A Doutrina Comunista do Casamento

David Riazanov


Capítulo I


capa

O programa do comunismo cientifico referente ao casamento, foi exposto pela primeira vez no Manifesto Comunista. A concepção proletária do mundo está aí oposta à concepção burguesa. Do ponto de vista proletário os fundamentos da sociedade burguesa, compreendendo casamento e família, são criticados nesse Manifesto. Nessa critica Marx e Engels já contavam com predecessores. Eles não foram criadores de um sistema novo, não o tiraram do nada, eles não foram encontrá-lo no fundo da sua inteligência, mas basearam-se nas idéias dos socialistas e dos comunistas, seus precursores, particularmente nas dos grandes utopistas, tais como Saint-Simon, Fourier, Owen e nas dos comunistas materialistas franceses.

As obras e os panfletos desses pensadores e dos seus êmulos apresentavam uma critica tão detalhada da antiga família burguesa e do casamento fundado sobre o direito da propriedade privada, que Marx e Engels não tinham mais necessidade de repeti-lo. Há já cem anos, muito antes do Manifesto, ficou provado que não existia no casamento burguês um elemento sequer, de uma livre união originária, de um afeto mutuo, e que somente em casos particulares, à titulo de excepção, um sentimento livre podia abrir caminho através dos entraves e das cadeias criadas pelo regime burguês. A apologia deste livre sentimento, a reabilitação, a justificação da "luxuria" em oposição à degradação que lhe é infligida pela religião cristã e a moral burguesa; a reorganização da família segundo os princípios da nova vida socialista, tal é o conteúdo dessa critica.

Quando as doutrinas dos grandes utopistas penetraram nos meios operários, estes por sua vez, puseram-se a discutir o problema do casamento e da família. Antes de expor as idéias que Marx e Engels defenderam depois de tomarem contato com os meios proletários, estudemos a evolução das idéias de Marx e de Engels no seu período "pré-socialista".

Do mesmo modo que Engels tornou-se comunista um pouco antes de Marx, este, como todos os intelectuais alemães, devia experimentar a influencia de certas idéias utopistas, já na época em que ele não passava de um democrata politico. Os alemães avançados, particularmente os representantes da "Jovem Alemanha", já estavam muito influenciados pelas doutrinas saint-simonianas referentes à emancipação das mulheres na primeira metade da terceira década do XIX século. Os que conhecem a literatura russa de 1840 não ignoram que poder essas doutrinas exerciam sobre os melhores representantes dos nossos intelectuais liberais, antes deles se tornarem socialistas mais ou menos consequentes. Não somente os neo-hegelianos russos, mas também os alemães, não podiam admitir doutrinas do seu mestre, segundo as quais o homem possuiria uma esfera de atividade que lhe seria própria: funções de vontade, de saber e outras, enquanto que a tarefa da mulher constaria do culto da família e que o casamento representaria um dos princípios absolutos, sobre os quais estaria baseada toda a vida social.

Num dos seus artigos, escritos durante a sua juventude, nas suas Paisagens (julho de 1840) Engels, que contava 20 anos, diz:

"Cedo soará a hora em que os corações das mulheres por-se-ão a bater pelo ideal contemporâneo tão ardentemente como batem hoje pela fé piedosa dos nossos pais"; "as novas idéias não triunfarão senão quando as jovens se nutrirem com o leite de suas mães".

Na qualidade de colaborador, e depois na de redator chefe da Gazeta Renana, Marx teve por duas vezes a ocasião de dar a conhecer as suas idéias sobre o casamento: a primeira, na sua polemica contra a escola histórica do direito, depois a respeito do projeto de lei sobre o divorcio.

"Uma escola, que explica a infâmia de hoje pela infâmia de ontem; uma escola que declara que todo grito lançado pelo servo sob o knout é um grito rebelde, no movimento em que o knout é um knout carregado de anos, hereditário, histórico; uma escola a que a historia, como o Deus de Israel fez para o seu servidor Moysés, não mostra senão o seu avesso... Essa escola histórica do direito, na pessoa de Hugo seu criador, manda submetermo-nos a tudo que existe, pela única razão de que existe".

Marx estudou detalhadamente as doutrinas de Hugo que

"encontrava todo saber e moral, nas instituições duvidosas do ponto de vista da razão, na escravidão e no absolutismo";

ao contrario Hegel declarava que não havia

"nada de razoável no casamento e nas outras instituições da moral e do direito".

Não foi senão recentemente que aprendemos que a censura suprimiu todo um capitulo deste artigo; notadamente o capitulo sobre o casamento.

Graças à amabilidade de um sábio, o professor Hansen, que foi bem sucedido na procura do manuscrito conservado por um colecionador, obtivemos esse capitulo suprimido.

Hugo acha que o casamento era frequentemente considerado como uma instituição mais razoável do que aparece à luz de um estudo aprofundado.

"É verdade, acrescenta Marx, que o Sr. Hugo se apraz em constatar que o casamento satisfaz o instinto sexual. O honrado professor acha mesmo que esse fato demonstra melhor do que todos os outros, o quanto seria injusto afirmar à maneira de Kant, que o corpo humano não pode ser utilizado como um meio para atingir um determinado fim".

"Mas a santificação do desejo sexual por seu caráter excepcional", nota Marx, "sua conexão pelas normas legais, sua beleza moral que transforma o instinto da natureza numa união espiritual, a essência espiritual do casamento, tudo isso inspira a Hugo grandes inquietudes".

Afim de melhor caracterizar "a impudência frívola" do honrado professor, Marx cita a passagem seguinte:

"Mais imprudente ainda é a segunda condição, segundo a qual é interdito satisfazer o instinto sexual fora do casamento. A natureza animal do homem opõe-se à esta proibição. Sua natureza intelectual protesta com mais veemência ainda, porque..." Adivinhai-o!... porque o homem deveria ser quase omnisciente, afim de prever o resultado; porque se propor de satisfazer a uma das mais poderosas necessidades nos casos somente em que se pode fazê-lo com o auxilio de um outro indivíduo determinado, "isso significa: experimentar a providencia!"

Resulta disso que, por antiga que seja, a escola histórica do direito concorda nas suas declarações com as de alguns jovens comunistas, adversários da "honra estampada dos esposos e das esposas".

O criador da escola histórica do direito não via senão o lado "animal" das relações entre os humanos e não contemplava senão o "ultimo" do processo histórico. Do mesmo modo nossos Tircés de hoje que conduzem ao assalto os regimentos dos corações e dos olhos, para conquistar "o direito de amar", não fazem mais do que tagarelar, em prosa rimada ou não, sobre a cultura proletária: na realidade, eles não contemplam senão o "posterior do proletariado".

Segundo Hugo, o casamento tem suas desvantagens mesmo do ponto de vista da ordem social. A ordem social impõe uma tarefa insolúvel à policia dos costumes. Em geral segundo ele o casamento é uma instituição imperfeita. A questão da poligamia e a da monogamia são resolvidas pela natureza animal do homem. "Vós vedes, termina Marx, em que escola a juventude alemã faz seus estudos".

No seu artigo, "O projeto de lei sobre o divorcio", (1) Marx nos revela todos os erros e todas as contradições do projeto prussiano, elaborado em julho de 1842. Ele nota, entre outras coisas, que o casamento não é considerado pela lei como uma instituição moral, mas como uma instituição religiosa e eclesiástica, e que, por conseguinte, a essência laica do casamento é desprezada. Se a lei não pode decretar a moralidade, ela pode muito menos sancionar juridicamente a amoralidade. Se o casamento não fosse o fundamento da família, seria menos objeto de legislação do que, por exemplo, a amizade. Ninguém é forçado a contrair um matrimonio, mas todos são obrigados a se submeterem às leis referentes ao casamento, desde que se casem.

Todo homem que se casa não cria nem inventa o casamento; ele o criou e o inventou tanto quanto um homem que nada inventa, a natureza e as leis da água e da gravidade. Eis porque o casamento não saberá obedecer à arbitrariedade do homem; pelo contrario, este deve submeter-se ao casamento.

Mas o casamento será indissolúvel e os esposos deverão continuar fiéis um ao outro até à morte? Será admissível o divorcio? Segundo Marx, a doutrina hegeliana referente a essas idéias não tem base.

Hegel declara: em si, como conceito, o casamento é indissolúvel, — somente na idéia. Mas este fato não se passa somente com o casamento. Todas as relações morais são indissolúveis no seu conceito, o que poderia ser constatado, supondo-se que elas sejam verdadeiras. Um Estado verdadeiro, um casamento verdadeiro, uma amizade verdadeira são indissolúveis, mas nenhum estado, nenhum casamento, nenhuma amizade correspondem ao seu conceito. Por conseguinte, a amizade, mesmo na família; o Estado real na historia do mundo, o casamento tal qual ele existe num Estado, são também dissolúveis.

O divorcio não é senão uma constatação: tal casamento é uma miragem morta e sua existência não passa de uma mentira. Note-se que não são nem a arbitrariedade do legislador, nem a dos indivíduos que decidem cada vez si o casamento está morto; mas não é senão o estado de fato quem o decide, pois o reconhecimento jurídico do fato da morte depende da essência do fato, e não da vontade dos interessados.

Os postulados, segundo os quais a existência de tal ou qual relação moral não correspondem mais à sua tarefa, serão constatados com razão, sem partidarismo, e segundo as conclusões da ciência e as concepções gerais do direito? não se poderia estar seguro que quando a lei se tornar uma expressão consciente da vontade popular e que ela chegará a viver graças a tudo isso.

0 legislador não pode senão constatar as condições nas quais o casamento já está dissolvido realmente. O divorcio jurídico não pode ser senão o processo verbal desta dissolução interior.


Notas de rodapé:

(1) A Gazeta Renana de 19 de dezembro de 1842. Esse artigo, eu o publiquei pela primeira vez, na edição russa das obras de Marx e Engels. Mehring sempre o ignorou. — (Nota do autor). (retornar ao texto)

Inclusão 02/09/2011