O Caldeirão das Bruxas e Outros Escritos Políticos

Hermínio Sacchetta


O Caldeirão das Bruxas


capa

(Qualquer semelhança com as ditaduras de Stalin e Getúlio não deverá ser levada em conta de mera coincidência)

1a. feiticeira
Sob a pedra dura e fria,
Está o sapo dormitando.
Trinta dias! Quem diria!
Um veneno produzindo
p’ra fazer feitiçaria.

O mal tem um feitiço;
não agrada a vida sã,
é como o feio sapo
que possui um talismã

(Macbeth, Shakespeare:
4º ato, Cena 1ª.)

Fausto
Da mágica infernal repele-me a loucura;
Acaso me prometes cura
Neste sarapatel do qual delírio emana?
Peço conselhos de uma velha indouta?
E me subtrai a vil chanfana
Trinta anos da carcassa rota?

Mefistófeles
Falaste, amigo, com razão extrema.
Há, para remoçar-te, um natural sistema;
Mas noutro livro está escrito,
E é um capítulo esquisito.

(Fausto, Goethe,
1ª. parte da Tragédia “A cozinha da bruxa”,
trad. dej. K. Segall)

Capítulo 1

Paulo recuou como se tivesse recebido violento safanão. Agora, além da silhueta que procurava confundir-se com o poste, logo atrás estava um automóvel com vários indivíduos. Pouco tempo lhe devia restar, antes da batida dos “tiras”. Fechou a porta suavemente, apesar de ter as mãos trêmulas pela emoção, que os longos anos de atividade clandestina no movimento comunista não conseguiram dominar. Mas seu cérebro excitado arquitetou, de pronto, como um dispositivo eletrônico, as medidas imediatas que devia tomar para reduzir as conseqüências da prisão iminente.

Procurando evitar qualquer ruído, a fim de que dona Teresa não percebesse sua volta ao quarto, subiu, nas pontas dos pés, os degraus da escada, com pena da velha pelo que lhe ia causar. Para ela, Paulo não passava de um bom moço, durante o dia vendedor na praça e à noite, guar- da-livros de várias casas comerciais, para ganhar mais uns cobres.

— “Sô” Paulo, dizia ela, muitas vezes, com seu sotaque, quando o via regressar pela manhã — o “sior” ansim se mata. P’ra que trabalhar tanto? Seu casamento inda está longe. Meu Gino casa antes.

Paulo desceu a mala de cima do guarda-roupa e retirou um amarrado de papéis, que deveriam ser destruídos em circunstâncias como aquela. O restante eram alguns livros, sua máquina de escrever e as escassas roupas. Se fosse preso, não seria a primeira vez a ver-se despojado de tudo pela polícia. Com o pacote na mãos, esquadrinhou o pequeno cômodo, para verificar se havia deixado alguma coisa, que, em poder dos “tiras”, pudesse comprometer a organização a que pertencia. Afastou-se do quarto, com um misto de tristeza e angústia porque, fosse ou não capturado, encontrara naquela casa algumas horas de descanso, que o instinto maternal da boa italiana lhe soubera proporcionar.

Apoiado no corrimão, voltou a descer a escada, sem despertar a atenção da velha, cujos chinelos ouvia estalar no piso da cozinha, em seu vai-e-vem infatigável. E como se viesse da rua, foi ao encontro da dona de casa.

— De volta, “sior” Paulo? Esqueceu alguma coisa? — perguntou dona Teresa, que o sentira encaminhar-se para a porta, pouco antes, com os olhinhos espantados e enxugando as mãos no avental.

Paulo fitou-a com ternura. Procurando aparentar naturalidade, para não alarmá-la, respondeu:

— Por favor, se alguém bater, não abra. Antes, deixe-me queimar estes papéis no fogão.

E se pôs, apressado, a rasgar os papéis, metendo os pedaços entre as brasas, com o auxílio de um atiçador, para que fossem inteiramente consumidos.

Perplexa, a velha acompanhava seus movimentos, sem fazer outras perguntas. Quando o último pedaço de papel desapareceu entre as labaredas que se formaram, ela indagou, com voz insegura, como que pressentindo algo de mau:

— Quê está acontecendo, filho? E esperou, ansiosa, a resposta.

Certo de que os beleguins da Ordem Política não iriam poupar de vexames e sofrimentos físicos a velha e Gino, ambos alheios de todo à sua atividade revolucionária, e para reduzir as conseqüências do mal involuntário, que levara àquela casa, volveu, em tom tranqüilizador:

— Nada de grave, dona Teresa. Vendi mercadoria, sem saber que era roubada. E a polícia, agora, me quer prender. Vou viajar por uns dias, até que tudo se esclareça. Se perguntarem por mim, a senhora dirá isso.

Amparado em dura experiência, Paulo calculava que, àquela hora, a turma de policiais ainda estava procurando certificar-se se ele se encontrava na casa. De fato, os “tiras” buscavam eliminar todas as possibilidades de malogro da diligência. O militante comunista se situava na categoria de “dirigente”, era considerado “caça grossa”, cuja localização em São Paulo demandara encarniçados esforços, com “batidas” sucessivas e inúteis. O assalto precipitado à casa, sem sua prisão, seria, mais uma vez, perder-lhe a pista.

Paulo aproximou-se de dona Teresa. E achegando sua cabeça grisalha ao peito, pediu, súplice, certo do que estava reservado àquela pobre gente:

— Me perdoe, dona Teresa e diga “ciao” ao Gino.

Sem hesitação, dirigiu-se para o pequeno quintal. Galgando o tanque de lavar roupa, de um salto se encontrou nos fundos de uma garagem.

Paralisada pelo imprevisto, aturdida, sem compreender aquele desfecho, como uma ave espavorida, incapaz de tomar rumo, a velhinha ficou com os olhos cravados no muro.

Capítulo 2

— Ainda bem! — exclamou Evandro, quando Paulo entrou na sala, onde se agrupavam em torno de uma mesinha três de seus camaradas. E acrescentou: Já íamos dissolver a reunião. Sua falta aos encontros marcados fazia prever alguma coisa de anormal. Marina, depois de tentar vários contactos, se mostrou alarmada. Pelo sim, pelo não — disse ainda, com seu sorriso maligno — a carne é fraca e a borracha do Polaco poderia fazê-lo “cantar”. Não desejávamos desfrutar sua sempre proveitosa companhia...

Sufocado pela fumaça das pontas de cigarros que se acumulavam retorcidas num pires, algumas ainda fumegando, Paulo tossiu enquanto aproximava uma cadeira. Com expressão de desprezo, que não pôde evitar, fixou, com olhos duros, o companheiro, cujas últimas palavras instilavam desdém.

— Mais uma vez me livrei de boa — disse — contando, em seguida, sumariamente, o que lhe ocorrera. Rematou, lamentando o que estaria acontecendo à velha e a seu filho, por certo àquela hora já na Ordem Política sob interrogatório, nas mãos dos “especialistas” de Polaco.

— Ora, camarada, — atalhou Evandro. Vem você, agora, com seu sentimentalismo. O que importa é você ter-se safado da “cana”. A velha e o rapaz que se arranjem. Não receberam, sempre, o aluguel do quarto?

E com sua verbosidade primária, cheia de arrogância de chefe investido de autoridade, pôs-se a fazer digressões sobre “o caminho da Revolução, pavimentado de ossadas humanas” e as “necessidades históricas, que desconhecem sentimentos individuais”.

Como de outras vezes, a insensibilidade daquele militante profissional, incrustado no “aparelho” do partido há muitos anos, estava, novamente, provocando mal-estar insuportável em Paulo. Não conseguia aceitar, serenamente, as reações cínicas de Evandro, sempre que a repressão policial golpeava pessoas envolvidas, de modo involuntário, nas atividades da organização. Considerava-o um mero aproveitador do movimento comunista, já divorciado, emocionalmente, dos objetivos que aparentava defender. Evandro nunca desprezava ocasiões como aquela, para mostrar-se “duro”, um legítimo bolchevique da escola estaliniana que deve sobrepor a tudo o mais — afimava-o com freqüência e enfaticamente, os interesses supremos da Revolução.

Com a palidez acentuada, que lhe tornava o rosto mais lívido, Paulo ia retrucar, quando Henrique, pressentindo novo choque entre aqueles camaradas que se detestavam, se interpôs, conciliatório, sugerindo que se passasse às questões da agenda da reunião.

— Como? replicou Evandro com aspereza. O companheiro Henrique quer ater-se à mesma ordem-do-dia, ignorando essa mostruosa provocação que poderia ter levado, não apenas ao camarada Paulo, mas a todos nós a dar com os costados nos porões da Ordem Política?

Diante do tom rude dessas palavras envolvendo censura, Henrique se fez escarlate, sua timidez inibindo-o de dizer, de pronto, qualquer coisa. Limitou-se a acentuar mais o rito, que marcava, com um sorriso permanente, sua fisionomia, de comum estática, embora sempre ressumando bondade.

— Mas quem falou em provocação? — interferiu Carvalho, acorrendo condoído, em auxílio de Henrique, ao qual considerava — como costumava dizer — “um pequeno-burguês, apesar de burro, inteiramente devotado à causa da classe operária”. E ajuntou: — É certo que, efetivada ou não, a “batida” contra Paulo deve merecer exame e reclama medidas acauteladoras. Mas não me parece razoável que, sem outros elementos, a julguemos resultado de provocação, como faz Evandro.

A opinião do velho operário, líder sindical de sólida autoridade pela bravura pessoal e arguta inteligência, provadas na condução de memoráveis greves, fez arrefecer a arrogância de Evandro, que cortejava, com servilismo dosado de atitudes paternais de mentor, aquele obreiro classificado por ele como o “quadro proletário do Secretariado”. Forçando um ar de serenidade inadequada à sua habitual prepotência de “dirigente nacional”, com postura professoral mal disfarçada, passou a fundamentar a necessidade do exame imediato do “caso Paulo”. Em voz pausada, cantante, alteando as vogais, invocou, com unção eclesiástica, a “vigilância bolchevique”, insistentemente recomendada pelo genial Stalin e pelo chefe do nosso herótico Partido, o querido camarada Prestes. Deu ênfase à referência aos dois líderes, para melhor fazer valer seus argumentos.

Paulo ouvia, com íntimo desprezo, o encadeamento de chavões desse burocrata semiletrado, vazio, empestado de vaidade e pretensões intelectuais. Sentiu uma sensação de desconforto quando Evandro escandiu as sílabas das palavras “vigilância bolchevique”. Em nome dessa fórmula mágica — Paulo o sabia — toda a sorte de misérias e torpezas era cometida pelos carreiristas inescrupulosos contra militantes honrados, que mal ousassem esboçar objeções ou fazer reparos, ainda que apoiados em fatos irretorquíveis, às resoluções emanadas dos grupos dirigentes, fosse o Comitê Central ou se tratasse de simples secretariado de célula. A tenebrosa “vigilância bolchevique”, eficaz como uma regra jesuítica, insinuava-se como um escorpião, de acúleo pronto para picar, em todas as reuniões partidárias e nos contactos pessoais entre camaradas, uns procurando surpreender nos outros dubiedade, “heresias” doutrinárias, oposição à “linha”, não raro tachadas de “desvio” oportunista, traição ou policialismo, ao sabor das conveniências. A fortuna política de um dirigente — Evandro o testemunhava — devia-se, muitas vezes, à combinação ardilosa e bem calculada de servilismo para com os “de cima” e intriga contra os iguais. E a “vigilância bolchevique” era a arma brandida com maior eficiência, em lugar dos argumentos, pelos aspirantes a postos de chefia. Por força do próprio mecanismo partidário, essa diabólica fórmula impregnava a organização de tal virulência infecciosa que mesmo os militantes mais honestos acabavam por manter atitude de permanente suspicácia com relação ao comportamento dos companheiros.

Acolhida a proposta de Evandro, este a completou, pedindo para Paulo apresentar na reunião seguinte relatório escrito sobre “seu caso”. E com o sorriso insidioso, que lhe repuxava a boca larga, concluiu, olhando de viés para Carvalho:

— Vai ver que, no final da história, a velha e o filho aparecerão como “alcagüetas”. Devem ter fuçado os papéis e dado o serviço, para tirar o corpo...

Capítulo 3

Dona Teresa arrimou-se ao batente da porta da cozinha, respirando fundo. A imagem de Paulo saltando o muro, ia-se desvanecendo aos poucos, à medida que violenta depressão lhe afrouxava os nervos. Com passos incertos e amparando-se na parede, procurou uma cadeira. Um tremor lhe tomava todo o corpo, fazendo-a vibrar como se estivesse submetida a forte corrente elétrica.

Para ela, espírito simples, cuja longa existência vinha se arrastando numa sucessão monótona de dias ora mais ora menos amargos, ao lado do filho, que agora ocupava todo seu minúsculo universo, o lance dramático oferecido pela fuga do militante comunista, deixava-lhe inerte, incapacitada para qualquer reflexão a pobre cabecinha. Até aquele instante, a mais forte emoção sentida por ela, fora quando lhe levaram, para enterrar, o marido, remendão alegre e de boa conversa que, em sua banqueta de sapateiro, por meio século, lhe fizera companhia. Os anos se escoavam, mas ela não lhe aceitava a ausência. Estava ainda a vê-lo, em seu canto, martelando, com volúpia, os calçados, sempre a lhe dirigir gracejos, que mal entendia.

— Teresa, olha que pezinho bonito. Deve ser da Vênus de “milho”. E acariciando, com ternura de artesão, o sapatinho feminino, ria-se da própria pilhéria.

Sobressaltada, dona Teresa saiu do torpor em que emergira.

— Nostra sinhôra! Quem será? — balbuciou, levantando-se da cadeira para atender às pancadas insistentes, embora discretas, na porta da rua.

Apenas girou a chave na fechadura, vários homens, atropelando-se e empurrando-a, invadiram-lhe a casa.

Com voz seca e cortante, um deles começou a distribuir ordens.

— Subam vocês. Santana e Januário, para os fundos. Se ele se encontrar no quarto, pode pular o quintal. E cuidado. O homem é perigoso; tentará oferecer resistência.

Polaco, que pessoalmente viera chefiando a diligência, dava instruções, segurando a velhinha pelo braço.

De revólver em punho, hesitantes com a advertência, dois dos investigadores começaram a galgar, cautelosamente, sondando, com os pés, para evitar ruídos, os degraus da escada que levava à parte de cima. Subiam, colados ao corrimão, protegendo-se de uma eventual resistência a tiros.

No topo da escada, depararam com uma porta fechada e outra aberta, quase em ângulo. A um olhar de relance, perceberam que o pequeno quarto exposto era o da dona da casa. Enquanto um deles se mantinha de revólver em punho diante da porta fechada, o outro embarafustava pelo dormitório de dona Teresa, também de arma engatilhada, prevenindo-se para qualquer surpresa. Nada havia debaixo da velha cama de casal, encostada a um canto. Abriu o guarda-roupa, afastando-se ligeiro, como a desviar-se de um golpe esperado.

— O homem não está aqui, disse, num sussurro, de dentro do quarto, voltando ao patamar.

— “Seu” Roberto — gritou, então, o outro, batendo violentamente com a coronha do revólver na porta fechada: Abra!

Nenhuma resposta se fez ouvir. Novos e repetidos golpes, tiveram o mesmo resultado.

— Esse, é dos tipos matreiros. Está esperando que forcemos a porta para nos “chumbar”. Vamos meter o pé e pular de lado. Se tiver alguma arma na mão, fogo nele.

Ao primeiro pontapé, a porta cedeu. Estava fechada apenas com o trinco.

Devassado, com o guarda-roupa deixado deliberadamente de portas abertas por Paulo, os investigadores de pronto se aperceberam que o comunista não se achava no cômodo. A janela cerrada indicava, também, que Paulo não evadira através dela.

Com ar de incontido desafogo de quem se livra de situação perigosa, um dos beleguins gritou do topo da escada para o chefe, embaixo:

— Aqui, o homem não está. E nem fugiu pelas janelas, que estão fechadas por dentro, nos dois quartos.

A resposta foi uma obscenidade vociferada por Polaco, que, tomado de fúria, sacudiu, brutalmente, dona Teresa, cujo braço continuava segurando.

De igual modo, as buscas dos outros dois investigadores nos fundos da casa resultaram infrutíferas.

Descontrolado pelo malogro pressentido, continuando a proferir invectivas contra Paulo e a dirigir insultos à velhinha, que, aterrorizada, mal se sustinha sobre as pernas trêmulas, o veterano policial berrou.

— Vasculhem tudo. Arrecadem, peça por peça, o que se encontrar no quarto desse cachorro. Examinem bem o dormitório da velha, que está se fazendo de sonsa. Deve haver, em qualquer parte, documentos escondidos.

Como cães desaçaimados, em busca de uma compensação para o fracasso certo, os investigadores se lançaram sobre o colchão do leito de Paulo, rasgando-o de alto a baixo, a pretexto de verificar se ocultava alguma coisa. Repetiram o ato, com o travesseiro, despejando, às sacudidelas, num riso canalha, o conteúdo da fronha. Das roupas, livros e outros objetos encontrados sobre a mesa e nas gavetas, fizeram com um lençol volumosa trouxa. A máquina de escrever mereceu cuidados suspeitos, constituindo a parte mais valiosa da pilhagem. A impunidade assegurada pelo estado-de-guerra não lhes garantia apenas os excessos, como lhes propiciava a partilha dos despojos do comunista “caçado”.

Finda essa etapa, arremeteram, com igual bestialidade, contra o dormitório de dona Teresa. O velho colchão, onde, por certo, a pobre imigrante recebera as melhores carícias das mãos rudes do companheiro que se fora, estava, agora, desventrado, expelindo o capim, como vísceras humanas, num prenúncio do desespero de dona Teresa. Revolveram todas as gavetas, lançando ao chão, com volúpia doentia, o que encontravam. Contudo, nada mereceu as honras da arrecadação. Os humildes pertences da velha ficaram espalhados pelo assoalho.

Com sua gente agrupada na sala, Polaco, a voz mansa e aliciante agora, em atitude de quem suplica cooperação, dirigiu-se a dona Teresa, que, encolhida de pavor, se tornara mais miudinha, o rosto encarquilha- do, de uma brancura de morte, afundado entre os ombros:

— Diga, minha senhora. Onde foi parar o Roberto, que se encontrava aqui?

O astuto policial arriscou a pergunta. Não estava convencido de que o comunista, prevendo a “batida”, se tivesse evadido. Admitia que houvesse passado a noite fora e que a “campana”, feita a grande distância, levara seus auxiliares a confundir Gino com Roberto. Assim, a captura deste na casa, permanecia como possibilidade, se desprevenido, regressasse.

A velhinha, cuja vida se lobrigava apenas nos olhos arregalados, moveu os lábios lívidos, numa tentativa de resposta. Sentia-se esvaziada, ausente de si mesma, por uma penosa exaustão. Teria já desabado como um fardo se a mão de Polaco, feito garra, não estivesse mantendo, ainda suspenso pelo braço, o corpo leve. Tudo começava a girar à sua volta e o nome estranho proferido, lhe tornou mais dolorosa a sensação de pesadelo. Daquelas pessoas, mal vislumbrava à sua frente o rosto, de um amarelo cítrico, do policial.

De comum, homem frio e sem emoções, Polaco conservava, calculadamente, dona Teresa de pé, premindo-lhe, com os dedos, o braço magro. Contava vê-la sucumbir ao cansaço, para eliminar toda resistência ao interrogatório preliminar. Todavia, sua longa experiência, que lhe conferira execranda reputação nos meios revolucionários, começava a levá-lo ao desânimo. “Esta mulher não sabe de nada, foi na conversa do filho” — enraivecido. Com um sorriso forçado quase a lhe fechar os olhos maus, voltou à mesma pergunta, mas sem convicção. Roberto nada significava para dona Teresa, que, abismada em confusão e terror, parecia não ouvir.

— Sente-se — convidou Polaco, com fingida amabilidade, levando a velha a uma cadeira.

— E o Gino, onde está?

Ao nome do filho, dona Teresa contraiu-se como se lhe tivessem chegado um ferro em brasa às carnes. Seu rudimentar entendimento de mulher analfabeta, cujo mundo nunca transpusera os limites do lar, reagiu ao estímulo emocional.

— Meu Gino? Está na oficina — balbuciou, entreabrindo a boca murcha.

A resposta se apresentara tão inútil quanto a pergunta. Os investigadores, que lhe haviam rastreado os passos nos últimos dias, mantinham o rapaz sob vigilância. A oficina das poucas palavras de dona Teresa, era uma grande fábrica de tecidos, situada nas proximidades.

— A velha vai conosco vai para ajudar o filho “cantar”. Levem para o carro o que arrecadaram, mas, antes dêem uma busca neste armário. E Polaco apontou para um móvel, ao lado da cama de Gino, que tinha a sala como dormitório.

— Januário e Santana continuam a manter a “campana”. Mas com maior cuidado ainda, porque essas mexeriqueiras estão excitadas e podem advertir, pelo bulício que farão daqui a pouco, o homem, se ele voltar — ordenou, por último, o chefe da caravana policial.

Quando abandonaram a casa, acompanhados de dona Teresa, que, sem consciência de seu destino, ia, docilmente, como uma sonâmbula, os policiais surpreenderam vizinhas debruçadas nas janelas ou buscando por entre as cortinas saber, com temerosa curiosidade, o que se passava. Contudo, o quadro não era novo naquele bairro operário.

Capítulo 4

— Vim em busca de guarida, por alguns dias. Fui despejado — disse, com sarcasmo, Paulo, apertando a mão do amigo, que lhe abrira a porta. Este, sempre parco de palavras quando a paixão do debate não lhe en- candescia o cérebro, volveu, contrafeito:

— Bem, se não houver outro jeito... A segurança aqui é mínima, você sabe.

Paulo assentiu, inclinando levemente a cabeça. E justificou a temeridade:

— Como solução de emergência, é claro. A cainçalha do Polaco está se banqueteando, por toda parte, à nossa custa. Para nós, onde pode haver segurança, hoje? Só muito tarde entrei em contacto com Marina e nos louvamos em seu prestígio, para tomar esta decisão.

Enquanto se dirigiam à biblioteca, Ramos esboçou um sorriso céptico e retrucou, mordaz, separando as sílabas:

— Meu pres-tí-gio! Que fazem no “Paraíso”, no “Maria Zélia” e em outros presídios do país, intelectuais de muito maior renome? Espere e você verá, se não nos acautelarmos ao máximo.

Com expressão sombria, Paulo, de novo, sacudindo desta vez a cabeça, com raiva. Sua loquacidade habitual vinha afogada por todos os dissabores daquele dia. As próprias palavras lhe soavam falso, desnutridas, pobres de sentido. Não lograva afastar do espírito o aspecto de estarrecimento, com que deixara dona Teresa na porta da cozinha, ao transpor o muro. Como fundo desse quadro, ainda lhe feriam os ouvidos os termos desdenhosos de Evandro sobre a mulher. Qual! — se dizia, no íntimo— algo de podre há no reino do “genial” Stalin ou, então, não passo de um imprestável pequeno-burguês sentimental, que só atrapalha. Contudo, em sua memória, aquele burocrata da máquina partidária desfilava, afivelando à face dezenas de máscaras, que, glaciais, articulavam o mesmo jargão e assumiam feições idênticas: Miranda, Soares, Arsênio, Freitas, Raul, Lira, Joel, um préstito de pomposos líderes nacionais do Partido. Por certo, monstruosa prensa mecânica os fazia saltar, de uma única matriz, talhados em “duro” bronze. Reviravoltas bruscas, operadas pela Internacional, poderiam determinar renovação da equipe dirigente mas os padrões de escolha dos novos “quadros” eram sempre os mesmos.

Vendo-o calado, com os sulcos do rosto lívido mais pronunciados, Ramos voltou-se para o companheiro, com simpatia:

— Você chega daquele jeito! Deixe isso para o Polaco, que deve estar pondo bílis por todos os poros.

— Não se trata apenas da “batida” — retorquiu Paulo, com amargura. Cadeia, para nós, são os ossos do ofício. Os fins encouraçam a carcaça e a gente vai tocando a coisa. Mas...

E, por um momento, hesitou em concluir a frase. Queria poupar àquele temperamento sensível, cheio de complicações psíquicas, um impacto emocional, com prováveis conseqüências nocivas para a organização. Decidiu-se, porém, a justificar seu estado de ânimo perante o velho e leal camarada.

— A questão é precisamente esta. Para o marxismo, você sabe tanto quanto eu, meios e fins apresentam inter-relação irremovível, condicionam-se. Isto é elementar. Mas muitos companheiros de responsabilidade não o entendem assim. Acolhem, como bons, todos os meios, ignorando ou procurando ignorar que desfiguram ou, antes, fazem apodrecer, desde logo, os fins.

A entrada de Luisa, com reação de surpresa e sorriso acolhedor, deu a Paulo pretexto para interromper o assunto penoso.

— Você, por aqui? — exclamou, admirada, alongando o primeiro termo, num jeito brejeiro bem seu. Que milagre é esse?

— Nada de maior importância — respondeu, cordialmente, simulando despreocupação. E para não sobrecarregar, inutilmente, a tensa atmosfera que envolvia todo o Partido, improvisou uma explicação, amparada em precedentes:

— Preciso escrever uma história complicada e a biblioteca de vocês me é indispensável, como de costume. Preparem-se para me tolerar, por uns dias.

— Uns dias? Puxa, que bom! Vamos, então, bater longos “papos” — retornou Luisa, com jovialidade.

— Apenas lhe peço para evitar que me vejam aqui. O Ramos me cederá esta sala. Ele já se sente furtado com minha presença — acrescentou, sorrindo constrangido, num tácito pedido de desculpas ao companheiro. Este, de rígida disciplina intelectual, cujas minguadas horas de estudo defendia avaramente, sempre se punha em guarda, ao primeiro minuto, com indisfarçável má vontade, quando o procuravam em seu apartamento. Mas aos poucos, os olhos míopes, mais apertados ainda a denunciar, por trás das grossas lentes, desgosto com a presença do importuno, readquiriam o brilho cordial, iluminando-lhe a cara gorda de meninão amuado.

— O que é irremediável... — replicou o dono da casa, alçando as mãos, em gesto de fingido desalento. Não concluiu a frase, para, a um tempo, confirmar a impressão do companheiro e deixá-lo à vontade.

— Não se preocupe. De raro em raro, um ou outro camarada aparece por aqui, quando precisa fazê-lo. E as maneiras pouco afáveis de Ramos se incumbem de afastar outras visitas, fora de nossa gente — retorquiu, por sua vez, Luisa, à recomendação do amigo. Amanhã, por coincidência — ajuntou, prevenindo — Cordélia virá à procura do artigo para a “Classop”. Mas, com aquela cara hierática de fetiche, ela é de uma discrição embaraçosa, mesmo ao perguntar por você— disse a jovem, fitando Paulo nos olhos.

O calejado militante revolucionário perturbou-se, como um adolescente, aparentando não compreender o olhar carregado de intenções da amiga. Ao ouvir-lhe apenas o nome, a imagem de Cordélia se apossara, bruscamente, de toda sua sensibilidade. Esforçou-se por dominar a emoção que a lembrança daquela mulher provocara. Contudo, não pôde evitar a pergunta, trôpega, com mal dissimulada indiferença. A beleza excitante de Cordélia, que inalterável serenidade e voz pausada e quente mais ressaltavam, queimava-lhe os sentidos.

— Como vai ela, com todo esse terror policial?

— Sempre a mesma. De uma fidelidade inesgotável às tarefas do Partido.

E sem o conseguir, mais uma vez Luisa procurou entender por que Paulo, ainda agora incapaz de ocultar seu interesse de homem por aquela militante exemplar, dela se distanciava, preferindo a áspera e frígida solidão afetiva. No entanto — ela o sabia — o respeito de Cordélia às suas qualidades de lutador vinha envolto em amor, que lhe oferecia, silenciosamente, apenas denunciado pelos grandes olhos cálidos, aninhando sensualidade refreada, ou em um aperto de mão prolongado, como a lhe confessar sentimentos e desejos.

— Época danada esta, que, até mesmo para um só, toma quase impossível sobreviver na clandestinidade — pensou Paulo, com os dentes cerrados, justificando-se.

Luisa afastou-se da biblioteca, prometendo voltar com um cafezinho.

Um silêncio desconfortante interpôs-se aos dois homens, que, por motivos diversos, relutavam em retomar o diálogo, interrompido com a presença da jovem. Paulo concedeu, tacitamente, ao amigo, o direito de suscitar, de novo a questão ou desprezá-la, conforme melhor lhe conviesse. Normas partidárias vedavam, com implacável rigor, conversas pessoais entre companheiros, envolvendo críticas a dirigentes.

Para romper a pesada quietude já incômoda, que aos dois parecia farisáica, Ramos perguntou por Artur, enviado ao Nordeste, a fim de rearticular comitês desbaratados, após o malogro da insurreição nacional-libertadora.

Palavras formais, vagas, despidas de todo interesse, dadas como resposta, quando se tratava de um bravo e querido camarada com quem Paulo partilhara horas atrozes em andanças pelo interior do país, no trabalho comum, fizeram-no sentir que normas alheias aos sentimentos de camaradagem não deviam levá-lo a esquivar-se de uma situação que pressentia angustiosa ao companheiro. E com prudência deliberada, própria de seu feitio quando buscava delimitar assunto candente, tentou situar em termos abstratos a questão formulada pelo amigo:

— Essa história de meios e fins, a que você se referiu há pouco, se impõe ao meu espírito com mais freqüência do que desejo. E para lhe ser franco: mesmo com alguma repugnância, prefiro aferir pelos resultados, a validade dos meios, para não me criar inibições. Tenho a impressão de que a não ser assim, a gente acaba resvalando em um moralismo metafísico, capaz de entravar toda nossa atividade.

Paulo preferiu deslocar o assunto para os acontecimentos da manhã, inserindo, como teste, nas considerações do amigo, a atitude de Evandro a respeito da velhinha. Enquanto falava, surpreendia na fisionomia de Ramos, reações, que, só por si, lhe desvaneciam o pragmatismo postiço, sustentado pouco antes e estranho ao seu comportamento normal. Paulo conhecia esse tipo de “raciocínio condicionado”, infundido, imperceptivelmente e aos poucos, nos militantes comunistas, pela dogmática do Partido. Esforçando-se por manter-se sereno, disse:

— Essa insensibilidade nada tem de comum com a moral comunista. Cheira a bodum de troglodita, isso é que é. Faz a sociedade regredir e não avançar.

— Espere lá — interrompeu Ramos, intimamente abalado com as considerações do interlocutor — o mal de sua crítica é você generalizá-la. Evandro não é o Partido...

Antes que concluísse a frase, o outro atalhou:

— O argumento de sempre. Não é o Partido, sem dúvida, porque os militantes de base inexistem como opinião: são considerados vacas-de- presépio, que devem dizer “amém” a tudo, nada mais. Você pode contar nos dedos os membros da direção que se aventuram sequer a insinuar objeções contra esses métodos. Mesmo nós, acabamos fazendo coro, você bem sabe. Ao cabo, entramos todos no páreo da imprudência, a ver quem se mostra “melhor bolchevique”, “mais duro”, “menos sensível”, ajustando-se ao figurino clássico.

— Você hoje está azedo — observou Ramos, procurando conter-lhe a crescente irritação. — Afinal, Evandro não passa de um ressentido, que, como tantos outros, se fantasiou de comunista para vingar-se das próprias frustrações. Agora, colhido pela engrenagem ilegal, feito peça da máquina que o sustenta, precisa agüentar a mão. Mas, por favor, não generalize.

Paulo se apegou, prontamente, ao argumento, típico daquele intelectual, que procurava conciliar, embora situando-os em planos distintos, Marx com Freud. Assomando-lhe à face um ar malicioso, disse, em tom pilhérico:

— Sua explicação “marcifreudista” me põe mais à vontade para criticar esses proletários de imitação que infestam o Partido, imprimindo-lhe sua própria psicologia.

Logo, porém, reassumindo expressão de severidade, acrescentou:

— A verdade é que, para a gente da espécie de Evandro, o comunismo tem a mesma serventia da folha de parreira para Eva. Mal cobre, ao contrário desnuda as repulsivas deformações morais, que quer fazer valer como ausência de preconceitos.

E descansando a mão no ombro do amigo:

— Velho, certos pequeno-burgueses se meteram entre nós para se espojarem, com mais desembaraço, no charco da própria corrupção, fazendo da doutrina muletas de seus vícios. Com voz tensa, acentuou:

— Recalcados e hipócritas é o que são. Pretendem-se “avançados” mas, na realidade, refletem, no mais alto grau, a desintegração dos valores éticos de uma classe, que, apesar de nada mais decente poder oferecer, eles, simplesmente, invejam, querem ocupar-lhe o lugar. Substituem a luta de classe, por esforço pessoal e já apontam os postes destinados ao enforcamento dos desafetos. O que são é uns pequenos-burgueses reacionários, que resistem, dessa forma, à proletarização.

Ramos, afundado em sua velha poltrona de veludo verde, fitava como de hábito o vácuo, quando se concentrava, acompanhando as amargas considerações do amigo. Quando este silenciou, manteve-se calado, embora os conceitos esquemáticos e contundentes do companheiro sequer em parte lhe satisfizessem a inteligência especulativa, que se recusava a entregar-se, por inteiro, ao materialismo limitante. Subsistiam, ainda, em seu espírito, áreas inacessíveis ao ímpeto apaixonado de membro do Partido, que tudo devia subordinar a um só fim: a Revolução. A esse intelectual, fiel, como raros aos compromissos contraídos, a Revolução era, nada obstante, uma torrente de águas límpidas, que produziria o banho lustrai, por via do qual a sociedade, como um todo, poderia aliviar-se de suas baldas e distorções, se o quisesse. Reconhecia-se herético, mas calava as divergências. Não por covardia, inexistente naquele caráter inteiriço, blindado de inteligência e cultura, que um pendor para o debate manipulava como destreza, emprestando-lhes brilho fascinante. Com o mesmo ardor que punha no desprezo aos valores caducos da burguesia, desejava o comunismo, vendo no Partido, apesar do primarismo teórico de seus quadros dirigentes no país e na Internacional, o instrumento insubstituível para alcançá-lo.

A campainha soou. Os dois homens se interrogaram com os olhos, Paulo franzindo o sobrecenho. Luisa, que vinha, com seus passinhos lépidos, trazendo café, murmurou, despreocupada:

— A estas horas? — E cerrando a porta da biblioteca, foi ver de que se tratava, espiando pelo postigo.

A fisionomia carregada de Marina, indagando de Paulo com voz cansada, fê-la pressupor que as coisas, lá fora, se agravavam. Mas nada perguntou, limitando-se a conduzi-la à sala onde aquele se encontrava. Mal cumprimentando Ramos, Marina, num jeito bem seu, de quem se desincumbe meticulosamente de instruções, puxou o outro companheiro para um canto, entrando a falar-lhe, quase num sussurro, atropelando as palavras:

— Eles desaprovaram esta solução, mesmo em caráter provisório— disse, referindo-se aos outros membros do secretariado. Acham que as condições de legalidade de Ramos estão por um fio e que você pode “cair” com ele. Hoje, ã tarde — não sei se você leu jornais — até parlamentares foram presos, no Rio. Aqui, os “tiras” “bateram” na casa do Carlos, levando-lhe, antes, a mulher. Pouco depois, ele também foi apanhado. Parece que mais gente da direção regional “caiu”. A C.E. lhe arranjou local relativamente seguro. Pelo menos, melhor que este. O carro do Martins nos espera na esquina, à direita. Devemos ir-nos, já. Convém que eu saia primeiro. Cinco minutos depois, você descerá. Nesse meio tempo, eu mandarei pôr o automóvel em movimento e viremos, devagar, ao seu encontro. Se o prédio estiver “acampanado”, as probabilidades de fuga serão maiores.

A mulher arrematou:

— De acordo?

Paulo limitou-se a fazer um sinal de assentimento e ambos se acercaram dos donos da casa, que não estranharam aquela confabulação discreta, à distância.

Sorvendo depressa um cafezinho morno, Marina despediu-se. Quando Luisa, que a acompanhara até a entrada do apartamento voltou para junto dos dois homens, inda pôde surpreender as últimas palavras de Paulo, contando, sumariamente, o que ocorrera.

— Iiiih, você também! fez a jovem, entre agastada e triste.— Não confia nem um pouco na gente. Mas, de pronto, retomando a atitude jovial que lhe marcava a índole, ajuntou, com ar compreensivo:

— Bem, normas são normas e eu não passo de uma militante de terceira categoria. Nem para guardar um dirigente sirvo...

Afagando-lhe a cabecinha de cabelos afogueados, o comunista foi ganhando a porta. Sem tropeços, pouco depois se encontrava na parte traseira do carro, ao lado de Marina, que, ainda num cicio, o preveniu:

— Você vai ficar alguns dias na casa de Cordélia, que os “tiras” não conhecem.

— Mais esta, agora! retorquiu, baixo, o homem, sentindo crisparem- se-lhe todos os músculos.

Ela voltou-se, perplexa, mas nada perguntou. Mesmo se o fizesse, Paulo não lhe saberia explicar aquela sensação indefinida, que dera causa à expressão de contrariedade.

Capítulo 5

O carro de Polaco arrancou, levando dona Teresa, sumida entre homens mergulhados em mutismo sinistro. Cada um deles, a seu modo, re- moía, com surdo rancor, o mau êxito da diligência.

— Madonna, que me está acontecendo? E o almoço do Gino? gaguejou a velha, com voz desfalecida. Os solavancos do automóvel desfa- ziam-lhe aos poucos, o nevoeiro, que lhe imobilizara a razão. Começou a ter uma sensação lacerante de que a afastavam de entre os vivos, arrastando-a para um mundo estranho, de caras inumanas, talhadas em granito.

— E o almoço do Gino? — volveu, agora com firmeza, buscando, de olhos febris, resposta dos policiais.

— Calma, dona — contraveio, ríspido, do banco da frente, Polaco, que ia lendo nos muros, ao longo das mas, sucessivas inscrições dos comunistas, exigindo, em letras graúdas e desiguais, a libertação dos presos políticos. Vez por outra, deparava com “Abaixo a reação policial”, “Viva a A.N.L.”, “Viva Prestes”.

— Esses bandidos não desaparecem — pensou — reproduzem-se como coelhos.

Quando, ainda a boa distância, o enorme portão da fábrica foi divisado, mandou estacar o carro.

— Eu levo a velha. Tomem um táxi e tragam o rapaz. Evitem chamar a atenção.

E, sem outras palavras, o rosto nervoso, mais amarelo do que de comum, enquanto seus homens deixavam o veículo fez um gesto brusco ao motorista para que partisse.

Minutos depois, o porteiro da tecelagem abria a cancela encravada no portão cinzento, alto de vários metros.

— Precisamos ver o gerente — retorquiu um dos investigadores, à indagação do velho, que, com a vasta barriga hidrópica, lhes barrava a entrada.

— Qual é o assunto? — insistiu o homem de ar bonacheirão, avisando que o chefe não os receberia, sem, antes, saber do que se tratava.

Os policiais se consultaram trocando sinais fisionômicos como em código, um deles revelando, por fim, que eram da Ordem Política. E recomendou, insinuando ameaça:

— Só o gerente pode saber disso. Você responde pelas conseqüências, se disser a mais alguém.

O operário, feito porteiro depois de velho, sungou os ombros com indiferença, rumando, em passos tardos, para o escritório, a bambolear, sobre as pernas curtas, o corpanzil já inútil para outras funções. Nos últimos tempos, introduzira várias visitas de igual natureza.

Logo, os investigadores se viram diante do diretor da empresa, que, afável, lhes apontou as poltronas para que se acomodassem.

— Somos da Ordem Política. Devemos levar Gino Borelli — informou um deles, sem circunlóquio, mas em atitude servil.

— O Gino Borelli? — exclamou, assombrado, o homem. Recostando- se, pesadamente, ao espaldar da cadeira giratória, que inclinou, teve um riso estúpido de quem se pilha logrado. E ajuntou:

— Sim, senhor! Comunista, então, aquele cara de cavalo tristonho, que mal fala! Dos outros, levados pela polícia, eu sabia que andavam riscando as paredes e deixando manifestos nos teares. Mas, este? — e repetiu, sibilando os ss: Sim, senhor!

— Para seu governo — retornou, em voz baixa, com ar de mistério, o investigador, procurando valorizar as palavras. — Comunista dos mais perigosos, posso lhe garantir; possivelmente chefe de célula, nesta fábrica. E pediu, solícito:

— Por favor, mande trazê-lo, sem que ninguém se aperceba. Com ele em nossas mãos, lhe entregaremos todos os demais comunistas da empresa.

O homem não teve dúvidas. Prontamente, através do ditafone, ordenou que Gino fosse enviado à gerência.

Sereno, o longo rosto melancólico formando ângulo com o peito, decorridos poucos minutos, Gino se aproximava da imponente e pesada secretária do diretor-gerente. Fitando este timidamente, manteve-se à espera, em silêncio.

— Aqui está o Gino Borelli — disse o chefe da empresa, voltando-se para os policias, sem conter um riso sarcástico, ao observar, com um novo interesse, a “cara de cavalo tristonho” do tecelão.

— Bem, você vai nos acompanhar; para umas explicações — adiantou-lhe o “tira”. — Nada de escândalo, a fim de não agravar sua situação. Estamos entendidos?

Sem compreender a advertência intempestiva e o tom arrogante do investigador, que de servil se fizera autoritário, Gino perguntou imperturbável:

— Explicar o quê?

— Logo você saberá. Vamos andando — rematou secamente.

— Um momento, por gentileza. Vou buscar o paletó e mandar avisar a minha mãe que não me espere para o almoço — pediu o rapaz, com simplicidade. Mas teve um sobressalto, que o pôs pálido de espanto, quando o investigador, apoplético, numa inesperada explosão de cólera, retrucou, crescendo em sua direção:

— Deixe de brincadeiras, “seu” cachorro vermelho! Não nos faça perder a paciência, fingindo-se de bobo.

Atônito, o jovem tecelão ficou sem saber o que dizer. Refreou, contudo, um ímpeto de reação ao insulto descabido. Baixou, desta vez, ainda mais, a cabeça, com um ódio que o queimava por dentro e lhe trazia, à saliva, um gosto acre.

Nesse meio tempo, trouxeram-lhe o paletó, cujos bolsos foram esvaziados pelos policias, que procuravam papéis comprometedores.

Mais uma vez prevenido de que nada fizesse para alertar os companheiros de trabalho, Gino, ladeado pelos beleguins, já com a calma que lhe era própria, transpôs a cancela do imenso portão cinzento, instalando-se, entre os agentes da Ordem Social, no táxi, encostado à calçada poucos metros adiante.

O automóvel partiu, seguido de um silvo prolongado, anunciando a hora de almoço na fábrica.

O gigantesco monstro de aço começou a resfolegar, arquejante, numa lassidão de cansaço, relaxando, lentamente, todos os seus nervos, feitos de centenas de teares.

Anita, que vira o contra-mestre entregar a um auxiliar do escritório o paletó do noivo, se acercou dele, perguntando por Gino, cuja ausência inexplicável já a inquietava.

— O melhor é você procurar saber com o “seu” Garcia — aconselhou o contra-mestre, de modo tão estranho, que lhe transformou a inquietação em angústia.

— Será que puseram o Gino na rua, ou terá acontecido alguma cousa a dona Teresa? — interrogava-se Anita, apressada, rumo à gerência, acotovelando companheiros, que, em grupos, se dirigiam ao pátio, com o almoço em marmitas ou embrulhos.

— Eeeh, que é que te deu! Tá cô pito aceso, hoje, tá? — protestou uma mulher, empurrada por Anita. Esta, nervosa, quase corria.

O gerente recebeu-a de semeblante hostil, medindo-a de alto a baixo. Não esperou que falasse.

— Seu Borelli, hem? Com aquele jeito de sonso, nos tapeou a todos di- reitinho. Agora, vai fazer companhia aos outros comunistas.

— O senhor está doido! — replicou, sem meios-termos, a moça, com os dedos em pinha, às palavras ditas com sarcasmo pelo homem, que saboreava, no íntimo, o prazer da vingança, por sentir-se logrado.

— Trate de saber na polícia. E muito cuidado, se não quiser também, perder o emprego — disse, friamente o gerente, fazendo, ao mesmo tempo, um aceno cortante para que se retirasse.

Ainda que dotada de ânimo forte, temperado em uma infância miserável e sem afetos, Anita não pôde mais conter as lágrimas. Alcançou em soluços estrangulados, o pátio de altos muros, onde, em magotes formados por afinidades, os tecelões comiam sentados no chão, conversando com calor ou, apenas, trocando monossílabos.

— Anita! — chamou, assustada, uma mulher de cabelos grisalhos indo ao seu encontro.— Você está chorando. Por quê?

Outras, alarmadas, acorreram curiosas ou condoídas. Logo homens e mulheres se aguparam, rodeando-a. Anita, já se dominando, mas sem conseguir sopitar a indignação, contou o que sucedera ao Gino.

As mais desencontradas reações acolheram a notícia.

— O Borelli, comunista? Então, minha avó é bonde elétrico...— es- trondeou um rapaz agigantado, contorcendo-se, em gargalhada interminável, com as duas mãos na barriga.

— Que bandidos! Este, é comunista; aquele, é anarquista, o outro, é socialista. Daqui há pouco, estamos todos na “cana”. Tem graça — berrou, enrugando a cara magra, numa expressão de nojo, um ruivo de feições inteligentes.

— Também, se metê em pulítica, p’ra quê? Bem que eu digo p’ro meu Juanino: pulítica é p’ra quem é rico ou num tem familha... — gemeu com voz resignada uma mulherzinha de peito chato.

— Anita, quem não sabe que o Gino não é comunista! tentou consolar, alçando os braços em arco, numa interrogação muda, uma gorducha de vestido preto.

Em pouco, vozearia eletricante tomava a larga área. O “cara de cavalo tristonho”, apesar de arredio e macambúzio, sempre distante das disputas políticas e esportivas, era estimado, pela sua solidariedade tímida, mas presente e constante, nas horas amargas dos outros.

Raros se escusaram de participar das discussões menos tumultuosas, que, aos poucos, foram substituindo o alarido confuso do primeiro momento. Alguns operários se afastaram, discretamente, dos grupos empenhados no estudo das providências, que a prisão de Gino reclamava, atemorizados pelas arbitrariedades policiais do estado de sítio, provadas em parentes ou vizinhos, alguns dos quais mofando nos presídios políticos.

O que restava dos comunistas se juntou, sem que ninguém o percebesse, num canto dos mictórios, para enfrentar a situação explosiva, ameaçando abrir-se em greve de protesto.

— Confesso, camaradas, que não me sinto seguro sobre a posição que devemos tomar— começou, hesitante, o secretário da célula. Uma greve, agora, arrastará dezenas ao “Maria Zélia” e as conseqüências para as famílias vocês sabem quais poderão ser, com o “Socorro Vermelho” quase desmantelado pela reação. Não me parece razoável. Há outros meios de protesto. Penso que devemos evitar essa medida extrema, a menos que os camaradas discordem — concluiu, cauteloso.

— Mas o C. R. já não disse que quanto mais gente estranha ao Partido, nos presídios, mais problemas para a burguesia? — opinou, divergindo, outro, um miúdo de cara enfezada. — Somos ou não somos disciplinados? A resolução do C. R. deve ser cumprida. A greve é o melhor caminho.

Um terceiro, avelhuscado, de face melancólica, interveio conciliatório:

— Não se trata de disciplina, nem de resolução, companheiro Chispa. O camarada secretário tem razão.

E perguntou, num assomo de indignação:

— Nós é que vamos fornecer carne humana à reação e espalhar mais terror ainda? Se o C. R. pensar assim, pode estar errado. A meu ver, precisamos impedir uma greve.

— O C. R. errado?— tornou, escandalizado e enfurecido, o da cara enfezada. — Você sabe o que acaba de dizer? Quem somos nós para criticar a direção do Partido. E muita audácia sua, companheiro! — concluiu, numa ameaça velada, mirando-o de viés.

Um longo e agudo silvo se fez ouvir, chamando os trabalhadores de volta aos teares.

No pátio, a maioria das tecelãs, mais exaltadas que os homens, ignorou o apito estridente, mantendo-se em discussões efervescentes, ao passo que muitos de seus companheiros retomavam às máquinas.

— Gente, olha os soldados! gritou, com voz esganiçada, a gorducha de vestido preto, ainda ao lado de Anita. Houve um reboliço, que o próprio susto conteve.

Os quepes vermelhos dos “choque” da Polícia Especial avançavam, riscando em todos os sentidos, o enorme pátio cinzento. Em alguns minutos, homenzarrões de metralhadoras portáteis em punho, batendo, em cadência, suas botas ferradas no piso de cimento, levantavam uma muralha de corpos musculosos, entre os operários, que se encontravam fora, e o pavilhão, de onde vinham rumores ritmados dos teares já funcionando. Todas as portas de comunicação ficaram impedidas. Com a mesma rapidez, dezenas de milicianos, colados ao longo dos altos muros, tomaram posição, de armas voltadas para os trabalhadores. Enquanto o “choque” se distribuía por todo o pátio, enquadrando os tecelões, “tiras” da Ordem Política arremetiam, de cassetete no ar, contra os grupos de operários, procurando isolá-los e intimidá-los. O imprevisto da surtida policial alcançou, ao primeiro momento, os resultados pretendidos pelos investigadores. Um ou outro grito histérico de mulher em pânico, rompeu a imobilidade de ansiosa expectativa, que a presença daquele bando ameaçador impusera. Mulheres estateladas, de caras espantadas, mal respiravam. Os homens trocavam-se olhares ou cochichavam, alguns mostrando, com gestos, indiferença desdenhosa.

— Quem está encabeçando a greve? — interpelou, com brutalidade, dirigindo-se a uma das rodas formadas, o que parecia chefiar, a caravana policial. — Saibam vocês — berrou, para que todos o ouvissem — que o estado de guerra proíbe greves, principalmente de comunistas. Hoje, já levamos um e é bom que outros se manifestem, para que inocentes não paguem pelos pecadores — disse, acentuando o tom de desprezo e provocação.

— Aqui, ainda não se falou em greve — replicou, resolutamente, o grandalhão, que havia recebido, com gargalhadas de surpresa, a notícia da prisão de Gino. — Estávamos, apenas, comentando a prisão injusta do Borelli, que nada tem de comunista.

— É isso mesmo — secundou Anita, adiantando-se, cautelosa, em direção ao policial. — O Gino é meu noivo e ninguém o conhece melhor do que eu. Que comunista, que nada, pode acreditar— afirmou com calor.

— Muito bem. Então você irá dizer isso ao doutor — redargiu, escarninho, o investigador.

Por que não? — retornou, com firmeza, quase gritando, a jovem. Seu rosto sofrido estava vermelho de choro e raiva.

As metralhadoras e os cassetetes, empunhados por aqueles indivíduos, cujas fisionomias mostravam a disposição de usá-los, continuavam a manter os tecelões em atitude defensiva. Estes sentiam, instintivamente, que qualquer palavra ou ato impensado daria pretexto à cainçalha para dar o bote.

Como ferro entre brasas que aos poucos se torna incandescente o burburinho de vozes sufocadas foi ganhando volume, sob o calor das palavras de Anita que empurravam para dentro de uma moldura real a cara taciturna do preso que, todos os companheiros sabiam, não levava outra coisa na cabeça senão o casamento próximo e a velha mãe. Aqui e ali, uma expressão de protesto, tímida, pouco mais que murmurada, começava a advertir os homens de Polaco que, como nuvens se adensando, a indignação e a repulsa dos trabalhadores ameaçavam explodir em uma tempestade de revolta. Estalos secos, em todos os cantos, feitos pelos “cabeças-de-fogo” destravando as metralhadoras, seguiram-se ao grito do policial, ordenando silêncio.

— “Seu” inspetor — disse, aproximando-se do policial, o comunista avelhuscado, numa recomendação indireta aos operários — ninguém de nós quer complicações. Retardamo-nos no pátio, comentando o erro da polícia. Desejamos, apenas, encontrar...

Mas foi, bruscamente, interrompido pelo “tira”:

— Você não me tapeia com essa conversa mole e esse jeito maneiroso, de comunista pilhado em flagrante. Você, a menina e aquele — e apontou para o grandalhão — estão entre os principais instigadores da greve.

Alguns trabalhadores, impelidos pela tensão crescente, que a arrogância do policial mais exacerbava, foram, involuntariamente, se achegando dele.

— O quê? Querem me agredir? — bramiu, apoplético, abrindo, num gesto nervoso, os braços em círculo, a repeli-los. — Afastem-se de mim, senão isto acaba em sangueira.

Sete ou oito “cabeças-de-fogo” acorreram, aos brados do “tira”, empurrando com os canos das metralhadoras os que o haviam rodeado.

Quando os milicianos lhe tocaram as costas com as armas, o grandalhão desfigurado pela raiva, as faces cobertas de um palor de morte, falou, quase agressivo, com rude impaciência, assustando os próprios companheiros que dele só conheciam as zombarias inocentes:

— “Seu” inspetor, ao que parece, o senhor está procurando pêlo em ovo. Já nos chamou de comunistas e, agora, diz que queremos agredi-lo. Não acha que é demais? E acompanhou a pergunta, sacudindo ambas as mãos, com os dedos abertos.

Receoso dos rumos que o caso ia tomando, o gerente da tecelagem responsável pela presença da polícia, e que se mantivera distante, aparentando desinteresse, se acercou, rapidamente, do policial. Antes que este reagisse às palavras do grandalhão, perguntou, com ar hipócrita:

— Pode se saber o que está acontecendo? Eles devem voltar ao trabalho. Estão bem atrasados.

— O senhor desculpe. A questão, agora, é com a polícia. Já identificamos os principais comunistas e instigadores da greve. Os outros se “amoitaram” mas, não tarda, também os faremos dar as caras.

E, imperativo, com o dedo ameaçador, foi apontando:

— Esta, esse e aquele irão se entender com o doutor. Podem se aproximar, vocês três.

Novo sussurro, marcado com exclamações isoladas de protesto, crepitou, ao passo que os milicianos, secundados por investigadores,iam separando dos grupos os operários indicados pelo chefe da caravana policial.

Para prevenir qualquer reação que pudesse excitar a fúria dos homens de metralhadoras e cassetetes em punho, ostensivamente dispostos a entrar em ação, o avelhuscado voltou-se, calmo, para os tecelões de olhos fixados nos companheiros, algumas mulheres em lágrimas:

— Não há de ser nada, amigos. Espero que tudo se esclareça. Tratem de voltar ao trabalho.

De pronto, Anita e o grandalhão perceberam o que aquele homem, sempre discreto, procurava evitar. Vendo o grandalhão de dentes cerrados e o rosto tenso, de músculos contraídos, a jovem pôs-lhe docemente a mão no braço, numa súplica muda, para que se contivesse, e disse aos colegas, referindo-se ao comunista de feições melancólicas:

— O Edgar falou bem. O melhor é vocês voltarem ao trabalho que tudo se esclarecerá. Emocionada, esboçando, a custo, um sorriso tranqüilizador, ajuntou:

— Nós, comunistas! Que boa piada, não acham?

— Vamos, vamos, vamos — a conversa já passa dos limites — fez, asperamente, em crescendo, o policial, numa ordem aos três detidos. — E, quanto a vocês, antes de sair, queremos ver todos dentro do pavilhão — impôs, categórico, aos demais, confiante no apoio das metralhadoras e dos cassetetes, contra gente inerme, colhida desprevenida.

Quando Anita, Edgar e o grandalhão foram distanciados dos outros operários, o “choque” da Polícia Especial começou, lentamente, mas com brutalidade intencional, a apertar o quadro traçado pelos seus corpos agigantados, impelindo os trabalhadores em direção das portas, que levavam às máquinas.

Dentro do pavilhão, isolado pelos milicianos no primeiro momento do assalto ao pátio, sombria atmosfera, carregada dos mais contraditórios sentimentos, pesava sobre os tecelões, que, como a revelar um acordo tácito, se conservavam silenciosos junto dos teares, aguardando os companheiros, para uma resolução coletiva.

Capítulo 6

Uma claridade leitosa, anunciando o fim da madrugada, envolvia Indianópolis, como descomunal capuz, mal permitindo lobrigar, em um ou outro ponto, silhuetas das raras casas, no bairro residencial que surgia. A quietude cúmplice era violentada, de espaço a espaço, pelo canto de um galo impaciente a querer expulsar os restos das sombras noturnas ou pelos pesados bondes da linha “Santo Amaro” triturando os trilhos, em carreira desabalada.

A um pedido de Marina, Martins estacou o automóvel. Este foi posto, de novo, em marcha vagarosa, como chegara, para passar despercebido.

Paulo, agora a pé, se aproximou da casa indicada, transpondo, com passos cautelosos, o pequeno jardim. A porta lhe foi aberta, sem que precisasse bater. Ao entrar no hall, imerso em penumbra, segurou a mão que Cordélia lhe estendera e, guiado por ela, através do corredor escuro, alcançou um cômodo iluminado.

— Como vai, companheiro? — perguntou. E, sem esperar a resposta, perturbada com a presença daquele homem, que aguardara acordada, durante toda a noite, foi acrescentando, com voz hesitante: — Este é seu quarto. Desculpe a arrumação de última hora. Ainda hoje, levarei o resto de minhas coisas. Agora, vou arranjar-lhe café, para depois você descansar.

O dirigente comunista não se sentia menos perturbado. A sobriedade com que Cordélia se trajava, a ausência total de maquilagem no rosto trigueiro de linhas severas, emoldurado por uma massa compacta de cabelos castanhos repuxados para trás, só faziam salientar a beleza daquela mulher, cujo corpo de sólidas carnes, desenhado pelo vestido simples, lhe desvanecia a modéstia natural, impondo sua feminilidade excitante.

Sem o desejar, Paulo buscou nos olhos envoltos em sombras da companheira, as palavras que ela não dissera ao vê-lo entrar, mas que estavam presentes no contacto de sua mão, ao longo do corredor e no modo de irrefreável ansiedade como o fitava.

— Não se preocupe comigo, obrigado. Deixe o café e vá descansar que é bem tarde — retorquiu, dando uma inflexão de indiferença à voz que, contudo, também lhe saiu vacilante.

— Dentro em pouco, eu estaria mesmo de pé. São cinco horas e às oito entro no escritório. Quero, antes, apresentar você a minha tia, que já está prevenida.

Cordélia foi se afastando, rumo à cozinha, em seu andar elástico, que lhe acentuava a forma dos seios e das coxas, modeladas, a cada passo, pela saia larga.

Extenuado, sob a tensão de quase 24 horas de correrias e discussões, ainda a segurar a pasta contendo algumas roupas conseguidas por Marina, Paulo deixou-se cair, pesadamente, sobre o pequeno leito. Abriu a pasta, com movimentos mecânicos, dela retirando um pijama e outras peças, enquanto tentava examinar a situação que se criava convivendo, mesmo por poucos dias, com aquela companheira em quem via uma fascinante mulher. Mas a exaustão lhe tornava doloroso o raciocínio e uma sonolência irresistível lhe paralisava o cérebro.

Só se apercebeu da aproximação de Cordélia quando esta, vendo-o de olhos fechados, após depor, suavemente, a bandeja sobre uma cadeira, apagou a luz.

— Muito obrigado, Cordélia, mas não adormeci, não. Vou esperar por sua tia.

— Ó, desculpe! — exclamou, com indisfarçável alegria, por sabê-lo a- inda acordado, e girou, prontamente, o comutador, voltando a iluminar o quarto. — Tome café e durma. À hora do almoço, conhecerá minha tia. Você está até transparente, pelo cansaço — disse, carinhosamente, pro- curando-lhe os olhos, já sem conseguir, por mais tempo, fugir ao desejo, estimulado pela intimidade inesperada, de acariciar-lhe, em temerosa confissão de amor, o rosto lívido e angustiado.

Ligeiro tremor da mão, ao estender-lhe a xícara de café, denunciou- lhe a emoção por ver-se, pela primeira vez, a sós, com aquele homem de poucos sorrisos e testa vincada, a denotar constante preocupação. No entanto, a afabilidade para com os companheiros, sua cordial vocação de camaradagem, discreta mas sempre espontânea, contrastando com o frígido trato paternal adotado por outros dirigentes em relação aos militantes de menor categoria, faziam Cordélia pressentir que aquela face sisuda, cheia de inteligência, escondia um coração ávido de afetos, sofreado pela atmosfera gélida, que cercava todo o Partido.

Nas raras oportunidades em que suas atribuições na organização lhe permitiram acompanhar a atuação de Paulo, a lucidez e o brilho deste nos debates, a franqueza com que defendia opiniões por ele considerada justas, ainda que divergentes das posições oficiais, fizeram-na sentir- se diante de um homem de forte e límpido caráter, nisso, também, diferente de certos camaradas sempre prontos a acolher sem reservas nem exame, as mais chocantes e inesperadas decisões da Internacional. Surpreendera-o, certa vez, numa reunião do Secretariado, em que servira como taquígrafa, opondo, claramente, objeções ao pacto LavalStalin, julgado, por ele, ante os companheiros entre perplexos e indignados, nefasto ao proletariado francês. Sem poder ajuizar dessa crítica ao chefe Supremo da Revolução Mundial, Cordélia passou, contudo, a admirar-lhe o destemor, surpreendente, quando a norma era a aprovação unânime, maciça, de tudo que procedesse de Moscou.

Enquanto tomava o café, em goles espaçados, as faces de Paulo se iam contraindo, sem que o pudesse evitar, pela sensação de torpor, que a proximidade de Cordélia, sentada à beira da cama, lhe provocava. Parecia sentir a tepidez de suas carnes morenas, que lhe levavam às narinas um cheiro puro de mulher sadia. Como se estivesse absorvendo um tóxico de efeito lento, aquele corpo apetecido lhe transmitia, aos poucos, um calor de embriaguez, consumindo-lhe todas as resistências ao desejo de afagá-lo, de tê-lo junto ao seu.

Depois de devolver a xícara, Paulo, de olhos semicerrados, pousou a mão sobre a de Cordélia, que, sem retirá-la, a crispou, num fugaz movimento de defesa. O gesto inesperado do companheiro, aparentemente tão alheio aos seus sentimentos, a imobilizou, quase lhe tolhendo a respiração. Os belos olhos cálidos se fizeram maiores, uma assustada timidez anulando-lhe, de todo, a discreta coragem, que a impelira, algumas vezes apenas e, ainda assim, em mudos gestos, a entreabrir o coração a Paulo.

Conservavam-se num silêncio ansioso, fugindo a se fitarem, ambos em busca de palavras que completassem a confissão recíproca feita, agora, pelas mãos unidas.

Foi, ainda, em silêncio, que as duas bocas se procuraram sofregamente.

Passos no quarto contíguo, seguido de rumores de porta que se abria, separaram os corpos enlaçados.

— Ui, minha hora! — exclamou Cordélia, compondo o vestido com naturalidade, o rosto trigueiro a exprimir nova e estranha beleza. — Titia de pé, são sete horas em ponto, no relógio da sala de jantar— ajuntou, dando à voz pausada um timbre de alegria e jovialidade, que nunca lhe ouvira antes. Este, em atitude de encantamento, que o fazia rir de si mesmo, observava os movimentos da bela companheira ajeitando os cabelos.

— De que você está rindo? -— perguntou ela, rindo também, as faces cobertas de um rubor de excitação, livres da tranqüila severidade que a tornava distante.

— De nada, querida. Ou melhor, de mim, que travei comigo mesmo uma prolongada, penosa e inútil batalha. Compreende?

— Confesso que só agora começo a compreender. — E se achegou de Paulo, beijando-lhe a testa fatigada, num mudo agradecimento.

De súbito, desvencilhando-se dos braços que voltavam a prendê-la num misto de voluptuosidade e ternura a que quase voltavam, a sucumbir, Cordélia recuou, de mãos espalmadas, em atitude de defesa, seus olhos, iluminados de paixão, fingindo uma censura. Em passadas ligeiras, segura de si, ganhou o corredor para trazer a tia, dando, instintivamente, ao porte esbelto, o aprumo de quem se sente orgulhoso de uma vitória obtida após obstinado esforço.

Paulo, ainda sentindo na boca, nas mãos, em todo o corpo aquela mulher, que a ele se entregara sem pronunciar uma palavra, com espontaneidade comovente, como se estivesse cumprindo desígnio insondável, teve um minuto de angustiosa apreensão. Não se tratara pensou — da posse efêmera a que o instinto genético impele o ser humano. Para Cordélia, aquela hora de amor se apresentara carregada de ansiedade, por longo tempo acumulada. O prazer físico lhe transmitira, sobretudo, a plenitude de uma integração afetiva. A maneira natural, livre do falso pudor que dissimula a entrega,visto a forma como se conduzira depois de abandonar seus braços, tudo levava Paulo a pressentir, antes inquieto que desgostoso, que Cordélia dele só esperava retribuição sentimental, aceitando, por outro lado, os percalços de suas árduas atividades clandestinas com firme serenidade.

As emoções daquelas últimas horas acabaram por lhe afugentar a fadiga. Avivado pelas reflexões, o cérebro estimulava a sensação de bem- estar que lhe proporcionava o quarto, de simplicidade acolhedora. Com boa disposição de espírito um tanto inexplicável para ele depois dos acontecimentos da véspera, disse, consigo mesmo, um travo de ironia exprobando-lhe a fraqueza: “Bem, velho, ao que parece, adeus celibato. Aceite, agora, a nova realidade”.

Capítulo 7

— Vamos, “seu” Borelli, estamos perdendo tempo à toa — insistiu Polaco, o ódio represado desenhando um sorriso amarelo, que lhe cobria de rugas a cara hepática.

Gino, sentado à sua frente, com os músculos do rosto sem cor relaxados pela exaustão, como a lhe pesarem na cabeça inclinada, olhava, aturdido, para o policial. Alguns investigadores o rodeavam e o datilografo, com ar displicente de quem nada esperava do interrogatório, descansava as mãos sobre a máquina de escrever.

O homem, comumente frio e sem emoções, dominado, agora, pela irritação, voltou-se para o tecelão, com voz cortante:

— “Seu” Borelli, pela última vez lhe pergunto: onde pode ser encontrado o Roberto ou Paulo, como você o chama?

O operário, os olhos enevoados, fitava, com expressão aparvalhada, o retrato de Getúlio, afixado na parede, atrás da secretária. Aquela mistura de Paulo com Roberto, de vendedor na praça com chefe comunista, lhe criava na cabeça uma confusão atroz, não lhe permitindo mais coordenar as idéias para fazer-se entender.

— O que sabia, já disse, senhor — repetiu, mansamente, em novo esforço, que o pôs arfante.

Violenta bofetada, seguida de um soco nas costas, por pouco não o atirando da cadeira ao chão, acolheram as palavras de Gino. Um filete de sangue, manchando-lhe a camisa aberta e o peito, começou a escorrer de sua boca.

— Parem com isso! — ordenou Polaco a Antoninho e Troncudo, fingindo severidade. — O Borelli sabe que não adianta mentir e nos vai contar direitinho toda a história. E ajuntou, destacando as sílabas: Ele não quer ver a mãe e a noiva sofrerem...

Gino, a mão no lábio inferior que começava a inchar, teve um sobressalto, movendo-se, bruscamente, na cadeira, que estalou. Mas nada conseguiu dizer, a cabeça entorpecida zumbindo-lhe, numa dor aguda, sob a pressão das várias horas de interrogatório.

Polaco acercou-se dele e limpou-lhe a boca com um lenço. A intumes- cência do lábio crescia só de um lado, dando às feições melancólicas do operário aspecto grotesco de palhaço tristonho a fazer caretas para provocar risos.

— Esse cachorro vermelho só se “abre” nas minhas mãos — resmungou, impaciente, Antoninho, com lampejos amarelos nos olhos de réptil.

O chefe o mirou significativamente, como a recomendar que esperasse.

— Borelli, sua mãe e a Anita estão naquela sala — disse Polaco, indicando uma porta. Elas já se “abriram” e ficarão aqui até você nos ajudar a prender o Roberto, que é o principal culpado disso tudo. — Fez uma pausa intencional e acrescentou:

— Você não vai querer que eu as mande mofar no porão, não é verdade? Então, conte logo tudo. Precisamos pegar o Roberto e os comunistas da fábrica.

— O que elas vieram fazer aqui? — perguntou, ingenuamente, o operário. A resposta foi um pescoção que, dessa vez, o fez cair de quatro sobre o assoalho, numa posição ridícula de gato que acaba de dar um pulo. Antoninho, frenético, o cobria de insultos, enquanto ele, recuando, tentava levantar-se, todo encolhido como um animal assustado, à espera de outros golpes.

Polaco achou melhor “amolecê-lo, trazendo a velhinha e a noiva, antes que estas não pudessem vê-lo, desfigurado pelas violências precipitadas de Antoninho.

O grandalhão e o comunista avelhuscado estavam, incomunicáveis, cada qual em seu xadrez, no rés-do-chão da Superintendência da Ordem Política e Social, para a fase seguinte do inquérito.

— Traga a velha e a noiva — ordenou a Troncudo, parceiro do espancador na parte “suja” do interrogatório.

Amparada por Anita e Troncudo, dona Teresa, mal se sustentando sobre as pernas quando entrou na sala de Polaco, recobrou, contudo, ânimo para correr até Gino.

— Você se machucou, meu filho? — exclamou, com voz entrecortada, vendo-lhe o lábio grosso e arroxeado e a camisa suja de sangue. E se pôs a tremer, os olhinhos aterrorizados, cobertos de lágrimas.

— Não foi nada, mãe. Se acalme.

Sufocado de emoção pela presença da velha, que lhe pareceu ainda mais frágil, teve vontade de colhê-la nos braços e beijá-la. Mas só uma fugaz expressão de ternura no semblante soturno, pôde vencer a timidez e o pudor que sempre lhe afogavam o desejo de expor seus afetos. A cara sorumbática, agora mais disforme, procurou esquivar-se da indagação ansiosa de dona Teresa.

Depois de fazê-la sentar-se ao lado do filho, enquanto Anita, proibida de comunicar-se com o noivo, era mantida a um canto da sala, Polaco, aparentemente calmo, se dirigiu a dona Teresa:

— O Gino não quer nos dizer como encontrar o Paulo, nem quais são os comunistas da fábrica onde trabalha. Peça a ele que nos ajude.

— O “siô” Paulo? Não é ladrão não; é um bom moço — retorquiu a mulher, que, ao ouvir o nome do comunista, se voltou para o policial, parecendo, agora, compreender de que se tratava. Este, aproveitando-se da reação inesperada de dona Teresa, crivou-a de perguntas. Contudo, em sua meia-fala, de raros termos italianados, além do episódio da fuga pelo quintal, ela nada mais acrescentou ao que já dissera o filho. Os pacientes esforços de Polaco, estimulando-lhe a memória e o pensamento, foram desenhando, pedaço a pedaço, na imaginação do chefe dos investigadores, o perfil inesperado de um homem discreto, com casamento marcado e, por isso, infatigável no trabalho que, muitas vezes, se prolongava até alta madrugada. Antoninho e Troncudo, de pé atrás de dona Teresa, acompanhavam os movimentos fisionômicos de Polaco, sem esconder como se divertiam com os resultados do interrogatório, feito a sacarrolha. Para provocar a fúria do chefe contra os presos, o especialista em torturas chegava mesmo a encher as bochechas e pôr a mão na boca, retorcendo-se, como a sufocar uma gargalhada.

— Basta, basta, dona Teresa — disse, meneando a cabeça com desalento. — Nós faremos seu filho contar a verdade.

A velhinha, reanimada aos poucos pela conversa, que lhe diminuíra a turvação do espírito, não percebeu a ameaça, pedindo, suplicante:

— Deixa a gente ir agora p’ra casa, senhor. O Gino ainda não almoçou.

Polaco nada respondeu, limitando-se a fazer um sinal a Troncudo para que a levasse de volta à sala contígua.

Quando sentiu que a pegavam pelo braço, levantando-a da cadeira, a mãe do tecelão interrogou, com os olhos espavoridos, primeiro Gino, depois Anita, deixando-se arrastar pelo “tira”, a cabeça, quase branca, teimosamente voltada para os dois jovens, até desaparecer por trás da porta.

— Senhor, que pretende mais! Já não lhe dissemos tudo? — perguntou Gino, fixando, angustiado, a porta que se fechara.

— Cale-se — berrou Polaco, rosnando, entre os dentes, um palavrão. Mordendo os lábios lívidos, avisou: — Agora você vai se “abrir”, de qualquer jeito. É para liquidar com vocês que o Presidente decretou o estado-de-guerra.

— Uns monstros é o que vocês são! — gritou, desesperada, de seu canto, Anita, entregando-se a um choro convulsivo, que lhe abalava todo o corpo.

As palavras estridentes da moça, que, longe da mesa, estava meio esquecida, causaram um susto nos “tiras”.

— Você aí. Pare com essa manha histérica! — ordenou, brutal, Antoninho, antecipando-se ao chefe.

O “cara de cavalo tristonho” não pôde mais refrear-se. As mãos presas, nervosamente, uma na outra, falou aos arrancos:

— Os senhores estão cometendo uma grande injustiça. Com ou sem estado de guerra, podem fazer de nós o que bem quiserem. Mas se eu sair vivo daqui...

Não terminou o que dizia. Antoninho, Troncudo e dois outros se lançaram sobre ele, aos murros e bofetões, pondo-o, em poucos instantes, no chão, com a cadeira por cima.

Desvairada, aos gritos, Anita correu em auxílio de seu noivo, procurando, com pontapés e arranhões, afastar os “tiras”, que o pisavam. Um safanão de Antoninho a atirou contra a secretária de Polaco. A tecelã vacilou sobre as pernas, agarrando-se à mesa para não cair também.

O chefe das investigações, que tinha por hábito blasonar, vaidosamente, diante de intelectuais presos, seus “métodos científicos” na preparação dos inquéritos, sentia-se, agora, contrafeito. Achava prejudicial a suas pretensões de policial sagaz presenciar violências cometidas contra presos, por auxiliares. Que estes o fizessem, considerava, muitas vezes, necessário, mas não sob sua responsabilidade direta.

— Acabemos com isso! — fez, ríspido. — Nada de violências.

Gino levantou-se com dificuldade, conservando-se de pé, apoiado no espaldar de uma cadeira, enquanto Polaco, para diminuir os efeitos das sevícias sofridas pelos dois jovens, ordenava que Anita e a velha, já consideradas inúteis para as investigações, fossem postas em liberdade.

— E o Gino? — perguntou a tecelã, voltando-se para o rapaz, numa interrogação muda. Este moveu a cabeça, como a dizer-lhe que conviria submeter-se à situação.

— O seu noivo vai depois. E é bom que você conserve o bico calado, para não complicar o caso. Você pagará por qualquer novidade que surgir na fábrica, compreendeu?

Polaco havia sido informado de que tensa expectativa dominava na tecelagem.

De onde estava, Anita despediu-se do noivo, acenando-lhe apenas com a mão. Quis poupar-lhe maior sofrimento, vendo-a impedida de falar pela emoção.

Quando a tecelã foi retirada da sala, o policial segredou qualquer coisa a Antoninho. O espancador, de cara fechada, ganhou o corredor em passos céleres.

— Agora, você vai ver seu chefe, mas não fale com ele sem minha autorização.

Ao aviso de Polaco, Gino não teve nenhuma reação, o rosto de uma apatia estranha, como se tudo aquilo não lhe dissesse mais respeito. Manteve a imobilidade pétrea da face, quando Polaco, de braço estendido, aproximou dele a carteira de cigarros, convidando-o a fumar. Observava, de novo, o retrato de Getúlio, com a faixa presidencial.

Minutos depois, o “avelhuscado”, seguido do “tira”, entrou na sala, a placidez de sempre na cara enrugada.

— “Seu” Edgar, o Borelli nos contou toda a história e, também, encontramos papéis na casa dele. Já mandamos buscar os outros comunistas da fábrica. Para simplificar as cousas, convém você começar a fazer suas declarações.

O comunista percebeu, imediatamente, a provocação de Polaco. Nem mesmo se voltou para o companheiro da fábrica que, espantado com as palavras do policial, o mirava de olhos arregalados.

— Que história e de que declarações se trata? — retorquiu, tranqüilo, o comunista, prevenido pela experiência, dos vários rumos que o interrogatório poderia tomar.

— Ora, “seu” Edgar... Você não pretende brincar aqui na polícia, não?

O “avelhuscado” se fez de desentendido. A advertência do chefe animou Antoninho e Troncudo que, logo, se chegaram perto do homem, quase a lhe tocarem o corpo, para intimidá-lo. O espancador resmungou um insulto,também ignorado por Edgar.

Gino acompanhava tudo aquilo, sem se mover, a respiração pesada si- bilando através das narinas. Suava na testa, no nariz e em volta da boca.

— Repito que não sei de que se trata. Longe de mim a intenção de vir brincar aqui, é claro... — disse Edgar, imperturbável, a voz neutra.

O controle dos próprios nervos pelo comunista, começava a aumentar a exasperação de Polaco. Este sentira em suas palavras um tênue matiz de ironia.

— Bem, pelo jeito, “seu” Edgar, você quer me irritar, mas não estou disposto a perder mais tempo com vocês dois, agora.

Levantando o queixo, o policial abriu os braços, num gesto largo, em sentido horizontal, a indicar a Antoninho que dava por suspensa, provisoriamente, a fase “científica” do interrogatório. O espanca- dor e Troncudo compreenderam o gesto do chefe, atribuindo- lhes,tacitamente, a execução, por diferentes meios, da segunda etapa da investigação.

Acompanhados de outros beleguins, os dois “especialistas” se encaminharam com os presos para a sala das “sessões espíritas”, num desvão isolado do enorme edifício da Superintendência da Ordem Política e Social. Edgar e Gino, ladeados por investigadores, iam separados, para que não trocassem palavras.

O avelhuscado olhava, comovido, para o companheiro, encorujado num canto do elevador, a cara feia já desfigurada, antes mesmo de passar pela “sessão espírita”. Reconduzia, mentalmente, Gino, para junto dos teares, amassando, desinteressado, os volantes, distribuídos pela célula comunista, sempre com a mesma reação, se alguém procurava comentar: “Devo pensar na velha e no meu casamento...”. Contudo, nunca recusava a solidariedade aos companheiros em situação difícil ou nas disputas por melhores condições de trabalho. Edgar compreendia-lhe a índole arredia e o apego à velhinha, justificando-o perante outros comunistas da tecelagem que o desprezavam pelo “oportunismo” e “passividade”.

— É um jovem inexperiente, mas de bom caráter, com o tempo acabará entendendo...

Edgar o via, agora, fechado em seu mutismo de costume, o semblante atormentado como a se interrogar sobre que mais aquela gente pretendia dele.

O avelhuscado ignorava os acontecimentos da manhã em casa de Gino, bem como a existência de Paulo, cujas atividades transcorriam em outras esferas do partido. Mas não tinha ilusões quanto ao que lhes estava reservado, entregues às mesmas mãos pelas quais haviam passado outros presos, recolhidos, depois, ao “Maria Zélia” e ao “Paraíso”, as marcas no corpo a denunciar torturas sofridas, desde cautérios de ferros em brasa nas carnes ou estiletes embaixo das unhas, até a compressão dos testículos, com uma torquez dentada. A palmatória, fazendo das mãos duas bolas negras de sangue coagulado, era o quinhão mais generoso.

Uma série fantasmagórica de requintes selvagens, engendrada pelos cérebros de Antoninho e Troncudo para extorquir confissões, não obtidas pelas vias “científicas” de Polaco.

— “Que isto me aconteça, vá lá — dizia-se, resignado, Edgar — mas a este pobre rapaz...”

Capítulo 8

Hirto e atento, o garção aguardava junto à pesada etagère de jacarandá, que algum convidado esvaziasse o copo de whisky ou bebesse o licor, para oferecer-lhe nova dose, com discreta solicitude.

A conversa, entre os homens, tateava ainda rumos, saltando das vitórias fascistas na Abissinia, com os dez mil etíopes massacrados em Tembien, para a alta do dólar, sem lograr fixar-se em algo capaz de concentrar o interesse daqueles vários tipos de mentalidades, reunidas pelos negócios comuns.

A um canto, dona Leocádia, num vestido de lamé, onde os brocados desenhavam figuras esquisitas, agrupava a seu redor senhoras em toaletes de soirée, ombros descobertos e decotes acentuados nas costas, a divergirem sobre as linhas “pára-quedas” e “acampanalada”, patrocinadas por Schiappareli, Lanvin e Leheng, em Paris.

A ampla sala de estar, decorada com meticulosa sobriedade por algum expertde gosto apurado, rescendia a fragrância de perfumes raros, que a fumaça dos charutos e cigarros não chegava a afastar.

Um chilreio de timbres dissonantes vinha das jovens, cercadas pelos rapazes, a comentar, acaloradas, a coroação da “Rainha do Carnaval de 1936”, no baile de gala do Teatro Municipal. Aos gritinhos, empenhavam- se em fazer prevalecer suas preferências, algumas proclamando a suntuosidade do vestido de cetim branco e longa cauda, usado pela senhorita Messias Ferreira Almeida, a “rainha”, cuja cabeleira empoada lhe emprestara um toque de autenticidade real.

— Ó Lúcia — disse para a mais exaltada, uma loira esgalga de seios aguçados, com um vestido de cbiffonverde elétrico, bem pegado ao corpo, descendo-lhe até os pés. — Tenha paciência, a sua Messias não passa de uma caipirinha. Você devia ver como estava maravilhosa de “Madame Dubarry”, a senhora José Martinelli. Obteve o primeiro prêmio no baile de gala do Municipal — carioca. Mas também, dizem que a fantasia custou verdadeira fortuna...

Um dos rapazes atalhou, com ar gaiato e malicioso:

— Desta vez não foi Luis XV que pagou, disto estou certo.

Risinhos agudos e repetidos, para acentuar que a piada fora compreendida, acolheram suas palavras.

A disputa dos moços terminou com os pares a saírem em busca de recantos ermos no parque em que se encravava, no Pacaembu, a mansão do principal acionista e diretor-presidente da Tecelagem “Santa Leocádia".

Dora e Raul, os primeiros a alcançar o vestíbulo, lobrigaram, num desvão, Vitor com os dedos enterrados nos cabelos de Celina, debruçado sobre seu corpo, a sugar-lhe a boca carnuda.

— Aquela pretende ir longe — sussurrou Raul, sorrindo cinicamente. — Para casar com os milhões da “Santa Leocádia”, quase toda noite oferece ao Vitor um orgíaco banquete de amor.

— Com o pai que tem, não é de admirar... O “seu” Garcia acha pouco ser diretor-gerente; quer ser, também, diretor-superintendente da fábrica — retrucou a jovem, num misto de despeito e desdém.

Novos casais transpuseram o vestíbulo, um ou outro dirigindo gracejos aos dois que, agora, fingiam uma conversa inocente, sentados, com simulada displicência, em cadeiras de vime.

A voz enrouquecida pela excitação, Vitor convidou Celina para um passeio, longe daquela gente — disse. Sem uma palavra, ela o seguiu até o Buick estacionado, a poucos passos, de uma alameda do parque, mergulhado na semi-obscuridade. Seus olhos, ligeiramente oblíquos, de felino, como Vitor costumava dizer, tinham, naquele momento, um brilho estranho, mais lhe embelezando o rosto alongado que uma tênue sombra de obstinação, sempre presente, endurecida, dando-lhe um tom de insensibilidade. Enquanto iam para o carro, Vitor já sentia nas mãos gulosas, a quentura das carnes de Celina, arrepiando-se com suas carícias estudadas. Sabia onde a jovem queria chegar, mas ria-se, por dentro, das pretensões ambiciosas dela. Contudo, a complacência interesseira de Celina acabara por viciá-lo. Precisava, diariamente, dessa “dose de libidinagem”, como do cigarro; chegava mesmo a confidenciar aos amigos, desfrutando a filha do diretor-gerente, com gabolice canalha, sem omitir pormenores.

Ouvindo-lhe contar as intimidades escabrosas, os rapazes se deliciavam a pedir outras minúcias, alguns deles arquitetando, secretamente, planos para conseguir a vez de refocilar naquela “fêmea infernal”, como se referiam à jovem.

— Ora, mamãe — deixe de bobagens. — Você quer que eu passe pelo que você passou? — retrucara repetidas vezes, Celina, com frieza desdenhosa, quando a esposa do diretor-gerente lhe censurava, sem muita convicção, as liberdades que concedia ao Vitor. — Papai, ainda hoje, não deixa de ser um contínuo de luxo. Não esqueço as humilhações e privações de minha infância. Quero muitas toaletes, automóvel e palacete, e vou conseguir tudo isso, custe o que custar.

Dona Dulce, diante da cumplicidade disfarçada do marido, limitando- se a advertências condescendentes, procurava afastar de si a inquietude angustiosa, que o comportamento da filha lhe causava, chamando-se de antiquada, ardendo-lhe, ainda, como uma queimadura, a simples lembrança do passado de pobreza. Afinal — pensava, para tranquilizar-se — Celina era mesmo uma beleza, valendo bem alguns dos milhões de “seu” Figueiredo. Não como ela, boboca apaixonada pelo Garcia, por longos anos dentro de casa, sem empregada, feito escrava. Mas que a menina, pelo menos tivesse cuidado — suspirava, apreensiva. Não fosse além dos limites com aquele debochadinho a dar-lhe presentes valiosos e a sair com ela toda noite, sabe Deus para onde e fazendo o quê.

A atmosfera de doce fastio, produzida pelo jantar e os drinks dominava a sala de estar, quando o diretor-gerente da “Santa Leocádia”, aproveitando-se de uma frase gratuita do dr. Djalma, se referiu à greve na tecelagem, para dizer, também, alguma cousa.

— É, “seu” Garcia, de fato, o senhor nos arranja isso, agora que se acumulam pedidos até do estrangeiro — disse, turvando a fisionomia, o presidente da empresa.

Diante da expressão amarga de Figueiredo, o gerente gaguejou algumas palavras, tentando explicar que não lhe cabia nenhuma culpa, que se limitara a chamar a Ordem Política, que os comunistas haviam provocado os investigadores...

— O mal está, mesmo, é no meio-govemo do dr. Getúlio — cortou, com sua concisão seca, o diretor da Metalúrgica “Condor”.

Uns e outros, admirados ou perplexos, o miraram, como a aguardar que o poderoso líder industrial justificasse a intempestiva restrição a um governo, sob o qual estavam ganhando dinheiro como nunca.

O dr. Álvaro da Cunha não se fez esperar.

— Pagamos pela magnanimidade do Presidente da República, que se limita a mandar prender uns poucos de comunistas, quatro ou cinco deputados, e tolera um parlamento inútil, repleto de falastrões, pagos por nós, incitando o povo à subversão da ordem.

A autoridade do dr. Álvaro mantinha a todos em silêncio atencioso.

— Que lucrou o Brasil com essa abusiva legislação trabalhista, criada pelo dr. Getúlio? — E ele próprio respondeu, brandindo o indicador em riste. — O golpe comunista do ano passado, justamente quando nos encontramos em franca recuperação da crise e senhores do mercado interno, graças à alta do dólar. Por mim, digo-o francamente, eu acabaria com o parlamento e, em vez de prender Prestes e outros bandidos, que enganam os operários, mandaria fuzilá-los.

— Vamos com calma, dr. Álvaro — contraveio Figueiredo, que a ele se ombreava, pelo poderio econômico e prestígio na classe. — É preciso compreender os desígnios políticos do dr. Getúlio, só aparentemente ziguezagueante. O senhor leu o discurso de Ano Bom? Então? Pois nosso Presidente promete, nas entrelinhas, o que o senhor quer e, talvez um pouco mais. Proclama a necessidade da eliminação de todos os funcionários públicos suspeitos de comunismo e reclama o controle das artes e do pensamento em geral, pelo Estado.

— Foi assim que Mussolini e Hitler puseram a tremer a Inglaterra , a França e também os Estados Unidos — ousou interferir, titubeante, Sabrelli, grande industrial de calçados, um dos diretores da Federação dos Manufaturei- ros. E a medo, intimidado com a própria inflexão cantante acusando-lhe a origem italiana, acrescentou: — O acordo dos marcos compensados com a Alemanha mostra que o Presidente da República sabe o que está fazendo. Logo, logo o dr. Getúlio fecha as Câmaras e chama Plínio Salgado para governar com ele. Para quê tem no governo o professor Vicente Rao e o major Felinto Müller, amigos do “eixo”? Não custa esperar, os senhores vão ver...

— Mas até lá, com a desordem em que andamos, perderemos a oportunidade oferecida pela nova guerra que vem aí de abastecer nosso mercado e exportar mais para o exterior — retrucou o dr. Álvaro, menos em atenção às considerações de Sabrelli que para reafirmar, num vezo muito seu, a incontrastável liderança.

O dr. Djalma, advogado da “Santa Leocádia”, animado pelo décimo wisky, aventurou uma opinião:

— Não creio que a melhor solução seja acabar com a meia-democracia de Getúlio. As vantagens para a indústria serão apenas imediatas, como o acordo dos marcos-compensados que já nos transformou de credores em devedores de Hitler. E quanto à legislação trabalhista, me parece a melhor forma de conter o comunismo.

O presidente da Metalúrgica “Condor” comprimiu o semblante anguloso, num sorriso de desprezo, lançando-lhe ao mesmo tempo, um olhar severo, como a ordenar que se calasse. O jovem advogado, “esquerdista de boate”, segundo o chamava Figueiredo, seu tio, era tolerado, entre eles, e abocanhava bom dinheiro na “Santa Leocádia”, por exigência do clã familiar, obrigado a mantê-lo. Figurava no departamento jurídico da empresa mais para esconder o ócio, embora fosse dotado de inteligência vivaz e curiosa e dado a leituras. Nas conversas íntimas, dona Leocádia comprazia-se em armar verdadeiros “quebra-cabeças” sobre as aventuras amorosas de Djalma, “mestre consumado em violar o nono mandamento” ciciava ela às amigas, com olhos indagadores, carregados de malícia, orgulhosa do sobrinho bonitão e bem-falante, sempre renovando seu “plantei de fêmeas”, como ele próprio alardeava.

— Como quer que seja — insistiu, autoritário, o magnata da “Condor” — os apelos cretinos de Prestes ao que chama de burguesia nacional nos tornou suspeitos no exterior. O dr. Getúlio, armado do estado-de-guerra, deveria pôr fim, de uma vez por todas, com essa tragicomédia, a nos criar uma situação ambígua diante dos amigos de fora.

— O que me preocupa no momento, quero ser franco — interveio Figueiredo, tolhendo a resposta ao dr. Álvaro, esboçada pelo sobrinho — não são os apelos pueris de Prestes que ninguém levou a sério, mas essa diabólica greve na “Santa Leocádia”. Das prisões para cá, todo dia falta um terço dos operários e a polícia nada pode fazer. Enquanto a produção cai, eles se conservam em casa alegando doença. Cheguei a telefonar ao dr. Leite de Barros para que soltasse os três operários. Eu encontraria um jeito de pô-los na rua, prometi-lhe. Mas há, na história, um agitador perigoso, estranho à fábrica, me disse o Secretário da Segurança.

— Bem vê o senhor que eu tenho razão — aproveitou-se o dr. Álvaro — Hitler e Mussolini acabaram com os agentes de Moscou e deram prosperidade a seus povos. Nós, aqui, com bons preços no mercado interno e até o es- tangeiro esperando as encomendas, continuamos nessa contra-dança de estado de sítio e estado de guerra e um parlamento caro a fazer demagogia.

O dr. Djalma achou mais prudente refugiar-se entre as senhoras, para sorver, sem riscos, seu scotch, aninhado num copo esguio, que o garção gelava antes de servir a bebida.

A esposa do dr. Álvaro, resplendente balzaquiana, que a magia do Gringoire e sua equipe mantinha quase adolescente à custa de cosméticos e massagens, se alvoroçou com a aproximação do advogado, cuja apregoada arte de amar ansiava por conhecer, como tantas outras.

— Dr. Djalma, sua chegada é providencial — fez ela, num largo sorriso brejeiro, de dentes grandes e regulares, ameaçando sempre morder. — Precisamos de alguma coisa diferente, para nossa quermesse.

— Dona Ani, haverá algo de mais diferente que sua presença, numa quermesse? — retorquiu galanteador, buscando-lhe os olhos verdes a desafiarem-no.

Um pensamento fugaz levou-o a imaginar aquela balzaquiana de voz morna e meneios estudados de gata, nos braços do homem de cara angulosa, ríspido e glacial, reduzindo tudo a operações contábeis, em seu majestoso escritório da “Condor”. “O déficit do dr. Álvaro, no deve-e-haver do leito conjugal, alguns amigos cobrem...” gozou, intimamente, como a se vingar.

As fartas carnes enroladas numa toalete cor de orquídea cheia de ruches e plissés, dona Marianella, esposa de Sabrelli, arriscava palpites en- grolados, recebidos com benevolência escarninha. Sua presença no círculo fechado do haute monde, sempre prevenido a repelir arrivistas, amparava-se em polpudas contribuições às obras pias, distração elegante para afugentar o tédio daquelas senhoras despreocupadas e ociosas. A crise de 1929 fendera as muralhas da “boa sociedade”, tolerando que se insinuassem, pelas brechas algumas poucas italianinhas e raras turqui- nhas, de talão de cheque em punho, a redourarem seus brazões, a golpes de calculada generosidade, quase sempre.

O tufão da débacle cafeeira fizera emergir uma camada de novos-ricos da indústria, gerada durante a I Grande Guerra e robustecida, depois, pela política econômico-financeira de Getúlio Vargas.

— Dona Marianella, com seu coração de ouro, se compromete a instalar todas as barracas — disse dona Ani para Djalma, dilatando, sarcástica, as vogais da palavra ouro. — Vamos agora à sua contribuição em idéias — intimou, o largo sorriso de belos dentes graúdos a sugerir coisa bem diferente ao sobrinho da “Santa Leocádia”.

Com ternura compassiva, o moço se voltou, antes, para dona Marianella, submersa numa poltrona carmesim, ridícula em seu demiercri orquídea de fofos que lhe ressaltavam, implacáveis, a origem plebéia. Sua generosidade sincera, mal interpretada, como via Djalma, levando-o a simpatizar com a “intrusa”, poucos anos atrás ela mesma a cozinhar e a cuidar dos numerosos frutos do leito prolífico, cada ano a brindar o casal Sabrelli com um pimpolho de cinco quilos, pelo menos.

— Dona Marianella, suas barracas serão, na quermesse, como as vinhas do senhor. Delas extrairemos os recursos para construir a nova Casa de Deus.

Ela pouco entendeu. Mas o semblante rechonchudo, de uma placidez sonolenta, se iluminou de gratidão encabulada.

Quase esquecidos dos drinks, Figueiredo e o dr. Álvaro — os outros industriais de ouvidos aguçados — haviam mergulhado no exame da situação brasileira, revolvendo-a sobre todas as quinas. O presidente da “Condor” reclamava, veemente, medidas radicais de Getúlio contra a desordem, escandalizado com as atividades “comunistas” do padre Manuel do Nascimento levado, de batina e crucifixo, para a Casa de Detenção, do Rio de Janeiro.

— E o que se está vendo! Até sacerdote estipendiado por Moscou — argumentava, irritado, ante as hesitações e dúvidas de Figueiredo quanto às apregoadas vantagens da supressão do Congresso Nacional, uma inutilidade perniciosa, repetia o dr. Álvaro. Arrematou, ordenando:

— As classes conservadoras devem estimular, no momento, por todos os meios, o senador Cunha Mello, os deputados Adalberto Correia e outros poucos que se estão portando à altura dos acontecimentos. Quanto à Ação Integralista Brasileira, parece-me razoável a sugestão de Sabrelli. Vamos fornecer-lhe mais recursos para colaborar, melhor, com as autoridades, no extermínio dos “vermelhos”. O diabo é que Plínio Salgado não passa de um aprendiz de feiticeiro, pensando que liquida o comunismo com tiques nervosos e esgares de fantoche.

— Gustavo Barroso é que devia ser o Chefe Nacional — interferiu, cantante, num arroubo de entusiasmo, Sabrelli. — Parece mesmo o “Duce”, com aquela cara redonda e a barriga...

Capítulo 9

Belini pôs na vitrola, em surdina, o disco da “Internacional”. Os homens agrupados em tomo da longa mesa de carvalho aguardando outros companheiros, entreolharam-se contrafeitos pela inoportunidade da música, alguns a disfarçar um sorriso compreensivo. Aquele homem de cabeleira romântica, encanecida, lembrando um socialista do século passado, repetia, sob o terror policial que devastava as fileiras comunistas, uma de suas atitudes habituais de lirismo ingênuo. O Partido lhe tolerava as “puerilidades” porque Belini, nos bons e maus tempos, se conservava, imperturbavelmente, o mesmo, a carteira generosa franqueada à organização e suas casas abrigando militantes perseguidos ou dirigentes vindos de fora.

Fazendo alusão às suas atividades comerciais, Lula o chamava de “nossa vaca prodigiosa”, capaz de transformar, por um passe de magia, café torrado em leite gordo para nutrir o partido. Os “teóricos” o apontavam como padrão exmplar do “burguês-progressista, consciente do papel histórico da classe operária”. A realidade, porém era bem outra: Beli- ni herdara do pai, imigrante italiano dos tempos aureos, não apenas o pecúlio, multiplicado com árduo trabalho, mas, também, um legado espiritual acumulado nas pugnas socialistas da Itália dos novecentos. Comovia-se, até às lágrimas, sempre que, cheio de orgulho, a cabeça em- pinada num rompante de bravura quixotesca, contava as façanhas do pai, ao lado de Turati nos motins provocados pela fome, em 1898.

A escaldante imaginação de meridional o arrastava a pormenores das escaramuças entre operários socialistas e “carabinieri”, modelando o velho Belini, equilibrado sobre barricadas, de laço esvoaçante ao pescoço e pistola em punho, a entoar, debaixo da fusilaria, o famoso Inno degliLavoratori escrito por Turati. Discreto até a timidez, Belini, ao narrar as gestas paternas, fazia-se acompanhar de largos movimentos dos braços, numa contagiante encenação, que acabava eletrizando o mais frio dos ouvintes.

— Tenho sangue das barricadas nas veias — assim justificava sua inalterável solidariedade de burguês milionário, ao Partido Comunista.

Depois da “insurreição nacional-libertadora”, toda vez que ia em busca de dinheiro, Lula o provocava, brincalhão:

— O pau anda comendo por aí, Belini. Não pense que o Polaco vai na conversa de seus milhões. — E já sabia qual a resposta:

— Aaah — fazia o simpatizante, dando de ombros, com desprezo. — Muito mais sofreu o velho nas barricadas. Se estivesse vivo, cantaria hoje Bandeira rossa, te garanto. — E repetia o gracejo: — Pelo menos, eu “socializo o dinheiro dele...”

E a mão generosa se punha a passar as notas, cada vez em maior número sob apelos maneirosos de Lula que, convincente, emoldurava o quadro de pungente realidade, da organização clandestina a perder centenas dos seus mais valorosos militantes, caçados, de norte a sul, pelos mastins policiais.

De onde se encontrava, submerso no silêncio mais desconfortável ainda pelos sons abafados da “Internacional”, prenunciando debates tempestuosos, Paulo observava as feições maciças e plebéias do simpatizante, ouvindo, embevecido, os compassos do hino revolucionário, de pé ao lado da vitrola.

— “Burguês progressista, tem graça!” — dizia-se, com escárnio, o militante comunista. — “Para ilustrar essa mistificação cretina, exibem o excelente Belini, como urso de circo. Continuamos a sentir nas carnes como a tal burguesia progressista recebeu a insurreição nacional-libertadora...”

Evandro se agarrou, afoito, à oportunidade de cortejar o “burguês progressista”, quando o disco terminou:

— Bé-lin — e o nome do homem ecoou pela sala como um balido. — Logo outros milhares de pessoas pertencentes à sua classe compreenderão, também, o sentido da bandeira empunhada pelo grande Prestes. Com nossa vitória, daremos um poderoso impulso ao capitalismo nacional. E vocês ficarão mais ricos...

Entre solícito e perplexo, o simpatizante voltou-se para ele, de sobre-cenho levemente enrugado, como ofendido, a dizer que se considerava comunista e não burguês progressista. A perplexidade estampada no rosto de Belini fez Paulo sorrir, encarando Evandro, um vago ar de zombaria nos lábios descoloridos.

Os últimos acabavam de chegar. Alguns estranharam a presença, entre eles, do secretário do Comitê de Zona da Mooca e de Chispa, tecelão da “Santa Leocádia”. Ramos teve uma contração fisionômica de estranheza, levando Carvalho a acenar-lhe com a cabeça confirmando a convocação dos dois. O intelectual pressentiu que Evandro preparava outro “prato apimentado” para alguém do Secretariado Nacional. Buscou Paulo de relance, vendo-o, a um canto da mesa, aparentemente sereno, a folhear papéis. Henrique, a cara parada, escarlate, com ricto permanente agora quase grotesco, girava a cabeça em todas as direções, dando mostras de nervosismo. As discussões sempre o punham em estado de pânico, seus sentimentos esbatendo-se contra a minguada inteligência, sem saber como se situar em meio dos companheiros a defenderem pontos de vista opostos. Brás, o “gravibundo tenebroso”, no conceito de Ramos, fingia escrever, displicente, qualquer cousa. Profissional da máquina partidária há mais de vinte anos, “fraquejara” na quartelada prestista de 1935. Explorando seu fracasso na hora da insurreição, em troca dos subsídios Evandro o transformara em mero valete, disposto a acobertar-lhe, em quaisquer circunstâncias, as manobras ambiciosas, com os restos do prestígio que lhe cercava o nome, outrora respeitado.

Por um momento, Ramos sentiu vaga repugnância de tudo aquilo. A atmosfera de insídia impregnando a reunião parecia indicar Paulo como o alvo dos botes preparados. Lembrou-se da conversa de ambos, na biblioteca do apartamento.

— Camaradas, podemos dar início aos trabalhos? — perguntou Evandro, mais a ordenar que a consultar, a voz assumindo o tom convencional do chefe. E para evitar qualquer surpressa, antecipou-se: — Proponho Brás para presidir a reunião.

Alguns assentiram, num simples gesto ou monossílabo. Outros acolheram, tacitamente, a indicação. O lance malicioso de Evandro não passara despercebido.

Brás leu a ordem do dia, organizada pelo Secretariado Nacional, circunscrevendo-se ao “caso Paulo”. A agenda fora alterada.

Paulo franziu o cenho, refreando um ímpeto de protesto. Pressentiu, intimamente revoltado, a carga de intrigas oculta sob a etiqueta “caso Paulo”, a tomá-lo centro de algo mais grave que a “batida” policial na casa de dona Teresa. Evandro e seu valete — transparecia-lhes nas atitudes dúplices desde a entrada na sala— traziam um esquema preparado em cuja execução, outros companheiros deveriam estar comprometidos. Isso explicaria o comparecimento intempestivo do secretário da Mooca, de Chispa e Prudente, estranhos ao organismo reunido.

Com inflexão de obsequiosidade sardônica na voz disfarçando hostilidade, Brás pediu a Paulo que lesse o relatório.

Ao longo de toda a leitura, ora alternando-se, outras vezes a um só tempo, Evandro e Brás moviam ostensivamente a cabeça e tinham expressões surdas de desaprovação, enquanto tomavam notas.

Ramos seguia as palavras do companheiro, de olhos fixos na cara cheia de protuberâncias do “gravibundo tenebroso”, já, agora, visivelmente, peça essencial do dispositivo de ataque contra Paulo.

Mal este lera as últimas palavras da exposição, Evandro, sem esperar que a presidência desse por aberto o debate, espalmou a mão no ar, assegurando-se o direito de falar em primeiro lugar. Fazia parte de seu jogo, antecipar-se aos demais no exame do “caso”, para, com a autoridade do cargo, tentar impor determinado rumo às críticas, segundo o esquema traçado.

A face, de novo, inescrutável, numa aparência de serena isenção de ânimo, começou, em tom pausado, por louvar a concisão do relatório. — Mas — ainda cauteloso, passou ao que visava — o companheiro Paulo não aponta, sequer remotamente, os prováveis agentes provocadores que lhe atiraram os cães policiais nos calcanhares.

Brás, Prudente e Chispa aprovaram com um “muito bem” caloroso, acompanhado de gestos para infundir ênfase à exclamação. Carvalho e Dreyfus miraram-nos surpresos e desconfiados, parecendo, ambos, darem-se conta de um plano a ganhar contornos. Henrique sequer pestanejava, seus olhos de um brilho de esmalte mais redondos, como criança assustada esperando uma bomba explodir. Esse honesto militante, que a tudo renunciara, inclusive curso superior e família de grandes posses, para tornar-se revolucionário profissional, alimentava uma espécie de veneração sagrada pelos “velhos dirigentes” do partido. Para ele, quanto mais “antigos” na máquina burocrática, “mais infalíveis”. Nem servilismo, muito menos carreirismo explicavam essa submissão aviltante a quanto viesse de “cima”. O Kremlin era, pura e simplesmente, seu Vaticano e os veteranos líderes do partido, fossem quais fossem, avaliava-os sempre pela antigüidade — os sacerdotes ungidos da verdade irrecusável. Substituíra por uma mitologia pagã a hagiologia do catecismo católico decorado na infância. E se prosternava aos pés dos ídolos com fervor redobrado de cristão-novo. Sua procedência dos meios abastados atormentava-o como mácula desonrosa, agravando-lhe a índole tímida e as inibições. Procurava resgatar esse pecado original, com dedicação inesgotável ao Partido. A simples possibilidade de que um “quadro” proletário pudesse lançar-lhe à face a formação burguesa lhe causava calafrios de febre.

Evandro e outros operários de imitação, refestelados nos postos de mando, extraiam dessa tibieza de caráter o máximo proveito. Porém, o incondicionalismo de Henrique devia ser entendido, antes, como demonstração de fidelidade ao Komintern ou, melhor, à União Soviética, “pátria dos trabalhadores de todo o mundo”, fonte da infalibilidade dos chefes mais “provados” da organização.

Como de costume, o nervosismo inicial começava nele a ceder lugar ao pânico, diante das restrições esboçadas ao relatório. Evandro, ainda prudente na escolha dos termos, avançou, numa advertência indireta aos outros:

— A exposição do camarada Paulo, mais do que esclarece, confunde. Ele reconstrói seus passos dos dias anteriores, mas não apresenta nenhuma hipótese. Como informa, participou, horas antes, de reunião do Comitê Regional e sabe, muito bem, da existência nesse organismo de elementos que ousam até classificar de oportunista a tática de frente-popular adotada, na França e Espanha, por determinação do VII Congresso da Internacional, sob inspiração do genial Stalin.

— Permite um aparte? — contraveio Paulo, eforçando-se por aparentar calma. — Admitamos que essa crítica à tática de frente-popular tenha sido feita. Que relação pretende estabelecer o companheiro entre tal coisa e a “batida” policial?

— Ora, camarada — retrucou Evandro, com postiça indignação. — Quem critica a Internacional e o chefe imortal do proletariado está dando um passo no caminho da traição e da provocação policial. Isso é indiscutível, a prática o demonstra. Trotsky começou assim.

O outro se sentiu diretamente atingido pela chantagem psicológica do burocrata, mas se conteve, esperando poder captar-lhe toda a intenção.

— E, ainda há mais, no C. R. de São Paulo — desta vez, encarou Ramos e o líder metalúrgico Dreyfus. — certos companheiros comparam a Aliança Nacional Libertadora ao “Kuomintang” chinês, justamente quando nosso grande e querido camarada Prestes amarga no cárcere seu amor ao povo brasileiro.

Brás, Prudente e Chispa resmungaram palavras de revolta, a estimular a investida crescente, numa demonstração enganosa de independência mental. Paulo estava quase a rir do espetáculo ridículo, com aqueles três autômatos, insuflados por Evandro, fingindo liberdade de opinião.

— Essas críticas não surgem por mero acaso —continuou o homem, uma gravidade soturna, insinuando ameaças. —consciente ou inconscientemente, são feitas para ajudar a reação a dar outro golpe no partido, a desarmar o proletariado, nesta hora em que podemos intervir, decisivamente, na luta entre os agentes imperialistas, pela sucessão presidencial. E, dramaticamente, abandonando a circunspecção convencional de líder bolchevique, dotado de “nervos de aço” segundo o formulário burocrático, estirou o braço em direção a Chispa:

— Aquele bravo camarada logo nos mostrará uma das conseqüências produzidas na “base” do Partido pelas críticas desagregadoras feitas no Comitê Regional de São Paulo. A pretexto de liberdade de discussão, alguns dirigentes transformam o centralismo-democrático, bem definido pelo genial Stalin, em liberalismo burguês, auxiliando, desta forma, a polícia.

De um salto, Paulo se pôs de pé. Sem pedir aparte, os olhos dardejando nas faces lívidas, atalhou, em tom mordente de desprezo: — O companheiro Evandro já transpôs os limites da tolerância, com seus insultos irresponsáveis. Ainda não alcancei, de todo, suas intenções. Que revele os objetivos, claramente. E quase lhe tocando com o indicador a cara, mais comprimida, agora, diante da reação inesperada:

— Quero, antes, advertir Evandro de que não lhe reconheço autoridade superior à de qualquer outro membro do Secretariado Nacional e, muito menos, a condição de mentor infalível do Partido. Está redondamente enganado se pensa poder transformar o centralismo-democrático em autocratismo-burocrático, para passar, de mistura com intrigas, seus contrabandos oportunistas.

A rudeza dessas últimas palavras, fustigando-o, também, como cortantes chicotadas, arrancaram Brás da estupefação, provocada, em todos, pela explosão colérica de Paulo. Em meio do expectante silêncio, carregado de sentimentos contraditórios, limitou-se, com voz insegura, a lembrar Paulo de que não pedira aparte e convidou o outro a prosseguir.

Reposto do revide, o sorriso maligno, de orelha a orelha, disfarçando- lhe o susto covarde, Evandro retomou, num recuo aliciante:

— Bem viram os camaradas que o insultado fui eu. Mas não importa, o companheiro Paulo é um temperamental, todos o conhecem. Quero, no entanto, apenas protestar contra a acusação de burocratismo que cheira a... a... —parou, embaraçado, para evitar o termo trotskismo, que lhe completava, naturalmente, a frase, puxou o pigarro, enquanto pensava, e acrescentou: que cheira a ultra-esquerdismo. Por ora, se não houver objeções, prefiro ceder a palavra a Chispa, tecelão da “Santa Leocádia”, que tem graves revelações a fazer. Elas confirmarão, em parte, as minhas críticas.

A grosseira manobra do burocrata negaceando para ganhar tempo, foi percebida por todos.

Por um instante, só se ouviu o lápis de Cordélia a ciciar taquigramas no bloco de papel, fixando em figurinhas acrobáticas de ballet, os debates ruidosos. A bela cabeça inclinada latejava-lhe de angústia, num torve- linho de confusão a fazê-la querer sentir-se bem longe da sala.

Ramos, desde o início calado, uma fugaz sombra de melancolia nas feições de meninão amuado, observava aquele quadro de contrastes chocantes a mesclar, por artes de diabólico sortilégio, lealdade proletária e pureza de sentimentos com duplicidade, artimanhas inescrupulosas e servilismo, tudo em nome do comunismo.

— Muito me admira ouvir aquele camarada — e Chispa espichou o queixo para Paulo — acusar de intrigante e oportunista um dos mais sacrificados dirigentes de nosso glorioso partido. Acho que devemos exigir-lhe explicações. Oportunistas e intrigantes são certos elementos de minha fábrica, ligados a membros do Comitê Regional. O Bruno por exemplo — referia-se ao avelhuscado — não se limitou a afirmar que o Partido quer fornecer carne humana para os presídios. Estrangulou a greve da “Santa Leocádia”, entrando, mesmo, em entendimentos com os “tiras”, sob pretexto de não sacrificar o pessoal. A polícia o levou junto com o grandalhão, que vive fazendo provocações. Não pretendo acusar ninguém, mas essa história de “encanarem” o Bruno e o outro me parece uma comédia armada pelo Polaco, auxiliado por um tal Gino, uma boa bisca, que nem lê nossos manifestos.

Dreyfus aguçava as orelhas, de olhos grudados na cara do homenzinho a falar com ódio do tecelão. O metalúrgico tivera, pessoalmente, sobejas provas de fidelidade e dedicação ao Partido, dadas por Edgar em ásperas lutas sindicais. Sua pugnacidade, sem arroubos demagógicos mas inquebrantável nos momentos difíceis, conferia-lhe tal autoridade perante os trabalhadores que, não raro, com poucas palavras, determinava os rumos das assembléias. As insinuações de policialismo feitas, agora, contra ele, pelo tarraco, que continuava a falar, desabridamente, intercalando, insistente, nas frases, os termos “crumiro” e “cagüeta”, estavam causando em Dreyfus um mal-estar quase físico. Chispa já gesticulava, frenético, quando repisou o que considerava críticas desagregadoras e capitulacionismo do tecelão comunista.

Evandro e Brás, revestidos da carranca convencional de chefes, trocavam bilhetinhos e, vez por outra, abanavam a cabeça, como a acentuar a gravidade das revelações. O primeiro pediu aparte, perguntando se “Bruno”, fizera, também, alguma vez, restrições à política da Internacional.

— Muito me admira essa pergunta —replicou o homenzinho, num arremedo de censura ao dirigente, para mascarar o jogo combinado. — O camarada deve saber que o trotskismo age conforme o meio...

O epíteto infamante produziu o efeito de uma bomba. A um tempo, todos fixaram Chispa, alguns fazendo as cadeiras estalar, num movimento de sobressalto. A mácula ignominiosa, mais virulenta que a lepra, fora apontada em “Bruno”, embora veladamente. Como Paulo pouco antes, o metalúrgico não pôde mais refrear a indignação. A indireta pérfida chocava-se brutalmente, com o perfil do “avelhuscado”, cuja lealdade provada, por si, já excluía qualquer forma de simulação em relação aos companheiros.

Sem o arrebatamento colérico do outro, contrário à sua índole fleumática, solicitou aparte:

— Conheço, faz muito tempo, o Bruno — as palavras lhe saíam meio engroladas, faltando em algumas a última sílaba. —Foi do Comitê Sindical, na direção passada, e dirigimos muitas greves juntos. Pelo jeito,

Evandro e Brás, que vieram, há pouco, de outros Estados, não sabem disso. Parece-me que Chispa, militante novo, pelo que disse do companheiro não deve saber também. Por isso, peço a ele que antes de apurar os fatos não xingue de “crumiro”, de “cagüeta” e trotskista, o Bruno, nestas horas, nos porões da Ordem Política —recomendou, com simplicidade, uma expressão de tristeza na voz arrastada. Propôs, concluindo, a constituição de uma comissão para examinar as denúncias de Chispa. Este, depois de consultar Evandro com os olhos, retrucou, agressivo:

— Muito me admira o companheiro, não sei seu nome, querer defender o Bruno, falando no passado dele. Trotsky tomou parte na Revolução Russa e, hoje, é agente do imperialismo e espião de Hitler, todo mundo sabe. Se não fosse o genial Stalin teria feito o capitalismo voltar, na União Soviética. O comportamento do Bruno foi suspeito e, mais ainda, sua prisão com o “massa-bruta”, que dá gargalhadas na cara da gente, quando se fala em comunismo. Eu é que peço ao camarada para ter cuidado, antes de se pôr a defender o Bruno.

A farsa fora tão mal encenada por Evandro e sequazes que, aos poucos, a irritação começou a ceder lugar, no espírito de Paulo, a uma expectativa condescendente. Quase se comprazia, agora, na contemplação do espetáculo burlesco, certo de que outros autômatos se sucederiam a Chispa, para recitar seus papéis, com variações. Aguardava o desfecho, mais curioso que apreensivo, na esperança de conseguir, pelo menos, lobrigar os desígnios obscuros do burocrata despido de escrúpulos, a manipular a boa-fé de uns e o carreirismo velhaco de outros, em proveito pessoal.

A divergência se manifestara, de início, entre os dois principalmente, durante o exame das causas que explicariam o malogro da chamada insurreição nacional-libertadora, a que o proletariado estivera ausente. Em uma evolução lógica, Evandro levara às derradeiras conseqüências seu oportunismo direitista — segundo lhe exprobara Paulo — passando à apologia da burguesia nacional, “força motriz da próxima Revolução”. E desandara a “teorizar” essa concepção, alinhando despautérios de toda ordem, que, por via de sua posição na máquina partidária, fazia descer aos organismos, imobilizando-os, justamente quando o governo de Getúlio Vargas dava largas à fúria antidemocrática, animado pelo fracasso da aventura de 1935...


Inclusão 21/04/2014