada ao extinto grupo Política Operária. Mas somente agora sua obra pode ser colocada, abertamente, à disposição de todos os interessados em conhecer as diversas vertentes do marxismo no nosso país.

Erico Czaczkes Sachs não era brasileiro: nasceu em Viena, em 1922. Filho único numa família judia, proveniente de Tchernowitz (fronteira da Áustria-Hungria com a Rússia até 1919), seu pai era membro destacado da Social-Democracia austríaca e sua mãe, nascida na Rússia, conhecia de perto o Partido Bolchevique, dada a circunstância de ter um irmão militante nas fileiras do partido russo.

Em 1934, Erico acompanha a sua mãe, Sina Ida Czaczkes, numa viagem que representaria a sua primeira emigração: mudam-se para a Rússia, em consequência do recrudescimento das perseguições aos judeus na Áustria. Instalados em Moscou, Erico passa a frequentar a Escola Karl Liebknecht, onde permaneceria até 1938. Os quatro anos em Moscou marcaram decisivamente a sua formação intelectual. A escola era frequentada principalmente por filhos de refugiados alemães, embora também abrigasse jovens de outras nacionalidades. Foi nesse período que Erico estudou pela primeira vez o marxismo, ao tempo em que obtinha informações da oposição a Stalin. Seus contatos com os militantes da Oposição valeram-lhe a expulsão da Rússia, em 1937. O episódio seria relembrado posteriormente por um dos alunos da Escola Karl Liebkecht, o alemão Wolfgang Leonhardt, no livro “A revolução Despachou suas Crianças”.

De volta para a Áustria, Erico e sua mãe lá não permanecem mais que alguns meses: O clima de perseguições aos judeus tornava impraticável a sua permanência na Áustria. Para Erico, com apenas dezesseis anos, já era a terceira vez em que se via obrigado a abandonar um país. Foge da Áustria a pé, alcançando a Bélgica através de território alemão e daí chega até a França. Em Paris, procura Thalheime r e Brandler, os líderes da Oposição Alemã. Torna-se o mais jovem militante da KPO (Oposição Comunista Alemã) no exílio. Morando com Thalheime r , além das discussões sistemáticas que mantem com o principal líder da Oposição Alemã, encontra-se com outras figuras destacadas do comunismo, como Víctor Serge, e com militantes do POUN. Esse é também, para Erico, o primeiro período em que vive dentro de agudas privações materiais. A Oposição Alemã vive sérias dificuldades financeiras e é grande o número de exilados. Passa a trabalhar numa Escola de Agricultura, destinada a jovens refugiados judeus. Em 1939, com o começo da guerra, a situação se torna ainda mais insegura para os judeus comunistas. Muitos já haviam decidido rumar para a América — para Cuba, Brasil, Chile etc. Erico e sua mãe decidem emigrar para o Brasil.

Em seus primeiros passos no ambiente brasileiro, aos poucos foi conhecendo a realidade do nosso movimento operário. Trabalhando como gráfico, participou da organização dos gráficos paulistas. Posteriormente — a partir do final da década de quarenta — foi jornalista, e seus artigos publicados no Correio da Manhã dão uma rica visão panorâmica do mundo no pós-guerra. Progressivamente, sua influência intelectual foi se firmando junto a segmentos da esquerda brasileira.

Acontece que no Brasil, a história da esquerda praticamente gravitava em torno das influências provindas do PC soviético, reproduzindo-se aqui o cenário das lutas de facções ligadas aos nomes de Stalin e Trotski. Há muito que o centro comunista, em Moscou, havia deformado completamente um dos pontos de honra dos primeiros tempos da Terceira Internacional: o respeito à autonomia dos PCs internacionais. O PCB não fugia à regra e já se tornara um mero reflexo da política stalinista. Erico chegava ao Brasil trazendo uma tradição ideológica inteiramente diversa, e não por acaso: o Partido Comunista Alemão fora, durante toda a década de vinte, o mais forte partido depois do russo, o único que incorporava sólida trajetória teórica e prática, mantendo por isso reservas internas de autonomia frente ao rolo compressor da luta de facções na Rússia. Pesava, nesse sentido, a tradição aberta por Rosa Luxemburgo e outros. Cindindo-se do partido alemão oficial somente quando a convivência tornara-se impossível — ao ser decretada a política ultra-esquerdista da guerra conta o “social-fascismo” — a Oposição Alemã tornou-se um baluarte sobrevivente da convicção de que a luta do proletariado de qualquer país não pode se submeter ao modelo de alguma revolução vitoriosa. Erico trouxe para o Brasil o fio condutor dessa tradição e independência: cada nova revolução é uma fonte de novas experiências, mas não cabe acatar o stalinismo, o trotsquismo (nem o maoismo ou o castrismo) como métodos ou sistemas.

A trajetória pessoal de Erico no Brasil seria um assunto para uma publicação à parte, fugindo aos limites dessa apresentação. Bastaria aqui lembrar que, durante a década de cinquenta, exerceu grande influência na preparação ideológica de uma corrente de pensamento, trabalho que culminou, em 1960, na convocatória para o 1º Congresso da Organização Revolucionária Marxista, Política Operária. Estudiosos da esquerda brasileira, como Daniel Aarão,(3) situam na fundação da Política Operária, em 1961, um marco inicial da história da nossa nova esquerda.

Em 1969, Erico foi preso pelo DOPS carioca. Conseguindo fugir da prisão, refugia-se na Embaixada da Áustria e, em 1970, pela quarta vez em sua vida, tem que abandonar um país. Mas desta vez trata-se do país que, voluntariamente, escolheu como seu. Na sua volta ao Brasil, em 1980, integra-se no Partido dos Trabalhadores, no Rio de Janeiro.

“Só existem dois mundos, pois entre capitalismo e socialismo não existe terceira ordem social”. Essa visão quanto à contradição fundamental do mundo contemporâneo é uma das características sempre constantes na obra deixada por Érico Sachs. Textos datados dos primeiros anos 60, tanto quanto os escritos dos últimos anos de sua vida, batem na mesma tecla: a crítica à degenerescência burocrática do Estado, nos atuais países socialistas, não pode ultrapassar a solidariedade que os revolucionários têm por dever prestar a esses países em suas lutas contra o bloco imperialista.

Contudo, não obstante a importância de suas análises sobre a evolução do movimento comunista no mundo, podemos seguramente afirmar que a contribuição mais notável e marcante do autor, que definitivamente iria ligar seu nome à história da esquerda brasileira, situa-se em outro terreno. Estamos nos referindo à discussão sobre o caráter da revolução brasileira, sobre o papel da classe operária e sobre o cenário estratégico onde se projetam as metas qualitativas mais imediatas, capazes de alterar substancialmente a posição da classe operária na nossa sociedade e melhorar as condições para a luta posterior.

Quanto ao caráter da revolução, Érico argumentaria que a única revolução possível no Brasil contemporâneo seria socialista. Hoje, essa tese talvez não encontre muitos opositores entre os marxistas brasileiros, mas quando foi formulada pela primeira vez se chocou frontalmente contra a maré montante, contra o dogma da revolução democrático-burguesa, comungado em consenso pelo pensamento então hegemônico na nossa esquerda.

Quanto aos objetivos estratégicos, Érico argumentaria que todos os esforços deveriam visar à transformação da classe operária numa classe independente, em condições de agir em faixa própria, formulando suas reivindicações políticas e construindo suas organizações sem a burguesia e contra a burguesia. Hoje, essa tese certamente soará familiar para todo um contingente, incluindo aí os valorosos operários de vanguarda que lutam para construir o Partido dos Trabalhadores como porta-voz das aspirações da classe operária e demais assalariados, em oposição à política das classes dominantes. É verdade que ainda não podemos identificar, rigorosamente, no Brasil de hoje, uma classe operária independente. Mas estamos a caminho. Aí estão a CUT, o programa do PT, e a consciência prática efetivamente alcançada pela vanguarda do nosso movimento operário. Pode-se dizer que já existe na sociedade brasileira uma força material intensamente identificada com a perspectiva política e organizatória, tornada concreta, de marchar com as próprias pernas, passando ao largo dos apelos das classes dominantes.

Mas há 25 anos atrás, ou antes, há quase 30 anos atrás, quando Érico escrevia para a revista “Movimento Socialista” e preparava a fundação do grupo “Política Operária”, quando apenas começava a se formar a geração pioneira que pela primeira vez integraria no Brasil uma corrente de opinião contrária à colaboração de classes, a situação era bem outra: o pensamento e a prática predominantes na esquerda oficial já se adentravam pela terceira década de apoio mais ou menos crítico ao Estado populista e às facções ditas “nacionais” da nossa burguesia.

O operário consciente que hoje proclama slogans contra a Nova República, aqueles operários que fizeram comícios em portas de fábrica na hora da reunião do Colégio Eleitoral, demarcando assim sua independência com relação ao novo governo burguês que se formava, então liderado por Tancredo Neves, esses operários certamente reconheceriam sua própria consciência atual se lessem qualquer dos artigos de Érico Sachs escritos nos idos de 1960. Ou ao lerem o texto que ora publicamos - “Aonde Vamos(4) - datado de 1966, que se constitui num libelo histórico contra a conciliação de classes e a favor da formação independente do nosso proletariado. Essa circunstância não deixa de ser incomum, e mereceria algumas reflexões.

É uma situação incomum, visto que a história das correntes da esquerda brasileira parece quase totalmente submetida a uma maldição, parece fadada a ver a realidade sempre resistir às suas teses. Aqui ao contrário, temos algo que foge a essa sina, aqui o pensamento conseguiu ser intérprete de um processo histórico real. Hoje, Érico está morto, o grupo político que criou já deixou de existir como organização, mas a linha estratégica esboçada há trinta anos atrás está em vias de realização; o movimento operário brasileiro avança no marco qualitativo da sua formação independente. Não registramos o fato pela trivialidade de querer glorificar a memória de um indivíduo, mas para ressaltar que o marxismo, dentro de certas condições, continua sendo uma doutrina fecunda. Basta que esteja liberto dos dogmas e dos esquemas apriorísticos; basta que assuma frente à realidade a mesma postura dos seus fundadores ou dos discípulos mais ilustres, a exemplo de Lênin, de Rosa Luxemburgo e de outros, que em seus tempos e em seus países se recusaram a copiar modelos ou traçar esquemas. Érico conseguiu incorporar esse antidogmatismo criador, por isso sua obra é atual. Talvez por isso, também, gostasse tanto de relembrar uma passagem da obra da juventude de Marx:

“A teoria — disse Marx em 1844 — só se realiza no seio do povo na medida em que seja a expressão das suas necessidades”.

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Erico morreu no Rio de Janeiro, em 9 de maio de 1986. Seus últimos anos foram vividos em condições materiais extremamente precárias, virtualmente relegado ao isolamento e à miséria. Velho comunista, mais de uma vez lembrara da célebre colocação de Rosa Luxemburgo sobre o “isolamento revolucionário”. Para ele, a consciência do próprio isolamento era também a certeza do caráter circunstancial dessa situação, sobre a qual se projetava a convicção da vitória final que caberá à sua causa, à sua ideologia e à classe à qual aderiu. A história do comunismo está repleta de exemplos como esse.

Erico Czaczkes Sachs: o adolescente que adotou o marxismo na Rússia, o jovem militante da Oposição Comunista na Europa, o imigrante tornado brasileiro e que entre nós levantou as bandeiras da formação independente da classe operária e do Brasil socialista, o exilado na Alemanha, durante a ditadura militar brasileira, o retornado em 1980, que se integrou no Partido dos Trabalhadores. Seu pensamento tinha raízes tão antigas quanto sólidas: Marx, Engels, Rosa Luxemburgo, Lênin. Erico está sepultado no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, e em seu túmulo caberia perfeitamente as palavras de um revolucionário do Século XIX, o russo Tchernichevski:

“Permanece tranquilo ante às adversidades que aos demais abatem. Repete o poeta: “Joguei tudo que tinha apostando contra nada, e o mundo inteiro me pertence; não se lamenta por nada que tenha feito o seu tempo, e diz: aconteça o que acontecer, no final das contas a vitória pertencerá ao nosso campo”.


Notas de rodapé:

(1) O nome original em alemão de Ernesto Martins é Erich Czaczkes. No Brasil, ele foi também conhecido como Eric Sachs. Entretanto, documento em alemão, recentemente conhecido, faz menção à mudança do seu nome para Érico Sachs, razão pela qual o identificaremos com tal nome nesta publicação. (retornar ao texto)

(2) Editora Práxis, Salvador-BA, 1987. (retornar ao texto)

(3) Imagens da Revolução. Rio de Janeiro: Marco Zero,1985. (retornar ao texto)

(4) Vide SACHS, E. “Qual a herança da revolução russa e outros textos”. Belo Horizonte: SEGRAC, 1988. (retornar ao texto)

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Inclusão 14/05/2013