Stálin

Emil Ludwig


Capítulo IV — Rebeldes Contra Rebeldes


CAPA

Entre todos os povos do mundo, os russos e os americanos são os mais loquazes. Ambos fogem do isolamento, embora por motivos diferentes. O americano gosta de rir e, quando se está só, o mais que se pode fazer é sorrir. Gosta de movimento e de uma ocupação em comum.

Os russos, por seu lado, reúnem-se para discutir. Em nenhum outro povo no mundo há tanta guerra de palavras; isto explica a lentidão, porém também a profundeza, da evolução russa. Outros povos também falaram muito antes e depois de suas revoluções, e seus líderes legaram muitos volumes de discursos à posteridade. Mas o fenômeno é cem vezes maior entre os russos, pela razão muito simples de que eles não possuíam um Soviet só, ou mesmo vinte Soviets — isto é, Conselhos — porém centenas deles e milhares de sessões do Partido com intermináveis discussões.

Nos quatro anos que se seguiram à morte de Lenine, em 1924, muito se falou e pouco se fez. Na vida de Stalin, este foi o período de preparação para a ditadura. Para esclarecer a nova forma de Estado, foi invocado o sistema democrático de debates. Dos intermináveis debates de todos esses Soviets, comitês e delegações, resultou a autocracia de um só homem. Napoleão teria cortado os debates com sua espada. Na Rússia, ninguém tinha uma espada.

Assim, antes da primeira reconstrução da Rússia sob Lenine e da segunda sob Stalin, passaram-se quatro anos em que nada se construiu, o tempo tendo sido consumido em grandes batalhas de dogmas — na realidade, nos choques de homens hostis por trás dos choques de princípios. A luta entre Stalin e Trotsky constituiu a principal substância desses quatro anos. Terminou pela vitória completa de Stalin e a criação da ditadura que, depois, o habilitou a levar a cabo a reconstrução da Rússia.

Como no Julius Caesar de Shakespeare, a luta acendeu-se imediatamente em volta do cadáver do líder. Durante as primeiras semanas, feriu-se em silêncio e principalmente entre a viúva de Lenine e seu sucessor. Krupskaya — este era o nome de sua fervorosa companheira — tinha uma batalha silenciosa e obstinada a decidir com Stalin, porque da publicação ou não publicação daquelas duas "notas", que eram o testamento de Lenine sobre a sucessão, dependia sua situação no futuro.

Por trinta anos, essa mulher se impusera ao respeito de amigos e inimigos. Embora não tivesse filhos, que lhe distraíssem a atenção e as energias, conservou-se sempre na penumbra. Nos vinte anos de exílio de Lenine no estrangeiro e nos sete anos de seu governo tempestuoso, nunca houve nenhum desses chás, dias de recepção e partidas, que são o terreno de caça favorito às mulheres de embaixadores e ministros. É preciso ter sempre em mente que os primeiros quinze ou vinte anos de vida soviética não primaram pela alegria.

Foi com muito tato que a mulher de Lenine, sem ser delegada do Partido, — tinha é verdade tomado parte no Congresso por muitos anos — se apresentou abertamente para ajudar Trotsky em certos momentos críticos nos anos que se seguiram e, imediatamente depois da morte do marido, escreveu-lhe esta carta:

"Escrevo para informá-lo de que cerca de um mês antes de sua morte, Vladimir Ilytich (Lenine) leu seu livro, demorou numa passagem em que o senhor trata das características de Marx e Lenine. Pediu-me para ler-lhe a passagem novamente; escutou atentamente e depois tornou a lê-la ele mesmo.

E quero dizer-lhe o seguinte também: os sentimentos que o senhor despertou nele, quando foi visitar-nos em Londres, vindo da Sibéria (1902), não sofreram nenhuma mudança até à sua morte. Desejo-lhe, Leo Davidovich, saúde e vigor e abraça-o. N. Krupskaya.

Essa mulher pediu em vão que o testamento de Lenine fosse lido em público. Stalin, Secretário Geral do Partido, conseguiu que fosse feita uma leitura secreta perante um Comitê, não obstante o Congresso estar em sessão a esse tempo. Foi quatro meses depois da morte de Lenine que dezenove homens se reuniram numa sala no Kremlin e Stalin leu em voz alta o documento que pesava tanto contra ele.

"Ninguém deu uma palavra. Foi só quando Stálin chegou à frase "o passado não bolchevista de Trotsky não é um acidente" que Trotsky o interrompeu e perguntou: "Que diz isso?" A frase foi repetida. Estas foram as únicas palavras pronunciadas nesse momento solene";

Foi assim que Radek, uma testemunha ocular, me descreveu a cena depois que se desaveio com Trotsky pela primeira vez. Trotsky, porém, não somente contradisse a descrição de Radek como também negou a existência da observação crítica de Lenine sobre ele. Uma vez que os documentos originais já não existem ou são inacessíveis, as únicas interpretações possíveis dependem das simpatias pessoais.

A voz de Lenine, se pudesse sair de trás da tampa de vidro do ataúde na Praça Vermelha, seria capaz de decidir não só a sucessão como, com ela, a evolução política do país. Tanto Stalin como Trotsky eram louvados e criticados no seu testamento, mas Trotsky era indicado como o melhor dotado. Contudo, como não era um monarca absoluto que decretava sua sucessão, o Congresso do Partido podia conferir a liderança do Estado, da mesma forma que a do Partido, a qualquer que julgasse capaz. Não houve perante o Congresso senão uma intimação moral, porém esta partiu do fundador reconhecido do novo Estado.

A noção errônea de Lenine de que um Comitê, ou mesmo um Triunvirato, podia assumir o governo de um Estado ao mesmo tempo jovem e tão novo no seu caráter, originava-se na crença de que ele próprio tinha sempre governado junto com um Soviet. De fato, tinha sido ditador, mas certamente com o quase ininterrupto apoio de seus camaradas. Agora, depois de sua morte, havia meia dúzia de camaradas que aspiravam a sua posição. Mas havia só dois homens em que se podia pensar seriamente: Stalin e Trotsky; o primeiro por causa da influência que tão arduamente preparara para si dentro do Partido; o segundo, por causa da fama que adquirira na Revolução.

Mas as bases mais profundas para o êxito de Stalin sobre Trotsky devem ser procuradas na época mesma. A transição da revolução para a construção trouxe uma mudança de ritmo. Seria naturalmente errado dizer que Trotsky não era mais do que um revolucionário e Stalin não era senão um reconstrutor; cada um deles era ambas as coisas. Mas o temperamento pronto e explosivo de Trotsky revelava-o no seu aspecto mais brilhante nos tempos de lutas incessantes. A natureza asiática, lenta e sombria de Stalin combinava melhor com um período em que a dura necessidade impunha a disciplina de restrições.

Lenine tinha previsto com profunda preocupação que esses dois homens não poderiam governar juntos.

Fundamentalmente, Stalin e Trotsky queriam ambos a mesma coisa, isto é, construir o Estado industrial e continuar a luta contra o camponês rico, o kulak, que sobrevivera numa posição mediana entre a nobreza proprietária das terras e o camponês ainda não libertado. Mas queriam estas coisas por modos diferentes e esses modos estavam relacionados com os respectivos temperamentos. Relanceando um olhar retrospectivo para o que Stalin fez depois, sentimo-nos inclinados a admitir que o espírito da história o vingou. Parece que, com seu apaixonado amor à causa russa, que fez sua própria, veio a conhecer o povo melhor que Trotsky. Além disso, tinha os olhos voltados para a Ásia, donde era originário e donde tirava seus standards e seu ritmo, e não julgava os europeus capazes da revolução social, ao passo que já vira sua aurora na China.

Nesse ponto decisivo, Stalin provou estar com a razão. Trotsky, europeu ocidental cem por cento, tinha, com todos os seus conhecimentos de povos e línguas, errado na questão do ritmo revolucionário da Europa. O que, ele chamava a revolução permanente, querendo dizer a revolução mundial, não chegou no seu tempo nem no nosso, ao passo que Stalin construiu seu Estado individual.

Stalin realizou gradualmente tudo o que a princípio combatera no programa político de Trotsky. Concluiu, exatamente da mesma forma, com a Alemanha, o pacto que acusara seus adversários de planejar e pelo qual os punira com a pena de morte. Talvez tivesse razão no que diz respeito à oportunidade. Nesse novo cometimento, do qual não tinha nenhum modelo histórico que pudesse seguir, tinha simplesmente que governar baseado em conjecturas. Anuviava o Estado uma pergunta sem resposta: Os outros Estados, especialmente a vizinha Alemanha, imitariam a experiência russa e a facilitariam?

Quando o testamento de Lenine se tornou público, tendo-se espalhado furtivamente de boca em boca, Stalin apresentou sua renúncia, porque estava certo de que o Congresso, que era seu instrumento, a recusaria; e isso foi, de fato, o que aconteceu. Ficou assim em posição de empregar métodos democráticos na luta contra a crescente oposição liderada por Trotsky, a basear-se em eleições e resoluções aceitas por maioria de votos e a proceder sobre estas bases à reconstrução da Rússia. Estava em posição de fazer isso, mas na verdade a tarefa era tão enorme, tão nova e complicada que, na sua opinião, só podia ser levada a cabo por meio de ordens diretas. Foi por isso que considerou a oposição da minoria como uma conspiração, e resolveu que, se qualquer homem se opusesse a ele, Stalin, o privaria do seu emprego, do seu meio de vida, da sua liberdade de falar ou escrever e, finalmente, de sua liberdade pessoal.

Para fazer isso era preciso recorrer aos velhos métodos tzaristas; a G. P. U. tornou-se tão semelhante à velha polícia secreta imperial que, como a Inquisição espanhola, justificava todas as ilegalidades em nome da defesa da fé. Mas neste caso "a fé" — o velho programa do Partido — não existia mais como uma realidade; tinha-se tornado altamente flexível e portanto produtiva.

Stalin inventou, depois da morte de Lenine, o "Leninismo" e com ele o culto de Lenine.

Eu mesmo vi o retrato de Lenine na parede da casa de um camponês, defronte da imagem da Madona. O novo Leninismo era necessário como um contrapeso para o Trotskismo.

Mas que significava a palavra? Quando Stalin abrogou o testamento de Lenine,, seus partidários falaram num velho doente que para o fim de sua vida estava sendo iludido com informações falsas; e simultaneamente citaram o que acharam útil aos seus fins em suas antigas obras.

O fato de que, tanto Lenine como Marx, tinham declarado ser impossível instituir o socialismo num só país não era prova de que não podia agora, recorrendo a muitas precauções e rodeios, ser introduzido na Rússia. O pior disso era que essa luta e essa interminável discussão russa resultavam num retardamento do processo de reconstrução. Stalin sentiu desde logo que não podia governar contra a oposição de uma minoria forte, chefiada pelo homem mais popular do país. Trotsky por sua vez sentia-se o herdeiro de Lenine.

Mas, por outro lado, Trotsky era inteiramente destituído das intenções napoleônicas que lhe eram atribuídas. Nos primeiros tempos, é preciso notar, ele nunca fizera uso de seu poder como Ministro da Guerra para cometer atos de violência, como Hitler fez nos seus primeiros meses no poder. O fato de Trotsky não ter feito isso era da essência do seu caráter: ele era um homem que, quaisquer que fossem as circunstâncias, queria submeter-se às leis da democracia, mas era também um homem cuja confiança em si próprio firmava nele a crença que Danton tivera também: "Eles não ousarão isso!" Longe de tentar um golpe de Estado, recusou mesmo ser o líder oficial da oposição.

Trotsky, que primeiro criara o exército e depois o comandara, tinha agora se retirado do Ministério da Guerra. Tomou a si a direção do desenvolvimento da eletricidade no país e o Departamento de Concessões e entregou-se com impetuosidade à nova ciência e aos novos problemas. Como podia um tão poderoso, popular e ainda moço oponente ser suplantado?

Stalin encontrou dois métodos: usou tinta de impressão e privou Trotsky dela. Quase da noite para o dia começou uma campanha, na imprensa controlada pelo Estado, contra Trotsky e o "Trotskismo". Foram descobertas velhas cartas e citadas contra ele. Quando tentou responder, seus adversários primeiro demoraram a publicação dos seus artigos, depois alteraram-lhes o texto e por fim proibiram em absoluto a sua publicação. Um livro, em que ele traçou um quadro do passado e do futuro, foi imediatamente esgotado e não tornou a ser editado. Em milhares de reuniões, em milhares de cartazes, nas fábricas e nos campos, solaparam a reputação desse homem.

Trotsky não tinha construído a máquina política. Tinha uma fé excessiva nas massas porque não vinha delas e sim da burguesia; Stalin, nascido de operários, sabia, havia muito, que se podia fazer tudo com eles. Assim foi que dois anos bastaram para arruinar o nome de Trotsky em todo o país, porque os milhões liam todas as acusações contra ele e nenhuma defesa.

Quando se tornou conhecido que Stalin submetera à sua vontade a maioria dos Soviets, houve uma corrida geral que aumentou dez vezes a maioria. Os mais antigos líderes prostravam-se para salvarem-se ou para perecerem depois de privados de toda sua reputação. Zinoviev, que também se considerava herdeiro de Lenine, e que atrairá alguma atenção no estrangeiro, a princípio tentou a luta contra Stalin, seu colega na Troika, na esperança de poder derribá-lo. Um deles estava estacionado em Leningrado, o outro em Moscou e continuaram a disparar seus tiros impressos um contra o outro. Depois, de repente, Zinoviev fez meia volta e submeteu-se, na esperança de que, pelo menos, lhe fosse permitido partilhar do governo.

Com que rapidez desapareceram os retratos de Trotsky! Por oito ou nove anos, o operário e muitas vezes o camponês também, especialmente se tinha sido soldado, tinham tido o retrato de Trotsky na parede. Agora quando, visitando um amigo, via um retrato de Stalin, seguia imediatamente o exemplo do amigo.

E não era muito natural que essa gente, cansada da luta de uma década, quisesse paz e preferisse um líder legítimo a um eterno oposicionista? Queriam ordem e pão e não novas experiências.

Mas o sentimento do povo ocasionalmente vinha â tona, especialmente no exército. Na décima celebração anual da Revolução, em Outubro de 1927, Trotsky e alguns amigos, que vieram num carro como espectadores, foram forçados pela multidão a entrar num beco sem saída; soldados ajudaram-nos a sair de lá. Assim que a multidão soube onde estava, deixou as tribunas oficiais e obrigou Trotsky a subir a uma plataforma; os líderes oficiais ficaram sós, a festa foi transferida para o perseguido. Mas quando, poucos dias depois, a oposição organizou uma procissão com cartazes em que eram reproduzidas — exatamente como em Julius Caesar — as palavras — "Leiam o testamento de Lenine" — os que os carregavam foram dispersados pela polícia. De outra vez, um polícia atirou contra o carro de Trotsky. Reuniões ao ar livre eram interrompidas pelo aparecimento de um par de centenas de automóveis que, com o contínuo buzinar, impediam que se ouvissem os oradores.

Nestas condições, Trotsky e seus partidários eram obrigados a realizar reuniões ilegais. Quais deveriam ser suas emoções quando, exatamente como na sua mocidade, viviam correndo da polícia secreta do Tzar, tinham agora de fugir dos seus próprios camaradas e refugiar-se nalgum pobre lar operário? Trotsky sorriu quando, depois de um lapso de trinta anos, viu diante de si um prelo secreto. Riu-se quando leu no Pravda a acusação de que ele e Zinoviev estavam aliados a generais Brancos. Mas irritou-se, da mesma forma, quando sua defesa não foi impressa no Congresso.

Stalin sabia que as últimas palavras de Lenine contra ele estavam sendo repetidas por todo o país. Mas, em lugar de reprimi-las, foi inteligente bastante para repeti-las com o seu próprio colorido. Disse ao Congresso:

"Sim, camaradas, é verdade que eu sou uma espécie de tipo rude. Não o nego... Estou pronto para uma luta aberta diante do Congresso. O Partido não se submeterá à vontade de um só líder. Os debates não devem ir muito longe. Não esqueçamos que somos um Partido que governa. Toda a expressão aberta de desaprovação pode enfraquecer nossa influência dentro do país e mais ainda no estrangeiro. A união no nosso Partido tem que ser mantida. Qualquer um que se exceder será chamado à ordem. A formação de facções dentro do Partido não será permitida ou nos fragmentaremos."

A luta entre os dois homens tornou-se mais acesa quando a tendência política do mundo pareceu inclinar-se na direção do socialismo e a Rússia Soviética poderia ir em auxílio de outros países. A greve geral em 1926, na Grã Bretanha, que Trotsky predisse com exatidão até na data, pareceu-lhe ser um sinal e chamou Stalin a contas pelo seu retraimento:

"Se não interviermos diretamente apoiando a Revolução mundial que nasce, perderemos a força mesmo na Rússia."

Mas que podiam as massas compreender de Revolução mundial ou esperar dela? Durante os primeiros anos, bateram-se rudemente pelas terras que tinham tomado da nobreza e dos latifundiários e pelos seus direitos cívicos. Depois lutaram apaixonadamente para a formação do Estado industrial. Mas nesse interim, durante os quatro anos que terminaram em 1928, estavam sem ambições urgentes, sem paixão e por isso hostis a qualquer forma de oposição. Tinham notado, de fato, que seu pão se tornara mais leve e que a Rússia era agora obrigada a importar trigo. Mas não queriam mais ouvir falar em Revolução, ou nos operários ingleses em cujo auxílio deviam correr.

Enquanto essa disposição reinava no país, Stalin agiu, removeu Zinoviev e Kamenev, seus dois amigos, das altas posições que ocupavam e, finalmente, conseguiu que o Congresso removesse também Trotsky do Politburo.

Mas Trotsky voltou à luta e com excelentes fundamentos. Chiang-Kai-Shek, que fizera uma aliança com os comunistas, fez, subitamente, uma contra-marcha e procedeu a um sangrento expurgo na China. Stalin parecia comprometido, porque fora ele, o asiático, que reforçara os laços de amizade com o líder chinês e recomendara a criação de um grande bloco asiático de 600.000.000 contra o Império Britânico. Agora, Trotsky acusava-o de ter traído a Revolução mundial, e oitenta e três líderes muito conhecidos subscreveram o manifesto.

Nesta situação perigosa, Stalin arriscou tudo e realizou seu golpe de Estado. Fez o subserviente Comitê do Congresso aprovar a resolução mandando o líder para o exílio. Certas passagens do caloroso debate chegaram até nós:

Stalin: O senhor, camarada Trotsky, não pode nem encontrar a coragem para defender sua própria fórmula.

Trotsky: Um "slogan" que alguém inventou. Não tenho nada que ver com suas calúnias.

Stalin: O camarada Trotsky sabe muito bem que posso provar tudo com documentos.

Trotsky: O senhor não pode provar nada. É um mentiroso.

Stalin: Deixo as injúrias por sua conta. Submeterei os documentos do nosso camarada a exame.

Dentro de poucos dias o Congresso resolveu exilar Trotsky. Ele recusou obedecer à sentença. Quando a polícia foi buscá-lo, ficou sentado e os homens tiveram de levantá-lo nos braços e carregá-lo descendo a escada a força. Seu filho, de dezesseis anos, passou por entre eles e gritou para a rua: "Camaradas, estão levando Trotsky!" Na estação, a multidão impediu o acesso à plataforma e Trotsky foi levado novamente para casa. Houve uma demora. No dia seguinte, outra manobra: o trem partiu de outra estação. Por sete dias, Trotsky, sua mulher e seu filho viajaram para o país de Kirghiz, para o exílio na Sibéria, de onde fugira vinte e um anos antes, na mesma ocasião e pelo mesmo modo que Stalin. Nas aldeias, pelo caminho, o filho provia-se de pão, manteiga e material para escrever.

Foi então que Trotsky mostrou poder erguer-se acima do destino. Nessa situação trágica podia gracejar reunindo os restos do seu pequeno lar despedaçado num simulacro de "reconstrução," nomeando seu filho "Diretor Geral dos Correios". Nos confins do mundo, no meio da malária e de cães selvagens, instalaram-se com o clássico bom humor. Trotsky entregou-se ao estudo da geografia, história e economia da Ásia. Uma fotografia mostra os três com um "borzoi", sua mulher com a mão pousada de leve no ombro do filho e, com os olhos cheios de confiança erguidos para o marido: a família do idealista.

Não foi em vão que estiveram exilados na sua juventude. Todos conheciam os meios tortuosos com os quais um governo pode ser enganado. Mas Stalin, que agora tinha de representar o papel de governo, também os conhecia, e muito bem. Reconheceu o fato de que 3.000 milhas entre Trotsky e Moscou não eram o bastante. O inimigo tinha que ser mandado para fora do país. Um ano depois deter sido exilado, leram-lhe um decreto da polícia secreta: tendo conspirado para tomar armas contra a União dos Soviets ia ser deportado para a Turquia.

Depois de todas as agruras de uma viagem de trenó através de gargantas de montanhas em Janeiro, depois de uma viagem de 4.00O milhas que levou vinte dias, chegaram ao Mar Negro. O vapor estava preso no gelo e teve de ser libertado por um quebra-gelo para poder seguir com os três deportados para Constantinopla.

Ao mesmo tempo, Stalin, também congelado no Kremlin, sentiu-se libertado como por um quebra-gelo. O inimigo partira. Agora, podia iniciar seu trabalho de reconstrução. Mas, quando já ia esquecendo esse incidente, por acaso deparou, no último relatório que recebera, com o nome do navio em que levavam Trotsky para fora da Rússia.

Era Lenine!

Depois de Trotsky partir, o Trotskismo continuou a viver. Havia milhões que o amavam e um número de líderes importantes secretamente fiéis às suas idéias. Isso podia dar origem a conspirações, que também se poderiam chamar contra-revoluções. Não podemos analisar aqui a natureza desta oposição.

Stalin, que estava começando seu trabalho de reconstrução, tinha necessariamente que distrair a metade de suas forças para o combate contra O Trotskismo. No fim de 1934 seu camarada Khirov foi assassinado em Leningrado. Toda a Rússia sentiu que esse tiro visava Stalin.

Desta vez ele tomou a ofensiva: em dois, realmente três, julgamentos monstros, avançou contra seus inimigos e no fim aniquilou Trotsky, executando seus partidários.

Que Trotsky mesmo era incorruptível nos seus métodos, prova-o toda sua vida. Mas, na exacerbação da última década mais ou menos, às vezes permitiu que sua política se baseasse na atitude de Stalin e talvez advogasse certas medidas somente porque Stalin as rejeitara. Por outro lado tinha, no último ano de sua vida, 1940, dominado todo o sentimento de vingança, e escreveu apoiando a Rússia na guerra contra a Finlândia que, afinal, tinha sido provocada por Stalin.

Entre os cinquenta bolchevistas, mais ou menos, que Stalin fez condenar nos três grandes julgamentos como "quinta-colunistas", deve ter havido pelo menos alguns poucos que não reconheceram seus próprios motivos, como se dá frequentemente com idealistas. Ninguém ousou sugestionar vantagens de ordem particular como motivo.

Três deles eu conheci. Esses homens podem muito bem ter acreditado que, com um pacto com a Alemanha, a esse tempo enormemente superior, podiam evitar o perigo de uma derrota militar. Seus adversários chamaram a isso alta traição. Mas que é alta traição em tempos revolucionários? Onde terminam os limites? Não assinou Lenine a paz com essa mesma Alemanha em começos de 1918, e não foi o subsequente colapso alemão que o salvou das terríveis consequências de um erro que os seus rivais poderiam ter chamado alta traição?

A mais surpreendente feição desses julgamentos foram as confissões feitas por todos os acusados. Falou-se mesmo em veneno e hipnotismo, uma hipótese que o varonil e sadio porte dos depoentes eram bastantes para desmentir. Em muitos países, a confissão constitui prova, como por exemplo, conforme a Constituição Americana (art. 2.º, Seção 3.ª). Na Rússia Soviética, o fanatismo pelo Partido vai ao extremo de terem que confessar tudo o que este ordena. É preciso, porém, notai que o direito de fazer uma declaração só foi concedido aos acusados que já tinham confessado em interrogatórios secretos. Mas é precisamente esta técnica de acusação, tão adequada à falsificação de todo o quadro, que fala a favor da veracidade da confissão.

Ou quem acreditaria seriamente que homens, que já tinham mantido corajosamente suas opiniões, afrontando as ameaças dos tribunais tzaristas, fraquejassem subitamente quando todo o país os escutava? Esses homens acusados eram camaradas daquela Spiridonova a quem jovens oficiais tzaristas torturaram na prisão aplicando-lhe cigarros acesos na carne para fazê-la revelar os nomes dos companheiros revolucionários. Sentiu a carne queimar e ficou silenciosa.

Muito provavelmente, os acusados, em sua maioria, eram tão sinceros nos seus propósitos quanto Stalin nos seus. Aqui também razões pessoais e objetivas estavam intimamente entrelaçadas. Talvez Stalin tivesse tão pouca consciência de seu sentimento de vingança contra Trotsky quanto este, com seus amigos, do seu ódio contra Stalin. Ambos os Partidos queriam salvar o jovem Estado para cuja fundação tinham lutado a vida inteira. Nesses casos, a questão de direito desaparece e só a força decide o resultado. Se Stalin, a esse tempo, tivesse sido derribado pelos seus adversários e condenado à morte, o que podia muito bem ter acontecido, poderia hoje figurar na mesma lista de mártires. Tivessem seus adversários triunfado e assinado um pacto com, a Alemanha, teriam sido muito provavelmente atacados por esta durante a Segunda Guerra Mundial, exatamente da mesma forma. O fato de terem sido eles os fuzilados, enquanto Stalin vive, hoje, governa e luta, sugere uma dessas questões de força e poder que se resolvem, segundo nossa opinião, falando da sorte ou do gênio do vitorioso.

O melhor é olhar um acontecimento assim como um drama. A realidade mais elevada da tragédia ergue-nos acima dos acidentes do tempo e das circunstâncias. O que sucedeu durante os julgamentos de Moscou já tinha sido dito poeticamente por Shakespeare, Victor Hugo e Schiller. As revoluções sempre devoram seus próprios filhos; e isto com profunda razão filosófica, porque os sentimentos de amor e de ódio habitam perto uns dos outros. O olhar apaixonado e o tom de voz com que ouvi Trotsky falar de Stalin, e Stalin de Trotsky, não eram certamente os únicos atirados por ambos um ao outro. Não é uma luta trágica aquela em que ambos os adversários estão com o direito e em certos momentos mesmo convencidos da razão de seu inimigo?

As crônicas dos julgamentos de Moscou representam um documento humano de primeira ordem e um dia, transformadas por um poeta imparcial, emocionarão a posteridade, como hoje nos emocionamos com Savonarola, Cromwell e Danton no teatro. Aqui, um detentor do poder descobrira que aqueles que planejavam matá-lo e ao seu sistema não eram os maiores inimigos do seu mundo, mas os mais antigos amigos, com cujo auxílio findara esse novo mundo. A luta pelo poder fundiu-se aqui, como em toda a parte na história, com a luta pelos princípios. Não era a sociedade socializada a meta comum de Trotsky e Stalin? Queriam Trotsky e seus partidários fazer-se fascistas para governar? Só quem já fitou um genuíno revolucionário nos olhos, pode sequer imaginar uma tal perversão.

As mais importantes revelações nesta história foram as que fez Radek, cuja confissão e defesa, juntas à sua perfeita dialética, viveza e sutilidade, eram suficientes para imortalizar esses julgamentos. Qualquer admirador do espírito, reconhecendo na força deste — e não na dos números — o senhor do mundo, será grato ao fato de ter Radek salvo a vida com a sua confissão, podendo talvez estar hoje, depois de cinco anos de prisão, perto de obter a liberdade — no caso de estar ainda vivo. Com a sua exposição e auto-análise, esclareceu o processo para sempre. Vimos que, de toda uma época, nada se pode preservar do pó das bibliotecas e passar à posteridade, exceto uma anedota, a resposta, o olhar, o gesto de um réu.

É verdade que Radek — e com ele os outros que procederam de modo semelhante — não era inocente só porque continuamente se confessava culpado de um modo demolidor "mesmo em relação a intrigas que ignoro." Contudo, era culpado dentro dos moldes desta ordem social: porque queria destruí-la e deu passos para combater junto com o arqui-inimigo, contra seus próprios camaradas e superiores.

A incerteza que ainda hoje se sente sobre esses julgamentos não é causada pelas coisas que foram ocultas e sim por aquelas que surgiram durante a marcha do processo. Porque as provas mais fortes não eram necessárias contra os acusados diante do tribunal, mas contra o homem que estava a 8.000 milhas de distância, no México: contra Trotsky, que precisava ser desacreditado perante o povo russo a qualquer preço. Por isso, quando Radek falou das cartas de Trotsky — as principais provas da conspiração — esse político experiente poderia bem ter citado tanto do seu sentido e conteúdo quanto pudesse ser útil à situação política e à sua própria salvação: afinal, as cartas não existiam mais. Talvez nada pudesse ter sido mais engenhoso do que exagerar as instruções escritas de Trotsky e suas conversas com outros dos acusados, de tal maneira que ele parecesse o arqui-traidor para os milhões que escutavam, enquanto que Radek e seus amigos pareceriam pecadores penitentes.

Ouvi Radek falar sobre Trotsky em Moscou em 1925 e 1931, antes e depois de sua deserção. Da primeira vez, nos seus modestos aposentos no alojamento dos criados no Kremlin, falou-me com entusiasmo do outro que estava ausente numa viagem oficial. Mais tarde, declarou-me, num tom e com modos que me pareceram por demais solenes, quase clericais, que pesquisara seu coração durante o exílio, reexaminara tudo e reconhecera o absurdo do programa de Trotsky. Se ele, Radek, conforme suas confissões diante do tribunal, se aproximou dele novamente pouco depois e, finalmente, como seu representante, rumou para a traição por pretender deixar os alemães entrarem no país, isso não foi motivado por fantasias pessoais, porém por variações comuns na política e descobertas centenas de vezes em documentos históricos privados.

Schiller teve uma frase ousada e perigosa sobre conspirações:

"Se têm êxito, o perdão não demora."

Assim sendo, os acusados de Moscou só foram condenados por não terem logrado êxito. Toda a traição, uma vez bem sucedida, torna-se legítima, tornando legal o que era ilegal antes. O mesmo é verdade quanto à guerra. O criminoso que matou o rival e foi condenado pelo Estado à prisão perpétua, pode, diante de uma ameaça de derrota, ser perdoado por esse mesmo Estado e mandado para a frente como soldado com ordem de atenuar seu primeiro crime matando os inimigos do país.

Radek, sob a pressão constante do Promotor para confessar a traição, não pôde ser induzido a desviar-se de sua sutileza.

— É uma coisa diferente — declarou ele — se alguém vê na guerra a possibilidade de criar condições sob as quais possa realizar suas idéias, ou se, pondo todo o significado político de parte, aspira lutar contra sua própria pátria para alcançar o poder. É sempre possível que a guerra rebente nesse momento, seja perdida, e varra todos nós.

Esses argumentos são tão tipicamente russos como o apaixonado interesse de centenas de milhões no andamento desse processo que acompanharam por dias sucessivos pelo rádio. Só é possível compreender esses homens acusados, como a sua apaixonada auto acusação, pensando em Dosloiewski; e espanta-nos ver que o caráter russo manteve-se o mesmo durante um período tão agitado, não mudando com esse grande movimento. Tais julgamentos não seriam possíveis em nenhum outro país; em parte alguma, nem mesmo na França, os juízes teriam tido paciência e interesse pelo que estava oculto no íntimo de homens a quem podiam condenar a serem executados no dia seguinte como conspiradores.

Stalin, também, tem muito do eslavo para ter acompanhado o processo dos seus arqui-inimigos com uma expressão obtusa e brutal como a que exibiu Goering no julgamento em Leipzig depois do incêndio do Reichstag, em 1933, quando voltou a cara bruta e a voz berrante contra o acusado Dimitrov. Essa profunda participação na vida íntima de líderes e partidários teve consequências práticas decisivas na Rússia. Sem ela, o exército russo, o que quer dizer o povo, não podia persistir na luta contra as desalmadas tropas alemães. Em ultima análise, as guerras não se decidem pelo número de tanques e sim pela intensidade dos sentimentos do povo. O soldado russo defende apaixonadamente o que acabou de adquirir, enquanto que o alemão conquista friamente o objeto de que teve ordem de apoderar-se. No fim, será derrotado.

Fundamentalmente, a idéia de Stalin sobre o futuro dos Soviets diferia só num ponto — porém este decisivo — da dos seus inimigos. Ambos os lados previam o ataque alemão, mas Stalin cria na vitória; Trotsky e seus partidários na derrota. Stalin avaliava com acerto as forças russas e alemãs; os outros estavam em erro. Em 1937, mandou fuzilar treze de seus antigos camaradas porque tinham procurado aquela aliança com a Alemanha, que ele próprio concluiu dois anos depois, embora de forma diferente. Como nenhum dos acusados era suspeito de ter cometido traição visando vantagens pessoais, os motivos das duas facções são os mesmos, e só sua crença varia. Mas verifica-se que um líder tem sempre mais fé na sua causa do que um seu partidário que gostaria de estar no seu lugar e fazer melhor do que ele. O rival impotente pode manter melhor o bom conceito que faz de si próprio criticando o competidor mais afortunado. Se ambos são filósofos ou se os tempos estão calmos, o homem afortunado sorri e passa adiante. Mas se os tempos são agitados e perigosos, o outro tem que ser aniquilado.

Stalin combinava métodos asiáticos com psicologia russa. Também Trotsky, não obstante ter mais do filósofo, não recuava do terrorismo. Trotsky, se estivesse no lugar de Stalin, teria concluído o pacto com a Alemanha, prevendo que uma das partes teria de rompe-lo. Trotsky teria também expandido o exército da mesma maneira imponente e dirigido-o com o mesmo élan contra os alemães.


Inclusão 04/05/2011
Última alteração 07/04/2016