Balanço e Perspectivas

Léon Trotsky


Capítulo I - Particularidades do desenvolvimento histórico da Rússia


Se compararmos o desenvolvimento social da Rússia com o dos outros países da Europa - agrupando estes últimos num mesmo capítulo, do ponto de vista do que há de comum na sua história, e que o distingue da história da Rússia -, poderemos dizer que a principal característica do desenvolvimento social da Rússia são a lentidão e o seu caráter primitivo.

Não insistiremos aqui nas causas naturais deste caráter primitivo, mas o fato, em si, é indubitável: a vida social russa edificou-se sobre as mais pobres e as mais primitivas bases econômicas.

O marxismo ensina que o desenvolvimento das forças produtivas determina o processo histórico-social. A formação das corporações econômicas, das classes e dos estados só é possível quando este desenvolvimento atinge um certo nível. A diferenciação em classes e em estados, que é determinada pelo desenvolvimento da divisão do trabalho e pela criação de funções sociais mais especializadas, supõe que a parte da população que é empregada na produção material imediata produz um sobreproduto com relação ao que consome; é só apropriando-se deste sobreproduto que podem elevar-se e tomar forma as classes não-produtoras. Além disso, a divisão do trabalho entre as classes produtoras só é possível quando a agricultura atinge um grau de desenvolvimento suficiente para poder assegurar o abastecimento em produtos agrícolas da população não agrícola. Estas proposições fundamentais do desenvolvimento social tinham já sido formuladas claramente por Adam Smith.

É por isto, embora o período de Novgorod da nossa História coincida com o início da Idade Média na Europa, que a lentidão do desenvolvimento econômico, resultante das condições naturais e históricas (situação geográfica menos favorável, população dispersa), não podia deixar de travar o processo de formação das classes e de lhe dar um caráter mais primitivo.

É difícil dizer que forma teria tomado o desenvolvimento social da Rússia sob a exclusiva influência das suas tendências internas se se tivesse mantido isolada. Basta dizer que isso não aconteceu. Mas a vida social russa, edificada sobre determinados fundamentos econômicos internos, não deixou de sofrer a influência e mesmo a pressão do meio exterior histórico-social.

Quando esta organização social e estatal, no decurso da sua formação, entrou em conflito com outras organizações vizinhas, o caráter primitivo das relações econômicas e o desenvolvimento comparativamente elevado dos seus adversários tomou um papel decisivo no processo que daí resultou. O Estado russo, nascido sobre uma base econômica primitiva, entrou em relações e em conflito com organizações estatais construídas sobre fundamentos mais elevados e mais estáveis.

Duas possibilidades se abriam então: ou o Estado russo sucumbiria nesta luta, como a Horda de Ouro na luta contra o Estado moscovita, ou a elas se juntaria no desenvolvimento das relações econômicas, e absorveria muito mais forças vitais do que se tivesse ficado isolado.

Ora, a economia da Rússia encontrava-se já suficientemente desenvolvida par impedir que se produzisse a primeira eventualidade. O Estado não se afundou, mas começou a crescer sob a terrível pressão das forças econômicas.

Assim, embora a Rússia estivesse rodeada de inimigos por todos os lados, não era aqui ainda que residia o fator principal. De fato, isso aplicar-se-ia a qualquer outro país da Europa, excetuando talvez a Inglaterra. Mas, na luta pela existência que sustentavam uns contra os outros, estes Estados dependiam de bases econômicas mais ou menos idênticas e o seu desenvolvimento econômico não se encontrava, portanto, submetido a uma pressão exterior tão poderosa.

A luta contra os Tártaros da Criméia e os Tártaros Nogaï exigiu os maiores esforços; mas, naturalmente, não tão grandes como os que exigiu a guerra dos Cem Anos entre a França e a Inglaterra. Não foram os Tártaros que obrigaram a velha Rússia a introduzir as armas de fogo e criar os regimentos permanentes de Streltsy; nem foram eles que, mais tarde, a obrigaram a formar uma cavalaria nobre e forças de infantaria, mas a pressão exercida pela Lituânia, pela Polônia e pela Suécia.

Esta pressão exercida por uma parte da Europa ocidental levou o Estado Russo a absorver uma fração excepcionalmente elevada do sobreproduto, isto é, a viver à custa das classes privilegiadas em via de constituição, o que retardou ainda mais o desenvolvimento. Mas isto não é tudo. O Estado, fundado sobre o "produto necessário" do camponês, privou-o da sua subsistência, levando-o a fugir da terra, na qual ainda não tinha tido tempo de se estabelecer, e assim foi travado o crescimento da população e o desenvolvimento das forças produtivas. Desta maneira, à medida que o Estado absorvia uma parte desproporcionada do sobreproduto, entravava a diferenciação, já de si lenta, entre os estados; e na medida em que retirava uma parte importante do produto necessário, destruía as próprias bases da produção primitiva das quais dependia.

Mas, para poder existir, funcionar, e, antes de tudo e por conseqüência, apropriar-se da parte do produto social que lhe era necessário, o Estado necessitava de uma organização hierárquica dos estados. É por isto que, minando os seus próprios fundamentos econômicos, o Estado esforçava-se, ao mesmo tempo, através de medidas governamentais, por acelerar o desenvolvimento, e - como qualquer outro Estado - por aproveitar-se do desenvolvimento dos "estados".

Miliukov, historiador da cultura russa, vê aqui um contraste absoluto com a história da Europa ocidental. Mas não é assim.

A monarquia dos Estados da Idade Média, que se tornou um regime de absolutismo burocrático, era uma forma de Estado destinada à consolidação de interesses e de relações sociais determinadas. Mas esta forma de Estado, uma vez desenvolvida, tinha os seus interesses próprios (os da dinastia, da corte, da burocracia) que entravam em conflito, não só com os interesses dos estados inferiores, mas também com os estados mais elevados. Os estados dominantes, que constituíam o tabique, socialmente indispensável, entre as massas do povo e a organização do Estado, exerciam pressão sobre esta última e faziam dos seus próprios interesses o conteúdo da atividade prática do Estado. Contudo, o poder de Estado, como força independente, considerava também do seu próprio ponto de vista os interesses dos estados mais elevados e resistia às suas aspirações e tentava submetê-los. A história real das relações entre o Estado e os estados desenvolveu-se ao longo das linhas resultantes, determinadas pela relação das forças.

Foi um processo fundamentalmente idêntico que se desenrolou na Rússia. O Estado esforçou-se por utilizar o desenvolvimento dos grupos econômicos a fim de o subordinar aos seus próprios interesses especializados, financeiros e militares. Os grupos econômicos, dominantes, por seu lado, esforçavam-se, ao longo do seu desenvolvimento, por utilizar o Estado para consolidar as suas vantagens sob a forma de privilégios de estados.

A resultante deste jogo das forças sociais foi bastante mais favorável ao poder de Estado, do que na Europa ocidental. A troca de serviços, à custa das massas trabalhadoras, entre o poder de Estado e os grupos sociais superiores, que encontra a sua expressão na distribuição dos direitos e das obrigações, dos encargos e dos privilégios, era, na Rússia, menos vantajosa para a nobreza e para o clero do que nas monarquias medievais européias.

Isto está fora de dúvida. Mas exagera-se consideravelmente e perde-se todo o sentido das proporções quando se sustenta, como faz Miliukov, que teriam sido os "estados" no Ocidente que criaram o Estado, mas na Rússia, pelo contrário, foi o Estado que criou os "estados" no seu próprio interesse.

Os estados não podem ser criados pela ação do Estado, pela lei. Antes que este ou aquele grupo social possa, com a ajuda do poder de Estado, tomar a forma de um estado privilegiado, deve ter-se desenvolvido economicamente com todas as suas vantagens sociais. Os estados não podem ser fabricados de acordo com uma hierarquia pré-estabelecida ou à ordem da Legião de Honra. O poder de Estado só pode apoiar, com todos os seus recursos, o processo econômico elementar que dá origem a formações econômicas mais elevadas.

Já o dissemos acima: o Estado russo consumia uma porção comparativamente grande das forças da nação, entravando assim o processo de cristalização social, mas este processo era-lhe necessário para os seus próprios objetivos. Era pois natural que, sob a influência e a pressão do meio ocidental mais diferenciado, pressão transmitida pela organização militar-estatal, o Estado, por sua vez, se esforçasse por acelerar o desenvolvimento da diferenciação social sobre fundamentos econômicos primitivos.

Além do mais, era natural que o Estado, constrangido pela fraqueza das formações econômico-sociais, a recorrer a um tal "forçar" do seu desenvolvimento, tivesse tentado utilizar o poder preponderante adquirido no exercício do seu papel de tutor para dirigir para seu proveito o desenvolvimento das classes elevadas. Mas quando o Estado pretendia obter maiores resultados nesta via, deparava então com a sua própria franqueza, com o caráter primitivo da sua própria organização, que era determinado, sabemo-lo, por uma estrutura social primitiva.

Assim, o Estado russo, construído sobre o fundamento da economia russa, foi lançado para a frente pela pressão exercida sobre ele pelos seus vizinhos, os Estados amigos e sobretudo os Estados inimigos que se tinham formado em países economicamente mais desenvolvidos. A partir de um certo momento, sobretudo desde o fim do século XVII, o Estado procura por todos os meios acelerar a evolução econômica natural. Novos ramos do artesanato, máquinas e atelieres, produção em grande escala, capital, parecem ser de algum modo enxertos artificiais na árvore da economia natural. O capitalismo aparece como criado pelo Estado.

Deste ponto de vista, poder-se-á mesmo dizer que toda a economia russa é uma criação artificial do Estado, que ela foi enxertada artificialmente na árvore natural da ignorância nacional.

Como a economia russa, o pensamento russo desenvolveu-se sob a pressão direta do pensamento mais avançado e da economia mais desenvolvida do Ocidente. Ao caráter de "economia natural" da economia russa correspondia um desenvolvimento medíocre do comércio externo: foi pois essencialmente sob a égide do Estado que se encontraram colocadas as relações com os outros países, e a influência destes manifestou-se numa luta encarniçada pela existência do Estado antes de encontrar a sua expressão numa competição econômica direta. Foi por intermédio do Estado que as economias ocidentais influenciaram a economia russa. A fim de poder sobreviver no meio de países hostis e melhor armados, a Rússia viu-se constrangida a construir fábricas, a organizar escolas navais, a editar manuais sobre a arte das fortificações, etc.

Mas se o curso geral da economia interna deste imenso país não tivesse sido nesta direção, se o desenvolvimento das condições econômicas não tivesse criado a necessidade da ciência pura e aplicada, todos os esforços do Estado teriam sido vãos. A economia nacional que, pelo seu próprio movimento, tendia a transformar-se, não respondia senão a medidas governamentais que correspondiam às suas próprias tendências, e só na medida em que elas lhes correspondiam. A história da indústria russa, do sistema monetário russo e do crédito do Estado russo constitui a melhor demonstração possível da justeza deste ponto de vista.

"A maior parte dos ramos industriais (metalurgia, refinarias de açúcar, petróleo, destilarias, a própria indústria têxtil), escreve o professor. Mendéléev, nasceu sob a influência direta de medidas governamentais, por vezes mesmo com a ajuda de importantes subsídios do governo, mas sobretudo graças ao fato de o governo adotar sempre, conscientemente, uma política protecionista. Sob o reinado de Alexandre, o governo inscreveu abertamente esta política na sua bandeira. Aceitando sem reservas aplicar à Rússia os princípios do protecionismo, os círculos governamentais mostraram ser mais avançados do que o conjunto das nossas classes educadas".

O douto panegirista do protecionismo industrial esquece-se de acrescentar que a política do governo não era de maneira nenhuma guiada pela preocupação de desenvolver as forças da indústria, mas por considerações fiscais e, por outro lado, militares e técnicas.

Foi por isto que a política protecionista se encontrou bastantes vezes em oposição não só com os interesses fundamentais do desenvolvimento industrial, mas também com os interesses privados dos vários grupos de homens de negócios. Foi assim que os proprietários de fiações de algodão declaravam abertamente que "são mantidos os direitos elevados sobre o algodão, não para encorajar a sua cultura, mas exclusivamente no interesse do fisco". De igual modo, quando da "criação" dos estados, o governo prosseguia antes de tudo a realização dos objetivos do Estado, e, ao "implantar" a indústria, a sua principal preocupação eram as exigências do Tesouro.

Contudo, não existe nenhuma dúvida de que, para a transplantação do sistema de produção das fábricas no solo russo, o papel da autocracia não foi menor.

No momento em que a sociedade burguesa, que se desenvolvia, começou a sentir a necessidade de instituições políticas semelhantes às dos países ocidentais, a autocracia dispunha de toda a força material dos Estados europeus. Ela repousava sobre um aparelho burocrático centralizado, sem nenhuma utilidade para estabelecer novas relações, mas apto a despender uma grande energia na execução de repressões sistemáticas.

A imensidão do país tinha sido superada graças ao telégrafo, que dá confiança aos atos da administração e assegura uma uniformidade relativa e rapidez na execução das suas decisões (em matéria de repressão). Os caminhos de ferro permitiam à autocracia transportar rapidamente as suas forças armadas de um extremo ao outro do país. Os governos da Europa pré-revolucionária não conheceram o caminho de ferro nem o telégrafo. O exército de que o absolutismo dispunha era colossal e, se ele se revelou ineficaz nas sérias provas da guerra contra o japão, era bastante eficaz para dominar no interior. Nem o governo da França anterior à grande Revolução, nem mesmo o de 1848, conheceram algo de semelhante ao exército russo de hoje.

Submetendo o país a uma extrema exploração através dos seus aparelhos militar e fiscal, o governo elevou o montante do seu orçamento anual até ao enorme número de dois mil milhões de rublos. Sustentado pelo seu exército e pelo orçamento, o governo da autocracia fez da Bolsa européia o seu ministro das finanças, de tal maneira que o contribuinte russo se tornou o seu tributário sem esperança.

Foi nestas condições que, nos dois últimos decênios do Século. XIX, o governo russo pôde aparecer ao mundo como uma organização colossal, militar, burocrática, fiscal e bolseira, com um poder invencível.

O poderio financeiro e militar da monarquia absoluta não assustou e não ofuscou somente a burguesia européia, mas também o liberalismo russo, que perdeu toda a confiança na possibilidade de obter satisfação numa prova aberta de força com o absolutismo. No poderio militar e financeiro do absolutismo parecia excluir qualquer oportunidade, embora mínima, de uma revolução russa.

Mas a realidade veio a mostrar exatamente o contrário.

Quanto mais um governo é centralizado, tanto mais é independente da sociedade e mais cedo se torna uma organização autocrática, colocada acima da sociedade. Quanto mais vastos são os recursos financeiros e militares de uma tal organização, mais tempo e mais frutuosamente pode continuar a sua luta pela existência. O Estado centralizado, com um orçamento de dois mil milhões de rublos, a sua dívida de oito mil milhões e o seu exército de numerosos milhões de homens armados, podia continuar a existir bastante tempo depois de ter deixado de satisfazer às necessidades mais elementares do desenvolvimento social; não só às necessidades mais elementares do desenvolvimento social; não só às necessidades da administração interna, mas até às de segurança militar, para as quais tinha sido formado na sua origem.

Quanto mais tempo se mantinha um tal estado de coisas, maior se tornava a contradição entre as necessidades do desenvolvimento econômico e cultural e a política do governo, cuja inércia tinha atingido o máximo. Depois do período das grandes reformas de remendos, que, longe de eliminarem as contradições, as fizeram ressaltar pela primeira vez com uma particular clareza, tornou-se psicologicamente ainda mais impossível o governo tomar, pelo seu próprio movimento, o caminho do parlamentarismo. A situação só oferecia à sociedade uma única saída para as contradições existentes: a acumulação, na caldeira do absolutismo, de uma quantidade suficiente de vapor para a fazer explodir.

Assim, o poder administrativo, militar e financeiro do absolutismo, que se devia manter, apesar do desenvolvimento social, bastante longe, como pensavam os liberais, de excluir a possibilidade de uma revolução, já não deixava outra saída; além disso, a revolução estaria destinada desde a origem, a tomar um caráter tanto mais radical quanto mais profundo era o abismo que separava o absolutismo da nação. O marxismo russo pode sentir-se orgulhoso por ter sido o único a explicar a direção deste desenvolvimento e a predizer as suas formas gerais, enquanto os liberais se moviam no "praticismo" mais utópico e os narodniki revolucionários viviam de fantasmagorias e acreditavam em milagres. Todo o desenvolvimento social anterior tornava a revolução inevitável.

Quais eram pois as forças motrizes desta revolução?


Inclusão 14/03/2012