História da Revolução Russa

Léon Trotsky


O Congresso dos Sovietes e a manifestação de Junho


O primeiro Congresso dos sovietes, que deu a Kerensky a sanção para a ofensiva, reuniu-se a 3 de Junho, em Petrogrado, no edifício do Corpo dos Cadetes, (alunos oficiais). Assistiram no total 820 delegados com voz deliberativa e 268 com voz consultiva. Representavam 305 sovietes locais, 53 sovietes regionais e provinciais, as organizações da frente, as instituições militares da retaguarda e centenas de organizações camponesas. O direito de sufrágio deliberativo pertencia aos do soviete que juntavam pelo menos 25 mil membros. Os que agrupavam de 10 mil a 25 mil membros que, aliás, não eram rigorosamente observados, pode-se supor que o Congresso representava mais de 20 milhões de homens. Sobre 777 delegados tendo dado a conhecer a sua ligação a um partido, havia 285 socialistas-revolucionários, 248 mencheviques, 105 bolcheviques;  vinham a seguir os grupos menos consideráveis. A ala esquerda, isto é os bolcheviques com os internacionalista que se ligavam estreitamente a eles, constituía menos menos do quinto dos delegados. O congresso compunha-se maioritariamente de gente que em Março, se tinha inscrito como socialistas e que, em Junho, sentiam-se já cansados da revolução. Petrogrado devia lhes parecer uma cidade de endiabrados.

O congresso começou por aprovar a expulsão de Grimm, lamentável socialista suíço que tinha tentado salvar a Revolução russa e a social-democracia alemã por meio de conversações de bastidores com os diplomatas do Hohenzollern. A aula esquerda tendo pedido um debate imediato sobre a ofensiva que se preparava, esta proposição foi afastada por uma esmagadora maioria. Os bolcheviques tinham o aspecto de um grupo insignificante. Mas nesse dia, e talvez à mesma hora, a conferência dos comités de fábrica e de oficina de Petrogrado adoptava, com uma maioria igualmente esmagadora, uma resolução dizendo que o país só poderia ser salvo pelo poder dos sovietes.

Os conciliadores, tão míopes que fossem, não podiam impedir-se de ver o que se passava diariamente à volta. O inimigo confesso dos bolcheviques, Liber, evidentemente sob a influência dos provinciais, denunciava na sessão do 4 de Junho, os comissários incapazes do governo a quem, nas localidades, não queriam ceder o poder. «Um grande número de funções dos órgão governamentais, no seguimento de tais circunstância, passavam pelas mãos dos sovietes, mesmo quando estes não o desejavam.» Os conciliadores queixavam-se contra eles próprios.

Um dos delegados, um pedagogo, contou ao Congresso que em quatro meses de revolução não se tinha produzido a menor modificação no domínio da instrução pública. Todos os professores, inspectores, directores, reitores de academia, muitos deles antigos membros das organizações dos Cem Negros, todos os precedentes programas escolares, os manuais reaccionários, e mesmo antigos adjuntos do ministro, ficaram imperturbavelmente nos lugares. Só os retratos do czar foram armazenados, mas pode-se recuperá-los à primeira ocasião.

O Congresso não ousava levantar a mão à Duma do Império. E sobre o Conselho de Estado. O orador menchevique Bogdanov dissimulava a sua timidez diante da reacção dizendo que a Duma e o Conselho de Estado «eram sobretudo instituições mortas, inexistentes». Martov, com a sua causticidade de polemista, respondeu: «Bogdanov prepõe considerar  Rússia a  Duma inexistente, mas de não atentar contra a sua existência.»

O Congresso, apesar da sólida maioria governamental, desenrolou-se numa atmosfera de ansiedade e de incerteza. O patriotismo arrefeceu, dando fracas faíscas. Via-se claramente que as massas estavam descontentes e que os bolcheviques, no país, principalmente na capital, eram infinitamente mais fortes que no Congresso. Levado à sua base essencial, o debate entre bolcheviques e conciliadores andava à volta desta questão: com quem a democracia deve ela caminhar, com os imperialistas ou com os operários? A sombra da Entente pairava sobre o Congresso. A questão da ofensiva estava resolvida antecipadamente, só restava aos democratas inclinarem-se.

«Neste momento crítico – pregava Tseretelli – nenhuma uma força social poderá ser rejeitada da balança enquanto servir a causa do povo.» Assim se motivava a coligação com a burguesia. Como o proletariado, o exército e o campesinato contrariavam a cada paso os planos dos democratas, eram obrigados a abrir as hostilidade contra o povo, sob a aparência de fazer guerra aos bolcheviques. Foi assim que Tseretelli entregava à excomunhão os marinheiros de Cronstadt para não rejeitar da sua balança o cadete Pepeliaev. A coligação foi aprovada por uma maioria de 543 votos contra 126, com 52 abstenções.

Os trabalhos da imensa e inconsistente assembleia, ao Corpo dos Cadetes, distinguiam-se pela grandiloquência das declarações e a parcimónia conservadora diante dos problemas práticos. Isso dava a todas as resoluções um toque de desânimo e de hipocrisia. O Congresso reconheceu a todas as nações da Rússia o direito de disporem delas próprias, reservando contudo a chave desse direito problemático não às nações oprimidas, mas à futura Assembleia constituinte na qual os conciliadores esperavam estar em maioria e dispunham-se a capitular diante dos imperialistas assim como eles faziam agora no governo.

O Congresso recusou adaptar um decreto sobre a jornada de oito horas. Tseretelli explicou o marcar passo da coligação pela dificuldade em conciliar os interesses das diferentes camadas da população. Como se alguma vez na história uma grande obra tivesse sido realizada pela «harmonia dos interesses» e não pela vitória dos interesses progressistas sobre os interesses reaccionários!

Gromann, economista soviético, apresentou no fim a sua inevitável resolução: sobre a catástrofe económica eminente e sobre a necessidade da regulamentação pelo Estado. O Congresso adoptou esta resolução ritual, mas somente para que tudo ficasse como no antes.

«Grimm foi expulso – escrevia Trotsky no 7 de Junho – o Congresso passou à ordem do dia. Mas os lucros capitalistas continuam sempre intangíveis para Skobelev e os seus colegas. A crise dos abastecimentos agrava-se de hora a hora. No domínio diplomático, o governo é constantemente derrotado. Enfim, a ofensiva tão histericamente proclamada deve ao que parece abater-se em breve sobre o povo como uma aventura monstruosa.

«Nós somos pacientes e estaríamos dispostos a observar ainda com calma a actividade esclarecida do ministério LvovTerechtchebkoTseretelli durante alguns meses. Necessitamos de tempo para nos preparar-mos. Mas a toupeira cava demasiado rápido debaixo do chão. E, com a ajuda dos ministros «socialistas»,  o problema do poder pode abater-se sobre os membros deste congresso muito mais cedo que nós pensamos.»

Tentando cobrir-se diante das massas da mais alta autoridade, os líderes comprometiam o Congresso em todos os conflitos do dia, comprometendo-o impiedosamente diante dos olhos dos operários e soldados de Petrogrado. O mais impressionante episódio desse género foi o caso da mansão de Dornovo, antigo alto dignitário do czar que, como ministro do Interior, ganhou reputação ao esmagar a Revolução de 1905. A cidade deserta do burocrata odiado, além disso especulador, foi ocupada pelas organizações operárias do bairro de Vyborg, principalmente por causa do seu imenso parque que se tornou favorito das crianças. A imprensa burguesa representava a cidade como um coi de ladrões e de vagabundos, como o Cronstadt do bairro de Vyborg. Ninguém se deu ao trabalho de ir verificar o que era na realidade. O governo, que iludia cuidadosamente todas as grandes questões, dedicou-se com grande paixão a salvar a cidade. Exigiu-se do comité executivo a sanção de medidas heróicas, e Tseretelli, bem entendido, não recusou. O procurador deu ordem de expulsar, em 24 horas, o grupo de anarquistas. Tendo tido conhecimento da acção militar que se preparava, os operários alertaram-se. Os anarquistas, pelo seu lado ameaçavam resistir pelas armas, 28 fábricas declararam greve de protesto. O comité executivo publicou um manifesto denunciando os operários do bairro de Vyborg como auxiliares da contra-revolução. Após tal preparação, os representantes da justiça e da milícia penetraram na caverna do leão. Acontece, porém que, na cidade, onde se abrigavam várias organizações operárias culturais, reinava a ordem perfeita. A autoridade teve que recuar envergonhada. Esta história teve portanto seguimento.

No 9 de Junho, no Congresso, rebentou uma bomba:  a Pravda da manhã tinha publicado um apelo a uma manifestação para o dia seguinte. Tchkeidzé, que sabia ter medo e estava disposto a assustar os outros, declarou com uma voz fúnebre: «Se o Congresso não toma medidas, o dia de amanhã será fatal.» Os delegados, assustados, levantaram a cabeça.

A ideia de uma confrontação dos operários e dos soldados de Petrogrado com o Congresso foi imposta pela situação. As massas faziam pressão sobre os bolcheviques. A efervescência,  era grande sobretudo na guarnição que temia, por ocasião da ofensiva, ser deslocada à força e dispersada sobre as frentes. A isso juntou-se um vivo descontentamento: a Declaração dos direitos dos soldados marcava um grande recuo em comparação com o Prikaz nº 1 e com o regime de facto que se tinha estabelecido no exército. A iniciativa da manifestação vinha da organização militar dos bolcheviques. Os seus dirigentes afirmavam, e cheios de razão, como mostraram os acontecimentos, que se o partido não tomava a direcção, os soldados, por eles próprios, sairiam à rua. A brusca reviravolta da opinião nas massas não podia, porém, ser apreciada a meio caminho, e daí resultavam certas hesitações entre os próprios bolcheviques. Volodarsky não estava convencido que os operários manifestar-se-iam na rua. Havia também apreensões sobre o carácter que tomaria a manifestação.

Os representantes da organização militar afirmavam que os soldados, temendo uma agressão e represálias, não saíram sem armas. «Como se passará esta manifestação?» perguntava o prudente Tomsky, e reclamava um novo debate. Estaline considerava que «a fermentação entre os soldados é um facto; entre os operários, o estado de espírito não estava muito animado»; mas ele achava mesmo assim que era necessário opor resistência ao governo.  Kalinine, sempre tendendo a esquiver-se ao combate em vez de o aceitar, pronunciou-se resolutamente contra a manifestação, alegando a ausência de uma maior razão importante, sobretudo entre os operários: «A manifestação, será sempre falsa.» No dia 8 de Junho, numa reunião com os representantes dos distritos, após vários votos prévios, cento e trinta e uma mãos ergueram-se finalmente pela manifestação o comité inter-distritos decidiu juntar-se à manifestação que foi fixada para o domingo 10 de Junho.

O trabalho preparatório foi levado até ao último momento clandestinamente para não dar aos socialistas-revolucionários e aos mencheviques a possibilidade de empreender uma contra-agitação. Esta medida legítima de prudência foi, mais tarde, interpretada como a prova de uma conjuração militar. A decisão de organizar a manifestação, o Soviete central dos comités de fábrica e de oficinas aderiu. «Sob a pressão de Trotsky e contra as objecções de Lunatcharsky – escreveu Iugov – o comité inter-distritos decidiu juntar-se à manifestação.» A preparação foi feita com estrema energia.

A  manifestação devia içar a bandeira do poder dos sovietes. A palavra de ordem de combate era: «Abaixo os dez ministros capitalistas!» Era a expressão mais simples da reivindicação de uma ruptura da coligação com a burguesia. O desfile devia dirigir-se para o Corpo dos Cadetes onde tinha lugar o Congresso. Assim, sublinhavam que se tratava não de derrubar o governo, mas de pressionar os líderes soviéticos.

Na verdade, nas conferências preliminares dos bolcheviques, fizeram-se ouvir outras vozes. Foi assim que Smilga, então jovem membro do Comité central, propôs «em não se renunciar à ocupação os correios, o telégrafo e o arsenal, se os acontecimentos se desenvolvessem até à formação de uma coligação». Um outro participante na conferência, Latzis, membro do Comité de Petrogrado, notou no seu caderno, quando a proposição de Smilga foi rejeitada: «Não posso aceitar isso … Discutirei com os camaradas Semachko e Rakhia para que sejamos, em caso de necessidade, armados e que nos tomemos posse das gares, dos arsenais, dos bancos, dos correios e do telégrafo, com o apoio do regimento de metralhadoras.» Semachko, era um oficial do regimento de metralhadoras, Rakhia um operários, um dos bolcheviques mais combativos.

A existência de tais estados de espírito compreende-se facilmente. O curso do partido estava completamente dirigido para a conquista do poder, e não se tratava de avaliar a situação. Em Petrogrado produzia-se uma reviravolta evidente a favor dos bolcheviques; mas na província, o mesmo processo desenvolvia-se mais lentamente; enfim, a frente ainda necessitava da lição da ofensiva para abandonar a desconfiança em relação aos bolcheviques. Lenine mantinha por consequência a sua posição de Abril: «explicar pacientemente».

Sukhanov, nas suas Memórias, desenha o plano da manifestação do 10 de Junho como uma verdadeira maquinação de Lenine tendo por objectivo tomar o poder «se as circunstância são favoráveis». Na realidade, não houve, para tentar de colocar a questão assim, senão alguns bolcheviques que Lenine dizia maliciosamente que eles tomavam « um pouco mais à esquerda» do que convinha. É notável que Sukhanov nem tentou mesmo de confrontar as suas hipóteses arbitrárias com a linha política de Lenine, exprimida em numerosos discursos e artigos(1).

O Secretariado do Comité executivo intimou imediatamente os bolcheviques a anular a manifestação. Com que direito? Formalmente, a manifestação não podia, evidentemente, ser proibida senão pelo poder do Estado. Mas este nem ousava pensar nisso. Como é que o Soviete, «organização privada», dirigida por um bloco de dois partidos políticos, podia proibir a manifestação de um terceiro partido? O comité central dos bolcheviques recusou ceder, mas decidiu de sublinhar ainda mais claramente o carácter pacífico da manifestação. Nos bairros operários, no 9 de Junho, foi fixada uma proclamação dos bolcheviques. «Nós somos cidadãos livres, temos o direito de protestar, e devemos servir-nos desse direito enquanto não é muito tarde. O direito a uma manifestação pacífica é um direito adquirido.»

A questão foi evocada pelos conciliadores diante do congresso. Foi nesse momento que Tchkheidzé pronunciou o seu famoso discurso sobre uma saída fatal, acrescentando que era necessário manter a reunião toda a noite. Um membro do secretariado, Gueguetchkori, ele também um rebento da Gironde, terminou o seu discurso por uma grosseira apostrofe dirigida aos bolcheviques: «Abaixo as vossas mãos sujas diante da grande causa!» Os bolcheviques, apesar de reclamarem, não obtiveram tempo de discutir a questão no seu grupo. O Congresso resolveu proibir por três dias todas as manifestações. Essa demonstração de força em relação aos bolcheviques era ao mesmo tempo um acto de usurpação em relação ao governo: os sovietes continuaram a escamotear o poder debaixo do seu travesseiro.

Miliokov, ao mesmo tempo, falava ao congresso dos cossacos e designava os bolcheviques como «os piores inimigos da revolução russa». O melhor amigo desta revolução, pela lógica das coisas, era agora o próprio Miliokov, o qual, na véspera de Fevereiro, aceitava sobretudo dos alemãs a derrota da revolução do povo russo. Os cossacos tinham-lhe perguntado como se deveriam comportar em relação aos leninistas, Miliokov respondeu: «É tempo de acabar com esses senhores.» O líder da burguesia estava demasiado apressado. Aliás, ele não tinha tempo a perder.

Porém, nas fábricas e nos regimentos tinham lugar comícios que decidiam, para o dia seguinte, sair para a rua com a palavra de ordem: «Todo o poder aos sovietes!» Na barulheira do Congresso dos sovietes e dos cossacos, passou despercebido o facto que na Duma municipal do bairro de Vyborg tinham sido eleitos: trinta e sete conselheiros bolcheviques, do bloco dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques vinte e dois, quatro cadetes.

Colocados diante da decisão categórica do Congresso, que fazia alusão a um misterioso golpe ameaçador da direita, os bolcheviques decidiram rever a questão. Eles queriam uma manifestação pacífica e não uma insurreição, e não podiam ter motivo em transformar em meio levantamento a manifestação proibida. O secretariado do Congresso tinha decidido, pelo seu lado, de tomar medidas. Várias centenas de delegados foram agrupados por dezenas e enviados nos bairros operários e aos quartéis para prevenir a manifestação, entendendo-se que, no dia seguinte pela manhã, eles se apresentariam ao palácio Tauride para comunicar os resultados. O comité executivo dos deputados camponeses se juntariam a esta expedição, designando para isso setenta dos seus.

Ainda se por vias imprevistas, os bolcheviques chegaram aos seus fins: os delegados do Congresso viram-se forçados a travar conhecimento com os operários e os soldados da capital. Não permitiram à montanha de se aproximar dos profetas, mas en contrapartida os profetas tiveram que ir à montanha. O encontro foi altamente edificante. Nas Izvestia do Soviete de Moscovo, um correspondente menchevique esboçou o quadro seguinte: «Durante toda a noite, a maioria do Congresso, mais de quinhentos dos seus membros, sem pregar olho, por equipas de dez, percorreram as fábricas, as oficinas e os quartéis de Petrogrado, exortando os homens a absterem-se de manifestar. O Congresso, num bom número de fábricas e de oficinas e também numa certa parte da guarnição, não gozou de qualquer autoridade … Os membros do Congresso foram acolhidos muitas vezes de maneira pouco amistosa, por vezes mesmo com hostilidade, e frequentemente foram repelidos colericamente. «O órgão oficial do Soviete não exagerou de forma nenhuma: pelo contrário, traçou um quadro extremamente atenuado do encontro nocturno de dois mundos.

As massas de Petrogrado, de qualquer modo, não deixaram aos delegados qualquer sombra de dúvida sobre os que, doravante, podiam decidir uma manifestação ou anulá-la. Os operários da fábrica Putilov não consentiram colar o cartaz do apelo do Congresso contra a manifestação senão depois de a ter contestado, lendo a Pravda, que este apelo não ia contra a decisão dos bolcheviques. O 1º regimento de metralhadoras que eram os primeiros violões na guarnição, tal como a fábrica Putilov nos meios operários, votou, após ter ouvido ouvido os relatórios de Tchkheidzé e de Avksentiev, presidentes dos dois comités executivos, a seguinte resolução:  «De acordo com o comité central dos bolcheviques e a sua organização militar, o regimento adiou a sua saída … »

As brigadas de pacificadores chegaram, após uma noite em branco, ao palácio de Tauride num estado de completa desmoralização. Elas tinham contado com a autoridade irrecusável do Congresso, mas tinham-se chocado com uma muralha de desconfiança e de hostilidade. «As massas são dominadas pelos bolcheviques.» «Mostram-se hostis em relação aos mencheviques e aos socialistas-revolucionários.» «Só acreditam na Pravda.» Aqui e ali, gritam: «Nós não somos camaradas para vocês.» Um após outro, os delegados diziam que, apesar da contra-ordem para a batalha, eles tinham sofrido a maior das derrotas.

As massas tinham obedecido à decisão dos bolcheviques. Mas esta docilidade não ia, longe disso, sem protestos, nem mesmo sem indignação. Em certas empresas foram votadas resoluções de queixa contra o comité central. As mais desesperadas entre os membros do partido, nos bairros, acabavam por rasgar as suas cartas de membros. Era um aviso sério.

Ao proibir as manifestações durante três dias, os conciliadores alegavam uma conspiração monárquica que queria tirar partido da acção dos bolcheviques; eles mencionavam a conivência de uma parte do Congresso dos cossacos e a marcha sobre Petrogrado das tropas contra-revolucionárias. Não era de admirar que após ter desconvocado a manifestação, os bolcheviques tinham pedido explicações sobre a conspiração. Em vez de responder, os líderes do Congresso acusaram os próprios bolcheviques de ter conspirado. Foi assim que felizmente eles saíram da situação.

É necessário reconhecer que, na noite do 9 ao 10 de Junho, os conciliadores tinham efectivamente descoberto uma conspiração que os tinha abalado bastante: a conspiração das massas unidas aos bolcheviques contra eles próprios conspiradores. Todavia, os bolcheviques tendo-se inclinado diante da conclusão do Soviete, os conciliadores retomaram coragem, o que lhes permitiu, após o pânico, de rebentar de fúria. Os mencheviques e os socialistas-revolucionários resolveram mostrar punho de ferro. No 10 de Junho, o jornal dos mencheviques escrevia: «É tempo de estigmatizar os leninistas como cobardes e traidores à revolução. «O presidente do comité executivo, no congresso dos cossacos, pediu-lhes apoio para o Soviete contra os bolcheviques. O presidente do congresso Dutov, ataman do Ural, respondeu-lhe: «Nós, cossacos, não querelamos nunca com os sovietes.» Contra os bolcheviques, os reaccionários estavam prontos a marchar mesmo com o Soviete para melhor o abafar a seguir.

No 11 de Junho reuniu-se um areópago ameaçador: o comité executivo, os membros do executivo do Congresso, o dirigentes das fracções, um total de cerca de cem pessoas. O procurador, como sempre, é Tseretelli. Sofocando de raiva, pediu uma rigorosa repressão e afastou com um gesto de desprezo Dan, que está sempre disposto a perseguir os bolcheviques, mas não se decide ainda a atacá-los. «O que fazem agora os bolcheviques, já não é propaganda de ideias, é uma conspiração … Queiram nos desculpar os bolcheviques! Nós vamos agora iniciar outros métodos de luta … É necessário desarmar os bolcheviques. Não se pode deixar entre as sua mãos os grandes meios técnicos que dispõem até agora. Não se pode deixar entre as suas mãos as metralhadoras e outras armas. Não toleramos conspirações.» Aí estão novas notas. Que significa na verdade: desarmar os bolcheviques? Sokhanov escreve sobre isso: «Enfim, os bolcheviques não têm depósitos de armas particulares. Na verdade, todas as armas estão entre os soldados e os operários que, massa formidável, seguem os bolcheviques. O desarmamento dos bolcheviques não pode significar senão o desarmamento do proletariado. Ainda mais, o desarmamento da tropa.»

Noutros termos chegava o momento clássico da revolução onde a democracia burguesa, sob exigência da reacção, quer desarmar os operários que asseguraram a vitória da insurreição. Os senhores democratas, entre os alguns são cultos, simpatizavam invariavelmente com os que eram desarmados, não a quem desarmava, tanto mais que se tratava da velha história. Mas quando a mesma questão se colocou diante deles na realidade, eles não a reconheceram. Foi esta única circunstância que um Tseretelli se encarregava de desarmar os operários, ele, revolucionário que tinha passado anos no degredo, ele zimmerwaldiano na véspera, não era simplesmente concebível. A sala congelou de estupor. Os delegados da província sentiram mesmo assim, verosimilmente, que os empurravam para o abismo. Um dos oficiais teve uma crise de histeria.

Tão pálido como Tseretelli, Kamenev levantou-se do seu lugar e afirmou com um tom digno cuja força foi sentida pelo auditório: «Senhor ministro, se você não fala por falar, você não tem o direito de se limitar a um discurso. Prenda-me e julgue-me por conspiração contra a revolução.» Os bolcheviques protestando abandonam a sessão, recusando participar à repressão contra o seu partido. A tensão na sala tornou-se intolerável.

Impressionável como sempre, Lunatcharsky tentou imediatamente palavra: ainda que os bolcheviques lhe tenha assegurado que eles só tinham como perspectiva uma manifestação pacífica, contudo, a sua própria exigência convenceu-o que seria «errado organizar uma manifestação». Todavia, não convém agravar os conflitos. Sem acalmar os adversários, Lunatcharsky irritou os amigos.

«Nós não combatemos a corrente de esquerda – disse Dan, como um jesuíta, o mais experiente, mas também o mais estéril dos líder do Pântano – nós combatemos a contra-revolução. Não da nossa culpa se vocês têm por detrás de vós os dóceis agentes da Alemanha.» Esta alegação substituía simplesmente uma argumentação. Esses senhores, bem entendido, não podiam indicar qualquer agente da Alemanha.

Tseretelli queria dar um grande golpe. Dan propunha que se limitasse a levantar o punho. Na sua impotência, o comité executivo concordou com Dan. A resolução proposta no dia seguinte ao congreso tinha o carácter de uma lei de excepção contra os bolcheviques, mas sem deduções práticas directas.

«Para vós, depois que os delegados visitaram as fábricas e os regimentos – dizia uma declaração escrita dos bolcheviques no Congresso – não pode haver dúvida que se a manifestação não se realiza, não é por causa da vossa proibição, é porque o nosso partido anulou-a … A ficção de um golpe militar não foi lançada por um membro do governo provisório senão para proceder ao desarmamento do proletariado de Petrogrado e à deslocação da guarnição. Mesmo se o poder governamental tivesse passado inteiramente para o Soviete – esperamos – e se o Soviete tentasse perturbar a nossa agitação, isso poderia obrigar-nos a não a submeter passivamente, mas a afrontar a detenção e todas as outras penas em nome das ideias do socialismo internacional que nos separam de vós.»

A maioria e a minoria do Soviete aproximaram-se nesses dias, peito contra peito, como se tratasse de uma batalha decisiva. Mas as duas pertes, no último momento, recuaram um passo. Os bolcheviques renunciaram à manifestação; os conciliadores a desarmar os operários.

Tseretelli continuava em minoria entre os seus. E portanto ele tinha razão à sua maneira. A política da união tinha chegado ao ponto onde se tornava indispensável enfranquecer completamente as massas que não se resignavam aceitar a coligação. Levar a política de conciliação até ao sucesso, quer dizer até ao estabelecimento do domínio parlamentar da burguesia, não era possível senão pelo desarmamento dos soldados e  operários. Mas se Tseretelli tinha razão à sua maneira, ele era, aliás, impotente. Nem os operários, nem os soldados teriam cedido de boa vontade suas armas. Assim, era preciso empregar a força contra eles. Mas a força já tinha abandonado Tseretelli. Ele não a podia obtê-la, se pelo menos ele pudesse fazer qualquer coisa, que no caso onde se teria conseguido esmagar os bolcheviques, ter-se-ia imediatamente empreendido a liquidação dos conciliadores nos sovietes, não deixaria de lembrar que Tseretelli foi um antigo forçado, nada mais. Porém, o seguimento dos factos mostrará que tais forças também não existem no seio da reacção.

Tseretelli, afirmando a necessidade de combater os bolcheviques, dava como argumento político que eles destacavam o proletariado do campesinato. Martov respondeu-lhe: «Não é do fundo do campesinato que Tseretelli vai buscar as ideias que o guiam; o grupo de cadetes de direita, o grupo de capitalistas, o grupo dos proprietários nobres, o grupo dos imperialistas, os burgueses do Ocidente – são esses que exigem o desarmamento dos operários e dos soldados». Martov tinha razão: as classes possuidoras têm mais de uma vez na história metido suas pretensões sob a cobertura do campesinato.

A partir da publicação das teses de Abril de Lenine, alegaram o perigo do isolamento do proletariado do campesinato, e foi o principal argumento de todos os que procuravam fazer recuar a revolução. Não era um acaso que Lenine chamava Tseretelli «velho bolchevique».

Num dos seus estudos de 1917, Trotsky escrevia sobre isso: «O isolamento do nosso partido em relação aos socialistas-revolucionários e aos mencheviques, mesmo os mais extremos, mesmo pela prisão, não significa ainda de forma nenhuma o isolamento do proletariado em relação das massas oprimidas no campo e nas cidades. Ao contrário, o proletariado revolucionário opõe claramente a sua política às falsas renegações dos actuais líderes dos sovietes, só pode trazer uma diferenciação política saudável entre os milhões de rurais, arrancar os pobres dos campos à traição dos sólidos mujiques socialistas-revolucionários e transformar o proletariado socialista num autêntica condutor da revolução popular, plebeia.»

Mas o argumento profundamente falso de Tseretelli mostrou-se vivo. Na véspera da insurreição de Outubro, ele ressuscita com redobrada energia como argumento de muitos dos «velhos bolcheviques» contra o levantamento. Alguns amos mais tarde, quando começou a reacção ideológica contra Outubro, a formula de Tseretelli tornou-se o principal teórico da escola dos epígonos.

Na mesma sessão do Congresso que julgava os bolcheviques  à revelia, um representante dos menchevique propôs imediatamente de fixar no seguinte domingo, 18 de Junho, em Petrogrado e nas grandes cidades, uma manifestação de operários e de soldados para demonstrar aos adversários a unidade e a força da democracia. A proposição foi aceite, mas com alguma estupefacção. Um pouco mais de um mês mais tarde, Miliokov explicava bastante judiciosamente a inesperada reviravolta dos conciliadores: «Pronunciando discursos de cadetes no Congresso dos sovietes, tendo conseguido impedir a manifestação armada do 10 de Junho, … os ministros socialistas sentiram que se tinha ido demasiado longe na sua aproximação a nós, que o terreno fugia sob seus pés. Assustados,  voltaram-se bruscamente para os bolcheviques.» Decidindo uma manifestação para o 18 de Junho, não se voltavam, bem entendido, para os bolcheviques, mas tentavam voltar-se para as massas, contra os bolcheviques. A confrontação nocturna com os operários e soldados tinha em geral dado um certo tremor aos dirigentes: foi assim que, diferentemente do que se tinha projectado no início do Congresso, apressaram-se a promulgar, em nomo do governo, a supressão da Duma do Império e a convocação da Assembleia constituinte marcada para o 30 de Setembro. As palavras de ordem da manifestação foram escolhidas e calculadas de maneira a não provocar a irritação das massas: «Paz separada», «Convocação mais cedo possível da Assembleia constituinte», «República democrática». Sobre a ofensiva como sobre a coligação – nem uma palavra. Lenine pedia na Pravda: «Onde foi parar a inteira confiança no governo provisório, senhores? … Têm um cabelo na língua?» Esta ironia atingia o seu objectivo: os conciliadores não ousaram reclamar das massas confiança aos governo do qual eles faziam parte.

Os delegados soviéticos, tendo percorrido mais uma vez os bairros operários e os quartéis, fizeram, na véspera da manifestação, relatórios assegurando o comité executivo. Tseretelli, a quem essas informações tinham permitido o gosto das reprimendas presunções, dirigiu-se aos bolcheviques: «Nós veremos diante de nós uma revisão actualizada das forças revolucionárias … Agora, veremos todos quem marcha atrás da maioria: atrás de nós ou de vós.» Os bolchevique tinham aceite o desafio antes mesmo que ele fosse imprudentemente formulado. «Nós iremos à manifestação do 18 de Junho – escrevia a Pravda– com o objectivo de combater por objectivos pelos quais nós queremos fazer uma demonstração no dia 10.»

Evidentemente, é em lembrança dos funerais de Março que tinham sido, pelo menos aparentemente, a grande manifestação de unidade da democracia, que o itinerário, ainda desta vez, levou ao Campo de Março, às sepulturas das vítimas de Fevereiro. Mas, exceptuando o itinerário, nada fazia lembrar mais as longínquas jornadas de Março. Cerca de quatrocentas mil pessoas participaram no cortejo, isto é muito mais que as que participaram nas obséquias: nesta manifestação soviética absteram-se não somente a burguesia, com a qual os sovietes estavam coligados, mas também a intelliguentsia radical, que tinha ocupado um lugar tão notável nas paradas precedentes da democracia. Nem só de fábricas e quartés era composto o cortejo.

Os delegados do congresso, reunidos no Campo de Março, liam e contavam os cartazes. As primeiras palavras de ordem bolcheviques foram acolhidas com troça. Tseretelli, na véspera, não tinha tão ousadamente lançado o seu desafío? Mas os as mesmas palavras de ordem repetiam sem parar: « Abaixo os dez ministros capitalistas!» «Abaixo a ofensiva!» «Todo o poder aos sovietes!» Os sorrisos irónicos paravam nos rostos e, a seguir, lentamente, desapareciam. As bandeiras bolcheviques flutuavam a perca de vista. Os delegados renunciaram às suas especulações ingratas. A vitória dos bolcheviques era demasiado evidente. «Por aqui por ali – escreveu Sokhanov – a cadeia das bandeiras e de colunas de bolcheviques era interceptada pelas palavras de ordem especificamente socialistas-revolucionárias e pelas do sovietismo oficial. Mas elas eram afogadas pela massa.» Órgão oficioso do Soviete conta, no dia seguinte, com qual «raiva tinham rasgado, aqui e ali, bandeiras com palavras de ordem de confiança ao governo provisório». Essas palavras tinham marcas evidentes de exagero. Cartazes em honra do governo provisório foram levadas por três pequenos grupos: o círculo de Plekhanov, um contingente de cossacos, e um punhado de intelectuais judeus ligados ao Bund. Esta combinação ternária, que dava pela sua combinação a impressão de uma anomalia política, parecia ter-se dado como objectivo mostrar a impotência do regime. Os plekanovistas e o Bund tiveram, sob os gritos hostis da multidão, que enrolar suas pancartas. Quanto aos cossacos, como eles mostravam teimosia, suas bandeiras foram-lhe efectivamente arrancadas pelos manifestantes e destruídas.

«A torrente que rolava até aí – tal como descreviam as Izvestia – transformou-se num rio de águas vernais que, de um momento para outro, vai transbordar.»  É o bairro de Vyborg, completamente coberto de bandeiras bolcheviques. «Abaixo os dez ministros capitalistas!» Uma das fábricas tinha saído este cartaz: «O direito de viver está acima do direito da propriedade privada!» Essa palavra de ordem não tinha sido sugerida por qualquer partido.

Os provinciais aterrorizados procuravam com o olhar os líderes. Estes baixavam os olhos ou simplesmente esquivavam-se. Os bolcheviques pressionavam os provinciais. Juntar-se-iam a um pequeno bando de conspiradores? Os delegados concordavam, o que não era a mesma coisa. « Em Petrogrado, vocês são fortes – confessavam com outro tom, diferente da sessão oficial – mas não é a mesma coisa na província e na frente. Petrogrado não pode marchar só contra todo o país. - Alto lá,  responderam os bolcheviques, a vossa vez virá; em breve, entre vocês instalaremos os nossos cartazes.»

«Durante esta manifestação – escrevia o velho Plekhanov «encontrava-me no Campo de Março ao lado de Tchkheidzé. Na sua cara eu via que não se enganara de modo nenhum sobre o significado que tinha a prodigiosa afluência de cartazes reclamando a queda dos ministros capitalistas. Esse significado era de certa maneira sublinhada fortemente pelas imposições que lhe dirigiam, como verdadeiros chefes, certos representantes leninistas que desfilavam diante de nós como se tivesse sido a sua festa.»

Os bolchevique, de qualquer modo, tinham motivos de se sentirem assim. « A julgar pelos cartazes e as palavras de ordem dos manifestantes – escrevia o jornal de Gorki – a manifestação do domingo mostrou o triunfo completo do bolchevismo no proletariado peterburguês.» Foi uma grande vitória, e ganha no terreno e com as armas que tinha escolhido o adversário. Tendo aprovado a ofensiva, admitido a coligação e condenado os bolcheviques, o Congresso dos sovietes, pela sua própria iniciativa, tinha feito sair à rua as massas. Estas tinham-lhe declarado: nós não queremos nem ofensiva, nem coligação, nós estamos com os bolcheviques. Tal era em resumo o resultado político da manifestação. É de admirar que o jornal dos mencheviques, iniciadores da manifestação, tenham pedido melancólicamente no dia seguinte: quem é que teve essa ideia infeliz?

Bem entendido, os operários e os soldados da capital não tinham todos participado na demonstração, e os manifestantes não eram todos bolcheviques. Mas nenhum deles não queriam mais a coligação. Os operários que continuavam hostis ao bolchevismo não sabiam o que lhes opor. A seguir, a sua hostilidade se transformou numa neutralidade na expectativa. Sob as palavras de ordem bolcheviques tinham caminhado um bom número de mencheviques e de socialista-revolucionários que ainda não tinham rompido com os seus partidos mas tinham já perdido a fé nas suas palavras de ordem.

A manifestação de 18 de Junho tinha produzido uma impressão enorme sobre os próprios participantes. As massas tinham visto que o bolchevismo se tinha tornado uma força, e os que hesitavam voltavam-se para ele. Em Moscovo, em Kiev, em Kharkov, em Ekaterinoslav e muitas outras cidades da província, as manifestações mostraram o formidável crescimento da influência dos bolcheviques. Em toda a parte avançavam-se as palavras de ordem idênticas e que iam direitas ao coração do próprio regime de Fevereiro. Era necessários tirar conclusões. Parecia que os conciliadores não tinham saída possível. Mas, no último momento, a ofensiva livrou-os do embaraço.

No 19 de Junho, sobre o Nevsky, tiveram lugar manifestações patrióticas sob a direcção dos cadetes e com os retratos de Kerensky. Segundo Miliokov: «Isso parecia tão pouco a tudo o que se tinha passado nas mesmas ruas, na véspera, que ao sentimento de triunfo se misturou involuntariamente um sentimento de incredulidade.» Sentimento legítimo! Mas os conciliadores tiveram um suspiro de alívio. Seu pensamento, imediatamente, subiu acima das duas manifestações da qual ela se fez uma síntese democrática. Esses homens, tinham ainda que vazar completamente o cálice das ilusões e das humilhações.

Durante as jornadas de Abril, duas manifestações, uma revolucionária e outra patriótica, tinham-se encontrado e o choque tinha causado logo vítimas. As manifestações inimigas dos dias 18 e 19 de Junho tinham sido sucessivas. Desta vez, não houve choque directo. Mas o choque já não era evitável. Acontece que foi somente adiado por uns quinze dias.

Os anarquistas, sem saberem como provar a sua autonomia, tinham aproveitado da manifestação do 18 de Junho para atacar a prisão de Vyborg. Os detidos, na sua maioria criminosos de direito comum, foram libertados sem dificuldades, não de uma só prisão mas de várias. Verosimilmente, o ataque não tinha sido uma surpresa para a administração penitenciária, porque ela tinha de boa vontade desaparecido diante dos anarquistas autênticos ou pretendidos. Esse episódio misterioso não teve qualquer relação, em resumo, com a manifestação. Mas a imprensa patriótica fez um e mesmo assunto. Os bolcheviques pediram aos Congresso dos sovietes para abrir um inquérito severo sobre a maneira como quatro centos e sessenta criminosos tinham sido libertados das diversas prisões. Todavia, os conciliadores não podiam permitir-se um tal luxo, porque eles temiam cair sobre os representantes da alta administração ou seus aliados no bloco. Além disso, eles não tinham qualquer vontade de impedir as calúnias perfídias contra os manifestantes que eles proprios tinham organizado.

O ministro da Justiça, Pereverzev, que se tinha desconsiderado alguns dias antes com o caso da mansão de Donorvo, resolveu vingar-se e, sob pretexto de procurar os fugitivos, mandou proceder a uma nova incursão na mansão.  Os anarquistas resistiram, um deles foi morto no decurso do tiroteio, a mansão foi invadida. Os operários do bairro de Vyborg, que consideravam a mansão como lhes pertencendo, deram o alarme. Várias fábricas fizeram greve. O alarme foi transmitido a outros distritos assim como nos quartéis.

Os últimos dias de Junho passaram-se numa agitação sem fim. O regimento de metralhadoras está pronta a agir imediatamente contra o governo provisório. Os operários das fábricas em greve fizeram o passeio pelo regimentos, convidando-os a manifestarem-se. Camponeses barbudos, muitos de barba branca, sob o capote de soldados, desfilaram em cortejo de protesto nas calçadas: são os homens de quarenta anos que reclamam licença para os trabalhos nos campos. Os bolcheviques conduzem uma campanha contra a saída: a manifestação do 18 de Junho disse tudo que se podia dizer; para obter mudanças, uma manifestação não basta mais, mas a hora da insurreição ainda não soou. No 22 de Junho, os bolchevique, imprimem em direcção da guarnição: «Não pensem manifestar na rua ao apelo lançado em nome da organização militar.» Da frente chegam delegados, queixando-se dos actos de violência e de castigos. As ameaças repetidas de dissolver certos corpos da tropa lançam óleo no fogo. «Em muitos regimentos, os soldados dormem de armas na mão», diz a declaração dos bolcheviques ao comité executivo.

Manifestações patrióticas, muitas vezes armadas, provocam choques na rua. São as pequenas descargas de uma electricidade acumulada. Nenhum lado se dispõe a atacar directamente: a reacção é demasiado fraca; a revolução ainda não está segura das suas forças. Mas as ruas da cidade parecem calcetadas de explosivos. O conflito está no ar.  A imprensa bolchevique explica e modera. A imprensa patriota trai a sua ansiedade por uma campanha desvairada contra os bolcheviques. No dia 25 de Junho, Lenine escreve: «Os gritos de cólera e raiva que se ouvem em todo o lado contra os bolcheviques traduzem a lamentação comum dos cadetes, dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques sobre a sua própria debilidade. Eles são maioritários. Eles estão no poder. Eles formam juntamente um bloco, e vêm que não têm qualquer sucesso! Como não vazariam eles sua cólera sobre os bolcheviques?»


Notas:

(1) Sobre esta questão, ver detalhes no Apêndice, nº 3, no fim do 2º volume. (retornar ao texto)

Inclusão 25/10/2010