O Materialismo Histórico em 14 Lições

L. A.Tckeskiss


Lição II: A Hierarquia das Ciências


Na lição precedente, estudamos os conceitos de fenômenos sociais e acontecimentos históricos; procuramos defini-los, concretizá-los; distinguimos os momentos físicos, químicos e psicológicos que devem ser estudados pelas ciências naturais correspondentes e pela psicologia, detendo-nos somente sobre os momentos puramente sociais que devem servir de objeto á sociologia e à historia.

À pergunta: podem esses fenômenos servir de objeto para uma investigação cientifica rigorosa, responderemos que, não sendo produto do acaso os fenômenos sociais puros que destacamos, mas constantes, isto é, que se repetem e estão relacionados entre si, podem, por isso ser estudados cientificamente e por conseguinte previstos.

O mesmo sucede também com os acontecimentos históricos; vimos que, sendo esses fenômenos parte dos fenômenos sociais em geral, podem igualmente ser investigados cientificamente. Vimos ao mesmo tempo, em que consistia a dificuldade do problema da investigação cientifica dos fenômenos sociais.

Há, entretanto mais uma grande dificuldade sobre a qual vamos chamar a atenção. Consiste essa dificuldade no fato de cada fenômeno social estar relacionado com a atividade humana que é, antes de tudo, a expressão da vontade.

Mas o homem supõe que a revelação de sua própria vontade é um ato livre, que não está sujeito a lei alguma, e isto ocasiona grande dificuldade ao estudo cientifico do fenômeno.

O homem selvagem, explica, por exemplo, o trovão como a revelação da vontade divina. Explica assim os fenômenos naturais do mesmo modo que os fenômenos de sua própria vida: sua atividade é o resultado de sua própria vontade; os fenômenos naturais são para ele o resultado da vontade divina.

Ora, desde que se empregou semelhante método na observação dos fenômenos naturais, estes jamais puderam servir de objeto a uma investigação cientifica. As ciências naturais por si tiveram que percorrer longo caminho de desenvolvimento antes de chegarem a se constituir em verdadeiras ciências, e prepararem assim o terreno próprio para o aparecimento da ciência social, que é por isso a mais jovem de todas as ciências.

Mas há ainda uma outra dificuldade; os fenômenos sociais, conquanto desarticulados, não deixam de ser fenômenos complexos, ligados a muitos momentos estranhos, criando por sua vez mais um obstáculo á investigação cientifica.(1)

É claro que somente depois que o homem aprendeu a compreender os fenômenos naturais, e após longo caminho de experiências, em que se acostumou a compreendê-los cientificamente, só então pode ele encetar o estudo cientifico dos fenômenos sociais. Alem disso, a atividade humana, estando como está, relacionada com a vida em geral, só pode tornar-se objeto de ciência quando se começou a investigar as leis da vida em geral. E tanto assim, que a ciência da vida – a biologia – é também uma das mais jovens no seu desenvolvimento. Qual a razão disso? É que os fenômenos da vida, tomados de um modo geral, tem formas especiais, singulares (na vida vemos os fenômenos como resultado de sua própria multiplicação), e para se explicar, até a bem pouco tempo, procurava-se uma força vital especial que fosse a causa da vida em si.

Claro está, portanto, que só foi possível explicar cientificamente os fenômenos da atividade humana, quando se conseguiu explicar cientificamente os fenômenos da vida. A ciência que estuda os fenômenos sociais ocupa, por isso, a última posição na escala das ciências – na hierarquia das ciências.

***

Lancemos um golpe de vista sobre essa hierarquia. Não nos deteremos nas chamadas ciências normativas, ou formais, isto é, cujo objeto é o estudo das relações mais simples entre os fenômenos, as formas pelas quais as coisas se nos apresentam (matemática e lógica). Apenas as lembramos e passamos ás ciências naturais concretas (ciências fenomenológicas).

Ao iniciarmos o estudo, a própria natureza se nos apresenta como formando dois mundos: um vivo (orgânico) e outro morto (inorgânico). Estudando o mundo “inorgânico”, encontramos fenômenos de duas espécies: físicos e químicos. E de duas espécies são também os corpos que aí vemos: 1º- os compostos de um único elemento e que não podem, portanto ser decompostos, 2º- os que se compõe de diversos elementos e podem ser decompostos.

As leis, a que estão submetidos todos os corpos da natureza, independentemente de sua composição (um ou vários elementos ou substancias), são estudadas pelas ciências — mecânicas e físicas. Essas leis são as mais gerais e mais simples dentre as que estudam os fenômenos (fenomenológicas ou concretas). As leis segundo as quais se operam as ligações das varias substancias nas suas diversas combinações são estudadas pela química. Essas leis não abarcam toda a natureza, mas grande parte dos fenômenos naturais estão a elas sujeitos. São menos gerais e menos simples que as leis da mecânica e da física. É claro que todos os corpos químicos estão sujeitos ás leis da mecânica, mas nem todos os corpos estão sujeitos ás leis da química. Por isso mesmo as leis da química são mais complexas que as da mecânica e da física. É, pois evidente que o homem aprendeu em primeiro lugar aquilo que é mais geral, mais fácil de compreender, mais simples de observar.

De fato, a mecânica e a física são as ciências mais antigas, e ocupam por seu grau de complexidade o primeiro lugar na escala das ciências, seguindo-se-lhes a química.

Vejamos agora o mundo orgânico ou vivo, aqui vemos desde logo, alguma coisa de novo; encontramos não somente combinações de elementos ou substancias, como nos fenômenos que formam o objeto da química. Os fenômenos da vida representam algo mais do que simples ligações e combinações de elementos químicos. A vida é o campo das formas que se multiplicam. A multiplicação se opera pela divisão das células, que constituem ou formam células novas semelhantes aquelas de que provieram. Assim, vemos que as leis puramente químicas não nos podem replicar os fenômenos da natureza orgânica (vida). Aqui deparamos com fenômenos revestidos de um caráter novo, e submetidos, portanto a leis especiais, com as quais se ocupa a biologia. Essas leis são menos gerais e mais complexas que as da química.

Não esqueçamos porem, que os fenômenos da natureza organizada (orgânica) estão igualmente submetidos ás leis mais gerais da mecânica, da física e da química. Mas, então, alem disso, submetidos a leis de um caráter especial, e são estas ultimas que vão constituir o objeto da nova ciência, — a biologia.(2)

Examinando mais detidamente os fenômenos orgânicos notamos que nem todos são semelhantes. Há organismos que possuem a faculdade de movimentação, outros há que não o possuem. E veremos ainda que, mesmo entre os que possuem a auto-movimentação, duas categorias se nos apresentam: nuns a auto-movimentação é provocada pelo consciente (como no homem) noutros essa auto-movimentação não é provocada pelo consciente, mas pelo instinto. Essas diferenças porem não são tão profundas que motivassem a existência de uma nova ciência para estudá-las. Com efeito, entre os organismos mais desenvolvidos sem auto-movimentação (vegetais) e os mais rudimentares com auto-movimentação (protozoários) não há quase diferença alguma. E o mesmo se observa ainda com relação aos organismos mais desenvolvidos com auto-movimentação instintiva e os mais rudimentares com auto-movimentação consciente (animais e selvagens).

Todos os fenômenos da vida são fenômenos da mesma espécie; não existem leis especiais da vida para vários organismos.(3)

Tomemos por exemplo o homem. Vemos que está sujeito: 1º- ás leis da mecânica e da física (força de gravidade da terra, etc.); 2º- ás leis da química (a nutrição de seu organismo se realiza em obediência as leis da química); 3º- ás leis especiais da biologia (multiplicação, movimento e crescimento); 4º- ás leis psico-fisiologicas (associação de idéias, conceitos, emoções, etc.).

Alem desses fenômenos estudados nas ciências acima referidas, surge diante de nós uma serie de outros fenômenos, constantes também e determinados por causas, ligados á atividade humana na vida em sociedade.

Podem as leis anteriores e disciplinas cientificas, explicar e investigar cientificamente a atividade humana no seu aspecto social? Não.

A atividade humana nesta esfera é provocada pela necessidade de satisfazer as múltiplas e variadas exigências da natureza humana indispensáveis ao seu desenvolvimento. Essas são demasiadamente complexas. A atividade de cada individuo está sempre ligada á de outros e á toda a sociedade. E esta atividade é que forma a vida social.

Devemos, por conseguinte, descobrir as leis da atividade humana em sociedade e que não foram estudadas nas ciências anteriores. Devemos, pois criar uma nova ciência, — a sociologia, que vem a ser uma das ultimas na hierarquia das ciências. Seu objeto serão os fenômenos que não podem, como já vimos, ser explicados pelas leis das ciências que a precederam.


Notas:

(1) Um tanto diferente era a situação da historia: tínhamos diante de nós fatos, tais como as revoluções e as guerras, que já não podiam ser explicadas pela vontade exclusiva de um homem. Tentou-se a sua explicação pela vontade conjunta de muitos homens. Mas aqui surge a pergunta: porque querem todos esses homens, a mesma coisa? Temos então que procurar as causas da vontade coletiva dos homens; mas enquanto os acontecimentos se explicavam pela vontade, seja embora a vontade coletiva, ficavam estranhos á ciência e deixavam de ser passiveis de uma investigação com esse caráter. (retornar ao texto)

(2) Para explicar os fenômenos da vida criou-se uma teoria que se chamou vitalista. Esta teoria explicava de uma maneira simplista os fenômenos, atribuindo-os a uma força especial, — a força vital. Esse era, alias, o modo antigo de explicar todos os fenômenos: — por uma força especial imaginada para o caso. Assim também na explicação dos complexos fenômenos da vida esse método anti-cientifico dominou por muito tempo. (retornar ao texto)

(3) Desde que a vida humana se desenvolveu em formas superiores, tentou-se determinar as leis a que estão submetidos os fenômenos do consciente e surgiu assim a psicologia. Mas, como veremos adiante, a psicologia está intimamente ligada à sociologia e forma parte desta. (retornar ao texto)

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Inclusão 21/02/2010