Marxismo e Existencialismo

August Thalheimer(1)


Primeira Edição: “Marxismo e Existencialismo” foi publicado pela primeira vez em português, pelo “Estado de São Paulo” em 1947.

Fonte: Centro de Estudos Victor Myer.
HTML: Fernando A. S. Araújo


Mais Confusão, Ainda?

A análise crítica das mais recentes tentativas de completar o marxismo pela “fenomenologia”, é a tarefa, mas que se impõe.

Ingrata porquanto a filosofia burguesa depois de Ludwig Feuerbach deixa de encerrar conteúdo científico positivo (constituindo exceções e apreciação matemática da lógica e a apresentação e estudo críticos de material novo por parte dos historiadores da filosofia) e, consequentemente, essa análise crítica terá de se haver com moinhos de vento.

Os ensaios de enriquecimento “fenomenológico” do marxismo devem ser atacados de rijo, visto ameaçarem desnortear ainda mais as mentes no campo do movimento operário, já desorientadas pela própria confusão reinante neste após- guerra.

A crítica seguinte visa o artigo de Tran-Buc-Thao “Marxismo e Fenomenologia”, publicada em “Revue Internationale”, Paris, 11-2-46.

Importa, no caso, focalizar o discípulo e não seus mestres: Husserl, Heidegger e Paul Sartre, por ter ele selecionado na fenomenologia precisamente o que lhe parece representar um complemento ao “marxismo ortodoxo”, enriquecimento considerado necessário tanto teórica como praticamente. Poupar-se, assim, o trabalho de uma tal seleção. Além disso, a “fenomenologia” pura oferece menos risco de confusão do que a que vem revestida de disfarce marxista.

Que o perigo não seja de pouca monta o evidenciam os dois primeiros números de “Revue Internationale”. A linguagem do “existencialismo” aí se manifesta, não somente nos artigos dedicados ao assunto, mais também em muitos outros. Dir-se-ia que se confirma como moda literária na França, e aparentemente na Inglaterra, a “filosofia existencialista” que se vai apoderando dos intelectuais de ambos os países, sendo justo temer-se que tal fato tenha influência no movimento operário.

Os Vencidos contaminam os Vencedores

Se a filosofia burguesa posterior a Feuerbach não mais dispõe de conteúdo científico positivo (com as ressalvas mencionadas) tem entretanto, como ideologia uma certa significação sendo sintoma de uma particular situação efetiva da burguesia e das necessidades dela decorrentes.

Explica-se, assim, o aparecimento da “fenomenologia” ou “existencialismo” na França e na Inglaterra após a derrota da Alemanha nazista.

Em resumo, e sem mais preâmbulos, tal aparecimento indica que o nazismo, embora militarmente vencido, contaminou seus adversários burgueses.

A apresentação de Heidegger, como o porta-voz do nazismo, faz-se necessária para familiarizarmos com o assunto. Heidegger, porém, é o legítimo continuador do seu mestre Husserl. O próprio Husserl integra uma daquelas figuras tragicômicas da filosofia acadêmica dos últimos vinte a trinta anos, as quais sem o saber e involuntariamente, mas de fato, prepararam o terreno ideológico para o nazismo, sendo posteriormente por eles vitimados, duma ou doutra forma. Havia igualmente — note-se — outros representantes da filosofia acadêmica alemã conscientemente reacionários e contra revolucionários.

O contágio se processou por terem amadurecido, entre os próprios vencedores burgueses as premissas sociais para o fascismo, devido à guerra e suas consequências.

As "Origens" do Marxismo Não São o Marxismo

O autor, com argúcia instintiva, procura a ponte entre a “fenomenologia” e o marxismo nas “origens” do marxismo.

São “origens” em questão são de certo a fase feurbachiana de Marx e Engels, em sua evolução até a constituição de sua própria doutrina, fase a que o autor e outros “existencialista” se reportam.

Segundo o testamento de Friedrick Engels a primeira formulação pública do materialismo histórico apareceu em “A Segunda Família”, no ano de 1845. Houvera, anteriormente, como explica Engels, uma fase “em que todos nós por um momento, fomos feuerbachianos”. Em “Ideologia Alemã” (1846) Marx e Engels “prestaram contas de sua consciência filosófica”. Significa isso que romperam radicalmente com todo idealismo e toda ideologia, isto é, com toda a filosofia como ciência isolada diferente da ciência positiva, da ciência natural da história. Essa obra continha uma crítica da filosofia de Feuerbach (crítica que se perdeu). Por tal motivo, Engels, mais tarde, repetiu-a em seu opúsculo sobre Ludwig Feuerbach. Querer, atualmente, reportar-se à fase feuerbachiana no desenvolvimento de Marx e Engels é apenas uma tentativa, de conservar o marxismo na casca do ovo, que ele deveria romper, para se transformar no que é hoje.

Porque, então, não retrocedem ainda mais nas “origens”? É sabido que Marx e Engels partiram de Hegel. Participaram, não como discípulos, mas como espíritos criadores, de todo o movimento crítico que indo de Hegel e Friedrich Strauss, aos Bauer e a Feuerbach levou-os ao seu próprio ponto de vista. Mas se se pretende fazer toda essa ligação é mister que se saiba que assim não mais se trata do marxismo, e sim da filosofia idealista alemã e das diversas etapas e formas de sua degradação, as quais, sem exceção, se detiveram, no idealismo, sendo portanto, filosofia burguesa.

O Progresso e a Regressão

Há, entretanto, uma diferença essencial entre o fato de terem Marx e Engels passado por tal fase na evolução do movimento histórico progressivo que levou ao materialismo dialético ou histórico, e à atitude de querer, decorridos cem anos, retroceder a tais etapas iniciais.

Na realidade não é possível voltar. “É impossível banhar-se duas vezes na mesma corrente”. Aquilo a que se volta é bem diverso já do caminho percorridos pelos outros a seu tempo. No movimento de ascensão das referidas doutrinas o que importa são os seus elementos capazes de desenvolvimento, e é desprezado o invólucro destinado a se desfazer. Em “marcha ré” verifica-se oposto, sendo a esse invólucro que se atende. Necessariamente assim o é, mas, entretanto, as sementes passíveis de germinação o fizeram de fato constituindo uma doutrina nova, independente e viva. A afirmação é válida para todas essas “voltas”: a volta de Fichte, a Hegel, e agora a Feuerbach. Igualmente o seria para uma volta ass filosofias materialistas do passado, por exemplo, ao materialismo inglês ou francês dos séculos 17 ou 18.

Sabe-se que no ponto de retorno de uma curva o movimento muda de direção.

O Papel Histórico do Humanismo de Feuerbach

Partindo do “marxismo ortodoxo”, passando pela “fenomenologia” ou “existencialismo” e chegando ao humanismo de Feuerbach, o retrocesso demonstra claramente a reviravolta da direção do movimento, considerado pelo ponto de vista da luta de classe. O paralelo histórico do “existencialismo” com o humanismo de Feuerbach em relação ao papel de ambos nas lutas de classe de suas épocas o esclarece nitidamente.

Observamos primeiro o papel histórico do humanismo de Feuerbach nas lutas de classe de seu tempo e meio. A doutrina de Feuerbach surge e se desenvolve na Alemanha na última fase da preparação da revolução burguesa em transição para a verdadeira luta revolucionária. Um aspecto sintomático é o fato de continuar Hegel sendo professor acatado da Real Faculdade Prussiana de Berlim, o “filósofo do Estado prussiano”, ao passo que tanto Bruno Bauer como Ludwig Feuerbach já não se enquadravam no ambiente da burocracia acadêmica.

A doutrina de Feuerbach foi o mais avançado reduto ideológico do campo burguês daquela época. Era a pequena burguesia democrática e revolucionária da Alemanha que ocupava esse posto avançado. A doutrina de Feuerbach é a ideologia que corresponde à pequena burguesia nessa determinada fase da luta de classe na Alemanha. Essa pequena burguesia era a classe mais numerosa da Alemanha da época. O proletariado ainda é fraco em número e em consciência de classe. Ele aparece então praticamente como força propulsora e crítica da revolução burguesa, embora já tivesse formulado através de Marx e Engels seu próprio objetivo de classe, o qual ultrapassava a sociedade burguesa.

O rompimento de Feuerbach com a religião oficial, o seu materialismo, foi uma declaração de guerra à classe dominante da época, ao Estado semi absolutista existente e à sua máquina administrativa, da qual a igreja era parte essencial. Essa pequena burguesia sentiu-se, como nos tempos anteriores à Terceira República na Fraca, a representante de todos os interesses revolucionários de todas as classes, ou do interesse da revolução burguesa acima das classes. Por isso, o “homem” torna-se centro da doutrina, abstraindo-se as diferenças de classe no próprio campo revolucionário, de um lado, da grande burguesia, e de ouro, do proletariado. O homem feuerbachiano sem história, livres das classes, é a expressão geral dessa situação. O “amor” é o cimento moral que deve manter unido o campo revolucionário. As reivindicações comunistas do próprio proletariado foram reduzidas ao amor generalizado entre todos os seres humanos. Isto é, as arestas revolucionárias das reivindicações específicas do proletariado foram assim aparadas e rebaixadas ao nível pequeno burguês. O materialismo de Feuerbach é somente um materialismo das ciências naturais. No campo das ciências sociais, da História, não era capaz de superar o idealismo. Essa superação só possível de um ponto de vista crítico no tocante à propriedade privada, categoria fundamental da sociedade burguesa, ponto de vista que considere essa propriedade privada como fenômeno histórico, isto é, transitório e a própria sociedade burguesa como um fenômeno histórico cujo princípio traz em si próprio o seu fim.Só encarando desse ângulo torna-se compreensível o mecanismo da sociedade burguesa, e se consegue uma perspectiva da possibilidade de dominação material da vida social em conjunto. Só assim é possível a aplicação de um materialismo consequente à natureza e à sociedade.

A pequena burguesia não é capaz de dar semelhante passo, mesmo em sua fase mais progressista e revolucionária. Para ela a propriedade privada não é uma categoria histórica, isto é, temporária, mas natural, isto é, eterna. Não se consegue pular sobre a própria sombra. Assim ela não pode romper completamente com o idealismo. Daí vermos em Feuerbach a negação da religião oficial, mas não própria religião; a condenação da moral oficial, porém não a de certos preceitos morais “eternos”. A eternidade da propriedade burguesa corresponde à eternidade da “moral” — da “moral humana” — entende-se — e a incapacidade de transpor os limites do idealismo filosófico. Para a pequena burguesia a revolução representa a realização e a manutenção da propriedade privada em geral, a restauração da propriedade privada pequeno-burguesa e particular, ameaçada de um lado pela grande burguesia e de outro pelo proletariado.

A expressão filosófica da expropriação da propriedade pequeno-burguesa é “alienação” (Entfremdung), e a de sua restauração “reapropriação” (Wiederaneignung). Tais categorias são especificamente pequeno-burguesas. Se Marx de início se utiliza de tais categorias não o faz como comunista amadurecido, mais como feuerbachiano em vias de se tornar comunista.

Para Marx essas categorias “alienação” e “reapropriação” representavam etapas transitórias no desenvolvimento para o comunismo: da “reapropriação” individual para o sial, o que realmente implica em negação da propriedade burguesa. Se os “fenomenologistas” estão novamente ciscando no velho lixo filosófico para reviver aquelas categorias, trata-se efetivamente de restaurar e manter a propriedade pequeno-burguesa, a qual se debate, agora, entre dois fogos cruzados.

A diferença assinalada não é apenas subjetiva, mas baseia-se no fato de há cem anos estar a revolução burguesa na ordem do dia, enquanto que hoje na Europa central e ocidental o ciclo da revolução burguesa já terminou, é só é possível a revolução socialista.

As Necessidades Ideológicas do Pequeno Burguês Proletarizado

O autor não deixa dúvida de que o enriquecimento ou correção “fenomenológica” do “marxismo ortodoxo” se cogita das necessidades do “pequeno burguês proletarizado” e das “camadas aburguesadas” do proletariado (mais acertado seria dizer camadas pequeno-aburguesadas), porquanto o “marxismo ortodoxo” corresponde às necessidade das camadas pauperizadas do proletariado do capitalismo inicial.

Para tais camadas quais são as falhas do marxismo ortodoxo?

“A desvalorização sistemática da ideologia”, como diz o autor, “deixa-os saudosos dos valores da tradição. Daí a traição constante dos quadros pequeno-burgueses nos momentos decisivos da ação, que acarreta o fracasso das revoluções européias”. Marx e Engels teriam negligenciado a elaboração de uma ideologia para a sociedade socialista. “ “Uma obra dessa natureza teria interessado a pequena-burguesia”, prossegue o autor, “mas ela permaneceu, por sua situação objetiva, demasiado ligada ao capital para que se pudesse esperar conquistá-la como classe. Marx, por seu turno, pensador prático, tinha de concentrar toda sua atenção na infraestrutura”.

Hoje, entretanto, todas essas camadas de sua situação “objetivamente revolucionária” devido às crises económicas e às guerras. “Mas o êxito de semelhante tarefa (conquistá-las para a revolução socialista) acha-se comprometido pela incapacidade do marxismo clássico para satisfazer as aspirações das novas camadas revolucionárias que se orientam em direção do absurdo de um socialismo mais ou menos idealista”. “Impõe-se uma revisão precisamente pelas exigências da prática”.

A Revisão "Fenomenológica" do Marxismo

Se examinarmos mais detidamente essa revisão descobriremos:

1) — uma nova variante do idealismo subjetivo — após essa pomposa explicação do absurdo do socialismo idealista poder-se-ia esperar uma posição materialista indubitável. É precisamente o contrário que fica patente. Ao mesmo tempo tenta o autor da à teoria uma aparência de materialismo. Sucede assim, como os adeptos da “fenomenologia” a desgraça de se tornarem vítimas duma mania em voga entre muitos filósofos: a e de trocar as expressões da linguagem comum pelos seus antônimos. Sabe-se, por exemplo, que em Hegel aquilo que, na linguagem comum, é denominado concreto, isto é, o objeto isolado, sensorial e material, se chama “abstrato”; e o que a linguagem comum denomina de abstrato, isto é, a generalização, obra do pensamento, é chamada de “concreto”. Cita, então, o autor com grande satisfação a palavra de ordem do seu mestre Husserl: “as coisas em si” (“Zu den Sachen selbs”).

Consideradas mais de perto, essas “coisas em si” revelam-se como sendo os nossos bens conhecidos “objetos da consciência”, as “coisas” tal como aparecem no pensamento humano, quer dizer, o conteúdo da consciência. Para não deixar dúvidas o autor rejeita expressamente o materialismo das ciências naturais, ou como o denomina o materialismo “físico”: Evidentemente não se trata do objeto físico, definido por um sistema de equações, mas de tudo aquilo que para nós existe exatamente no mesmo sentido em que existe para nós”.

A negação da primazia do mundo físico tinha que tornar possível a compreensão da “existência concreta” na sua plena significação... Regresso à consciência individual, onde o sentido oculto das coisas, “alienado” na vida cotidiana, se revelasse.

Reportando-se a uma citação da fase feuerbachiana de Marx, continua explicando:

“Esse texto parece-nos dar a verdadeira significação do materialismo histórico em sua oposição ao materialismo vulgar. A realidade é aquilo mesmo que nós produzimos, não somente no plano físico, como também num sentido mais geral que engloba toda a atividade humana, inclusive as atividades “espirituais”.

Mais adiante diz:

“Esta realidade, é o mundo de muitos sentidos no qual nós vivemos, e que a nossa vida da precisamente um sentido: a natureza tornada humana pelo trabalho de muitas gerações”.

Julgo que tais citações sejam suficientes para orientar o leitor crítico sobre a posição filosófica da “fenomenologia” ou “existencialismo”. É uma regressão que vai além de Feuerbach, e, com exatidão, a duas etapas anteriores ao materialismo histórico. O materialismo histórico ou dialético ultrapassa o materialismo das ciências naturais como se apresenta em Feuerbach, mas, no sentido progressivo, o inclui, conservando em base. O autor, discípulo dos seus mestres “fenomenologiistas” ou “existencialistas”, partindo dessa base regride e encalha no idealismo subjetivo.

O materialismo dialético também modifica o materialismo das ciências naturais; desenvolve-o, levando sempre em contra os avanços das pesquisas nessas ciências, e aplicando o pensamento consciente e dialético ao aproveitamento desses resultados. Tudo isso, porém, não altera o fato de continuar o materialismo dialético a ser materializado no sentido mais literal da palavra. Para ele, portanto, a consciência representa o secundário, o dependente, o derivado, e o ser, à parte da consciência, o primacial, o original, e independente.

Alguns discípulos de Huseerl procuram dar a impressão de que o primitivo método do mestre estava acima da contradição entre materialismo e idealismo e que Husserl somente na fase posterior caiu num idealismo declarado e “unilateral” em consequência de aplicação errônea do seu método.

É falso. O método, de antemão e em essência, era o idealismo subjetivo. O “mestre”, no decorrer do seu pensamento ulterior, resultante de conclusões tiradas, acentuou mais a natureza idealista do seu primitivo método. Pode isso ser desagradável a vários de seus discípulos que gostariam de manter essa aparência de estar o método acima da contradição entre idealismo e materialismo, o que implicaria em superar a contradição, mas que representaria de um modo de pensar até agora inexistente. O que existe de novo no caso é a forma do disfarce, não o disfarce em si mesmo. A pretensão de estar acima da contradição entre idealismo e materialismo é uma característica de todo idealismo subjetivo. Interpretando o mundo material, em última estância, pela consciência humana, essa contradição realmente desaparece, de maneira que um dos lados da contradição, o lado material, é considerado inexistente, autônoma e independentemente do pensamento. Onde resta apenas um objeto, todas as relações se anulam, e portanto, a contradição é automaticamente superada. Assim, o problema das relações tornou-se “absurdo”, sem conteúdo — descoberta milagrosa, de que o idealismo subjetivo, em suas diversas formas, muito se orgulha.

Em que consiste a novidade desse disfarce da “fenomenologia” ou “existencialismo”? Simplesmente em que consciência, o pensamento o eu, ou qualquer outra designação que se escolha, não mais aparece na pureza abstrata em que se encontra nas formas clássicas o idealismo filosófico, mais mistificados pelos mais diversos atributos concretos, como “vida”, “existência”, etc. Não se requer grande perspicácia para que se descubra a “velha consciência” sob esse fundo falso. A cada momento depara-se com o pensamento humano, ou a consciência, representando o elemento ativo, predominante, essencial. Tudo passa a ser, em última análise, determinado pelo pensamento, tornando-se em última estância, uma modalidade do pensamento.

Por processo análogo, como é sabido, passou o pensamento filosófico alemão, desde Hegel: à “idéia” de Hegel vai-se corporificando, individualizando-se cada vez mais, transformando-se em “sujeito”, e posteriormente em “auto-consciência” (para Bruno Bauer), e, por fim, no “ser humano” (para Feuerbach).

O autor incorre em erro total quando diz que:

“em Marx, na inversão dialética do idealismo em materialismo, ficou conservado todo o conteúdo espiritual que já fora desenvolvido pelo hegelianismo”.

Como seria possível conservar o espiritualismo no materialismo?

Em Marx o que foi conservado do hegelianismo é o seguinte:

  1. O papel ativo e criador do espírito humano — o que caracteriza toda a filosofia clássica alemã. Esse papel passa, entretanto, de um absolutismo fantástico e soberano, a condicionado e limitado. Condicionado pelo conhecimento das leis materiais da natureza e da sociedade. Limitado, por sua vez, pelas próprias e inevitáveis limitações que esse conhecimento tem em cada época. Tais limitações são variáveis, mas existem em cada momento dado.
    Além disso, esse conhecimento é restringido pelo volume das forças limitadas de que o homem dispõe em cada época;
  2. A inversão do método dialético, passando de sua forma místico-idealista para a racional e materialista;
  3. Um tesouro apreciável de análises reais de acontecimentos sociais e das ciências naturais, que em Hegel se acham velados por uma exposição místico- idealista;
  4. A lei do desenvolvimento, sob a forma dos contrastes na história e na natureza, também em base materialista (para Hegel a natureza não tem desenvolvimento no tempo).
    Para Hegel essa lei é definida como a lei mais geral do movimento ou a forma do movimento geral da dialética. Nesse sentido ele se destaca das leis particulares da dialética.

O “espiritualismo” de Hegel, no entanto, não consiste no reconhecimento do papel ativo e criador do espírito humano em geral, mas na exaltação absoluta e mística do “espírito”.

Marx, suprimindo esses aspectos, suprimiu o espiritualismo, sem, todavia, suprimir o papel histórico do espírito humano em geral. Precisamente como materialista, ele conserva o núcleo racional do misticismo hegeliano, e retoma o absoluto de Hegel em suas limitações e condições naturais e sociais. É inútil querer mistificar ou “espiritualizar” o materialismo histórico.

2) A idealização das “condições econômicas” é uma consequência lógica das premissas idealistas dadas, efetuando-se mediante à categoria idealista do “sentido”. Se o material, o real, nada mais e senão o “sentido” cristalizado, que dizer algo que corresponda às finalidades humanas, as condições econômicas materiais de que o materialismo histórico deve tratar obrigatoriamente, devem apresentar uma essência idealista. Com tal recurso processa-se o milagre do enquadramento do materialismo histórico no sistema filosófico idealista. Sem dúvida, é a colocação do materialismo histórico com os pés para cima.

“O mundo — diz o autor — nos é dado com a plenitude de sentido humano com que existe para nós enquanto neles vivemos”.

As condições econômicas materiais são, portanto, no fundo, de natureza ideológica e a aceitação de que sejam elas o “elemento determinado” da “existência humana” implica em que seu “sentido” venha a ser determinado de antemão pela própria “existência humana”. Trata-se, assim, em última estância da determinação de um elemento idealista através de outro, em que os objetivos humanos são, em suma, os determinantes.

“Bastaria — afirma o autor — tomar-se consciência do significado objetivo desta existência (a humana) para se encontrar nas condições econômicas o elemento que determina, em última análise, a estrutura geral da experiência do mundo”.

Em seu ardor de construir o materialismo econômico em base idealista, o autor ultrapassa o que é permitido no determinismo econômico. Na determinação natural, entretanto, é precisamente a base em que os fatores sociais se ligam, formando-a e transformando-a. Tal “esquecimento” não é obra do acaso. É consequência da amputação do materialismo das ciências naturais, do corpo do materialismo histórico ou dialético.

Os efeitos da idealização das condições econômicas são visíveis, e importantes no que concerne à significação prática e sentido da “fenomenologia”. As finalidades humanas são de domínio do homem. No campo do ideal, o homem é soberano. Assim sendo, as limitações e contradições objetivas e materiais do capitalismo caem por terra. Por conseguinte as classes burguesas e pequeno- burgueses e indivíduos isolados conseguem no campo econômico libertar-se plenamente das condições materiais da economia capitalista, pelo menos na imaginação. Mais mas existem leis objetivas que levem essa economia à ruína, não há mais desespero! Tudo depende da vontade — também a salvação.

Na medida, porém, em que essa interpretação torna a assegurar às classes burguesas e pequeno-burguesas uma liberdade de ação aparentemente ilimitada, priva-as simultaneamente de qualquer critério objetivo, qualquer orientação, entregando-as mais seguramente às forças naturais cegas dos acontecimentos e fatos econômicos do mundo capitalista.

A imaginária liberdade absoluta transforma-se em lenda diante das necessidades impreteríveis; a planificação do particular resulta na anarquia do todo. O otimismo temporariamente refeito desfaz-se na catástrofe incompreensível que, de tal ponto de vista, permanece inexplicável — num “crepúsculo dos deuses”, — em que apenas se trata de submergir dramaticamente e de arrastar no próprio naufrágio tudo o que existe.

3) A “autonomia da super-estrutura” o autor descreve-a da forma seguinte:

“A autonomia da super-estrutura é tão essencial a compreensão da história quanto o movimento das forças produtivas. Mas, como apreendê-la se não se passa por simples “reflexo” do processo real”.

Do ponto de vista do idealismo objetivo, o ideal (a super-estrutura) naturalmente não pode ser um “reflexo” do material. Não há possibilidade de relações casuais entre as duas ordens, sendo para ele ambas idéias.

Mas, se as super-estruturas são consideradas ideais, no sentido estrito e específico, autónomas, isto é, auto-determinantes, são impossíveis as relações entre elas e uma “infraestrutura” econômica definida “idealisticamente”. Encontramos assim uma fator análogo ao famoso “auto-movimento” da idéia de Hegel, se bem que o autor e a escola com boas razões evitam tal expressão. Com boas razões, porquanto a idéia hegeliana ainda é a razão dotada de movimentos, porém com os existencialistas a razão volatilizou-se.

Além do mais, é ignorância notória considerar “ilusões” todos os reflexos da infraestrutura económica. Também a ciência económica é reflexo, isto é, retrato da realidade econômica. Reflexo não quer dizer que senão “retrato”.

Esse retrato pode ser falso o verídico, ficção ou ciência.

É igualmente falso querer privar a ilusão da sua natureza ilusória, isto é, de retrato falseado, transtornado da realidade material em que se baseia, simplesmente por atuar ela sobre os homens, ao mesmo tempo, como motivo real.

Serve de ilustração uma citação do conhecido trabalho de Antônio Labriola sobre o materialismo histórico:

“As intenções conscientes, os meios políticos, as ciências, os sistemas jurídicos, etc., antes de tornarem meios e instrumentos para o esclarecimento da história, são precedentes o que primeiro deve ser esclarecido, pois dependem de determinadas condições e situações. Mas isso não significa que sejam eles meras aparências e bolhas de sabão. O fato de serem esses aspectos derivados de outros não quer dizer que não sejam atuantes, mas que, durante séculos, apareceram á consciência não científica e à ciência em via de formação como os únicos verdadeiramente eficazes”.

Ou, ainda, com Friedrich Engels:

“O materialismo histórico não pensa em negar a eficiência dos motivos, isto é, o impulso consciente do homem. Coloca, entretanto, a questão: “Quais as causas históricas que se transformam dentro dos cérebros humanos nestes motivos?” e, diversamente “quais são os motivos desses motivos”? Isto é, quais as causas determinantes?

“A inconsequência (do materialismo limitado às ciências naturais, como em Freurbach) não consiste simplesmente em admitir motivos “idéias”, mas está em tomá-las como ponto de partida, sem voltar-se para suas causas determinantes. E estas, afinal, são causas materiais” (Friedrich Engels: Ludwig Fuerbach e o fim da filosofia clássica alemã).

4) A reabilitação da religião — O autor não se refere por acaso à “autonomia da superestrutura”, que, logicamente, leva a reabilitação da religião — de toda e qualquer religião. Pois, toda religião não é um “conteúdo da consciência”, uma “coisa”, para empregar o termo de Husserl, ou uma “experiência”, como diz outra escola mais antiga, do idealismo subjetivo? E é suficiente que seja um “conteúdo da consciência” para se tornar legítimo.

“Os textos clássicos do marxismo”, diz o autor, “definem, na verdade, o primado da economia de forma inaceitável para o “fenomenologista. As superestruturas são tidas como simples ilusões refletindo as relações “reais” no plano ideológico, enquanto que a originalidade da “fenomenologia” consistiu precisamente na legitimação do valor de todas as significações da existência humana”.

O autor equivoca-se quanto à originalidade da fenomenologia, em virtude de falhas em seu conhecimento da história da filosofia. O jovem Hegel já se tinha metido com os “fatos da consciência” que se legitimariam por si mesmos. Essa pretensão foi refutada por ele, rude e convincentemente. A originalidade da “fenomenologia”, ou melhor, a daqueles pertencentes à escola que pretende completar o marxismo, reside apenas na pretensão de querer harmonizar a fenomenologia e o materialismo histórico. Efetivamente, essa atitude é original, inexistente até agora. Mas as circunstâncias de darem os fenomenologistas e existencialistas aos velhos e bem conhecidos “fatos de consciência” uma designação nova, frequente como é entre eles a rotulação de trivialidades, as mais banais, com vocábulos novos e esquisitos, não nos impede de negar a sua originalidade. Ou, dever-se-ia considerar original a pretensão do descobrimento do lugar comum passado e repassado mil vezes na história da filosofia e da apologética religiosa, de que Vitziliputzli (figura mitológica germânica) e a queda dos corpos sejam ambos “fatos do consciente”, “experiências”, que atuem ambos, e por isso estejam legitimados? Querem eles que vejamos nisso a originalidade de fenomenologia e do existencialismo? Para tanto estamos prontos.

A religião, afirma o autor, também continuará existindo na sociedade sem classes:

“na sociedade “sem classes” o sujeito se apropria do objeto ao reconhecer-se nele. Agrada-lhe contemplar-se em sua própria obra. O absoluto da coisa é compreendido como identidade do Eu. A vida neste mundo assume um sentido místico, não por referência a uma transcendência, mas pelo gozo de sua realização. É falso dizer que a supressão da alienação acarretará o desaparecimento de toda religião: apropriação da realidade humana entende-se numa religião de pura iminência, onde a “beatitude não pe a recompensa da virtude, mas a própria virtude”.

Em que se distingue essa tautologia do “culto ao homem” (abstrato) de Feuerbach? Apenas em que Feuerbach sabia exprimir sua religião em linguagem humana. Na verdade, isso representa um retrocesso para o além de Feuerbach, mesmo para além de Hegel. A religião feuerbachiana repele e critica todas anteriores, o cristianismo inclusive. Para Hegel, o reconhecimento de uma entidade divina não indicava ainda o reconhecimento da religião. A religião fenomenológica, se a expressão cabe, reconhece também todas as outras como legitimas. Compreende-se que essa tolerância não tem apenas um ângulo histórico e teórico, mas igualmente um ângulo muito prático, o qual diz respeito às relações práticas dos “revolucionários” fenomenologistas, com as religiões existentes, quer com o cristianismo na Europa, quer como o islamismo, o hinduísmo, o budismo, etc, no Oriente.

O autor faz bem colocar entre aspas a sociedade sem classes.

Querendo-se saber que é a realidade social que corresponde à descrição da sociedade sem classes, que nos dá o autor, e na qual o “sujeito” — isto é, o indivíduo — reconhece seu Eu no “absoluto da coisa”; suprime a “alienação” e que se reconhece, em seu trabalho, “a apropriação da realidade humana”, verificamos que em hipótese alguma se trata de uma sociedade socialista baseada na indústria moderna. Pois nessa sociedade a “alienação” não é suprimida de forma alguma para o indivíduo; o produto não é trabalho individual, e sim o resultado de trabalho social imediato. O indivíduo fornece-lhe apenas uma parcela, não podendo, portanto, reconhecer a “identidade com o seu Eu”. A obra, o produto, contém, se quisermos utilizar essa surrada linguagem idealista, só uma parcela do seu Eu. Além disso, numa sociedade socialista também há “apropriação” no sentido literal do termo, a qual não é imediatamente individual, mas imediatamente social, e só imediatamente individual de que o indivíduo se apropria — o que é apenas válido para com o que se relaciona com os restos da velha economia individualista que se conservam no seio da nova, como, por exemplo, os produtos dum pedaço de terra cultivada individualmente dum camponês do “kolkoz” na URSS, ou duma horta que um operário faça.

Da mesma forma, porém, numa sociedade socialista baseada na grande indústria o trabalho não é, como já o indicou Marx, a auto-satisfação do Eu, mas, simplesmente, uma contingência natural. A situação da liberdade e da auto- satisfação é dada pelo tempo livre, lazer que o trabalho social cria, em determinadas condições, para todos, em escala ascendente. Entretanto, nem é ao simples produtor de mercadorias, ao artesão, ao pequeno camponês que trabalha sozinho, que corresponde tal descrição, visto que uma sociedade de simples produtores de mercadorias não possível sem troca, e, portanto, sem “alienação”. O original dessa descrição é um artifício filosófico-idealista típico, e que em parte alguma pode se realizar como sociedade. Ou trata-se de produtores meramente individuais que trabalham para o próprio consumo imediato, isto é, duma economia rural de campesinato primitivo, ligada a artesãos igualmente primitivos que produzem exclusivamente para o próprio consumo. Essa estrutura pode ser “sem classe”, mas não representa sociedade alguma a ser constituída no futuro, e sim pertence ao passado da organização do trabalho humano.

Ou é a construção de uma sociedade simples produtores de mercadorias, sem troca, um mundo ideal, pequeno-burguês — ideal, porque não leva em conta as contradições que inevitavelmente conterá e as quais farão surgir sempre uma sociedade de classe.

Poupar-nos-emos a demonstração de que tal sociedade idealizada de produtores individuais não possa dispensar a religião, sob qualquer forma, como núcleo desta construção da “sociedade sem classes” do autor. Revela-se o velho sonho pequeno — burguês duma sociedade idealizada de produtores trabalhando individualmente — a qual se furta às contradições que fatalmente encerra — aquele reino do ideal que Schiller canta:

só não envelhece aquilo que nunca
e em parte alguma aconteceu”

“O homem”, diz o autor, “realiza-se em sua eternidade”. Refere-se ele a uma “renovação contínua” — “uma renovação contínua que se afirma como uma eterna realização de si mesmo”.

Lembra isso a eterna mística da “auto-realização da concepção” de Hegel, coma diferença de que, no caso, a mística se torna duplamente mística, visto faltar ao que então se realiza a razão hegeliana.

E, ao lado de todos esses absurdos místicos, encontraremos por fim a cessação da história, já que alcançada a “eterna auto-realização do homem” a “contínua renovação” torna-se mera aparência.

A monotonia insuportável da “vida eterna” no mundo do Além é transplantada para este, e nos é apresentada como a “sociedade sem classes do futuro”; o paraíso fenomenologista ou existencialista, o coração da religião fenomenologista do futuro.

De nossa parte, agradecemos.

A Reforma Fenomenológica

Evidenciamos, a seguir, duas aplicações do método fenomenológico a material concreto.

“A Reforma, segundo Marx, seria a forma ideológica que no século XVI assumiu o esforço da burguesia para se libertar da dominação papal; o reflexo ilusório duma luta de interesses “reais”.

É claro que uma tal explicação suprime a significação própria do fenómeno a ser estudado como fenómeno religioso. A constituição da Igreja em força temporal foi necessária na Idade Média para a manutenção da vida espiritual contra brutalidade dos costumes feudais. Com o desenvolvimento da burguesia e do poder central apoiado por esta, voltava a segurança que permitia uma vida regular, a qual podia ter um sentido espiritual. Já não havia necessidade de deixar o mundo para adorar a Deus: bastava o cumprimento honesto da tarefa cotidiana imprimindo-lhe um sentido absoluto, na medida em que cada coisa era interpretada como uma manifestação da vontade divina. O culto de “Deus extraterreno”, foi possível apenas na época das desordens da feudalidade, foi espontaneamente substituído na vida prática por um culto de “Deus intraterreno” através da prática das virtudes burguesas: honestidade nos negócios, no casamento, no trabalho e na parcimónia.

“Com o progresso da burguesia e com as novas condições de existência material, no início dos tempos modernos, a organização eclesiástica, com o seus aparatos de ritos e regras, apresentava-se inútil, sem relação com a vida religiosa. A Reforma do século XVI teve, ao contrário, êxito duradouro, porque exprimia as exigências de uma experiência autêntica. O culto do “Deus intraterreno” implicava no abandono dos claustros na supressão dos ritos e da hierarquia.

“O protestanismo é a religião da burguesia, a forma em que ela pode viver uma vida religiosa autêntica. A fé, foi facilmente preservada nos países protestantes. A burguesia francesa, ao contrário, forçada pelo poder da Realeza a conservar o catolicismo que não mais correspondia a uma experiência efetiva, caiu no anticlericalismo e no ateísmo”.

Citamos na íntegra esse trecho sobre a reforma, para não nos tornarmos suspeitos de ter suprimido algo que o autor pudesse considerar essencial. A essência dessa explicação pode ser resumidas em poucas frases.

Existe “autonomamente” uma necessidade de religião, uma vida religiosa. Como é autônoma, não se pode indagar quais as fontes sociais que lhe dão origem, e qual o conteúdo concreto do credo da Igreja na Idade Média e de sua transformação. Ficamos cientes apenas de que a forma exterior da organização eclesiástica na Idade Média foi determinada pela necessidade de conservar a vida espiritual em meio ao turbilhão feudal. Para tal fim a própria Igreja Católica tinha de tornar-se uma organização feudal. A necessidade de religião é algo primário que dispensa maiores explicações. Tampouco nos esclarece sobre a “divindade extraterrestre” do catolicismo da Idade Média. Ao término deste turbilhão feudal, coma vinda à tona da burguesia e com o aparecimento de um poder estatal monárquico, forte e centralizado, a organização eclesiástica da Igreja redunda supérflua e contraproducente. O protestantismo cria a nova organização da Igreja para satisfazer a necessidade de religião que permanecia, a qual é impossível explicar. Essa necessidade da religião então se satisfaz por um “Deus intraterreno”. Impedia, por forças exteriores, de satisfazer suas necessidades religiosas com o protestantismo, a burguesia francesa passa a ser anticlerical e irreligiosa. A sua necessidade de religião, já que não houve possibilidade de satisfazê-la autenticamente, simplesmente desaparece.

É impossível discutir seriamente sobre essa fábula pueril que nem sequer alcança o nível das interpretações idealistas da história da Reforma, dadas por acreditados historiadores idealistas burgueses? Mesmo a história burguesa da Igreja e dos dogmas devia tomar conhecimento mais amplo e substancial das relações do desenvolvimento da Igreja, e dos dogmas com a vida material, muito embora as explicasse de forma idealista, errônea, segundo a qual não é o desenvolvimento burguês em determinas condições históricas, que se exprime no calvinismo com a sua organização e dogmas, mas, inversamente, é um desenvolvimento religioso determinado que cria as premissas para o capitalismo, aliás, como seria de se esperar (vide Max Weber).

De resto, essa infantil construção dos fenomenólogos é pulverizada por uns tantos fatos bastante conhecidos.

A “existência extra-terrena” de Deus é, como se sabe, dogma oficial da Igreja protestante da mesma forma como a Igreja Católica. A Católica, pelo contrário, desde a Idade Média, foi dominada pela divindade “intraterrena”, como ensinamento dos místicos em todos os países de tal fé. O misticismo protestante que representa uma continuação do misticismo católico da Idade Média, nuca foi considerado ensinamento oficial da Igreja. Constitui somente uma das correntes no seio do protestantismo.

Se se explica a irregularidade da burguesia francesa do século XVIII pela circunstância de ter sido ela impelida pela força de adotar o protestantismo, então como entender que a mais radical crítica ao cristianismo e à religião em geral tem surgido precisamente no século XIX na Alemanha e no campo do protestantismo? A citação dos nomes de Friedrich Strauss, Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach, que eram todos protestantes, e partiram da crítica ao protestantismo, é suficiente.

Como se explica “fenomenologicamente” que a mesma burguesia francesa que no século XVIII perdeu as suas necessidades religiosas por falta de oportunidade de exprimi-las numa forma protestante, tenha-se tornado na segunda metade do século XIX e no século XX, subitamente clerical e religiosa — e precisamente católica? Podemos deixar de repetir a explicação histórico-materialista já bem conhecida e divulgada.

Para uma comparação do método fenomenológico com o materialismo histórico, na análise religião e da história da Igreja, seja-nos permitido citar um trecho do ensaio de Labriola sobre o materialismo histórico.

É evidente ser apenas um estudo sumário. É o seguinte trecho:

“Como nos colocamos em um ponto de vista que está além das opiniões ideológicas graças às quais os autores da história tiveram consciência de sua própria obra, e nos quais encontraram eles muito mas frequentemente os motivos e a justificação de sua ação, podemos crer falsamente que essas opiniões ideológicas foram uma pura aparência um simples artifício, uma pura ilusão no sentido vulgar da palavra. Martinho Lutero, como os outros grandes reformadores contemporâneos, nunca soube, como o sabemos hoje, que o movimento da Reforma era um momento do futuro Terceiro Estado, e uma rebelião econômica da nacionalidade alemã contra a exploração da corte papal. Ele foi o que foi, como agitador e como político, porque o foi supondo ver no momento das massas, o qual dava pulso à agitação, um retorno ao verdadeiro cristianismo e uma necessidade divina no curso vulgar das coisas.

O estudos dos “efeitos à longa distância”, isto é, a força crescente da burguesia das cidades contra os senhores feudais, o aumento da dominação territorial dos príncipes e expensas do poder interterritorial e superterritorial do imperador e do papa, a repressão violenta do movimento dos camponeses e do movimento mais propriamente proletário dos anabatistas nos permitirem agora refazer a história autêntica das causas econômicas da Reforma, particularmente no modo pelo qual terminou esta, o que é a melhor das provas. Mas isto não quer dizer, que nos seja permitido separar o acontecimento do modo de sua realização, e do assunto das circunstâncias simultâneas por uma analise póstuma, inteiramente subjetiva e simplista. (...) Mas que o fato aconteça precisamente como aconteceu, que ele tome tais formas determinadas que se revista de tal aparência, que tome tal coloração que ponha em movimento tais paixões, que se manifeste como esse fanatismo, é nisso que consiste sua circunstancialidade específica: nenhum talento de analista pode fazer que ele não seja como foi. Somente o amor do paradoxo, inseparável sempre do zelo dos vulgarizadores apaixonados de uma doutrina nova pode ter levado alguns a crer que para escreve a história é suficiente por em evidência unicamente o “momento econômico” (frequentemente ainda desconhecido e frequentemente difícil de conhecer), para em seguida lançar por terra todo o resto como um fardo inútil que os homens tenham caprichosamente carregado, como um acessório, em suma, uma simples bagatela, ou mesmo algo inexistente”. (Antônio Labriola, “Del Materialismo Histórico”, pág22-23)

Supomos que a comparação demonstre dois pontos:

  1. que a crítica fenomenológica ao materialismo histórico é uma caricatura deste;
  2. que a tentativa de explicação fenomenológica que o autor nos dá da Reforma é uma perfeita infantilidade — e não só por falta de conhecimentos dos fatores primordiais, mas como decorrência do próprio método que estaca no momento preciso e que começa a colocar-se a questão do porque e do como, das formas e do conteúdo da consciência histórica deles.

A Revolução Fenomenológica e a Verdadeira Revolução

A segunda aplicação do método refere-se à teoria da revolução. A parte decisiva reza:

“O curso da história não se explica senão pela luta de classe, cuja dialética se funda na autonomia das superestruturas... As relações de produção tem de mudar, quando são ultrapassados pelas forças produtivas. Essas transformação entretanto exige uma luta e se realiza sob a forma de uma revolução, precisamente porque as antigas relações sem mantém graças à enorme superestrutura que persiste, embora perdida a sua base econômica”.

Como parecem simples os fatos à luz da fenomenologia! Devido a sua “autonomia”, a velha superestrutura subsiste, enquanto a infraestrutura se modificou. A revolução é a luta entre a infraestrutura, e a superestrutura, pela qual se cria nova infraestrutura — novas relações de produção.

De pronto se percebe tratar-se de uma teoria idealista da revolução. Onde a não ser no idealismo, é possível uma superestrutura, no caso uma superestrutura enorme, que perdeu a própria base econômica?

Semelhante “teoria” é um autêntico ninho de ratos, um emaranhado de contradições sem nexo.

A que pertencem às relações de produção? Naturalmente, à “infraestrutura”. Elas representam as relações das classes de determinada sociedade com os meios de produção decisivos. A contradição entre as relações de produção e as forças produtivas é, pois, uma contradição existente na própria infraestrutura da sociedade. Mais ainda: superestrutura persiste, quando já perdeu sua “base econômica”. De que maneira poderá ela conservar as velhas relações de produção, que fazem parte de uma “infraestrutura” que deixou as velhas relações de produção, que fazem parte de uma “infraestrutura que deixou de existir.? E ainda; se a “superestrutura” corresponde às velhas relações de produção, de onde tira a força necessária à transformação dessas relações de produção. E a luta de classes revolucionárias que muda essas relações de produção. Essa luta política, é uma luta pelo poder de Estado. O poder do Estado pertence à “superestrutura”. É da superestrutura que vem a energia ativa da revolução que muda, transforma a infraestrutura enorme” é força conservadora das velhas relações de produção. Isso, indutavelmente, são contradições, mas não dialéticas, porém sem sentido, e uma consequência da “autonomia” das superestruturas, ponto básico idealista dos fenomenologistas.

Talvez, contudo, seja a “infraestrutura”, a economia, tão autónoma como “superestrutura”, e o choque revolucionário uma colisão entre duas autonomias? Mas quem diz colisão diz inter-relações primitivas e coloca ambos os fatores em questão, ou na relação de causa e efeito, ou na de efeitos recíprocos.

Nesse caso, porém, a autonomia é superada, pois autonomia significa a existência legítima, independente de diversas espécies de fatores. E, de duas uma; ou cai a revolução ou a autonomia.

A simples diferença entre as leis inerentes às duas esferas não pode ser o ponto de referência, já que diferença pressupõe identidade, contém uma conexão comum originalmente, e só por meio dela é possível a influência recíproca de ambas esferas. Todavia, o principal dogma de fenomenologia consiste justamente em que uma conexão de origem entre duas esferas é impossível; as leis que lhes são inerentes não são apenas diversas, mas “toto coelo” diferentes. Não tem relação entre si, como nas monadas de Leibnitz, as conexões que surgem constitui falsa aparência, são ilusões, e somente o milagre divino contínuo pode criar conexão entre coisas desconexas. A conexão que não tinha possibilidade de surgir por meio material e natural, somente poderá realizar-se por meio irreal e antinatural.

O método fenomenológico, destarte, malogra desesperadamente no problema da evolução.

Se colocarmos entretanto a conexão em si, de pés para baixo, veremos que se desfaz a confusão idealista.

As reações são diferentes na revolução na revolução burguesa e na revolução socialista.

Na revolução burguesa as formas de produção capitalista desenvolvem-se ao lados das feudais, no seio da própria sociedade feudal. O capital monetário, o comercial e o industrial sob a forma da manufatura aparecerem nas cidades ao lado do artesanato das corporações. No campo, domina a economia rural feudal, mas repontam as primeiras ilhas de economias campesinas independentes. Encontramos a contradição na infraestrutura económica. Mas, existe igualmente na superestrutura. As classes burguesas enfrentam as feudais, assumem a liderança política de todas as classes não feudais. Nas grandes massas da população, a ideologia burguesa revolucionária vence a feudal reacionária. São as classes feudais — que não pairam no espaço — que dispõem do poder estatal (uma peça essencialíssima da superestrutura) e que querem conservar as velhas relações de produção feudal, pois representam a base económica da sua posição de classe privilegiada. São as classes burguesas, os líderes do povo que desfecham o ataque contra as velhas relações de produção, e conquistam a parte da superestrutura — que se chama poder estatal — e que, mediante este poder estatal revolucionário reprimem as relações feudais ainda sobreviventes: antes de tudo corporações das cidades, a economia feudal rural. Depois de ter efetivamente dissolvido a velha economia feudal na luta revolucionária pelo poder estatal, em ligação com a incursão revolucionária das massas campesinas na propriedade feudal rural, substituem o direito feudal pelo burguês — o que significa mais uma alteração na superestrutura feudal.

Examinando este esboço dos traços essenciais da revolução burguesa relativamente ao esquema fenomenológico da relação entre a infraestrutura e a superestrutura, cujo conflito seria a pedra angular e à “autonomia” de ambas as esferas, veremos:

  1. que a contradição aparece em ambas as esferas na infraestrutura e na superestrutura;
  2. que a contradição na esfera económica é básica, e as contradições na superestrutura aí tem origem;
  3. que em ambas as esferas estão em correlação estreita e múltipla;
  4. que as diversas partes na superestrutura desempenham papel muito diverso. O Estado absolutista constitui uma parte da superestrutura. No período da revolução está ainda a serviço das classes dominantes, e emprega céus e inferno para manter a posição económica e o poder político dessas classes. A ideologia, no sentido mais restrito do termo, também pertence à superestrutura, formando, por assim dizer, a sua cúpula.
    A ideologia revolucionária tem um papel essencial, tanto quanto na luta contra a base feudal da economia (infraestrutura), como contra o Estado, absolutista (superestrutura), e igualmente contra a Igreja organizada à feição feudal (e que representa, como potência económica, uma parte da infraestrutura feudal, e como porta-estandarte de certa ideologia, uma parte da superestrutura;
  5. a própria luta revolucionária se dirige, de modo pardal, diretamente contra a economia feudal (o levante dos camponeses contra os latifúndios, etc): e também diretamente contra a superestrutura (a luta política contra o poder estatal absolutista), e indiretamente contra a velha infraestrutura (mediante o poder estatal revolucionário);
  6. a contradição no campo económico evidencia-se no fato das formas económicas capitalistas existentes ao lado das feudais, em que o seu desenvolvimento está sendo dificultado pelas formas feudais, e em que por si mesmas elas atuam como desintegrantes das antigas. A existência simultânea de ambas as formas contraditórias de economia, em certo momento, leva a uma queda absoluta da produção; nenhuma das classes existentes pode sobreviver à permanência dessa contradição, mas força ativa da revolução só pode ser proporcionada pelas classes que, de um lado, sofrem com essa contradição, e de outro representam a força que levará positivamente à nova forma de economia e de sociedade. Finalmente, para maior ilustração do esquematismo inerte da teoria fenomenológica da revolução, basta propor a simples questão: a que esfera pertencem essas classes, pilares da luta de classe, em relação à infraestrutura e à superestrutura?

Como agentes económicos são, sem dúvida, do domínio da infraestrutura; como forças políticas, da superestrutura.

Como porta-bandeira de uma ideologia de classe elas pertencem à cúpula da superestrutura. Como a infraestrutura e a superestrutura podem ser autônomas, já que representam somente aspectos diversos da atuação de um só sujeito coletivo?

Isso não implica na falsidade da diferenciação da superestrutura e da infra- estrutura, e tão pouco que seja insignificante, mas evidencia, que a afirmação da autonomia dos dois lados é sem sentido, pois dá margem à suposição de que esses lados não estejam em conexão natural e causal, apesar da existência de diferentes aspectos da atuação de um só sujeito.

Tal conexão pode ser concebida de modo idealista, como mais ou menos o fez Hegel, resumindo numa forma idealista todos os aspectos da vida grega: pode-se concebê-la de maneira materialista, como no materialismo histórico, mas , suprimi- la sem mais aquela é um contra-senso, a bancarrota de toda concepção histórica. Se para Hegel a história é a realização da Razão, aqui se converte no irracional existente, o qual na melhor das hipóteses pode ser descrito, mas não compreendido.

Passamos a considerar agora a contradição na infraestrutura econômica da sociedade capitalista. Essa contradição e especificamente diversa da verificação na sociedade feudal decadente.

A forma socialista de produção não pode desenvolver-se em maior escala no seio da sociedade capitalista com a qual não pode coexistir, nem crescer e manter-se por muito tempo. A razão é simples. O estabelecimento industrial capitalista surgiu como estabelecimento isolado. Em virtude de sua natureza económica, pode aparecer e conservar-se como excrescência que destrói outras formas econômicas, como, por exemplo, a feudal. O setor econômico-capitalista que se constitui no campo da economia feudal representa então simplesmente uma soma de estabelecimentos individuais e independentes.

A economia socialista, pela sua própria essência, e por suas condições de existência, é de antemão e imediatamente social. Os seus componentes individuais são determinados pelo conjunto. Tal circunstância implica em que só uma economia socialista mundial lhe dê a forma inerente e apenas assim tenha definitivamente assegurada e sua existência.

A contradição básica na infraestrutura da sociedade capitalista, da qual todas as demais são consequências, é a manifestada entre a forma social da produção e a forma individual da apropriação, no sentido da distinção entre os verdadeiros produtores e os que se apropriam do produto social. Essa contradição básica evidencia-se na superestrutura como a contradição entre a classe capitalista, que representa os apropriadores individuais (igualmente quando o estado capitalista assume a maior parte das funções da classe patronal) e a classe operária, que é o agente direto da forma social da produção.

Seria supérfluo o exame minucioso do esquema fenomenológico. Sua incongruência é patente.

A superestrutura sem base económica torna-se despautério ainda maior no caso da revolução socialista do que no da burguesa. Que é o Estado capitalista na época dos monopólios, das grandes corporações, dos sindicatos patronais, etc., senão o instrumento de execução daqueles monopólios? Não vimos como durante a guerra a direção desses monopólios se transformou direta e pessoalmente na chefia estatal da economia em seu todo? Não houve uma fusão do Estado capitalista (supra-estrutura) com a economia capitalista (infraestrutura), integrando um conjunto único e gigantesco? Não vimos como o conjunto da “ideologia”; imprensa, rádio, escolas, igrejas, ciências, artes, etc., invés de seguir prescrições fenomenológicas e de se manter autônomo, transformou-se num simples departamento de organização da guerra?

A guerra, entretanto, não é uma anormalidade que suprima o caráter capitalista da sociedade. Ao contrário, aí se manifesta em sua forma mais aguada o caráter capitalista da sociedade.

O Materialismo Histórico Está Apenas no Início

Como se viu, o método fenomenológico, além de colocar o materialismo histórico de cabeça para baixo, não o completa e não representa nenhuma extensão do método do materialismo histórico. Ao contrário, ele fecha sistematicamente um imenso campo de pesquisas no terreno histórico social, negando qualquer conexão causal entre a base econômica e as supra-estruturas, entre as quais as ideologias no sentido restrito do termo.

Justamente aqui um campo gigantesco da elaboração científica está por ser explorado. O materialismo histórico está apenas no início, apesar de já fazer aproximadamente cem anos que surgiu. Seus teóricos são poucos; estiveram, e por muito tempo estarão assoberbados pelas necessidades mais imediatas urgentes da luta de classes. Antônio Labriola já chamou a atenção para isso, traçando um paralelo entre a atividade desenvolvida no tratamento da teoria Darvinista e do materialismo histórico. A diferença não é casual. A teoria Darvinista, assim como as mais recentes teorias da evolução dos seres vivos, ainda cabem nos quadros da ciência burguesa oficial. Todo um exército de cientistas burgueses está à sua disposição. O materialismo histórico é um fato revolucionário diante da sociedade burguesa. Esta não somente não tem interesse em favorecê-lo, mas por necessidade de autoconservação mobiliza todas as suas forças intelectuais para combatê-lo. Entre estas, a “filosofia” não e das últimas. Pode-se mesmo dizer que campos inteiros da ciência burguesa são dominados pelo esforço de combater o materialismo histórico e desacreditá-lo, falseá-lo ou cortar-lhe as asas. Hoje, que a sociedade burguesa luta corpo a corpo com a revolução socialista, que caminha para combates decisivos, também a luta ideológica se torna mais encarniçada. E, assim com ela procura dar à contra- revolução uma aparência revolucionária na figura, do mesmo modo procede no campo ideológico. O idealismo filosófico apresenta-se com máscara materialista ou semimaterialista. A dialética surge de novo, mas com a cabeça no lugar onde Marx e Engels lhe colocaram os pés, mais profundamente mistificada que me Hegel, e convertida, de método do pensamento racional, em método de apologia do sinistro e irracional instinto de auto-conservação de uma classe que é levada a privar-se da luz da razão para poder combater a corrente da razão histórica.

Devido a isso, quase não se examinar as formas pelas quais as relações materiais, sociais, se traduzem nos seus correspondentes ideais, nos cérebros das diversas classes. Friedrich Engels já apontou a falha e, desde então, muito pouco se fez para saná-la, devido a razões já expostas. A ciência burguesa ideológica ou idealista apega-se com avidez a essa lacuna. Ela coligiu os mais diversos materiais mas, metodicamente, é incapaz de dominar e expor de maneira verdadeiramente científica esse material, o que somente pode ser feito deduzindo- se os reflexos ideológicos da sua base material.

A verificação das relações entre as séries materiais e ideais, mediante o materialismo histórico, é tarefa básica e metodicamente decisiva, mais a base não representa ainda o edifício.

Seja-nos permitido servimo-nos de um exemplo do campo da matemática. A verificação de que, de duas grandezas variáveis, uma é a independente e outra dependente, é fundamental para o seu exame. Mas muito pouco saberemos de uma função matemática se soubermos apenas isso. Tal verificação representa um ponto de partida e nada mais.

Tomemos um exemplo: o exame das categorias do pensamento e, em particular, a pesquisa das conexões internas com sua base material natural e social ainda está por fazer-se em sua parte essencial. A isso se acrescenta o seu problema de desenvolvimento histórico, o estudo comparativo deste em diversos povos e culturas, e suas influências recíprocas. Finalmente, temos a questão de suas origens, de sua pré-história. Estas últimas nos leva às categorias gramaticais da língua: o imenso material que nos conduz além de qualquer história escrita, até a pré-história humana, não está, daquele ponto de vista, sequer externamente classificado, nem analisado ou estudado em função das relações sociais e do desenvolvimento da técnica de trabalho.

Certamente estas não são hoje as tarefas mais urgentes para o materialismo dialético. Refiro-me a elas para mostrar aos jovens que são levados mais ou menos ingenuamente pela ciência burguesa a aceitar que o materialismo histórico ou dialético esteja superado, “passé”, e deveria ser substituído ou completado pela velha xaropada idealista; para mostrar, repito, que o materialismo histórico ou dialético, em verdade, está apenas em seu início; que um imenso campo de pesquisas está à espera dos estudiosos; que o próprio método está em vias de amadurecimento, e poderá desenvolver-se mediante o tratamento contínuo do material colhido.

Mas para poder contribuir ativamente para esse desenvolvimento, é necessário libertar-se por completo da velha chapa idealista e colocar-se naquele no ponto de partida, da mesma forma que, na moderna astronomia, se pode progredir depois e somente depois de romper com o sistema ptolomaico, adotando-se o ponto de vista de Copérnico. Ou como se pode progredir, no estudo da histórica da evolução dos organismos, somente depois de abandonar o princípio de invariabilidade das espécies, tomando-se o ponto de partida de Darwin.

Por sua vez, a relação que existe entre o materialismo histórico e a “infraestrutura” é a mesma que existe entre os fenómenos psíquicos e os físicos. Devido aos preconceitos idealistas, as questões mais elementares esperam ser abordadas por um tratamento materialista metódico e longe estão de ter sido respondidas. Nesse campo, talvez seja necessário termos maior progresso das pesquisas físicas e químicas e do método fisiológico antes de podermos encarar os problemas mais simples de um ponto de vista verdadeiramente científico.

Que os processos materiais (para usar a expressão mais geral) correspondem á transmissão, pelos nervos, de uma impressão visual no sistema nervoso central dos animais superiores? Que corresponde materialmente a uma sensação visual? Que corresponde materialmente a uma imagem, etc, etc.?

Numa época em que se gastam milhões de dólares para produzir gazes e outros meios que permitam paralisar a atividade dos nervos dos exércitos inimigos, não podemos esperar que se dê muita atenção àqueles problemas.

Somente quando, em uma nova sociedade, as necessidades mais urgentes forem satisfeitas, o materialismo histórico e materialismo em geral poderão empreender o seu vóo, sem empecilhos, para o domínio do saber pelo saber, como atividade mais elevada e digna da humanidade, e poderão começar a ser estudados os problemas mais elementares que hoje, nas ciências positivas, não foram sequer colocados e onde, por isso, o charlatanismo encontra um campo em que possa instalar-se impunemente.

A Nova Situação da Pequena Burguesia e seu Reflexo Ideal na Fenomenologia e no Existencialismo

A filosofia de Feuerbach reflete a situação da pequena burguesia alemã diante da revolução burguesa que se aproximava. Cerca de 100 anos mais tarde, vemos refletir-se da fenomenologia e no existencialismo a nova situação da pequena burguesia.

Em que consiste a mudança essencial desta situação?

Em primeiro lugar, modificaram-se as características gerais da época, e com estas, o terreno em que se movimentam as classes pequeno-burguesas.

Na Europa, há muito passou o tempo da revolução burguesa. Lá o capitalismo não está apenas em declínio, está em derrocada. O traço geral da época consiste na contradição predominante entre a revolução socialista e a contra-revolução capitalista.

Mesmo onde a revolução democrático-burguesa ainda está na ordem do dia (por exemplo, em muitos países do Oriente) esse movimento é subordinado à contradição predominante entre a revolução socialista e a contra-revolução capitalista.

Ao mesmo tempo, todos os movimentos pequeno-burgueses locais subordinaram-se à luta entre a expressão imperialista, liderada pelos Estados Unidos, e a expansão socialista da União Soviética. Todos os movimentos revolucionários de polarizam devido a esse antagonismo geral predominante.

Esclareçamos com o exemplo de dois países que geograficamente se distanciam muito: a Espanha no extremo ocidental e a China na parte mais oriental do continente Auro-asiático. Consideremos primeiro a Espanha. Em si mesma, devido às condições internas do país, a revolução antifeudal democrático-burguesa ainda está por se fazer. Mas também esse movimento se subordina à disputa geral entre a revolução socialista e a contra-revolução capitalista e ao mesmo tempo à contradição entre o bloco anglo-americano de um lado e a União Soviética, na sua zona de influência, de outro lado.

A China, no outro extremo, está submetida às mesmas leis.

Por isso, vemos agora em toda parte a classe operária s seus partidos revolucionários também como forças “liderantes” da revolução democrático-burguesas.

As revoluções democrático-burguesas, em toda parte onde estão por se fazer, tornaram-se apenas movimentos das mais elevada e mais universal contradição: a da revolução socialista e da contra-revolução capitalista.

Cem anos atrás as irrupções revolucionárias socialistas representavam “excessos” no curso da revolução democrático-burguesas. A classe operária era praticamente parte integrante do campo pequeno-burguês democrático. Hoje, ao contrário, as revoluções socialistas (com possíveis pausas ora curtas, ora longas entre a “ouverture” e a peça propriamente dita).

Eis a situação geral da pequena burguesia de hoje em diante da revolução socialista.

A pequena burguesia de hoje encontra-se comprimida entre a alta burguesia e a classe operária. Não há saída, não há solução para os problemas no terreno da pequena burguesia. Vista por este prisma, nem sequer é possível compreender sua posição, seu destino.

Tudo que ela faz econômica e politicamente para conservar-se como pequena burguesia produz resultados contrários sem que ela própria saiba porque. Ela não pode conformar-se com a situação existente, que a pulveriza entre as mós do capitalismo monopolista. De tal forma que ele se torna “revolucionária” — nos limites da pequena burguesia. Levanta a bandeira do socialismo pequeno burguês. Mostra-se disposta a aplicar extremos de violência para conservação da propriedade pequeno-burguesa, da independência econômica pequena burguesa. Mais das as condições gerais da época, o que subjetivamente é interpretado, por parte da pequena burguesia, como revolução pequena burguesa, objetivamente se revela como contra-revolução fascista. Para defender a sua propriedade, a pequena burguesia defende a propriedade da alta burguesia. Depois da vitória da contra-revolução fascista, a propriedade pequena burguesa é destruída mais rápida, profunda e barbaramente pelo grande capital, com a ajuda do Estado fascista.

A pequena burguesia aparentemente ganha, com a contra revolução fascista, o poder político exclusivo. Em toda parte ela fornece a massa do partido fascista, o “fuehrer”, todos os novos senhores inclusive os “gauleiters”. Mas, socialmente, como classe, ela se torna mero instrumento executivo do grande capital.

Procura a paz, mas encontra a guerra.

Renega a democracia burguesa, e todo pequeno burguês quer tornar-se senhor. Mas no regime dos “feuhrer”, todos os novos senhores inclusive os de maior projeção tornam-se também escravos de uma imensa e cega máquina partidária. As tradições de cultura burguesa e pequeno-burguesa são destruídas mediante à vista à selvageria, a religião transforma-se em superstição primitiva, pagã. O patriotismo se realiza numa capitulação e derrocada nacional. O almejado domínio da nação sobre todas as outras transforma-se na execração da própria nação pelas demais.

A família é decomposta e dissolvida pelo estado fascista.

Também a revolução socialista incluiu a perspectiva de supressão da propriedade pequeno-burguesa, mas, simultaneamente, a propriedade se transforma em propriedade social coletiva.

Isto representa a única saída real para a propriedade pequeno-burguesa. Mas tal só se torna possível mediante a negação da propriedade individual. Da mesma forma, a autodeterminação econômica individual é substituída pela coletiva.

Esta situação material e suas contradições encontram reflexo característico na esfera ideal.

As leis racionais da sociedade capitalista determinam a derrocada da pequena burguesia como classe.

Por isso, ela se apega ao irracionalismo nas suas formas mais diversas. A forma extrema é a crença em milagres e a crença no “salvador” taumaturgo todo poderoso, que lembra os tempos de decomposição da sociedade antiga — os meios espirituais que levaram ao aparecimento do cristianismo.

A pequena burguesia acreditar esta acima das classes, porque está colocada entre a classe capitalista e a operária. A expressão filosófica desta crença é o idealismo subjetivo que supõe estar acima da contradição materialismo-idealismo. Este idealismo subjetivo procura ao mesmo tempo apresentar-se com a aparência de materialismo, da mesma forma que contra-revoulção fascista reveste a aparência revolucionária.

A dialética aparece como reflexo das contradições a que a pequena burguesia é impelida. Mas, para esta, tais contradições são incompreensíveis, cegas, incontroláveis. Semelhante dialética se torna, por isso, irracional, mística, idealista. A “autonomia da ideologia” leva ao “mito” ou à “mística”; na prática política, ao ludibrio grosseiro das “massas” pela “elite”.

Para a “revolução fenomenológica”, a infraestrutura econômica desaparece sob a velha “supra-estrutura”. Assim, não há objeto para a transformação revolucionária das relações de propriedade. Deste modo, a propriedade burguesa continua, e apenas muda frequentemente de mãos.

Além disso, a suposição de que o sujeito pode manejar livremente a economia capitalista traz como consequência o “capitalismo de estado”, i. e., supressão do capitalismo privado, dentro dos quadros do capitalismo e, com isso, simultaneamente, o agravamento extremo das suas condições inerentes.

A religião se conserva, mas privada de seu conteúdo. Trata-se da religião, qualquer que seja ela. A religião só pode existir de fato como uma religião determinada, excluindo e repelindo todas as outras. A salvação da religião “em geral” é ao mesmo tempo a sua volatização. A indiferença contra uma forma determinada torna-se um meio para um fim, torna-se um fim estatal do mesmo valor que outros “mitos”.

O terror contra-revolucionário se reflete na ilusão da onipotência do sujeito, do sujeito como criador do mundo. O objeto não é nada, é “meu produto” e somente isto. Daí o nihilismo, a praga da destruição ilimitada. A derrocada do “sujeito” significa a derrocada do mundo.

Só Pela Negação, Há Perspectiva Possível

Só o materialismo histórico ou dialético, a ciência social, desenvolvida no âmbito da classe operária, permite à pequena burguesia, não apenas uma compreensão da sua situação e de suas perspectivas, mas também uma correspondente ação como classe, um verdadeiro domínio e construção do próprio destino. Isto inclui, no campo ideológico, um rompimento completo com o idealismo, com toda “filosofia”, com toda ideologia e com as “tradições” da pequena burguesia.

O que a pequena burguesia perde em base individualista, recupera numa base coletiva; não há outro caminho, com exclusão aliás. De suas ideologias específicas, inclusive religião.

Uma forma de sociedade que, em princípio e de maneira crescente domina praticamente de modo racional a natureza e a sua própria vida social, não tem mais necessidade de religião nem de qualquer outra mística. Seu lugar é preenchido pela arte e pela ciência.

Mas a passagem para essa fase mais elevada só se verifica pela negação. Este é um duro encargo para a pequena burguesia. O materialismo histórico ou dialético não tem raízes nas condições de vida da pequena burguesia. Para a classe, em toda sua extensão, o rompimento com a sua própria ideologia, em regra, não será o ponto de partida para a reorganização revolucionária. Isto quando muito, poderá acontecer para indivíduos isolados. O ponto de partida será a ação revolucionária que se desenvolve sob a imposição inevitável de necessidades materiais extremas. A ação muda às condições materiais dos próprios agentes e consequentemente, abrirá novos horizontes para o seu pensamento e ajudará a romper o envoltório de sua “ideologia autónoma”. A “sociedade socialista” não necessita mais de uma ideologia específica pequeno-burguesa, nem qualquer outra “ideologia”.

A queda da púrpura precede a do duque”
(Schiller).


Notas de rodapé:

(1) August Thalheimer, doutor em filosofia, testamenteiro literário de Franz Mehring, foi um dos fundadores do “Spartakkusbund” e do Partido Comunista Alemão. Rompeu com este em 1923, na fase da política ultra esquerdista imposta pelo stalinismo, tornando-se um dos dirigentes de Oposição Comunista Alemã, que pregava a frente única da classe operária contra a ameaça nazista. Quando Hitler tomou o poder, Thalheimer teve de emigrar, primeiro para a França e posteriormente, à Cuba, onde faleceu em 1948. Das suas obras foi traduzida para o português a “Introdução ao Materialismo Dialético”, série de 6 conferências feitas inicialmente para estudantes chineses da Universidade de Berlim. O presente “Marxismo e Existencialismo” foi publicado pela primeira vez em português, pelo “Estado de São Paulo” em 1947, de cujo texto nos valemos. (retornar ao texto)

logotipo
Inclusão 14/03/2013
Última alteração 14/04/2014