A Luta de Classes em África

Kwame Nkrumah


«Intelligentsia» e intelectuais


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Durante a época colonial, apareceu, pretendendo servir de ligação entre o poder colonial e as massas, uma intelligentsia de formação ideológica ocidental. Originária em grande parte das famílias de chefes tradicionais e das classes possuidoras, limitava-se a um mínimo de elementos capazes de assegurar o bom funcionamento da administração colonial. Esta intelligentsia tornou-se uma elite hábil em oportunismo, tanto de direita como de esquerda.

Na África, como na Europa e noutras regiões do Mundo, a posição social é, em grande medida, proporcional ao nível de educação. Com o aumento da alfabetização, as características tribais e étnicas amenizam-se e a divisão em classes acentua-se. Existe — e muito particularmente entre os que fizeram os estudos no estrangeiro — um certo esprit de corps. Os que o possuem tornaram-se estranhos ao seu meio de origem e não têm, geralmente, outra ambição que não seja a de fazer uma brilhante carreira política, ter uma posição social elevada e adquirir um estatuto profissional. Com efeito, logo que um grande número de Estados africanos passam a contar com estabelecimentos de ensino e universidades, milhares de africanos preferem, no entanto, ir fazer os seus estudos ao estrangeiro. Actualmente, cerca de 10 000 estudantes africanos habitam em França, e outros tantos na Grã-Bretanha. Nos Estados Unidos há cerca de 2000.

Nas ex-colónias britânicas existem estabelecimentos de ensino, criados durante a época colonial, segundo o modelo das célebres public-schools inglesas e com a mesma organização, tanto no programa de estudos como no que respeita à disciplina e a actividades desportivas. Os colégios de Adisabel, de Mfantsipim e de Achimota, no Ghana, são exemplos típicos. Estas escolas têm por objectivo formar uma elite política comprometida com as ideologias burguesas capitalistas da sociedade europeia.

Na Grã-Bretanha o sistema de classes está estreitamente ligado com o sistema de ensino. 3% dos que passam pelas public-schools são considerados por muitos «os dirigentes legítimos», isto é, os mais qualificados para dirigir o país, tanto pelo nascimento como pela educação. Porque, na Grã-Bretanha, o sistema de ensino é inseparável da superstrutura sócio-política. Na medida em que as public-schools não abrem as portas senão a 6% da população, e que as universidades recebem apenas uma fraca percentagem (5%), os quadros da nação (60% chefes de empresas, 70% parlamentares conservadores e 50% delegados das comissões de inquérito) são produtos das public-schools. Por outras palavras, é esta pequena minoria que detém os lugares chaves na vida política e económica do país. A despeito dos esforços tentados, visando torná-lo acessível às massas, este sistema de ensino irracional e arcaico continua em vigor.

E o número cada vez maior de peritos formados em estabelecimentos que não estes que temos vindo a mencionar não é considerado como uma ameaça para a continuidade deste sistema. O mesmo se dá com as pressões exercidas cada vez mais frequentemente pela classe operária: de facto, se tivessem meios para isso, a maioria das famílias operárias não hesitariam em inscrever os seus filhos nos registos dos grandes estabelecimentos particulares, o que lhes permitiria mais tarde disputar funções elevadas na vida social. Os produtos das public-schools têm os seus homólogos nas ex-colónias britânicas de África: são estes membros da burguesia africana, que se pretendem mais britânicos que os próprios Britânicos, copiando os seus hábitos, o vestuário, a linguagem afectada dos grandes colégios particulares e das Universidades de Cambridge e Oxford. Ao formar uma intelligentsia africana, os colonialistas pretendiam, segundo os seus próprios termos, «formar quadros locais chamados a tornarem-se nossos assistentes em todos os campos e a assegurar o desenvolvimento de uma elite cuidadosamente seleccionada». Viam nisso uma necessidade ao mesmo tempo política e económica. E como é que procedem?

— «Damos a prioridade aos filhos de chefes e aristocratas... O prestígio das suas origens deve reforçar o respeito que o saber inspira.»

No Ghana, antes da independência, em 1953, em 208 estudantes da Universidade, 12% eram oriundos de famílias que possuíam um rendimento superior a 600 libras anuais, enquanto que uma percentagem de 38% tinha um rendimento anual variável entre 250 e 600 libras e a percentagem restante, 50%, tinha um rendimento de cerca de 250 libras por ano. Compreende-se a importância destes números ao saber que apenas em 1962, depois de grandes esforços levados a cabo no plano económico, foi possível à população ter um rendimento anual de cerca de 94 libras por habitante.

Ao contrário dos Britânicos e dos Franceses, os Belgas não quiseram formar uma intelligentsia. A sua palavra de ordem parece ter sido a seguinte: «Sem elites não há problemas.» Conhecem-se os resultados de uma tal política: em 1960, no Congo, era praticamente impossível encontrar autóctones suficientemente qualificados para estarem à cabeça do novo Estado, enquadrar o Exército ou ocupar os numerosos quadros administrativos e técnicos deixados vagos pela partida dos colonialistas. A intelligentsia conduziu sempre os movimentos nacionalistas no seu início. O seu objectivo não era trazer uma transformação radical das estruturas sociais, mas tomar o lugar do poder colonial. A sua intenção não é mudar o «sistema», mas controlá-lo. Neste sentido, ela é burguesa e formalmente oposta a qualquer transformação socialista revolucionária.

Depois da independência, a intelligentsia perdeu a sua homogeneidade. Podiam então distinguir-se três grupos bem demarcados: havia, em primeiro lugar, os aliados da nova classe privilegiada indígena, isto é, a burguesia burocrática política e comercial, abertamente aliada do imperialismo e do neocolonialismo. Entre eles, recrutavam-se os teóricos anti-socialistas, anticomunistas, reclamando-se dos valores político-económicos do mundo capitalista.

Seguia-se então o grupo dos partidários de um desenvolvimento «não capitalista» e de uma «economia mista», adaptáveis aos países menos industrializados, como fase necessária à progressão para o socialismo. Mal interpretado, este conceito pode revelar-se mais perigoso para a causa socialista revolucionária da África do que um conceito nitidamente a favor do capitalismo, se não for utilizado com um fim muito provisório; porque poderia retardar o processo revolucionário. A história provou-o: permitir ao capitalismo e à iniciativa privada desenvolverem-se simultaneamente num Estado que se diz socialista é abrir caminho ao triunfo das forças reaccionárias. O sector privado da economia não cessará de tentar expandir-se em detrimento da linha socialista seguida pelo governo. Finalmente, na maior parte dos casos, a reacção conseguirá, com a ajuda do neocolonialismo, perpetrar um golpe de Estado que derrubará esse governo socialista.

Os intelectuais revolucionários constituem o terceiro grupo que apareceu no seio da intelligentsia, após a independência. Foram estes que enquadraram as massas na sua luta para o verdadeiro socialismo. Formados, na sua maioria, nas escolas coloniais, reagiram fortemente ao processo de assimilação, tornando-se assim autênticos socialistas revolucionários e nacionalistas. É portanto a este grupo que cabe a tarefa de anunciar e promulgar os objectivos socialistas da revolução africana e, consequentemente, desmascarar e refutar a corrente de ideologias capitalistas e os pretensos conceitos propagados pelo imperialismo, pelo neocolonialismo e pela reacção indígena, com a ajuda dos meios de comunicação modernos.

Os intelectuais estudantes, professores, etc., das sociedades capitalistas e neocolonialistas são, na sua maioria, membros de uma elite burguesa susceptível de tornar-se uma força política revolucionária, ou contra-revolucionária, a despeito do facto de terem sido, antes da independência, dirigentes nacionalistas. Estão presentemente divididos em vários grupos. Em primeiro lugar, os que tomaram parte na luta nacionalista revolucionária e estão agora no governo, dando a sua preferência quer aos «novos ricos» do partido, quer aos revolucionários socialistas. Vêm a seguir os que estão na oposição, ou os que se não interessam pela política, ou ainda os que são a favor de uma política de compromisso. Há por fim os intelectuais «de má fé», que embora reconheçam a irracionalidade do capitalismo, não rejeitam os seus benefícios e o seu modo de vida. Esses estão prontos a prostituírem-se e a tornarem-se os agentes e aliados do privilégio e da reacção, para defenderem os seus interesses. Os intelectuais saídos dos meios proletários são geralmente mais determinados do que os que provêm dos sectores privilegiados da sociedade. Mas a elite intelectual é a menos capaz de coesão e homogeneidade. Nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e na Europa Ocidental, a maioria dos intelectuais são direitistas. Do mesmo modo, as aspirações da maioria dos intelectuais africanos são características da classe média: aspiram ao poder, ao prestígio, à riqueza e a posições sociais elevadas, para eles próprios e para os membros das suas famílias. A maior parte dos que vieram de meios operários aspiram a pertencer à classe média e evitar os trabalhos manuais, tornando-se assim estranhos ao seu meio de origem.

Cada vez que intelectuais socialistas revolucionários desempenharam cargos numa administração progressista, foi, em regra geral, devido à adopção dos princípios marxistas como base política e à formação de partidos comunistas e outras organizações, pondo-os constantemente em contacto directo com as massas.

Se quiserem desempenhar um papel na revolução africana, a intelligentsia e os intelectuais devem estar conscientes da luta de classes que se desenrola em África e pôr-se ao lado das massas oprimidas. Isso implica a tarefa difícil, mas não impossível, de se libertarem do doutrinamento dos conceitos burgueses divulgados pelo poder colonial, por meio do ensino e da propaganda. A ideologia da revolução africana liga a luta de classes conduzida pelas massas africanas aos movimentos socialistas revolucionários mundiais e ao socialismo internacional.

Nascida das lutas de libertação nacional, tende à libertação total, à unidade política e à socialização do continente africano. Única no género, desenvolveu-se no quadro da revolução africana. Ela é o produto da personalidade africana, assim como dos princípios do socialismo científico.


Inclusão 22/03/2014