O Caldeirão das Bruxas e Outros Escritos Políticos

Hermínio Sacchetta


Hermínio Sacchetta, uma Perda de Todos(1)


capa

No dia 28 passado, às 2 da madrugada, o advogado e amigo Renato Caldas por telefone me dera o recado fatal: o “Velho” falecera, Hermínio Sacchetta nos deixara. Emudeci ao telefone, sem resposta, coloquei-o no gancho.

Com sua morte perdia não um pai biológico, mas um “pai social”. Minha cultura política a ele devia em muito. Também o sentimento de solidariedade com os que nada têm, a noção da luta como integrante constante do cotidiano contra a exploração e opressão. Mas, igualmente, o ódio ao carreirismo político e o desprezo aos canalhas que usurpam a “fala” do trabalhador, para em seu nome legitimarem suas prebendas burocráticas. Em suma, o desprezo àqueles heróis sem caráter, os “macunaímas” que servem a todos os governos, ontem serviam à ditadura, hoje se preparam para “servir” à democracia. Essas lições de vida e postura política me foram ensinadas pelo “Velho”.

Conheci-o quando caía a ditadura Vargas em 1945 e iniciara-se um processo de “abertura política” e “redemocratização”. Discutia-se na galeria Prestes Maia, na praça do Patriarca, sobre a traição do stalinismo, que propiciaria a vitória de Franco na Revolução Espanhola de 1936-39, a degenerescência burocrática da Revolução Russa, com a degradação do PCB em mero aparelho transmissor de burocratas empedernidos, que pregavam “Constituinte com Vargas” na esperança de ocupar os cargos burocráticos na Previdência Social e nos sindicatos atrelados ao Estado, desde 1931.

Era uma época em que o PCB se tomara partido legalizado, onde vigorava em seus estatutos o infamante artigo 13 que rezava: “É proibido ao militante (do PCB) ter contacto direto ou indireto, com trotskistas ou outros inimigos da classe operária”. Hermínio Sacchetta foi preso pelos esbirros do Estado Novo de Vargas e condenado pelo famigerado Tribunal de Segurança Nacional, prenunciando a noite negra que se abateria sobre o País com a implantação da ditadura do Estado Novo. Ela amordaçaria a consciência e a voz do brasileiro, através da censura exercida pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), sob Lourival Fontes.

Com implacável lucidez política, Sacchetta demonstrara a nós, adolescentes na época, o fracasso das “frentes de aliança de classes”, como a Aliança Nacional Libertadora, dirigindo sua crítica aos ex-militares que ocupavam o Comitê Central do PCB, unindo o golpismo tenentista à ideologia stalinista. Com sua quartelada de 35, propiciariam as condições ao golpe de Vargas de 1937, que o manteve no poder até 1945.

Em 1938, na prisão do Estado Novo rompe com o PCB, aderindo às teses de Trotski, configuradas no Programa da Quarta Internacional. Nos anos 50 funda a Liga Socialista Independente, onde o ideário socialista inclui a exigência da democracia operária e da liberdade política.

Sob o influxo do “Velho”, liamos e fazíamos a crítica dos clássicos do bolchevismo, sem perder de vista que a realização de um projeto socialista não passa pela mera substituição de homens no poder do Estado, mas na ruptura com as formas de exploração e dominação existentes. Mais ainda, ensinara-nos o “Velho”: a pessoa é mais importante que qualquer cargo, daí a rejeição à corrida ao sucesso e a gloriola fácil com que o sistema premia os heróis sem caráter, os macunaímas diplomados pelas universidades, os assessores da dominação.

Com Hermínio Sacchetta aprendíamos, que, nesse meio mercantil em que tudo tem um preço, só o homem possui uma dignidade. Ela se expressa pela exigência implacável e obstinada de coerência entre meios e fins, entre a vida cotidiana coerente com os projetos de mudanças estruturais.

Mostrara-nos o “Velho” a falácia das recomposições da legitimação do poder de Estado após a queda de Vargas e eleição do gal. Dutra. Mais ainda, insistia ele nas conseqüências desastrosas para o “movimento autônomo” dos trabalhadores a existência de oposições que não se opõem, quando as frentes com o nome de partidos convertem-se em canais de conchavos com os donos do poder. Quando os “democratas” acorriam à distribuição dos cargos públicos, vendendo-se “barato” a pretexto de prestarem “um serviço social”. Em linguagem atual, é o processo de transformação do PMDB em PMDS.

Sacchetta, por seu exemplo pessoal, desprezando os bem-pensantes da época, os “realistas” políticos de curto vôo, as aves de arribação que justificavam seu oportunismo com o nome de “participação” e “bem comum”, dava-nos lições de vida e cultura política.

Já dizia Freud que a maior perda do ser humano é a morte de seu pai. É o que sinto com a morte de Hermínio Sacchetta, com quem formei minha visão de mundo. Seu desaparecimento é uma perda irreparável. Com sua morte perderam os trabalhadores uma consciência crítica voltada aos valores de solidariedade que incluía a inteireza de caráter. Perdeu o País um homem digno. O jornalismo perdeu com sua morte, um profissional que, nos “Diários Associados”, “Folha”, “O Tempo” jamais discriminara colegas, sempre disposto a colocar seu cargo em jogo na defesa de humildes focas — iniciantes — na redação.

Após um mês de sofrimento, ele descansou. Descanse em paz, para assim nos conferir a certeza de estar junto a nós no combate ã opressão, exploração, ao carreirismo eleitoral e à mentira política. Pois os velhos soldados das lutas sociais não morrem. É a nossa certeza inabalável.

Maurício Tragtenberg


Notas de rodapé:

(1) Texto publicado na Folha de São Paulo, 2 de novembro de 1982. (retornar ao texto)

Inclusão 21/04/2014