Capítulo 2 - A Lei e a Propriedade

Uma tal transformação do sistema de trabalho implica uma transformação do Direito. Não se trata, evidentemente, de fazer votar novas lei no parlamento e pelo Congresso. Estas transformações atingem as próprias bases da sociedade, todos os seus costumes e as suas práticas, muito além das modificações provisórias que resultam dos actos parlamentares. Esta transformação reporta-se às leis básicas de toda a sociedade e não apenas de um determinado país, porque se fundamentam nas convicções dos homens sobre o Direito e a Justiça.

As leis não são imutáveis. As classes dominantes sempre tentaram preservar o Direito existente, proclamando que se baseia na natureza, que se fundamenta nos direitos eternos do homem, ou que é consagrado pela religião. Tudo isto tem como objectivo único consolidar os seus privilégios e votar as classes exploradas a uma escravidão perpétua. Na história, pelo contrário, é bem evidente que as leis se modificam incessantemente, segundo as concepções do bem e do mal que, também elas se vão modificando.

O sentido do bem e do mal, a consciência da justiça, não são coisas acidentais no homem. Tudo isto se desenvolve, irresistivelmente e naturalmente, a partir da sua experiência, a partir das condições fundamentais da sua vida. A sociedade tem de viver, e por isso as relações entre os homens devem ser reguladas de maneira tal que a produção do necessário vital se possa processar sem entraves (e é este o papel da lei). É justo antes de tudo, o que é bom e necessário para viver; não só útil no momento presente, mas necessário em geral tanto para a vida de um único indivíduo como para a de todos, considerados no seu conjunto, isto é, como comunidade, não tomando unicamente em consideração os interesses pessoais ou temporários, mas igualmente a felicidade duradoura de todos. Quando mudam as condições de vida, quando o sistema de produção se desenvolve e assume novas formas, as relações entre os homens modificam-se, e simultaneamente o sentido que os homens têm do bem e do mal. A lei tem então de ser modificada.

Isto transparece claramente nas leis que regem o direito de propriedade. No estado original, selvagem e bárbaro, a terra era considerada como pertencendo a uma tribo que nela vivia, caçava ou apascentava gado. Para empregar a linguagem de hoje, pode dizer-se que o território era propriedade comum da tribo, que o utilizava para viver e o defendia contra as outras tribos. As armas, os utensílios, que o indivíduo podia fabricar com as suas próprias mãos, eram de certo modo pessoais, eram a sua propriedade privada, mas não no sentido exclusivo, consciente, que este termo assume para nós, e isto devido aos laços mútuos e poderosos que uniam os membros da tribo. Não eram leis e sim usos e costumes que regulamentavam as relações mútuas. Esses povos primitivos e mesmo, em épocas mais próximas de nós, determinadas populações agrícolas (como, por exemplo, os camponeses russos de antes de 1860) não podiam conceber a ideia de propriedade privada de uma parcela de terreno, tal como nós não podemos conceber a ideia de propriedade privada de uma determinada quantidade de ar.

Estas regulamentações tiveram de se modificar quando as tribos se estenderam e se fixaram, desbastaram as florestas, se dispersaram em individualidades distintas (ou seja, em famílias), trabalhando cada uma uma parcela distinta. Modificaram-se ainda mais quando o artesanato se separou da agricultura, quando o trabalho ocasional de todos passou a ser o trabalho permanente de alguns, quando os produtos se transformaram em mercadorias destinadas à venda, quando se estabeleceu um comércio regular, quando os produtos passaram a ser consumidos por outros que não os produtores. Era contudo natural que o camponês, que havia trabalhado uma parcela de terra, que a havia melhorado, que tinha labutado ele próprio, sem recorrer a outras pessoa, dispusesse livremente da terra e dos utensílios, que o produto da terra lhe pertencesse, que a terra e a produção que dela extraía continuassem a ser propriedade sua. Todavia, na Idade Média, foram feitas restrições a estas regulamentações: assumiram a forma de obrigações feudais, tornadas necessárias para assegurar a defesa das terras. Por outro lado, era natural que o artesão, único a manejar os seus utensílios, deles dispusesse em exclusivo, tal como dos objectos que fabricava: continuava a ser o único proprietário deles.

A propriedade privada passou deste modo a ser a lei fundamental de uma sociedade baseada em unidades de trabalho de pequena dimensão. Sem que tenha sido expressamente formulado, isto foi sentido como um direito necessário: quem utilizasse exclusivamente os utensílio, a terra, um produto, devia ser dono deles, e dispor deles livremente. A propriedade privada dos meios de produção é própria do pequeno comércio, é o seu complemento jurídico necessário.

Nada deste ponto de vista se modificou quando o capitalismo se transformou em senhor da indústria. Quando muito, estes princípios foram expressos, com uma clareza ainda maior, pela Revolução Francesa que, em pleno conhecimento de causa, proclamou a liberdade, a igualdade e a propriedade como direitos fundamentais do cidadão. E era nem mais nem menos que a propriedade privada dos meios de produção que vemos manifestar-se quando, em vez de alguns aprendizes, o mestre de ofício recrutava servos, em número cada vez maior, para o auxiliarem no seu trabalho, a quem fornecia utensílios que continuavam a ser propriedade sua, e que fabricavam, para ele, produtos destinados à venda. Por intermédio da exploração da força de trabalho dos operários, as fábricas e as máquinas, propriedade privada do capitalista, transformaram-se em fonte de uma acumulação, imensa e sempre crescente de capital. A propriedade privada desempenha assim uma nova função na sociedade. Enquanto propriedade capitalista, trouxe o poder e uma riqueza cada vez maior a uma nova classe dirigente: os capitalistas; permite-lhes desenvolver poderosamente a produtividade do trabalho e estender o seu domínio sobre a terra inteira. Esta instituição jurídica, apesar da degradação e da miséria dos trabalhadores explorados, surgiu assim como uma instituição benéfica e mesmo necessária, veiculando a promessa de um progresso ilimitado da sociedade.

Pouco a pouco, este desenvolvimento provocou transformações no carácter interno do sistema social. A função da propriedade privada modificou-se de novo. Com as sociedades por acções, cindiu-se o duplo carácter do proprietário capitalista (dirigir a produção e meter ao bolso a mais-valia). Outrora intimamente ligados, o trabalho e a propriedade estão presentemente separados. Os proprietários são, hoje, accionistas que vivem fora do processo de produção, que preguiçam nas suas longínquas casas de campo e que, por vezes, jogam na bolsa. Um accionista não tem ligações directas com o trabalho. A sua propriedade nada tem a ver com as ferramentas de que se serviria para trabalhar. A sua propriedade consiste simplesmente em bocados de papel, em partes nas empresas, que ele nem sequer sabe onde funcionam. A sua função na sociedade é de parasita. A sua propriedade não significa que ele comande e dirija as máquinas (é tarefa unicamente do director), simplesmente, ele pode reclamar uma determinada quantia de dinheiro sem Ter que trabalhar para o obter. A propriedade daquilo que tem em mãos, as suas acções, são certificados que indicam os seus direitos - garantidos pela lei, pelo governo, pela justiça, pela política - de participar nos lucros. Títulos de co-participação nesta grande Sociedade para a Exploração do Mundo, eis o que é hoje o capitalismo.

O trabalho nas fábricas é completamente distinto das actividades accionistas. O director e os quadros todo o dia têm de dirigir, correr por todo lado, pensar em tudo; os operários trabalham e pensam de manhã à noite, pressionados, maltratados. Cada um tem de se esforçar por dar o máximo, por produzir o mais possível. Mas o produto do trabalho comum não é para os que o forneceram. Outrora, os burgueses eram despojados pelos salteadores de estradas. Hoje, pessoas inteiramente estranhas à produção vêm, fazendo valer os seus papéis - como detentores de acções devidamente registadas - apoderar-se da maior parte do produto. Nem sequer têm de fazer o uso da violência, não têm que mexer uma palha: a parte que lhes cabe é automaticamente depositada na sua conta bancária. Quanto àqueles que, em conjunto, forneceram o trabalho, só lhes é deixado um soldo de miséria ou um salário modesto. Tudo o resto se transforma em dividendo levado pelos accionistas. Será loucura? É a nova função da propriedade privada dos meios de produção. É simplesmente o que dá, na prática, a herança da velha lei, aplicada às novas formas de trabalho a que já não está de modo nenhum adaptada.

Pode assim ver-se como, devido à modificação gradual das formas de produção, a função social instituição jurídica se transforma no oposto daquilo que era inicialmente. A propriedade privada que, originalmente, era um meio de dar a cada um a possibilidade de desempenhar um trabalho produtivo, transformou-se num meio de privar os trabalhadores da livre utilização dos instrumentos de produção. Enquanto que, originalmente, esta propriedade garantia ao produtor a possibilidade de dispor do fruto do seu trabalho, transformou-se no meio pelo qual os trabalhadores são desapossados deste fruto por uma classe de parasitas inúteis.

Como é possível que leis tão obsoletas continuem a dominar a sociedade? Para começar, são numerosos os que ainda a elas se agarram, porque pensam que elas garantem a pequena propriedade e a vida das classe médias e de todos os "pequenos" camponeses, artesãos independentes; mas não vêm que, na realidade, são frequentemente vítimas da usura e do Capital bancário, que os tem na mão por intermédio dos títulos de propriedade, devidamente hipotecados. Quando dizem: "sou dono de mim mesmo", querem dizer: "não tenho que obedecer a um estranho". São totalmente incapazes de imaginar uma comunidade no trabalho, ou seja, um grupo onde iguais colaborariam numa mesma tarefa. Mas, e muito mais que isso, se tais leis subsistem é sobretudo porque o poder do Estado, com a sua força policial e militar, as impõe, no interesse da classe dominante: os capitalistas.

Na classe operária, a consciência desta contradição começa a manifestar-se, sob a forma de noções novas de Direito e de Justiça. A transformação do pequeno comércio em grandes empresas faz com que o direito antigo se tenha tornado nefasto e que tenha sentido como tal. Ele ergue-se contra a regra evidente que os que fornecem o trabalho e utilizam os instrumentos de trabalho devem dispor deles para executar e ordenar o trabalho da melhor maneira possível. A pequena ferramenta, o retalho de terra podiam ser utilizados e trabalhados por uma única pessoa e a família. Os que deles dispunham deste modo eram os seus proprietários. As grandes máquinas, as fábricas, as grandes empresas só podem ser utilizadas por um corpo organizado de trabalhadores, por uma comunidade de forças em colaboração. Por isso este corpo, esta comunidade, terá de dispor delas para organizar o trabalho segundo a vontade comum dos seus componentes. Esta propriedade comum não significa propriedade no sentido antigo da palavra, quer dizer, o direito de a usar ou desperdiçar segundo a sua própria vontade. Cada empresa não é mais que uma parte do aparelho produtivo total da sociedade; por isso, o direito de qualquer organismo, ou qualquer colectividade de produtores deverá estar limitado pelo direito superior da sociedade, e tem de ser considerado e posto em prática através de ligações regulares com todos os outros.

A propriedade comum não deve ser confundida com propriedade pública. Na propriedade pública, muitas vezes defendida por eminentes reformadores sociais, o Estado ou outro órgão político é o dono da produção. Os operários não são donos do seu trabalho, são dirigidos por funcionários do Estado que organizam e dirigem a produção. Quaisquer que possam ser as condições de trabalho, quer os operários sejam ou não tratados de maneira humana e com muita consideração, o facto fundamental continua a ser este: não são os operários produtores, mas sim os quadros do Estado, que dispõem dos meios de produção, que dispõem do produto, que dirigem todo o processo de produção e que decidem qual a parte da produção que irá ser reservada para as inovações, para a substituição do material, para os melhoramentos e para as despesas sociais; são portanto eles que decidem que parte do produto social deve caber aos trabalhadores e que parte irão guardar para si. Os operários recebem portanto um salário, uma parte do produto, determinado pelos dirigentes. Sob o regime de propriedade pública dos meios de produção, os trabalhadores são ainda dominados e explorados por uma classe dominante. A propriedade pública é o programa burguês de uma forma moderna e disfarçada de capitalismo. A propriedade comum dos produtores deverá ser o único objectivo da classe operária.

Uma revolução no sistema de produção está portanto estreitamente ligada a uma revolução no domínio do Direito. Baseia-se numa mutação das concepções mais profundas do Direito e da Justiça. Cada sistema de produção é a aplicação de uma determinada técnica combinada com um determinado Direito que rege as relações entre os homens no seu trabalho, que fixa os direitos e deveres destes.

O nível técnico da pequena ferramenta, associado à propriedade privada, implica uma sociedade de pequenos produtores livres fazendo-se livremente concorrência. O nível técnico das máquinas complexas, associado ao regime da propriedade privada, corresponde ao capitalismo. A técnica das máquinas complexas, associada à propriedade comum, implica uma colaboração livre entre todos os homens. O capitalismo não passa de um sistema intermédio, de uma forma de transição, resultante da aplicação do Direito antigo a técnicas novas. O desenvolvimento das técnicas aumentou enormemente o poder do homem; a lei que vinha do passado e que regulamentava a utilização destas forças técnicas manteve-se quase inalterada. Não espanta por isso que ela se tenha mostrado tão inadequada e a sociedade tenha caído numa tal desordem. É este o sentido profundo da actual crise mundial: a humanidade descurou pura e simplesmente a adaptação a tempo das suas velhas leis ao novo poder das técnicas. E é por isso que tem presentemente de sofrer tantas ruínas e destruições.

A técnica é um dado da época. O seu desenvolvimento rápido é com toda a evidencia obra do homem, o culminar normal da reflexão sobre o trabalho, da experiência e da experimentação, de esforços e de competição. Mas uma vez adquirida, a aplicação de uma técnica é automática, independente da nossa livre escolha, imposta como uma força inata da natureza. Não podemos voltar a atrás, como desejaram os poetas, e voltar a utilizar os pequenos utensílios dos nossos antepassados. Além disso, o Direito deve ser fixado pelo homem em plena consciência.

Tal como está estabelecido, o Direito determina, em relação aos homens e ao equipamento técnico, a liberdade ou a sujeição desses homens.

Quando a lei existente se transforma num meio de exploração e de opressão, na sequência do desenvolvimento silencioso da técnica, passa a ser objecto de conflito entre as classes sociais, os exploradores e os explorados. Enquanto a classe explorada admitir respeitosamente que a lei actual é o Direito e a Justiça personificados, a sua exploração continuará a ser legal e incontestada. Mas as massas tomam progressivamente consciência da sua exploração; surgem então novas concepções do Direito. À medida que se desenvolve o sentimento de que a lei existente é contrária à justiça, amplia-se a vontade de transformar e de fazer das novas concepções de Direito e de Justiça a lei da sociedade. Isto significa que o sentimento de laborar no erro não é suficiente. Só quando este sentimento se transformar numa convicção clara e profunda para grandes massas de trabalhadores, quando tiver penetrado todo o seu ser, comunicando-lhes uma firme determinação e um entusiasmo ardente é que poderão jorrar as forças necessárias para a transformação radical das estruturas sociais. Mas isto não passará ainda de uma condição preliminar. Será necessária uma luta longa e penosa para vencer a resistência da classe capitalista, que defenderá o seu poder até ao último extremo e com todos os recursos da sua força; uma tal luta impõe-se para estabelecer uma ordem social nova.