Começar Pelos Fins - A Nova Questão Comunista

Lucien Sève


2.12 - Movimento social, movimento político, movimento teórico


Segundo o posicionamento que é o de todo este livro, responder-se-á aqui por simples sugestões de princípio teoricamente coerentes com o que precede. E antes do mais e sobretudo coerentes nisto: na amplitude renovada que aqui lhe é reconhecida, a perspectiva comunista deve ser tratada não como um ideal para dias de festa mas, e muito resolutamente, como referência do quotidiano. É quase o contrário do que exigia a tradição do "realismo" político, tradição que levou a Direcção do Partido Comunista a nem sequer falar do comunismo durante décadas; e abandonando assim a outros uma radicalidade crítica e uma audácia visionária que contudo em lado algum se aprende melhor do que em Marx. Contas feitas, aquilo que passou por ser "o comunismo" não terá morrido porque, esquecendo Lenine -"há que sonhar", escrevia ele, pensando não no sonho que desorienta mas no que prepara - não pôs suficiente sonho no real nem suficiente real no sonho, acabando até por deixar de verificar se cada passo real ia efectivamente no sentido sonhado? Fazer ver o(a) fim(nalidade} dos seus actos em cada um dos seus actos, mantendo precisamente por isso o rumo, não será esse o único realismo que vale a pena? Ele exige que se dê vida a esse entusiasmo da vontade que, no aparentemente impossível faz ver o realmente possível, seja ele o mais ambicioso, e até precisamente porque é o mais ambicioso. A grandeza da esperança é altamente mobilizadora. A humanidade não irá longe sem a formidável audácia de se levantar contra o que ainda a condena à pré-história. O sucesso de um movimento como a ATTAC não derivará do facto de tornar plausíveis objectivos anticapitalistas bastante ousados, como o de criar uma taxa sobre os movimentos especulativos de capitais, como o de contestar a existência de paraísos fiscais ou como a anulação da dívida do Sul e do Leste? Por maioria de razão, o desígnio comunista reclama uma ousadia ainda superior. Porque o comunismo não é um futuro adiado, ele é, ainda mais hoje do que no tempo de Marx, esse "movimento real que supera o actual estado de coisas", quer em negativo quer em positivo, na crise do trabalho assalariado ou na afirmação da individualidade, nos dramas da mundialização ou no ascenso do ético. Ligar em cada questão uma perspectiva ampla e iniciativa concreta, a segunda garantindo a eficácia credível da primeira, que lhe confere em compensação a amplitude da motivação: aqui está, sem dúvida, definido no seu fundamento o estilo geral de uma nova prática política. Trabalhar neste sentido é, por exemplo, tornar claro que, na actual batalha pelo emprego, começa realmente a estar - a dever estar - em jogo a superação do mercado do trabalho; na reforma da escola, o desenvolvimento integral dos indivíduos; na paridade política dos sexos, o definhar do Estado; numa nova figura do audiovisual público, a desalienação das consciências; e tornar claro que estes largos horizontes de sentido são simultaneamente os mais luminosos dos critérios quanto à justeza, ou não, das medidas que mais imediatamente estão em debate. Se as forças continuam dramaticamente insuficientes para superar o capitalismo, quando por todo o lado se sonha em mudar, finalmente, a vida, não será porque não aparece suficientemente aberta de novo uma perspectiva, no sentido mais forte da palavra? Este parece-me ser o princípio da resposta ao nosso que fazer?

Resposta que o novo desenvolvimento do movimento social vem pôr em relevo porque foi na fortíssima ligação que estabeleceram os ferroviários, os desempregados, os professores dionisíacos ou os imigrantes entre exigências muito tópicas e aspirações muito globais que foram marcados pontos contra o Plano Juppé de reforma da segurança social, contra as gritantes carências de uma política escolar, contra o tratamento indigno dado quer aos sem-papéis, quer aos sem-trabalho. Mas ir mais longe neste sentido exige que se resolva a questão fundamental da renovação da política. Numa primeira abordagem, cada movimento social, embora produza mudança efectiva, fica inevitavelmente restrito em relação ao seu objectivo de acção, à sua capacidade de êxito, à sua duração, se não tiver um prolongamento político. Decorre daí a ideia que os partidos poderiam encontrar a sua razão de ser, e até um segundo fôlego no facto de se tomarem o meio de expressão e de pressão dos movimentos sociais ao nível dos poderes. Esta é uma atitude de recuperação condenada à partida: não passa da velha dicotomia da "base" que se movimenta e da cúpula que decide, uma partilha de papéis que se tornou insuportável. Não terá sido por causa da recusa generalizada destas atitudes, já por demais conhecidas, que o movimento social tomou, desde 1995, as formas não clássicas que vimos? Numa óptica oposta, contestar-se-á a própria designação do movimento dito social. Chamá-lo assim é não ver o que nele há de essencial: precisamente a busca tacteante de uma outra maneira de fazer política, um pouco como as coordenações dos anos oitenta podiam ser um testemunho da aspiração a uma maneira diferente de desenvolver as tarefas do sindicalismo. Será o novo movimento "social" o cadinho de um "novo modo de ser político", segundo a análise de Michêle Riot-Sarcey (l'Humanité, 28 de Novembro, 1998)? É com efeito o que parece, quando se considera, por exemplo, que, por debaixo dessas palavras de ordem circunstanciais, ele põe em causa orientações fundamentais (austeridade neoliberal, antidemocratismo "republicano", arrogância da classe dirigente) e vai à luta com o firme propósito de não se deixar esbulhar por quem quer que seja. Não há dúvida de que pode estar a emergir algo tão prometedor quanto inédito. Mas a formação de um novo movimento político exige algo muito diferente da multiplicação, mesmo que coordenada, de movimentos sociais, nem que estes sejam portadores de insubstituíveis contributos para a renovação da política. Pôr eficazmente em causa orientações fundamentais do capital ou do poder? Aí está uma coisa que implica saber responder a perguntas bem difíceis, tais como; que mudanças económicas, que inovações democráticas, que novos rumos para a construção europeia? O próprio esboço de um projecto político desta ordem remete para um outro grupo de problemas essenciais: que força organizada para dar vida a este projecto, cumprindo que primordial função, estruturada segundo que princípios? E, por debaixo destas perguntas, todas tão diferentes, um mesmo ponto central de interrogação: tudo isto em que perspectiva, no mais amplo sentido histórico e antropológico da palavra?

Aqui reside a chave de toda a refundação política e, para além dela, de toda a superação do capitalismo. Prometedor mas incerto, o novo movimento social não pode contentar-se com a prática política actual nem produzir só por si aquela de que necessita. Para dar a esta um pouco emperrada dialéctica do social e do político uma capacidade mo- triz, parece-me indispensável o contributo de um terceiro termo: chamemos-lhe movimento teórico - trabalho de pensa- mento, debate de ideias, recriar de uma forte cultura da transformação social, como a França conheceu, com tantos benefícios, durante os anos trinta ou sessenta. Este movi- mento teórico, para o qual as formações políticas podem dar um enorme contributo mas que não pode ser monopólio de nenhuma delas, tem como tarefa central responder à pergunta-chave: qual é a perspectiva, depois do desastre? O que equivale a tratar aquilo a que aqui se chama a nova questão comunista. Já que importa saber que coisa está por debaixo da palavra comunismo, queiramo-la ou não. E essa coisa é a completa superação de todas as nossas alienações históricas, antigas e novas, de classe ou sem ser de classe. Parafraseando uma famosa fórmula de Sartre, digamos que esta questão comunista é "inultrapassável", já que este tempo continua a ser o da história alienada. Tendo como conteúdo a desalienação universal, a ideia comunista não é mais um desígnio emancipador; é o conceito de todas as radicalidades efectivas. Muito longe de trair uma qualquer irrisória compulsão de domínio, esta caracterização exprime, pelo contrário, a sua necessária abertura a todos os projectos realmente desalienantes, reclamem-se ou não eles de Marx, intitulem-se ou não eles comunistas. Por outras palavras, exprime, no plano teórico, que todos os defensores de uma radicalidade efectiva estão vocacionados para formar, em conjunto, a nova força do revolucionar prático que vise a sociedade sem classes que a nossa época reclama. Florescimento multiforme do movimento social, construção plural do movimento político, elaboração dialogada do movimento teórico: defendo que, deste trinómio, o elemento actualmente decisivo é o terceiro, pela dupla razão que a mais terrível crise aberta pelo desaparecimento do "comunismo" é a crise de futuro, e que a importância do fundamental trabalho de pensamento que deve ser feito para a superar ainda é, estou convicto, politicamente muito subestimada. O Manifesto soube dizer a muitas gerações de revolucionários para que combatiam. Nada é hoje mais importante do que sabermos dizê-lo de um modo inteiramente novo mas com igual força.

[pgs 145_149. "Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]


Inclusão 02/08/2002