Começar Pelos Fins - A Nova Questão Comunista

Lucien Sève


3.05 - Nas fontes sociais-democratas do autocratismo


Para ter uma ideia concreta da coisa, leia-se por exemplo a compilação de cartas feita por Victor Fay em torno do incrível caso a que deu lugar, em 1909, a publicação de um dos livros mais importantes de Kautsky, Le chemin du pouvoir (Anthropos, 1969) [O Caminho do Poder]. Nele, a análise do imperialismo desemboca no anúncio de uma época de intensas lutas de classes, em que vai ser posta na ordem do dia a conquista revolucionária do poder. Amedrontado com o risco de um processo por alta traição, o Comité Director do SPD, a conselho dos seus advogados, tudo faz para impedir a publicação do livro. Tendo Kautsky recorrido para a Comissão de Controlo, esta dá contudo luz verde, mas o Comité Director faz como se nada fosse. Daí uma série de desonrosas negociações em que Kautsky claramente percebe "a esclerose burocrática que campeia no partido", o "nível de pensamento político de uma debilidade assustadora" que reina no Comité Director, "o mais puro arbítrio" com que este quer ser obedecido em inteira "autocracia" - é a palavra de Kautsky. Ainda mais indignada do que ele, Clara Zetkin escreve: "aquilo de que se trata neste caso escandaloso já não é de modo algum da brochura de Kautsky, é de um sistema" que "corrompe completamente os homens que o praticam e que, pior ainda, corromperia todo o partido" se não se desse à direcção o "correctivo" que merece. Em vez disso, Kautsky acabou por conciliar e aceitou modificar o seu texto para que as edições do partido acedessem a publicá-lo. Clara Zetkin estigmatiza em termos ferozes esta "capitulação". Não estará já aqui quase tudo o que irá constituir, para além de Lenine, o estalinismo vulgar? - do autoritarismo sem fé nem lei da direcção ao desprezo profundo pelos direitos dos militantes, passando pelo hábito inveterado de resolver os casos nas costas do partido. Ora, não se trata de modo algum de um caso mais ou menos excepcional. O caso Kautsky de 1909 repete traço por traço o caso da Crítica do Programa de Gotha, em 1891 (cf Éditions Sociales, 1981, pp. 76 e ss.), que Engels conduziu com um vigor bem diferente. Tendo ficado inédito em 1875, este texto político capital de Marx ainda deve, em inícios de 1891, fazer frente à censura da Neue Zeit, censura que Engels vê sarcasticamente como uma inesperada variante da lei anti-socialista de Bismarck, "concebida e aplicada pelos próprios funcionários do Partido Social-Democrata". Denunciando com veemência a constante tendência dos "pontífices socialistas" para tudo "quererem regular pela força", e nomeadamente a atitude de Liebknecht que "tudo fez para impedir a impressão", Engels exige que os chefes do partido sejam enfim "devidamente chamados a prestar contas no interior do seu partido". Escreve ele a Kautsky a 11 de Fevereiro de 1891: "É bem preciso que as pessoas deixem por fim de usar eternamente luvas com os funcionários do partido - os seus próprios servidores - e de continuar submetidas a eles como a burocratas infalíveis, em vez de adoptar uma atitude crítica" (tradução do autor). Um conselho que Kautsky não teve a coragem de seguir até ao fim em 1909...

Isto obriga-nos a procurar a origem desta versão primitiva alemã do centralismo autocrático muito a montante do leninismo e numa direcção bem diferente: na tradição do autoritarismo burocrático da Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, à cabeça da qual Lassale, e depois Schweitzer, dispunham de poderes ditatoriais - será por acaso que isto ia de par com a superstição do Estado? - e que foi a verdadeira matriz da forma-partido desenvolvida pelo SPD e depois exportada para todo o movimento socialista internacional. E aqui está algo que põe em causa uma ideia particularmente bem aceite, a de que o centralismo autocrático seria por eleição o corolário organizacional da opção revolucionária; sendo a democracia pluralista apanágio do reformismo. Ora o que salta aos olhos, no caso exemplar da social- -democracia dos anos noventa do século XIX, e para além deles, é pelo contrário que a tendência autocrática em matéria organizacional se encontra aí intimamente ligada à renúncia estratégica à opção revolucionária. Com efeito, por que é que a direcção do SPD tripudia qualquer democracia para impedir a publicação não expurgada do livro de Kautsky? Porque está aterrorizada com o perigo de - Bebel di-lo quase claramente numa carta a Adler - dar ao adversário no poder uma oportunidade de destruir a imagem legalista que essa direcção tudo tinha feito para dar ao partido. Apostando tudo numa estratégia de acesso parlamentar ao poder, aquela direcção interiorizara ao mesmo tempo as condições drásticas que isso implica: antes do mais tornar inatacável, tanto nas suas palavras como nos seus actos, a sua atitude "responsável". Por outras palavras, sendo o contexto político o que era na Alemanha de Guilherme II, a escolha interna de uma estratégia reformadora, à partida apoiada pela base, acarretava pressões externas para a "renúncia de si" que a cúpula devia gerir, nem que fosse contra os próprios militantes. Neste conflito estrutural que surge entre motivações fundamentais, tal como são vividas em baixo, e o interesse "superior" do partido, tal como é concebido em cima - Kautsky "não tem nenhum sentido destas questões tácticas", escreve Bebel a Adler no tom em que se fala de um irresponsável - a direcção tem realmente o papel de um poder sobre os aderentes que "não compreendem" o que a "alta política" recomenda que se faça. Daí a proliferação da linguagem dúplice, do segredo, do arbítrio da cúpula: em relação a uma base que ela encara com desconfiança. Está aqui em marcha uma lógica que, sem preocupações com a teoria, se encaminha a direito para a autocracia. A questão que nos ocupa está toda nesta conexão interna entre formas organizacionais e conteúdos políticos. Um partido revolucionário que concebe inteiramente no futuro a sua razão de ser, "o socialismo" -já que a sua condição, tão problemática como absoluta, é a conquista do poder - não tem outra opção que não seja enquanto espera voltar-se para as actividades potencialmente preparatórias dessa conquista no quadro do dispositivo político-estatal vigente, o da dominação burguesa. Entrar nas batalhas políticas e eleitorais, nelas ganhar posições e geri-las, fazer alianças circunstanciais, dar-se por palavras e actos uma imagem credível de eventual partido de governo, tudo isto lhe permite exprimir de forma indirecta a sua identidade, mas com a necessidade de passar por muitas das formas e das lógicas dominantes: as de uma política organizada no modo burguês, sob alta vigilância e numa esfera separada, com as suas manipulações estatais e o seu campo falseado, os seus actores profissionais e os seus discursos de conveniência, as suas práticas sem escrúpulos e os seus cidadãos sem poder - em resumo, todas as já provadas modalidades da alienação política. Ora, a partir do momento em que se aceita uma decisiva clivagem entre o adiar para as calendas os objectivos "socialistas" e a inserção imediata nas estruturas existentes, a actividade do partido revolucionário começa irresistivelmente a interiorizar as formas da política alienada como outras tantas exigências antinómicas de um combate emancipador; mas que a cúpula, assumindo a sua escolha estratégica, se sente obrigada a impor à sua própria base. E o centralismo autocrático não é mais do que esta interiorização. Monopolização por uma direcção sem controlo do poder de decidir, desapossar generalizado dos aderentes desavergonhadamente manipulados, peso de uma burocracia permanente, inflação de falsas aparências e de discursos de circunstância, tudo isto em nome do superior interesse do partido. É, como o dizia Clara Zetkin, todo um sistema onde está marcado o estatuto de aparelho de Estado e que o partido de oposição, nem que seja em princípio revolucionário, acaba por partilhar de um modo ou de outro com as formações dominantes - Althusser foi, penetrantemente, o primeiro a enunciá-lo. O centralismo autocrático traduz claramente a impossibilidade de fazer adoptar democraticamente pelo conjunto do partido um realismo de direcção em que o ideal do militante se sente traído. Este é, em definitivo, o fundo político que a explicação aceite do estalinismo organizacional esconde. A fonte do centralismo autocrático não reside no apego ao leninismo mas, bem pelo contrário, na flagrante renúncia ao comunismo enquanto movimento já actual em que a política deve começar a desalienar-se. É precisamente por isso que o modo de funcionamento do POSDR de Lenine, que não adiava sine die os seus objectivos revolucionários, não era o centralismo autocrático, que se tornou o modo de funcionamento por excelência do PC(b) estalinista quando este renunciou simultaneamente às grandes desalienações comunistas, como o definhar do Estado, e ainda por cima se integrou no sistema interestatal mundial, adoptando sem reservas os seus costumes, como o ilustra o pacto germano-soviético de 1939.

[pgs 179_183. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]


Inclusão 02/08/2002