Cartas ao Tenente Severo Fournier

Luiz Carlos Prestes

Nov-Dez 1938


Primeira Edição: ........
Fonte: Problemas Atuais da Democracia, Editorial Vitória, 1947, pág: 23-37.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, abril 2008.
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Primeira Carta
30-XI-1938

capa

F. Escrevo-lhe estas linhas, a fim de que não fique em falta o amigo que lhe prometeu este bilhete. Confesso-lhe porém que o faço com receio — não por mim, mas pela segurança do próprio intermediário. Sei que o senhor é amigo do Dr. B. V.(1*) e tenho fundada desconfiança de que ele esteja ligado à Polícia. Não pense, porém, que esta desconfiança se origine em algum ressentimento pessoal. Tinha o melhor conceito do Dr. V., pelo que conhecia de sua atividade revolucionária no quatriênio Bernardes e, em 1935, ainda pedi ao Major Costa Leite que o procurasse e não poupasse esforços no sentido de atraí-lo para o nosso movimento nacional-libertador. Mas o ódio aos comunistas cegava-o completamente. E qual a razão deste ódio? Será que algum brasileiro patriota poderá negar o desinteresse e o elevado patriotismo de homens como Costa Leite, Barata, Silo Meireles(2*), e tantos outros? Não quero levá-lo à infidelidade com um amigo, mas peço-lhe prudência.

Não sei se o senhor é integralista, isto é, se, como os integralistas, faz, igualmente, do ódio aos comunistas o primeiro objetivo da vida. Escrevo-lhe, porém, porque penso que não. Vejo no senhor, pelo que conheço de sua atitude nestes últimos meses, um homem digno, revoltado contra a tirania que enxovalha nossa Pátria. Comparo-o, mesmo, aos meus bons companheiros de 1924. Muitos deles também pensaram que simples golpes de mão, a morte de Bernardes, por exemplo, seria suficiente para salvar o Brasil da tirania. No entanto, que conseguiram eles com o próprio movimento de 1930? — Substituir Bernardes ou Washington Luís por Getúlio!... Faltava-lhes um programa realmente revolucionário e nacionalista e, mais ainda, um partido organizado que fosse capaz de executá-lo. Mas deixemos estas questões para mais tarde.

Ora, nós, nacional-libertadores, não podemos compreender que na situação atual de nossa Pátria possam homens dignos e patriotas ser contra nós. Se isto acontece é porque algum mal-entendido nos separa e nosso dever é desfazê-lo. Os interesses do Brasil reclamam, hoje, mais do que nunca, a união de todos os brasileiros — única maneira de livrá-lo da tirania e de defendê-lo contra uma agressão estrangeira que se torna cada vez mais provável e ameaçadora. Se o meu passado de revolucionário lhe pode inspirar confiança e se acredita no meu patriotismo, como eu creio no do senhor, escreva-me com franqueza e diga-me quais são os motivos que podem separá-lo do nosso movimento nacional-libertador.

Antes de terminar, algumas palavras sobre a sua saúde. Na situação em que me encontro, nada posso fazer em seu auxílio. Creio, porém, que lhe devo avisar com franqueza que a doença que o prostrou é sumamente perigosa na sua idade e reclama um tratamento e cuidados muito sérios. Empregue todos os recursos de que puder dispor a fim de conseguir a volta para o Hospital; peça a seu pai um médico de confiança para examiná-lo e prescrever o regime alimentar que lhe convém — coisa fundamental no seu tratamento. Digo isto porque a sua moléstia é sumamente insidiosa e a minha confiança nos médicos, em geral, é bem pequena. Saúda-o o patrício P.

Se me escrever, em vez de P. dirija o bilhete a Vila e adote também um pseudônimo.

Segunda Carta

Raul, prezado companheiro.

Algumas linhas somente a fim de acusar sua bondosa resposta ao meu primeiro bilhete. Achei graça na sua homenagem. Compreendo-a, no entanto, porque traz o cunho da sinceridade e traduz todo o seu entusiasmo de moço. Ela me faz lembrar, por isto, os heróicos companheiros que, em pleno coração do Brasil, resolveram fazer do meu nome a bandeira capaz de traduzir os ideais que os inflamavam, e esta recordação muito me comoveu. É em nome deles, portanto, que lhe agradeço.

A sua carta merece uma longa e argumentada resposta que lhe enviarei em bilhetes sucessivos, caso seja isto do seu agrado e não prejudique a calma e a tranqüilidade necessárias à sua cura. Não creio, no entanto, que você seja diferente de mim; os homens habituados à luta só se sentem bem na própria luta. Não é verdade? E esta palestra nos distrairá, enquanto pudermos dispor da gentileza do intermediário.

Por hoje, desfaçamos a última incompreensão que ainda nos separa. A união de todos os brasileiros é o que reclamam, no dia de hoje, os supremos interesses do Brasil. Nesta formulação, como diz, estamos de pleno acordo. Mas unir como? Em torno do movimento da ANL? pergunta você. E eu lhe respondo: Não, meu amigo, unir em torno de um programa simples e concreto que satisfaça às necessidades mais imediatas de nosso povo. Que todos os brasileiros, quaisquer que sejam suas opiniões políticas, suas crenças religiosas, suas tendências ideológicas, unam-se para a luta imediata por este programa de salvação nacional. O programa que propomos é o seguinte:

  1. DEMOCRACIA, isto é, escolha dos governantes pelos governados e absoluto respeito às liberdades populares: liberdade de pensamento, de reunião, de associação, etc.;
  2. NACIONALISMO (não chauvinismo), isto é, medidas práticas que assegurem a nossa emancipação econômica (como a criação de uma indústria pesada e efetivamente nacional) e que facilitem a organização da defesa nacional;
  3. BEM-ESTAR DO POVO, isto é, medidas práticas que assegurem a diminuição do custo da vida e a melhoria imediata da situação de miséria em que definha o nosso povo.

Este, em linhas gerais, é o programa que propomos, estando dispostos a apoiar qualquer governo que o proclame ante o povo e que, efetivamente, o execute. Nesta luta, meu amigo, não devemos ver os homens e apoiar até o próprio Getúlio se, amanhã, compreender a necessidade nacional de um tal programa, e quem lhe escreve isto é o homem que, pessoalmente, tem a Getúlio o mais justificado ódio: você deve saber que foi ele quem mandou entregar a Hitler minha dedicada companheira, em adiantado estado de gravidez.

Esta unidade por um ideal, e acima dos homens e dos partidos, é que propomos. Os homens dignos não se opõem à união em torno de um programa prático, desde que não sejam obrigados a renunciar suas idéias e convicções.

O contrário, isto é, submissão à força e à tirania, não é união, é escravidão. Nós, os aliancistas e comunistas, não pretendemos impor nosso programa a quem quer que seja, mas reclamaremos o direito incontestável de possuí-lo e propagá-lo. Só num ambiente de liberdade, de respeito à livre manifestação de pensamento, poderá nosso povo progredir e elevar ao governo os homens que realmente o representem. E é isto o que queremos e que você, como social-democrata, também não pode deixar de desejar. Será o congraçamento de todos os brasileiros, sem vencedores nem vencidos, para o bem do Brasil. Outra questão, imediatamente ligada à primeira: Você tem razão quando diz que, no momento, toda luta partidária e, extemporânea é favorável ao Getúlio, ou melhor, aos que com Getúlio pretendem consolidar e eternizar a tirania. Mas não deve esquecer também do que há de prejudicial nos golpes armados e conspirações, todos, ao menos, destinados a um fracasso inevitável. Getúlio utiliza tudo isto para reforçar tirania e amedrontar os burgueses pacatos e, por sua vez, Muller, Chico Campos e todos os partidários da tirania tratam de assustar o próprio Getúlio, a fim de que ele não ceda à pressão sempre maior dos que reclamam a liberdade. Você não acredita nas massas, mas esteja certo de que, quando idéias conseguem ganhar as massas, se transformam em forças. O nosso dever é pregar sem desfalecimentos e com a eloqüência dos convictos a necessidade da União Nacional em torno do programa que lhe expus. Ele traduz os mais imediatos interesses do nosso povo e obrigará Getúlio a capitular tanto mais cedo, quanto mais rapidamente conseguirmos desfazer os mal-entendidos que ainda separam os brasileiros dignos e patriotas, isto é, os adversários da tirania que nos humilha e degrada.

Você é militar e sabe, portanto, que nem sempre convém atacar o inimigo de frente. Uma manobra envolvente bem feita pode assegurar a um general um sucesso mais rápido e menos dispendioso, principalmente quando a retaguarda do adversário já recebeu os germes da decomposição. Pois, na política é como na guerra — o essencial é atingir o fim, e imagine você a que frangalho desmoralizado e ridículo ficará reduzido o Getúlio no dia em que todos os brasileiros possam dizer em voz alta o que pensam!

Ele mesmo compreende que depois do 10-11-37, o primeiro passo atrás, que der, será rolar para o precipício do próprio aniquilamento. Por isto ainda está resistindo, apesar da pressão que já sente e que aumenta diariamente.

Mas convém, por hoje, aqui terminar.

Com os melhores votos pelo seu rápido restabelecimento, aperta-lhe a mão fortemente o

Vila.

Terceira Carta

Raul, prezado companheiro.

Retomemos hoje o fio de nossa palestra. Você parece que adivinhou que outros afazeres, talvez, pudessem retardar minha resposta. Foram outras preocupações que me impediram, em parte, uma resposta mais imediata ao seu último bilhete do dia 4. Mas, somente em parte, porque, intencionalmente, também desejei que lhe passasse o efeito desagradável e triste da decepção que involuntariamente lhe causei. Sim; desagradável e triste, porque apesar de ser a vida, em geral, uma seqüência de desilusões, de sonhos que se desfazem como bolhas de sabão, nenhum de nós deixa de sofrer intimamente com cada uma das decepções que se vão inexoravelmente sucedendo, à medida que envelhecemos. Confesso-lhe, porém, que muito me agradou a sua franqueza. É assim falando, claro, dizendo com sinceridade o que sentem, que os homens acabam, afinal, por se entender. Mas vejamos quem é o culpado principal da decepção que lhe causou o meu bilhete. Esta análise servirá, ao mesmo tempo, para abordarmos alguns pontos do programa da ANL que, como diz, são ainda duvidosos para você. Não se admire da minha afirmação inicial, mas o culpado pela sua decepção não sou eu, mas sim você. Apesar de toda a sua admiração pelos meus «feitos», você tinha de mim uma opinião completamente falsa. É que você, como a grande maioria dos que em nossa pátria sabem ler, se deixou enganar pelos meus difamadores. É verdade que os meus adversários raramente citam o meu nome, mas o que é que eles dizem dos comunistas? E os aliancistas para eles, não eram também comunistas? E comunistas não foram, no Brasil, nestes três últimos anos, todos aqueles que não concordavam com a ditadura getuliana? Pois bem; ante essa campanha de calúnias, os que tinham confiança em mim, os que analisavam serenamente toda a minha vida, os que não duvidavam do meu patriotismo, liam as calúnias dos Chatôs, dos Geraldos, dos Getúlios, dos Plínios, e raciocinavam: — P. é comunista e declara categoricamente que o é, logo o comunismo não é isto que dizem os canalhas e bandidos que nos exploram. Mas você, por esta ou aquela razão, não raciocinou assim e pensou o contrário, isto é: P. é comunista, logo o que ele quer é implantar no Brasil uma ditadura sanguinária; enforcar Deus, dissolver a Família, vender a Pátria... Eis, porém, que esta fera lhe aparece, repentinamente, pela frente, quando você se põe em guarda para resistir aos seus ataques, e em vez do rugido de um tigre sanguinário, ouve você o balido de um inofensivo cordeiro. É claro; você não pode acreditar no que ouve, nem no que vê. Debaixo da pele de um cordeiro deve ocultar-se a fera comunista. E decepção, em sua carta, quer dizer hipocrisia, não é verdade? Mas você está enganado, meu amigo. O programa que lhe apresentei não é mais que uma simplificação esquemática, e adaptada ao momento histórico que atravessamos, do próprio programa da ANL. O que os aliancistas queriam em 1935, como querem agora, é a emancipação nacional do Brasil, é uma democracia de verdade e a melhoria das condições de vida de nosso povo. Não quero, no entanto, fazer simples afirmações que, talvez, não o convencessem, porque sei o que foi o mundo de barbaridades que contra nós se disse nestes 3 anos. O Sr. Getúlio Vargas, com toda a responsabilidade do cargo que exerce, disse, por exemplo, no seu discurso à Nação, a 31-12-35, referindo-se a nós, aliancistas, simplesmente o seguinte:

«A dissimulação, a mentira, a felonia constituem as suas armas, chegando, não raro, à audácia e ao cinismo de se proclamarem nacionalistas e de receberem dinheiro da traição para entregar a Pátria ao domínio estrangeiro».

E o Plínio integralista? Lembra-se você o que ele disse no seu monumental e histórico discurso de setembro de 1937, preparando o caminho para o golpe de 10-11-37? É, pois, com a intenção prática de desfazer em seu espírito essa falsa idéia sobre a ANL e, mais particularmente, a meu respeito que lhe mando junto uma carta escrita em setembro ou outubro de 1935(3*). É um dos poucos documentos verdadeiros que constam do nosso processo no TSN. (E por isto não foi publicado pelo governo, nem transcrito na denúncia). Foi mandado copiar, pelo meu advogado, do original que se encontra junto aos autos. Peço-lhe que a leia cem atenção, observando que numa carta particular a um companheiro, como Sisson, seria um absurdo pretender P. enganá-lo.

Adivinho, no entanto, sua última objeção: mas os comunistas não são partidários da ditadura do proletariado? Não é para eles o ideal um governo como o da Rússia soviética? Vou responder, portanto, desde já, às suas objeções. Não pretendo, absolutamente, transformá-lo em comunista, nem quero aqui fazer a apologia do marxismo (isto não quer dizer que você não possa futuramente ser um bom comunista. Na evolução do meu pensamento eu também passei por essa etapa que você, hoje, atravessa). Posso, no entanto, informá-lo que tudo o que se publica sobre a Rússia na nossa imprensa é pura mentira. Talvez ainda possamos um dia conversar com calma e vagar e então eu lhe direi a verdade sobre um país, um povo e um governo que conheço de perto e que estudei aprofundadamente. Mas não é disto que se trata, agora. Nós, comunistas, somos marxistas, isto é, sabemos, através do estudo das teorias científicas que foram desenvolvidas por Marx, que o capitalismo leva fatalmente ao socialismo e que este, na sua primeira etapa, assumirá a forma de ditadura do proletariado. Para os marxistas de antes de 1917 era isto uma opinião teórica ainda não controlada pela prática, mas para nós, atualmente, esta verdade teórica já está confirmada pelos acontecimentos de após-guerra. Assim pensando, porém, não cremos que a ditadura do proletariado seja possível em todo o mundo em qualquer época. O princípio fundamental do marxismo é que em questões sociais e políticas não há esquemas universais.

Cada caso concreto terá a sua solução, de acordo com os antecedentes históricos e a situação objetiva de cada povo. O caso brasileiro pede uma solução brasileira e esta foi justamente a maior lição prática que nos deixou Lenin, encontrando a solução russa para o caso russo. Ora, a situação do Brasil atual é muito diferente da Rússia de 1917. Aqui o essencial, no momento, é romper todos os freios que estão impedindo o nosso desenvolvimento capitalista, implantando democracia de verdade, pela primeira vez, em nossa Pátria, e dando um impulso ao seu progresso econômico e à cultura do nosso povo. Nós comunistas, dizemos, por isto, que a Revolução brasileira está, atualmente, em sua etapa democrático-burguesa. E Lenin diz:

«A revolução burguesa é uma revolução que não vai mais além do marco burguês, isto é, do regime social-econômico capitalista. A revolução burguesa exprime a necessidade do desenvolvimento do capitalismo, sem destruir suas bases, mas pelo contrário, ampliando-as e aprofundando-as. Esta revolução exprime, por tal motivo, não só os interesses da classe operária, como também os da burguesia. Desde que a dominação da burguesia sobre a classe operária é inevitável sob o capitalismo, pode-se dizer, com pleno direito, que a revolução burguesa corresponde mais aos interesses da burguesia do que aos do proletariado».

E é por isso que, no Brasil de hoje, só são adversários conscientes da democracia os grandes fazendeiros mais reacionários, que querem impedir o desenvolvimento da pequena propriedade agrícola, e os agentes do capital financeiro, dos grandes banqueiros estrangeiros, em particular, no momento, do imperialismo mais reacionário, o imperialismo fascista.

Pelo exposto, vê você que nenhum aliancista pode sentir-se decepcionado com o programa que lhe indiquei no bilhete anterior, programa implicitamente contido no manifesto de P. de 5-VII-35, e que foi amplamente desenvolvido pela A Manhã durante sua curta existência. Aliás, a bobagem dos que afirmavam que os comunistas se mascaravam de aliancistas é por demais evidente, porque, se eu quisesse encobrir minhas idéias e convicções, começaria por negar minha adesão à Internacional Comunista. Para que mascarar-me e gritar por debaixo da fantasia o meu verdadeiro nome? Não é tal afirmação supinamente ridícula? É o argumento, portanto, dos que, na falta de fatos, agitam palavras e buscam lançar a confusão. São estas as principais razões pelas quais não posso aceitar as suas elogiosas referências ao meu «desprendimento», ao meu supremo «aperfeiçoamento». Com o programa que lhe apresentei sou simplesmente coerente com as minhas atitudes anteriores, com toda a minha vida de luta contra a reação e a tirania e pelo progresso do Brasil.

Dois outros motivos, no entanto, concorreram, como diz você para agravar a decepção que lhe causou o meu bilhete: abdicar de conspiração e movimentos armados e culminar propondo o apoio a Getúlio. Vamos esclarecê-los. No mesmo documento que acompanha este bilhete encontrara você qual era o meu ponto de vista, em 1935, sobre golpes e conspirações. Uma revolução é coisa diferente. Mas para que uma revolução seia possível, são necessárias condições revolucionárias, isto é, que objetivamente o momento seja revolucionário e que a nova classe que pretende tomar o poder tenha um mínimo indispensável de organização. Não é isto o que acontece atualmente no nosso país, quando nem uma greve é possível e todos os partidos estão redusidos à mais dura ilegalidade. Você mesmo reconhece que o ambiente popular é de apatia. Nestas condições os golpes, no momento atual, só servirão para mudar um tirano por outro, com a agravante de que a desordem ou a guerra civil é desejada e estimulada pelos que dela querem aproveitar para fazer do Brasil uma Abissínia, China, Espanha, Áustria ou Checoslováquia. Hitler não oculta os seus planos quanto ao Brasil e não deixará de aproveitar o menor ensejo para realizá-los. Não sei se você já meditou profundamente sobre as conseqüências do golpe de 11 de maio, caso fosse vitorioso. Na sua primeira carta há um comentário que me faz crer que sim. É quando você, com toda razão, critica os homens sem convicções ideológicas que se uniram: integralistas, de um lado, e chefes pretensamente democráticos, de outro, tendo como único laço de união a luta contra Getúlio. Leve, porém, mais adiante a sua crítica e imagine a vitória do golpe de 11-V-38. Um novo ditador que, unido aos integralistas, implantaria no Brasil o terror fascista. Porque é necessário fazer justiça, às convicções fascistas do Dr. V. e ao nenhum sentimento democrático dos chefes políticos que, se dizendo antifascistas, com ele, no entanto, se uniram. Se você meditar profundamente sobre estas questões, chegará à conclusão de que a derrota de 11-5 foi uma grande vitória do Brasil e, portanto, de você e de todos os que com você, por inexperiência Política, dele participaram, acreditando nos falsos democratas e pensando poder quebrar as fortes convicções fascistas do Dr. V. e de outros ilustres membros do Conselho dos Quarenta.

Sim, porque o Dr. V. para participar do golpe de maio não precisou renegar suas idéias, muito ao contrário, tinha assegurado o direito de reorganizar o seu partido e, portanto, de continuar a luta feroz contra a democracia e pela ditadura de um Plínio ou outro energúmeno qualquer. Ora, ante a alternativa de apoiar Getúlio e a de assistir de braços cruzados a uma aventura que nos poderá levar ao terror fascista e à invasão estrangeira, nenhum democrata poderia vacilar. Ante qualquer ameaça fascista, nós, aliancistas, procuraremos sempre, o outro lado da barricada e apoiaremos portanto Getúlio se ele também estiver do nosso lado. Aqui convém uma observação, porque receio que você não tenha do fascismo a mesma noção que nós, aliancistas e comunistas. E este receio veio da frase de sua carta onde você escreve: «fascismo verde ou vermelho». Fascismo vermelho para você deve ser a ditadura do proletariado, ou, mais particularmente, o atual governo soviético; não é verdade? Não posso, por hoje, ao menos, abordar esta questão e demonstrar-lhe que o governo soviético não é fascista; mas você já sabe que a ANL não pretendia nem pretende implantar a ditadura do proletariado no Brasil e que luta pela democracia burguesa. Portanto, no Brasil só temos a ameaça do fascismo verde, isto é, de um governo ditatorial de um homem que se supõe dotado de qualidades sobrenaturais e que, pela própria mística que pregava, só a poderá impor pelo mais negro terror. Os integralistas não negam que sejam adversários de morte da democracia e proclamam francamente a necessidade da ditadura do «chefe» Não é verdade? Esta é, portanto, a característica fundamental do fascismo. É isso que os separa radicalmente de todos os sinceros democratas. É tanto é isto verdade que não tenho nenhum receio de afirmar que os integralistas convictos, aqueles que realmente odeiam a democracia (e entre eles faço a justiça de incluir o Dr. V.) jamais aceitarão o programa de união nacional que resumi no meu bilhete anterior. (Não aceitarão de público, porque, em segredo e para preparar conspirações, tudo se aceita).

Voltando ainda à questão do apoio a Getúlio, devo dizer-lhe que nós nem por um instante deixaremos de lutar contra a atual tirania e que só o apoiaremos ante medidas concretas, como anistia, convocação de eleições, suspensão da censura à imprensa, etc. Imagine você que Getúlio, ante a pressão popular que aumenta diariamente (talvez você tenha lido o seu discurso aos juizes no dia 8-XII-38, as palavras do tirano contra a anistia traduzem o mal-estar que já lhe está causando a pressão da opinião pública), tome tais medidas. Que devem fazer os democratas? Conspirar para pô-lo abaixo ou utilizar as possibilidades legais para reunir as forças dispersas de todos os democratas e nacionalistas, a fim de conseguir eleger uma Assembléia que represente a vontade nacional e dê ao Brasil uma Constituição democrática? Expor o país a uma guerra civil que, na atual emergência internacional, poderá resultar na divisão do Brasil entre as potências fascistas, ou aproveitar as facilidades legais para apoiar o governo e exigir que o mesmo organize a defesa nacional? Parece-me evidente que nenhum patriota vacilará nas respostas a estas questões.

Agora precisava entrar na questão prática da atividade atual dos que desejam a união nacional pela democracia, mas isto terá que ficar para próxima oportunidade. Este bilhete já está por demais longo, de maneira que vou aqui terminar. Entre o mundo de questões que me sugerem as suas cartas, vou tomando as que me parecem mais úteis ao progresso de nossa mútua compreensão e que, por serem de caráter prático, são de maior utilidade.

Devolva-me em seguida o documento datilografado que junto a este bilhete.

Grato pelo Boletim de informações.

Saúdo-o

Vila.

Quarta Carta
14-XII-38

Raul, prezado companheiro.

Recebi o seu de anteontem. A questão da «decepção» parece que já esta suficientemente esclarecida: não há vantagem portanto em insistir. Creio que entre nós não há razão para suscetibilidades, nem receios de injustiça. Cada um escreve como pensa, mas o outro só pode interpretar pela própria cabeça. Donde a necessidade, às vezes, de esclarecimentos posteriores que num entendimento direto seriam desnecessários. Não insisto sobre programa da ANL, porque o meu intuito com estes bilhetes não é absolutamente o de fazê-lo aliancista. Compreendo perfeitamente que isto não é, presentemente, possível, porque o revolucionário é, antes de tudo, um otimista, e o senhor está, infelizmente, atacado de uma grave crise de cepticismo. (Não vá dizer que sou injusto). O meu desejo, portanto, é ajudá-lo a reagir contra a descrença — moléstia que não se justifica na sua idade. Pensei a principio que seria possível conseguir o seu concurso para a união de todos os brasileiros — causa que se me afigura das mais necessárias no momento histórico que vivemos — mas já compreendi não é isto viável. Sempre, porém, que me for possível terei o maior prazer de informá-lo de nosso ponto de vista sobre os problemas nacionais e mesmo internacionais e, mais particularmente, de desfazer o efeito que naturalmente lhe causou a campanha infame contra nós movida pelo governo e apaniguados. Hoje, por exemplo, vou tratar da nossa questão concreta muito interessante que o senhor levantou no seu último bilhete. Refiro-me ao pretendido auxílio que alguns estrangeiros prestaram ao movimento de novembro. Sei o que se disse e o que foi a onda de chauvinismo bárbaro desencadeada pelo governo; mas pensei que o senhor não se deixasse influenciar por tanta infâmia e que soubesse apreciar os acontecimentos de um ponto de vista mais elevado. Nesta questão também a nossa oposição é radical e receio escandalizá-lo com o que lhe passo a contar. O senhor não conhece, neste assunto, a verdadeira antigüidade e extensão dos meus crimes, mas eu vou aqui confessá-los, como desejaria fazê-lo ante um Tribunal que me quisesse publicamente ouvir. Já muito antes de ser comunista eu aceitava auxílio daqueles que, conquanto não tivessem nascido no Brasil, lutassem a meu lado pela causa que eu abraçara por patriotismo e à qual estava disposto a sacrificar a própria vida. Imagine o senhor que o meu ajudante de ordens na Coluna foi o ex-oficial do exército italiano do movimento revolucionário de São Paulo, em 1924! Vou dar a palavra a Juarez Távora, que não tem nada de comunista e que no 3º volume do seu livro escreve:

«As forças estrangeiras incorporadas ao 3º Batalhão agiram, como combatentes, em Botucatu, nos derradeiros dias de julho e, mais tarde, pela última vez, a 18 de agosto de 1924, em Campo Japonês, próximo de Três Lagoas, no E. de Mato Grosso. Aí, tendo sido destacado, sob o comando do Capitão Kuhn (alemão), para ocuparem, de surpresa, Porto Independência, rumaram por imperícia ou má fé do «vaqueano» que as guiava, sobre o grosso adversário, com o qual se chocaram, durante três horas, em combate sangrento e desigual. Daí por diante, até sua internação no Paraguai, em setembro do mesmo ano, em nenhum combate mais tomaram parte. Apenas o fizeram alguns dos seus oficiais, que, mesmo depois de dissolvida a sua tropa preferiram continuar a combater, sob a bandeira da revolução. Arnoldo Kuhn, Mário Geri, Italo Landuci e Lamberti Sevention, cujos nomes cito aqui, sem nenhum constrangimento, nunca foram, porém — nem creio que jamais alguém os possa encarar como tais — estrangeiros mercenários. Se o fossem teriam abandonado os chefes revolucionários, quando estes já não tinham nenhum recurso para oferecer-lhes, como prêmio de suas dedicações e, pelo contrário, iam exigir, da oficialidade, privações de toda ordem. Se esses homens — alguns dos quais abandonaram em São Paulo posições de destaque — não merecem que se lhes respeite a nobreza do impulso, que os integrou nas fileiras revolucionárias — só pelo fato de serem estrangeiros — então, sejamos coerentes, negando à figura, hoje legendária, de Giuseppe Garibaldi o direito de se ter arvorado em «condottiere» universal dos soldados da liberdade!» (págs. 258 e 259).

Garibaldi, acima citado, participou da gloriosa Guerra dos Farrapos, como comandante da esquadra que atacou Laguna, em Sta. Catarina. Quer o senhor outro exemplo? — José Joaquim de Maia, estudante brasileiro, procurou em nome dos inconfidentes mineiros de 1789 (Tiradentes) Jefferson, embaixador dos Estados Unidos na França, pedindo o auxílio americano para a luta pela nossa independência. Miranda e Bolívar, os grandes libertadores venezuelanos, percorreram a Europa em busca de auxílio para a luta contra a opressão espanhola. Sabe o senhor quem foi o primeiro comandante em chefe da nossa esquadra? — O almirante inglês Lord Cockrane, que ajudou a expulsão das forças portuguesas. Comandava um dos navios da esquadra o Cap. Tenente Greenfeld, também inglês. O senhor desconhecia estes fatos e deixou-se também neste assunto influenciar pela infame campanha policial e dos jornalistas venais que vivem de mãos estendidas para os Misters da Light. Na luta pela emancipação de nossa Pátria não podemos deixar de aceitar e buscar a ajuda de todos aqueles que honestamente queiram lutar ao nosso lado. (Na Coluna, por exemplo, enquanto vários estrangeiros lutaram corajosamente até o fim, o ilustre brasileiro Filinto Muller desertava covardemente no momento mais delicado). Os que dizem o contrário são os patriotas de fachada, incapazes de lutar contra a tirania e que andam em busca de pretexto com que possam cobrir a própria covardia. Mas no caso de Berger, por exemplo, convém ainda notar que ele não só não participou do movimento de novembro, como nem mesmo da sua preparação. O seu papel junto ao proletariado brasileiro foi em tudo semelhante ao desses professores estrangeiros que as classes dominantes chamam para vir lecionar nas suas Universidades. (Com a diferença que os tais professores são pagos com dinheiro do povo e Berger estava arriscando a própria vida). O proletariado brasileiro tem o direito de instruir-se procurando aprender, não as bobagens que lhe ensinam nas nossas escolas, mas a sua ideologia de classe, o marxismo, que, como teoria científica que é, como tal precisa ser tratado. E ninguém estava em melhores condições de nos ajudar nesta tarefa que um culto e experimentado operário, velho lutador contra a guerra imperialista e o fascismo. O proletariado revolucionário aprendia com Berger, como os oficiais do exército aprendem com a Missão francesa, os da marinha com os americanos, como a Polícia chama especialistas estrangeiros, como só com estrangeiros especialistas poderemos fundar a nossa siderurgia, etc. Ninguém nasce sabendo e o mesmo acontece com os povos. O mundo constitui cada vez mais uma unidade e os povos que pretendem levantar muros de isolamento, nada aproveitarão da cultura acumulada nos Séculos pela Humanidade. Lenin não nasceu marxista, foi aprender o marxismo com os revolucionários alemães Marx e Engels. Nós lutamos contra os estrangeiros que nos exploram e não contra os que ajudam o nosso progresso. Os que mais gritam contra Berger são justamente os que nada dizem e nada fazem contra a brutal exploração do nosso povo pelos grandes banqueiros estrangeiros. Outro equívoco seu é o de pretender opor internacionalismo e nacionalismo, quando uma causa não nega a outra. Só se chega ao verdadeiro internacionalismo através a completa independência nacional, porque o contrário chama-se colonização ou escravidão. Os comunistas, em todo mundo, lutam pela emancipação nacional e o caso chinês é bastante típico e atual. Mas nesta questão o seu engano se origina de um erro comum sobre o que seja realmente a I. C. Não vou, no entanto, tentar convencê-lo do contrário, porque compreendo que seria inútil e, como homem prático, repugna-me todo o trabalho improdutivo. Já é uma grande coisa estar certo que o senhor me considera um homem de bem. Dizem tais barbaridades dos comunistas e o senhor me parece de tal maneira sob a influência de tal calúnia que cheguei a pensar que a sua opinião fosse outra. Por isto apresentei o problema bem pessoal do «eu» no meu bilhete anterior. Peço-lhe, porém, me diga se tenho razão nas conclusões lógicas seguintes: um homem de bem pode ser comunista, logo o comunismo ou a I. C. não é um bando de assassinos, ladrões e traidores, porque um homem de bem não poderia pertencer ostensiva ou veladamente a um tal bando. Isto não significa concordar com o comunismo, nem mesmo julgá-lo bom. Significa somente ver no comunismo o que ele é na realidade — uma ideologia política da qual se pode discordar e julgar mesmo perniciosa, mas que luta pelos seus objetivos sem precisar cometer os crimes de que o acusam. Foi para chegarmos a esta conclusão que apresentei no bilhete anterior com tanta força a questão do meu «eu». E esta conclusão me autorizará a pensar que o senhor não considera impossível vir ainda a participar de uma frente única com os comunistas. Mas é necessário aqui terminar.

Aperta-lhe a mão o

Vila.

Não vá pensar que a minha volta ao tratamento de «senhor» seja alguma nova suscetibilidade ante a sua insistência no chamar-me de «senhor»; compreendi ser este o tratamento que lhe agrada.

Vila

Última Carta
19-XII-38

Prezado Raul.

Acabo de receber o seu de ontem juntamente com o livro. Responderei com mais vagar amanhã. Grato pelas notícias. Cumprimenta-o o

Vila.


Notas de rodapé:

(1*) Belmiro Valverde. (retornar ao texto)

(2*) Expulso do Partido Comunista do Brasil em janeiro de 1946. (retornar ao texto)

(3*) Trata-se da «Carta ao companheiro Sisson», reproduzida neste volume. (retornar ao texto)

Inclusão 17/04/2008