A Luta de Classes em África

Kwame Nkrumah


Cliques reaccionárias no seio do exército e da polícia


capa

Em África, a maioria das forças armadas e da polícia foram formadas pela administração colonial. Raros são os membros que participaram nas lutas de libertação nacional. Tomaram antes parte nas operações policiais levadas a cabo para a eliminação desses movimentos de libertação. Nesta mesma época, a maioria dos exércitos estava sob as ordens de oficiais europeus. Com a independência, quando as políticas de africanização foram postas em prática, devido à falta de candidatos qualificados, um grande número de africanos que não tinham, no entanto, recebido a formação necessária receberam o grau de oficiais. Muitos deles, que tinham exercido cargos de professores no exército, pertenciam à pequena burguesia instruída. Tinham recebido, simultaneamente com os antigos oficiais dos exércitos actualmente em serviço em África, uma formação militar, quer dos próprios colonialistas, quer nas academias militares europeias. Uma tal formação não podia senão torná-los cúmplices das normas e ideais do Ocidente. Devido à sua posição na sociedade, poder-se-iam colocar na mesma categoria que a burguesia burocrática, com quem partilham a preferência por um modo capitalista de produção.

Entre os jovens oficiais há alguns que durante a adolescência participaram nas lutas de libertação nacional, o que os torna mais receptivos à ideologia socialista revolucionária. No entanto, embora um pequeno número entre eles seja favorável à revolução africana, a maioria dos oficiais superiores sucumbiu ao mesmo doutrinamento burguês que os antigos oficiais assimilaram. Porque eles estão estreitamente ligados, pela posição que ocupam na sociedade e pelas suas aspirações, à burguesia e às elites militares reaccionárias de outros países.

Em muitos casos, os oficiais de carreira e os funcionários foram formados nos mesmos estabelecimentos particulares, tanto em África como no estrangeiro. Esta experiência comum desenvolveu entre eles uma semelhança de pontos de vista e de interesses e uma aversão comum à mudança, assim como o culto das organizações e instituições da sociedade burguesa. Esta atitude encontra-se até mesmo na nova geração de oficiais e burocratas que dividem entre si o Poder a seguir aos golpes de Estado. A rigidez das suas posições e dos seus conceitos reflecte o clima sócio-político do período colonial.

Quando se dá um golpe de Estado, o exército, a polícia e a burocracia trabalham em conjunto. Isso não quer necessariamente dizer — embora tenha sido por vezes o caso — que tenham sido eles os autores do golpe de Estado. Mas, como partilham os mesmos interesses, tornam-se dependentes uns dos outros. Com efeito, os burocratas só por si não podem derrubar um governo; e nem os militares nem a polícia têm a competência necessária para administrar um país. Assim, combinam os seus esforços de modo a produzir uma situação impressionantemente semelhante à época colonial, em que o governo se apoiava na administração, no exército e na polícia, assim como nos chefes tradicionais.

A maioria dos golpes de Estado foram perpetrados sem a participação das massas. Estas, traídas e reprimidas, caem novamente nas condições de vida da época colonial. O poder dos chefes tradicionais é reinstaurado. O apoio no aparelho repressivo policial é, nos Estados neocolonialistas, outra reminiscência da época colonial. Pela natureza do seu trabalho, a polícia — contrariamente aos militares — está em contacto directo com o povo. Logo que se dá um golpe de Estado, sabem exactamente quem prender e para onde devem levar os prisioneiros. Sabem também organizar e manobrar um motim ou uma manifestação. Frequentemente, há polícias implicados em negócios de corrupção. Conhecem todos os aspectos do crime e põem frequentemente em prática o ditado «o fim justifica os meios». Tal como os militares, estão estreitamente ligados à burguesia burocrática, de quem partilham os interesses.

Os elementos subalternos do exército e da polícia são, em geral, camponeses. Sem cultura, na sua maioria, aprenderam a nunca discutir as ordens e a servir os interesses capitalistas da burguesia. Estão portanto afastados da luta empreendida pelas massas, donde, no entanto, saíram. Porque, se a obediência cega às ordens superiores é uma das regras fundamentais da disciplina militar, esta regra pode ser perigosamente interpretada pela minoria privilegiada que está à altura de a fazer aplicar por sua conta. Por outras palavras, o simples soldado, assim como o simples polícia, podem tornar-se o instrumento de suporte dos regimes reaccionários. É assim que o camponês ou o operário se tornam adversários da sua própria classe.

A única solução para este problema é a politização do exército e da polícia, que devem ficar sob o controle restrito do partido socialista revolucionário e de comissões dirigidas por verdadeiros militantes revolucionários socialistas. É igualmente indispensável que a disciplina, no exército e na polícia, seja baseada na compreensão, e não na obediência cega. Trata-se de pôr fim a esse espírito mercenário que aí impera e de criar um exército nacional, assim como uma milícia popular: operários, camponeses, soldados e polícias deveriam dar-se as mãos, porque pertencem à mesma classe e aspiram a uma mesma revolução socialista.

O exército e a polícia são mais disciplinados, mais móveis e estão tecnicamente melhor equipados que as outras organizações sociais. Estão armados, o que faz deles forças de importância fundamental. O uso a fazer deles depende da ascendência desta ou daquela tendência política dentro da sociedade e das pressões, internas e externas, exercidas sobre os seus quadros.

Cada vez que o exército intervém na vida política, fá-lo como força social. Os golpes de Estado não são senão a expressão de uma luta de classes e do conflito que opõe o imperialismo à revolução socialista. Depois de tomar o Poder, o exército dá a sua adesão a um determinado partido. Neste sentido, o exército não só é um instrumento de luta, mas também parte integrante da luta de classes, rompendo assim o véu que o isolava das transformações sócio-económicas e políticas da sociedade. O que reduz a nada a teoria da «neutralidade» das forças armadas lançada pela classe dominante.

A intervenção do exército, em política, é dirigida pela minoria privilegiada, ansiosa por defender os seus interesses. Postos perante o facto consumado, os membros do exército não podem senão inclinar-se. Se em casos semelhantes, em África, um golpe de Estado permitiu a instauração de um regime menos reaccionário, a maioria dos golpes de Estado foram perpetrados por militares burgueses, estreitamente ligados à burguesia burocrática e ao neocolonialismo, com o fim de assegurar a continuidade do capitalismo e frustrar os planos da revolução socialista africana.

Em certos países africanos onde o exército pretendeu intervir em nome da revolução socialista, fê-lo com um objectivo puramente nacionalista. Pretendendo pôr fim à exploração estrangeira, melhorar as condições de vida, «nacionalizar» — em certos casos — as sociedades estrangeiras e fechar as bases militares estrangeiras, não trouxe de facto nenhum melhoramento às condições de vida do povo, que se vê então explorado, não por estrangeiros, mas pela burguesia indígena. O país é então a presa do neocolonialismo e da burguesia, ora representada por políticos de segunda ordem, ora por militares e polícias burgueses. É instalado um regime fantoche. Mas a revolução socialista não terá lugar senão com a tomada do Poder pelos operários e camponeses em luta.

Os exércitos regulares africanos são mantidos à custa de enormes quantias de dinheiro. O exército congolês, por exemplo, recebeu durante os quatro primeiros anos da independência um sexto do rendimento nacional — ou sejam 25 milhões dos 150 milhões do orçamento nacional. Em previsões das receitas orçamentais da África francófona para 1967-1968, oito dos quinze Estados francófonos forneceram ao exército entre 15% e 25% dos seus recursos. O Mali, a Guiné, o Tchad e os Camarões estavam dispostos a despender um quarto do seu orçamento nacional para fins militares.

Geralmente, os ordenados dos oficiais são aproximadamente os mesmos que os dos oficiais estrangeiros. Consequentemente a diferença de estatuto e de poder que separa os quadros do exército das suas tropas é considerável. Muito mais do que na Europa, Estados Unidos e outros sítios.

Em África, o ordenado de um tenente-coronel é dez ou quinze vezes mais importante que na Europa e na América. O seu estatuto social, artificialmente elevado, dá aos oficiais africanos uma arrogância insuportável. Mesmo os simples soldados e polícias tomam-se por uma elite, porque têm salários mais elevados que os pequenos empregados da administração. A prática cada vez mais corrente de nomear os quadros do exército para altos cargos diplomáticos mostra bem a importância da sua posição na sociedade africana. A enormidade das somas gastas para a manutenção dos exércitos nos Estados africanos não tem razão de ser, porque os territórios africanos não estão ameaçados do exterior. De resto, as disputas fronteiriças — herança do colonialismo — são susceptíveis de serem resolvidas pacificamente.

Os combates empreendidos para pôr fim aos últimos bastiões do colonialismo são obra não de exércitos permanentes mas de movimentos de guerrilha. Se somente uma pequena porção das somas despendidas com a manutenção dos exércitos permanentes fosse gasta no equipamento dos combatentes da liberdade, a revolução africana estaria mais próxima. A única razão que poderá justificar a manutenção de grandes exércitos permanentes é a necessidade vital que os objectivos revolucionários africanos impõem: a unificação política de África sob a direcção de um alto Estado-Maior Pan-Africano.

No caso de haver uma crise política, o exército tem tendência a apresentar as mesmas divisões que a comunidade política. Tende a dividir-se segundo classes e tribos. A classe dos oficiais é geralmente conservadora, isto é, reaccionária. Existe para a manutenção da ordem estabelecida. Do ponto de vista histórico, conhece-se sobejamente o papel dos exércitos permanentes na repressão dos movimentos revolucionários; são o instrumento das classes dominantes no seu esforço de dominação burguesa.

O efectivo dos exércitos africanos é fraco em relação ao dos exércitos europeus, asiáticos, americanos (do Norte e do Sul). Há três países a sul do Sáara que têm exércitos de mais de 10 000 homens; o Sudão, a Etiópia e o Congo-Kinshasa. Catorze Estados africanos têm exércitos inferiores a 2000 homens. É verdade que, devido à sua fraca densidade populacional e à pouca viabilidade das suas economias, a manutenção de tais exércitos é, para muitos Estados, um verdadeiro fardo. Mas o facto de a maioria dos exércitos serem dirigidos por oficiais que partilham os interesses da burguesia burocrática e do colonialismo dá ao seu papel na vida política do continente uma importância completamente desproporcionada.

Estes exércitos recebem a ajuda de países capitalistas sob a forma de fornecimento de armas, de equipamento e de treino. Em 1964 contavam-se em África 3000 peritos franceses e 6000 peritos militares britânicos. 1500 africanos receberam treino militar em França, enquanto que 700 o foram fazer à Grã-Bretanha. Cerca de catorze Estados africanos concluíram acordos com o Estado de Israel, que lhes fornece armas e lhes treina os exércitos. Recentemente a Alemanha Federal concluiu acordos, relativos ao envio de peritos e outras formas de ajuda militar, com estes Estados situados nas regiões mais estratégicas do continente africano. Entretanto, os Estados Unidos estabelecem, ao mesmo tempo que desenvolvem os seus interesses comerciais, redes militares e de informação que lhes permitem exercer fortes pressões sobre a vida política em África. Enquanto os Estados africanos dependerem, de algum modo, da ajuda dos países capitalistas para o treino, as armas e o equipamento, a revolução africana está comprometida. Não é por acaso que nunca se dão golpes de Estado nos países em que o exército está sob as ordens de oficiais estrangeiros: apesar do seu reduzido número, estão à altura de impedir qualquer mudança do status quo, em virtude de representarem a força militar da potência estrangeira de que depende a segurança dos governos indígenas.


Inclusão 22/03/2014