História da Revolução Russa

Léon Trotsky


As «Jornadas de Julho»: a preparação e o início


Em 1915, a guerra tinha custado à Rússia 10 biliões de rublos; em 1916, 19 biliões; no primeiro semestre de 1917, custava já 10 biliões e 500 milhões. A dívida pública subia, no início de 1918, a 60 biliões, isto é igualava quase a totalidade da fortuna fortuna nacional que era avaliada a 70 biliões. O comité executivo central elaborou um projecto de apelo para um empréstimo de guerra com o nome sedutor de «empréstimo da liberdade», enquanto que o governo concluía esta dedução simplista pelo meio de um novo e formidável empréstimo exterior, não somente ele não podia pagar as encomendas feitas no estrangeiro, como não podia enfrentar as suas obrigações interiores. O passivo da balança comercial crescia constantemente. A Entente, evidentemente, dispunha-se a abandonar definitivamente o rublo à sua própria sorte. No mesmo dia onde o apelo ao Empréstimo da Liberdade preencheu a primeira página das Izvestia soviéticas, o Vestnik Pravitelstva (Mensageiro do Governo) anunciou uma brusca queda do curso do rublo. A impressora das notas de banco já não era suficiente para seguir o ritmo da inflação. Segundo as velhas e sólidas devisas que tinham guardado algum brilho do antigo poder de compra, preparavam-se para adoptar as etiquetas ruivas, boas para colar sobre as garrafas que o público passaria a chamar «Kerensky». E o burguês como o operário, cada um à sua maneira, davam a esta denominação um nome desdenhoso.

Nas palavras o governo aceitava o programa de uma regulação étatica da economia geral e criou mesmo com esse fim, nos últimos dias de Junho, órgãos que estorvavam. Mas a palavra e a acção sob o Regime de Fevereiro, tal como o espírito e a carne de um cristão devoto, encontravam-se em conflito incessante. Os órgãos de regulação, seleccionados ao extremo, se preocupavam em proteger os empreendedores contra os caprichos de um poder governamental vacilante em vez de refrear os interesses privados. O pessoal administrativo e técnico da indústria diferenciavam-se; as cimeiras, assustadas pelas tendências igualitárias dos operários, passavam resolutamente para o lado dos empreendedores. Os operários consideravam com repulsa as encomendas da guerra cujas fábricas, em desespero, eram asseguradas por um ou dois anos.

Mas os empreendedores, também eles, perdiam gosto por um trabalho produtivo que prometia mais problems que lucros. A paragem, premeditada pelos patrões, do funcionamento da empresas tomou um carácter sistemático. A produção metalúrgica foi reduzida de 40%, o têxtil de 20%. Tudo que era necessário à existência começava a faltar. Os preços subiam à medida da inflação e da decadência económica. Os operários batalhavam para estabelecer um controlo sobre o mecanismo administrativo e comercial que lhe dissimulavam e do qual dependia a sua sorte. O ministro do Trabalho, Skobelev, em manifestos prolixos pregava aos operários a inadmissibilidade de uma intervenção na direcção das empresas. No 24 de Junho, as Izvestia anunciaram que se projectava ainda em fechar um certo número de fábricas. Notícias idênticas vinham da província.

O tráfego dos caminhos de ferro tinha sido mais atingida que a indústria. Metade das locomotivas tinham necessidade de grandes reparações, uma parte do material rolante encontrava-se na frente, o combustível faltava. O ministério das Vias e Comunicações não conseguia sair dos conflitos com os operários e os empregados dos caminhos de ferro. O abastecimento tornava-se cada vez mais deficiente. Só restava a Petrogrado estoques de trigo para quinze ou dez dias; nos outros centros, a coisa não era melhor. Dado a meia paralisia do material rolante e a ameaça premente de uma greve dos caminhos de ferro, isso significava que o perigo da fome era constante. Não havia qualquer perspectiva de abertura. Não era isso que os operários esperavam da revolução.

Na esfera política era ainda pior. A irresolução é o estado mais doloroso da vida dos governos, das nações, das classes, como na dos indivíduos. A revolução é o meio mais implacável que há para resolver as questões históricas. As escapatórias, numa revolução, são políticas ruinosas entre todas.

Um partido revolucionário não deve hesitar como um cirurgião que acaba de meter o escapelo num corpo doente. Ora, o regime de duplo poder que tinha saído da insurreição de Fevereiro era a irresolução organizada. Tudo se voltava contra o governo. Os amigos sob condições tornavam-se adversários, os adversários inimigos, os inimigos armavam-se. A contra-revolução mobilizava-se abertamente, inspirada pelo comité central do partido cadete, pelo estado-maior político de todos os que tinham qualquer coisa a perder. O comité principal da união dos oficiais, no Grande Quartel General, em Mohilev, representando cerca de mil oficiais descontentes e o soviete da união das tropas cossacos em Petrogrado constituíam as duas principais alavancas militares da contra-revolução. A Duma do Estado, apesar da decisão tomada em Junho pelo congresso dos sovietes, decidiu continuar as suas «sessões privadas». O seu comité provisório cobria legalmente a actividade contra-revolucionária que financiavam largamente os bancos e as embaixadas da Entente. Os conciliadores eram ameaçados à direita e à esquerda. Olhando de um lado e de outro com preocupação, o governo decidiu secretamente atribuir fundos para a organização de uma contra-espionagem social, isto é, para uma polícia política secreta.

É pouco mais ou menos na mesma época, no meio de Junho, que o governo fixou para o dia 27 de Setembro as eleições à assembleia constituinte. A imprensa liberal, apesar da participação dos cadetes no governo, desenvolvia uma campanha agressiva contra a data oficialmente fixada, data limite que ninguém defendia seriamente. A própria imagem de uma assembleia constituinte, tão brilhante nos primeiros dias de Março, escurecia e cobria-se. Tudo se voltava contra o governo, mesmo as suas raras e anémicas boas intenções. Foi somente a 30 de Junho que se encontrou a coragem de suprimir os tutores nobres da aldeia, os zemskie natchalniki (vigilantes chefes das terras) cujo próprio nome era odiado no país desde do dia onde os tinha instituído Alexandre III. E esta reforma parcial, forçada e tardia, jogava sobre o governo provisório a marca de uma humilhante cobardia.

A nobreza, entretanto, remetia-se desses terrores, os proprietários dos bens de raíz agrupavam-se e tomavam a ofensiva. O comité provisório da Duma reclamou do governo, no fin de Junho, que tomasse medidas decisivas para proteger os proprietários contra os camponeses excitados por «elementos criminosos». No primeiro de Julho, teve lugar em Moscovo o congresso pan-russo dos proprietários latifundiários, maioritariamente composta de nobres. O governo batalhava, esforçando-se hipnotizar por frases ora os mujiques, ora os proprietários. Mas era sobretudo na frente que as coisas iam mal. A ofensiva sobre a qual apostava definitivamente o próprio Kerensky pela luta no interior só acusava os movimentos convulsivos. O soldado não queria continuar a guerra. Os diplomatas do príncipe Lvov não ousavam mais olhar de frente os diplomatas da Entente. Havia grande necessidade de empréstimos. Para mostrar força, o governo, impotente e condenado antecipadamente, liderava a ofensiva contra a Finlândia, realizando-a, como todos os assuntos mais sujos, pelas mãos dos socialistas.

Ao mesmo tempo, o conflito com a Ucrânia agravava-se e levava à ruptura declarada. Já longe iam os dias onde Albert Thomas cantava hinos à radiosa revolução e de Kerensky. No início de Julho, o embaixador da França Paléologue, demasiado impregnado dos cheiros dos salões rasputinianos, foi substituído pelo «radical» Noulens. O jornalista Claude Anet fez um relato introdutivo ao novo embaixador sobre Petrogrado. Em frente da embaixada de França, do outro lado do Neva, encontra-se o bairro de Vyborg. «É o distrito das grandes fábricas que pertencem inteiramente aos bolcheviques, Lenine e Trotsky e aí reinam como mestres.» No mesmo distrito encontram-se as casernas do regimento de metralhadoras, contando cerca de dez mil homens e mais de mil metralhadoras; nem socialistas-revolucionários, nem os mencheviques não têm acesso nas casernas do regimento. Os outros regimentos são ou bolcheviques, ou neutros. «Se Lenine e Trotsky querem tomar Petrogrado, quem os impedirá?» Noulens escutava com espanto. «Como é que o governo tolera essa situação?» «Mas o que é que ele pode fazer?» respondeu o jornalista. «É preciso compreender que o governo só tem força moral, e ainda, parece-me, muito fraca …»

Não encontrando saída, a energia despertada das massas fraccionava-se em movimentos espontâneos, em actos de partidários, em confiscações arbitrárias. Os operários, os soldados, os camponeses tentavam resolver parcialmente o que lhes recusava o poder que eles próprios tinham criado. A irresolução dos dirigentes é o que debilita mais as massas. Uma espera estéril empurra-os a bater cada vez mais obstinadamente às portas que não lhes querem abrir, ou leva-os a verdadeiras explosões de desespero. Já, durante o congresso dos sovietes, quando os provinciais tinham apenas retido a mão dos seus líderes levantada sobre Petrogrado, os operários e os soldados tinham suficientemente podido constatar quais eram os sentimentos que lhes eram dirigidos e as intenções dos dirigentes dos sovietes. Tseretelli depois de Kerensky, tornou-se o personagem não somente estrangeiro, mas odioso para com a maioria dos operários e os soldados de Petrogrado. Na periferia da revolução aumentava a influência dos anarquistas, que desempenhavam o papel principal no seio do comité revolucionário arbitrariamente criada na mansão de Durnovo. Mas mesmo as camadas mais disciplinadas da classe operária, mesmo as largas esferas do partido bolchevique, começavam a perder paciência ou então a dar ouvidos aos impacientes. A manifestação do 18 de Junho mostrou a todos que o governo não tinha nenhum apoio. «O que é que eles esperam, esses de cima?» perguntavam os soldados e os operários pensando não somente nos líderes conciliadores, mas também às instituições dirigentes bolcheviques.

A luta pelos salários, por causa da inflação dos preços, enervava e extenuava os operários, no decurso de Junho, na fábrica gigante de Potilov, onde trabalhavam trinta e seis mil homens. No dia 21 de Junho, em várias oficinas da fábrica, rebentou uma greve. A esterilidade dessas explosões parciais era demasiado clara para o partido. No dia seguinte, a reunião dirigida pelos bolcheviques, representantes das principais organizações operárias e de setenta fábricas, declarou que «o assunto dos trabalhadores de Potilov era a causa de todo o proletariado de Petrogrado» e convidou os trabalhadores de Potilov a «conterem a sua legítima indignação». A greve foi adiada. Todavia os doze dias seguintes não trouxeram qualquer mudança. A massa operária das fábricas estava em ebulição profunda, procurando uma saída. Em cada companhia, havia um conflito, e todos esses conflitos dirigiam para cima, para o governo. Um relatório do sindicato dos mecânicos ferroviários (brigadas ligadas às locomotivas), dirigido ao ministro das Vias e Comunicações, dizendo: «Pela última vez, declaramos que toda a paciência tem limites. Não temos mais força para viver numa situação como esta … » Era uma queixa sobre não somente a miséria e a fome, mas também sobre a duplicidade, a falta de carácter, a impostura. A memória protestava com uma particular indignação contra «os incessantes apelos ao dever cívico e à abstinência das barrigas vazias».

Em Março, o poder tinha sido entregue ao governo provisório pelo comité executivo sob a condition que as tropas revolucionárias não seriam evacuadas da capital. Mas nesses dias já estavam longe. A guarnição tinha evoluído para a esquerda – os círculos dirigentes do soviete para a direita. A luta contra a guarnição estava constantemente na ordem do dia. Se os contingentes não estavam na sua totalidade afastados da capital, os mais revolucionários, sob pretexto de necessidade estratégica, estavam sistematicamente enfraquecidos pelas extracções de companhias destinadas à frente. Rumores constantes de mudanças as unidades na frente, por insubmissão, pela recusa de executar as ordens de combate, chegavam à capital. Duas divisões da Sibéria – outrora ainda consideradas os caçadores siberianos não eram considerados como os melhores? - foram dissolvidas, com o emprego da força armada. Só no caso da 5º exército, o mais próximo da capital, que tinha recusado em massa em obedecer às ordens de combate, foram acusados 87 oficiais e 12.725 soldados. A guarnição de Petrogrado, acumulador do descontentamento da frente, da aldeia, bairros operários e das casernas, não parava de se agitar.

Os quarentões barbudos pediam com insistência extrema para regressar a casa para os trabalhos do campo. Os regimentos aquartelados no bairro de Vyborg, o 1º de metralhadora, o 1º de granadeiros, o regimente moscovita, o 180º de infantaria e outros, se encontravam constantemente sob a pressão escaldante do meio proletário. Milhares de operários, passavam diante das casernas, entre os quais um grande número de agitadores infatigáveis do bolchevismo. Sob as muralhas sujas, que se tornaram odiosas, improvisavam comícios quase continuamente. No 22 de Junho, quando as manifestações patrióticas provocadas pela ofensiva ainda não se tinham esgotado, um automóvel do comité central teve a imprudência de atravessar a avenida Sampsonievsky, exibindo cartazes: «Avante com Kerensky!» O regimento moscovita prendeu os agitadores, rasgou seus cartazes e enviou o carro dos patriotas ao regimento dos metralhadores.

Os soldados eram em geral mais impacientes que os operários; primeiro porque eles estavam sob a ameaça directa de serem enviados para a frente, depois porque eles tinham mais dificuldades em assimilar os motivos da estratégia política. Além disso, cada um deles tinha uma espingarda à mão, e, depois de Fevereiro, o soldado tendia a sobrestimar o poder específico desta arma. Um velho operário bolchevique, Lizdine, contou mais tarde como os soldaos do 180º regimento de reserva lhe tinha falado: «Então? Eles adormecem, os nossos, lá em baixo no palácio de Kczensinska? Vamos expulsar Kerensky! … »

Nas reuniões dos regimentos, moções eram constantemente votadas sobre a necessidade de agir enfim contra o governo. Delegações de certas fábricas apresentava-se nas casernas perguntando aos soldados se eles saíam à rua. Os metralhadores enviavam seus representantes a outras unidades da guarnição, convidando-os a se insurgirem contra o prolongamento da guerra. Certos delegados, mais impacientes, acrescentavam: o regimento Pavlovsky, o regimento moscovita e quarenta mil operários de Potilov caminharão «amanhã». As repreensões oficiais do comité executivo não tiveram efeito. Cada vez mais precisa-se o perigo de ver Petrogrado, não apoiado pela frente e a província a ser derrotada aos poucos.

No dia 21 de Junho, Lenine, na Pravda, convidava os operários e os soldados de Petrogrado a esperarem pelo dia onde os acontecimentos levariam à causa da capital as grandes reservas. «Nós compreendemos a amargura, compreendemos a efervescência dos operários de Petersburgo. Mas dizemos-lhes: camaradas, uma acção directa não seria racional por agora.» No dia seguinte, uma conferência privada de bolcheviques dirigentes, que se mantinham aparentemente «mais à esquerda» que Lenine, concluíram que, apesar do estado de espírito dos soldados e das massas operárias, ainda não se poderia aceitar a batalha: «Melhor vale esperar que os partidos governantes sejam definitivamente cobertos de vergonha por um principio de ofensiva. Teremos então ganho a aposta.» É o que diz Latzis, organizador de distrito, um dos mais impacientes nesses dias. O comité vê-se cada vez mais forçado a enviar agitadores às casernas e às empresas para evitar uma acção prematura.

Agitando a cabeça, confusos, os bolcheviques de Vyborg queixavam-se entre eles: «Nós devemos servir de lanças de bombeiros.» Todavia, os apelos para sair à rua não param, cada dia ouve quem provocasse. A organização militar dos bolcheviques viu-se obrigada a dirigir aos soldados e aos operários um manifesto: «Não acreditem em nenhum apelo para sair à rua lançado em nome da organização militar. A organização militar não os chama para manifestar.» E mais longe, com maior insistência: «Peçam a todo agitador ou orador que vos convidem a agir em nome da organização militar um certificado assinado pelo presidente e o secretário.»

Na famosa praça da Tinta, em Cronstadt, onde os anarquistas levantam cada vez mais ousadamente a voz, preparam ultimato atrás de ultimato. No 23 de Junho, delegados da praça da Tinta, sem o acordo do soviete de Cronstadt, exigiam do ministério da Justiça o alargamento de um grupo de anarquistas peterburgueses, sob a ameaça de uma acção dos marinheiros que atacariam a prisão. No dia seguinte, representantes de Oranienbaum declararam ao ministro da Justiça que a guarnição estava, ela também, emocionada pelas prisões efectuadas e agitou-as sob o nariz dos seus aliados conciliadores. No 26 de Junho chegaram da frente ao respectivo batalhão de reserva delegados do regimento de granadeiros da Guarda, com esta declaração; o regimento está contra o governo provisório e exige que o poder passe aos sovietes; o regimento recusa participar na ofensiva iniciada por Kerensky; ele questiona-se com inquietação se o comité executivo, com os ministros socialistas, não tomou partido pelos burgueses. O órgão do comité executivo publicou nesta visita, um relatório de críticas.

A ebulição era grande, não somente em Cronstadt, mas em toda a frota do mar Báltico cuja principal base era em Helsingfors. O agente mais activo dos bolcheviques na frota era incontestavelmente Antonov-Ovseenko que, já como jovem oficial, tinha participado no levantamento de Sebastopol em 1905; menchevique durante os anos da reacção, emigrado internacionalista durante os anos da guerra, colaborador de Trotsky na publicação em Paris do jornal Nache Slovo (Nossa Palavra), juntou-se aos bolcheviques após o seu regresso da emigração. Pouco firme na política, mas pessoalmente corajoso, impulsivo, desordenado, mas com capacidade de iniciativa e de improvisação, Antonov-Ovseenko, ainda pouco conhecido nesse período, tomou no seguimento dos acontecimentos da revolução um lugar que estava longe de ser o último. «Em Helsingfors, no comité do partido – conta ele nas suas Memórias – compreendíamos a necessidade de ter paciência e de nos preparar seriamente. Tínhamos também instruções nesse sentido do comité central. Mas tínhamos perfeita consciência da inevitabilidade de uma explosão e olhávamos com ansiedade do lado de Petersburgo.»

Ora, desse lado, os elementos explosivos acumularam-se dia a dia. No segundo regimento de metralhadoras, mais atrasado que o primeiro, votou uma resolução sobre a transmissão do poder aos sovietes. O terceiro regimento de infantaria recusou deixar partir para a frente quatorze companhias designadas. As reuniões nos quartéis tomava uma feição cada vez mais tempestiva. Um comício no regimento dos granadeiros, no primeiro de Julho, deu lugar à prisão do presidente do comité e à obstrução em relação aos oradores mencheviques: Abaixo a ofensiva! Abaixo Kerensky! No próprio centro da guarnição estavam os metralhadoras que abriam as comportas da torrente de Julho.

O nome do primeiro regimento de metralhadoras já nos caiu sob os olhos no decurso dos acontecimentos dos primeiros meses da revolução. Chegado logo após a insurreição, por sua própria iniciativa, de Oranienbaum em Petrogrado, «para a defesa da revolução», esse regimento tornou a encontrar imediatamente a resistência do comité executivo, o qual tomou a seguinte decisão: agradecer o regimento e enviá-lo a Oranienbaum. Os metralhadores recusaram redondamente abandonar a capital: «Os contra-revolucionários podem cair em cima do soviete e restabelecer o antigo regime.» O comité executivo cedeu e vários milhares de metralhadores ficaram em Petrogrado com as metralhadoras. Tendo-se instalados na Casa do Povo, eles sabiam o que viria deles. No seu meio, porém, havia um bom número de operários de Petrogrado, e não é por acaso que o comité dos bolcheviques se encarregou de ocupar-se das metralhadoras. A sua intervenção assegurou-lhes um abastecimento colhido na fortaleza Pedro e Paulo. A amizade estava selada. Brevemente ela tornou-se indefectível.

No 21 de Junho, os metralhadores tomaram, em assembleia geral, a decisão seguinte: «No seguimento, não enviar efectivos para a frente só no caso onde a guerra teria um carácter revolucionário.» No dia 2 de Julho, o regimento organizou na Casa do Povo um comício de adeus para a «última» companhia enviada para a frente. Lutcharsky e Trotsky aí tomaram a palavra: as autoridades tentaram mais tarde atribuir a este incidente uma importância excepcional. Em nome do regimento responderam o soldado Jiline e um velho bolchevique, o sargento Lachevitch. A sobreexcitação era grande, estigmatizaram Kerensky, juraram fidelidade à revolução, mas ninguém não propôs resoluções práticas para o futuro mais próximo. Todavia, depois de vários dias, na cidade, esperavam com tenacidade os acontecimentos. As «Jornadas de Julho» antecipadamente, projectavam a sua sombra. «De todas as partes, de todo o sítio – escreve Sokhanov nas suas Memórias – no soviete, no palácio Maria, na casa do habitante, nas praças e avenidas, nos quartéis e nas fábricas, falava-se de certas manifestações a prever de um dia ao outro … Ninguém sabia exactamente quem devia manifestar, como e onde. Mas a cidade sentia-se na véspera de qualquer explosão.» E a manifestação efectivamente rebentou. O impulso veio de cima, das esferas dirigentes.

No mesmo dia onde Trotsky e Lunatcharsky falavam, entre os metralhadores, da incapacidade da coligação, quatro ministros cadetes, faziam saltar esta coligação, deixaram o governo. Como pretexto, eles escolheram o facto inaceitável, para eles, pela razão das suas pretensões em jogar um papel de grande força, de compromisso pelo qual seus colegas conciliadores tinham tratado com a Ucrânia. A verdadeira causa desta ruptura demonstrativa era nisto que os conciliadores tardavam a refrear as massas. A escolha do momento foi sugerida pelo fracasso da ofensiva, ainda não confessada oficialmente, mas já não fazia dúvida para os iniciados. Os liberais julgaram oportuno deixar seus aliados de esquerda frente a frente com a derrota e com os bolcheviques. O rumor da demissão dos cadetes propagou-se imediatamente na capital e favoreceu a generalização política de todos os conflitos em curso numa palavra de ordem, mais exactamente num grito de desespero: era preciso acabar com todas as chinesices da coligação!

Os soldados e os operários consideravam que a solução dada ao problema do poder, segundo que o país seria governado pela burguesia ou pelos seus próprios sovietes, todas as outras questões dependiam: salários, preço de pão, obrigação de se matar na frente para os fins ignorados, havia nessas expectativas uma certa dose de ilusão, na medida onde as massas esperavam vir, para uma mudança de poder, à solução imediata de todos os problemas angustiantes. Mas, no fim de contas, elas tinham razão: a questão do poder determinava a direcção de toda a revolução e a seguir, fixava a sorte de cada um em particular. Supor que os cadetes não podiam prever as repercussões dos seus actos de sabotagem declarada em relação aos sovietes, seria resolutamente subestimar Miliokov. O líder do liberalismo esforçava-se evidentemente em arrastar os conciliadores para uma situação crítica que não teria saída senão através pelo emprego das baionetas: nesses dias, ele acreditava firmemente que por uma ousada sangria, podia-se salvar a situação.

No 3 de Julho, logo pela manhã, vários milhares de metralhadores, interrompendo bruscamente uma reunião dos comités das suas companhias e do regimento, elegeram um presidente entre os seus e exigiram que se discutisse imediatamente uma manifestação armada. O comício tomou logo uma direcção tumultuosa. A questão da partida para a frente cruzava-se com a crise governamental. O presidente da assembleia, o bolchevique Golovine, tentou travar, propondo um acordo prévio com as outras unidades do exército e com a organização militar. Mas toda alusão a um adiamento enfurecia os soldados. Na reunião surgiu o anarquista Bleichmann, pequena personagem, mas muito colorido no ambiente de 1917. Possuindo uma modesta bagagem de ideias, mas um faro certo diante das massas, sincero no seu espírito limitado, mas sempre inflamado, a camisa desabotoada no peito, a cabeleira hirsuta e de caracóis, Bleichmann encontrava nos comícios um bom número de simpatias meio irónicas. Os operários consideravam-no, na verdade, com reserva, com uma certa impaciência – sobretudo os metalúrgicos. Mas os soldados sorriam alegremente com os seus discursos, trocando entre eles cotoveladas e distraindo o orador com palavras picantes: eles estavam evidentemente dispostos em seu favor pela aparência excêntrica, pelo seu tom resoluto de homem que pensa pouco, pelo seu acento judeu-americano, mordente como o vinagre.

No fim de Junho, Bleichmann nadava em toda a especie de comícios improvisados como um peixe na água. Ele tomava sempre a mesma decisão: sair, com as armas na mão. A organização? «é a rua que nos organizará». A tarefa? «Derrubar o governo provisório como se derrubou o czar», ainda se nem um só partido tenha apelado nesse sentido. Discursos desse género correspondiam no melhor dos casos, pelo momento, às disposições dos metralhadores e não somente a estes últimos. Numerosos eram os bolcheviques que não escondiam a sua satisfação em ver a base passar para além das advertências oficiais. Os operários da vanguarda lembravam-se que em Fevereiro os dirigentes tinham-se preparado para dar o sinal de retirada logo na véspera da vitória; que em Março, o dia de oito horas tinha sido conquistada pela iniciativa da base; que em Abril, Miliokov tinha sido derrubado pelos regimentos espontâneos saídos à rua. A lembrança desses factos ia diante da opinião das massas, tensa e impaciente.

A organização militar dos bolcheviques, imediatamente informada da efervescência que reinava no comício dos metralhadores, enviou à reunião, uns depois de outros, agitadores. Logo chegou Nevsky em pessoa, dirigente da organização militar, que os soldados estimavam muito. Parece que ele foi ouvido. Mas, como o comício se prolongava interminavelmente, as disposições do auditório mudavam, tal como a sua composição. «Foi par nós uma grande surpresa – conta Podvoisky, outro dirigente da organização militar – quando, às sete horas da noite, chegou a galope um estafeta para nos anunciar que … os metralhadores tinham de novo decidido manifestarem-se.» No lugar do antigo comité do regimento, eles tinham elegido um comité revolucionário provisório contando dois homens por companhia, sob a presidência do alferes Semachko. Delegados especialmente designados faziam já a volta dos regimentos e das fábricas para pedir-lhes apoio. Os metralhadores não esqueceram, bem entendido, enviar também emissários a Cronstadt.

Assim, por baixo das organizações oficiais, parcialmente sob a sua cobertura, tendiam-se novos laços temporarios entre os regimentos e as fábricas mais exasperados. As massas não tinham a intenção de romper com os sovietes, pelo contrários elas queriam dar uma ajuda, ameaçar o comité executivo, empurrar para a frente os bolcheviques. Improvisaram-se delegações, criaram-se novos pontos de ligação e centros de acção, não permanentes, mas adaptados ao caso presente. As circunstâncias e os estados de opinião modificavam-se rápidamente e bruscamente que mesmo uma organização das mais ligeiras, tal como os sovietes, atrasa inevitavelmente e que as massas são cada vez obrigadas a criar órgãos auxiliares para as necessidades do momento.

Tais improvisações surgem por surpresa, bastantes vezes, elementos de acaso e nem sempre muito seguros. Os anarquistas deitam óleo sobre o fogo, mas muitos novos aderentes do bolchevismo, igualmente impacientes, fazem como eles. Sem dúvida incorporam-se no assunto provocadores, talvez agentes da Alemanha, mas, seguramente agentes da contra-espionagem da reacção russa. Como resolver o tecido complexo dos movimentos de massa, fio por fio? O carácter geral dos acontecimentos determina-se no entanto com toda a clareza. Petrogrado sentia a sua força, tomava o seu jeito sem olhar para trás nem para a província, nem sobre a frente, e o próprio partido bolchevique era incapaz de moderar a capital. Aqui, só a experiência podia ajudar.

Ao apelar aos regimentos e aos operários a descer à rua, os delegados dos metralhadores não esqueceram de acrescentar que a manifestação devia ser armada. Sim, e como fazer de outra forma? Mesmo assim não nos expomos sem armas aos golpes dos adversários. Além disso, e isto é provavelmente o essencial, é preciso mostrar força; ora, um soldado que não tem a sua arma não é uma força. Mas, sob este aspecto ainda, todos os regimentos e todas as fábricas eram da mesma opinião: se manifestamos, só podia ser com uma provisão de chumbo.

Os metralhadores não perdiam tempo: tendo comprometido uma grande parte, eles deviam levá-la até ao fim o mais depressa possível. Os processos verbais da instrução caracterizavam mais tarde os actos do alferes Semachko, um dos principais dirigentes do regimento, nestes termos: « … Ele pediu automóveis às fábricas, armou as viaturas com metralhadoras, enviou-as ao palácio Tauride e noutros sítios, fixando os itinerários; fez sair pessoalmente o regimento do quartel para o levar à cidade, foi ao batalhão de reserva do regimento moscovita com o objectivo de determinar a manifestação, ao que ele consegui; prometeu aos soldados do regimento de metralhadores o apoio dos regimentos da organização militar, e continuou em constante contacto com esta organização, situada na casa de Kczensinska, e com o líder dos bolcheviques, Lenine: enviou esquadras para guardar a sede da dita organização. «A insinuação formulada aqui contra Lenine é destinada a completar o quadro: Lenine, nem nesse dia nem nos dias precedentes não se encontrava em Petrogrado: desde do dia 29 de Junho, sofrendo, residia numa mansão em Finlândia. Mas de resto, o estilo conciso do funcionário da justiça militar traduziu bastante bem a febre que se tinha apoderado dos metralhadores nos seus preparativos. No pátio do quartel trabalhava-se com ardor. Aos soldados não armados distribuíram-se espingardas, a outros granadas, e em cada camião fornecido pelas fábricas, instalou-se três metralhadoras com os seus servidores. O regimento devia sair à rua em ordem de batalha.

Nas fábricas, passava-se pouco mais ou menos a mesma coisa: os delegados chegavam, seja do quartel dos metralhadores, seja de qualquer fábrica vizinha, e chamavam à manifestação. Disseram que esperavam há muito tempo: faziam greve imediatamente. Um operário da fábrica Renault conta: «Depois do pequeno-almoço, vários metralhadores ocorreram junto de nós e pediram para lhes entregar camiões. Apesar do protesto da nossa colectividade (bolcheviques), foi preciso dar as viaturas … À pressa carregaram os camiões com «Maxims» (metralhadoras) e partiram em direcção de Nevsky. Então, tornou-se impossível reter os nossos operários … Todos, com roupas de trabalho, abandonaram as máquinas, saíram das oficinas … » Os protestos dos bolcheviques nas fábricas nem sempre eram, dever-se-ia pensar, muito insistentes. Onde a luta se prolongava mais, foi nas fábricas Potilov. Cerca das duas da tarde, correu o rumor nas oficinas que uma delegação de metralhadoras tinha chegado e convocava um comício. Cerca de dois mil operários juntaram-se diante dos locais da administração. Aclamados, os metralhadores contaram que tinham recebido ordem de partir no 4 de Julho para a frente, mas que tinham resolvido «marchar não do lado da frente alemã, contra o proletariado alemão, mas contra os seus próprios ministros capitalistas». O estado de espírito aumentou. «Em frente! En frente!» gritavam os operários. O secretário do comité de fábrica, um bolchevique, levantava objecções, propondo pedir a opinião do partido. Protestos de todos os lados: «Abaixo! Abaixo!» vocês querem fazer arrastar o assunto! … Não podemos continuar a viver assim! … » Cerca da seis horas chegaram os representantes do comité executivo, mas eles não conseguiram influenciar os operários.

O comício continuava, interminável, nervoso, obstinado comício de uma massa de milhares de homens que procuram uma saída e não admitindo que lhes seja sugerido que essa saída não exista. Propõem enviar uma delegação ao comité executivo: ainda uma hesitação. A assembleia continuava em permanência. Entretanto um grupo de operários e de soldados vem anunciar que o bairro de Vyborg avançou para o palácio de Tauride. Torna-se impossível obstruir por mais tempo. Decide-ce de avançar. Um certo Efimov correu para o comité de bairro do partido para perguntar «o que se ia fazer». Responderam-lhe: «Nós não manifestamos, mas não podemos abandonar os operários à sua sorte, é por isso que marchamos com eles.» Nesse momento apareceu Tchudine, membro do comité de bairro, anunciando que, em todos os bairros, os operários metiam-se em marcha e que os militantes do partido deveriam «manter a ordem». É assim que os bolcheviques eram levados pelo movimento, ao mesmo tempo que procuram justificar os seus actos que iam contra a decisão oficial do partido.

A vida industrial da capital, cerca das sete horas da tarde, tinha completamente parado. Uma após outra, as fábricas sublevavam-se, formavam fileiras, destacamentos de guardas vermelhos armavam-se. «Numa massa de milhares de operários – conta Metelev, militante de Vyborg – iam e vinham, batendo com as culatras de suas espingardas, centenas de jovens guardas. Uns introduziam carregadores nas suas armas, outros apertavam as correias, outros ainda penduravam aos seus cinturões, sacos a tiracolo e cartucheiras, ou então metiam as baionetas na ponta da arma, e os operários que não tinham armas ajudando os guardas a equipar-se … » A perspectiva Sampsonievsky, principal artéria do bairro de Vyborg, estava apinhada de gente. Sobre a direita e sobre a esquerda, as colunas compactas de trabalhadores. No meio da calçada desfila o regimento de metralhadores, espinha dorsal do cortejo. À cabeça de cada companhia, os camiões com as «Maxims». Por detrás do regimento dos metralhadores, os operários; na retaguarda, cobrindo a manifestação, as unidades do regimento moscovita. Em cima de cada destacamento, uma bandeira: «Todo o poder aos sovietes!» O cortejo de funerais de Março ou a manifestação do Primeiro de Maio tinha sido provavelmente o mais numeroso. Mas o desfile de Julho é incomparavelmente mais impetuoso, mais ameaçador e … de composição mais homogénea. «Sob as bandeiras vermelhas marcham os operários e os soldados, escreve um dos participantes. Não se vêm nem laços de funcionários, nem os brilhantes botões dos estudantes, nem os chapéus de «senhoras simpáticas» - tudo isso via-se quatro meses antes, em Fevereiro – mas, no movimento desse dia, nada de igual, hoje marcham somente as sombras do capital.»

Pelas ruas iam em diversas direcções as viaturas carregadas de operários e de soldados armados: delegados, agitadores, batedores, homens de ligação, efectivos encarregados de aliciar os operários e os regimentos. Todos cruzavam a espingarda. Os camiões, eriçados de baionetas, reproduziam o quadro dos dias de Fevereiro, electrizavam uns aos outros, aterrorizando os outros. O cadete Nabokov escreve: «São os mesmos rostos dementes, embrutecidos, bestas, que nós lembramos todos desde dos dias de Fevereiro», isto é desde dos dias dessa mesma revolução que os liberais tinham oficialmente chamado gloriosa e não sangrenta. Cerca das nove horas, sete regimentos dirigiam-se para o palácio de Tauride. A caminho juntaram-se colunas vindas das fábricas e das novas unidades militares. O movimento do regimento dos metralhadores revelava uma força formidavelmente contagiosa. As «Jornadas de Julho» abriam-se.

Aqui e ali improvisaram-se comícios. Num lado e outro ouviam-se tiros. Segundo o operário Korotkov, «sobre a Liteiny, saíram da cave uma metralhadora e um oficial que foi abatido ali mesmo». Rumors de toda especie iam à frente da manifestação, ela difunde à volta dela o terror em todas as direcções. Não transmitem somente os telefones dos bairros do centro, amedrontados! Comunicam que certa das oito horas da noite, uma viatura chegou a toda a velocidade na gare de Varsóvia procurando, para o prender, Kerensky que partia justamente nesse dia para a frente; mas era demasiado tarde, o comboio tinha abalado e a prisão não aconteceu. Este episódio foi mencionado seguidamente mais de uma vez como prova da conspiração. Quem precisamente se encontrava no automóvel e que tinha descoberto as misteriosas intenções dos seus ocupantes? Nunca se soube. Nessa noite, viaturas carregadas de homens armados corriam em todas as direcções, provavelmente também nos arredores da gare de Varsóvia. Invectivas cruas em direcção de Kerensky soavam em numerosos sítios. Foi verosimilmente, a origem da legenda, supondo que ela não tivesse sido totalmente inventada de uma ponta à outra.

As Izvestia concebiam o esquema seguinte dos acontecimentos do 3 de Julho: «Às cinco horas da tarde saíram em armas: o primeiro de metralhadoras, um contingente do regimento moscovita, um contingente de granadeiros, um contingente também do regimento Pavlovsky. Eles juntaram-se às massas operárias … Cercadas oito horas da noite começaram a juntar-se, à volta do palácio Kczesinka, diferentes unidades de regimentos, armados dos pés à cabeça, com bandeiras vermelhas e cartazes exigindo a transmissão do poder aos sovietes. Do alto da varanda, discursos foram pronunciados … Às dez horas e meia, na praça diante do palácio Tauride, teve lugar um comício … As unidades elegeram uma delegação ao conselho executivo central pan-russo, a qual formulou em seu nome as reivindicações seguintes: «Abaixo os dez ministros burgueses! Todo o poder ao soviete! Parai a ofensiva! Confiscação das tipografias dos jornais burgueses! A nacionalização da terra! Controlo sobre a produção!» Se meter-mos de lado alguns retoques de interesse secundário: «unidades de regimentos» em vez de massas de operárias» em vez de «fábricas inteiras», pode-se dizer que o órgão oficioso de Tseretelli-Dan, no conjunto, não altera em nada o que se passou e, em particular, assinala exactamente os dois focos da manifestação: o hotel privado de Kczesinska e o palácio de Tauride. Moralmente e materialmente, o movimento andava à volta desses dois centros antagónicos: em Kczesinska vêm chercher as indicações, uma direcção, a palavra inspiradora; no palácio de Tauride vêm formular as reivindicações e mesmo ameaçar a força que representam.

Às três horas da tarde, diante da conferência geral dos bolcheviques da capital, reunida nesse dia no hotel de Kczesinka, dois delegados dos metralhadores vieram comunicar a decisão tomada pelo regimento de manifestar. Ninguém não esperava isso, ninguém queria isso. Tomsky declarou: «Os regimentos que se meteram em movimento não agiram como bons camaradas, não tendo convidado o comité do partido a discutir a questão. O comité central propôs à conferência: 1º publicar um manifesto para contera as massas; 2º elaborar um carta ao comité executivo, propondo-lhe tomar o poder. Não se pode falar nesse momento de uma manifestação sem desejar uma nova revolução.» Tomsky, velho operário bolchevique, tendo marcado a sua fidelidade ao partido pelos anos de cativeiro, conhecido a seguir como dirigente dos sindicatos, era, pelo seu carácter, tendia geralmente mais a impedir as manifestações do que a provocá-las. Mas, desta vez, ele desenvolveu somente o pensamento de Lenine: não se poderia falar por agora de uma manifestação se desejamos uma nova revolução. Porque, enfim, mesmo a tentativa de manifestação pacífica do 10 de Junho tinha sido reputada pelos conciliadores como uma conspiração!

A esmagadora maioria da conferência estava solidária com Tomsky. É preciso a qualquer preço atrasar a conclusão. A ofensiva sobre a frente mantém em suspenso todo o país. A derrota também é tão prevista como a intenção do governo em rejeitar a responsabilidade da derrota sobre os bolcheviques. É preciso dar aos conciliadores o tempo de se comprometerem definitivamente. Volodarsky respondeu aos metralhadores, em nome da conferência, no sentido que o regimento devia submeter-se à decisão do partido. Os metralhadores saíram protestando. Às quatro horas, o comité central confirma a decisão da conferência. Os seus membros dispersam-se nos distritos e nas fábricas para impedir a manifestação das massas. Um manifesto no mesmo sentido foi expedido à Pravda para que ela o imprimisse na primeira página na manhã do dia seguinte. Estaline encarregou-se de informar da decisão do partido a assembleia unificada dos comités executivos. As intenções dos bolcheviques não deixam assim lugar a qualquer dúvida. O comité executivo dirigiu aos operários e aos soldados um manifesto: «Desconhecidos … apelam a pegar em armas e descer à rua», certificando assim que o apelo não provinha de qualquer dos partidos soviéticos. Mas os comités centrais, de partidos e de sovietes, propunham, enquanto que as massas dispunham.

Cerca das oito horas da noite, o regimento de metralhadores e a seguir o regimento moscovita aproximaram-se do palácio de Kczesinska. Os bolcheviques populares, Nevsky, Lachevitch, Podvoisky, tentaram do alto da varanda, mandar os regimentos a voltar para os quartéis. Responderam-lhe de baixo: «Abaixo!» Da varanda bolcheviques ainda não tinham ouvido tais gritos vindos dos soldados, e era um sintoma inquietante. Na retaguarda dos regimentos surgiram diante das fábricas: «Todo o Poder aos sovietes!» «Abaixo os dez ministros capitalistas!» Eram as palavras de ordem do 18 de Junho. Mas agora, eles estavam enquadrados por baionetas. A manifestação tornara-se um facto imponente. Que fazer? Podia-se conceber que os bolcheviques ficariam à parte? Os membros do comité de Petrogrado, com os delegados da conferência e os representantes dos regimentos e das fábricas, decidem isto: rever a questão, acabar com as divisões estéreis, dirigir o movimento que eclodiu no sentido que a crise governamental seria resolvida no interesse do povo; nesse sentido, convidar os soldados e os operários a marchar pacificamente para o palácio Tauride, eleger delegados e, por intermédio deles, formular as suas reivindicações diante do comité executivo. Os membros do comité central que estão presentes sancionam a modificação da táctica.

A nova decisão, anunciada do alto da varanda, foi acolhida com aclamações e pelo canto da Marselhesa. O movimento está legalizado pelo partido: os metralhadores podem respirar aliviados. Uma parte do regimento entra logo na fortaleza Pedro e Paulo para agir sobre a guarnição e em caso de necessidade, proteger contra uma acção negativa o palácio Kczesinska que estava separado da fortaleza pelo canal estreito de Kronwerk.

Os destacamentos que estavam à cabeça da manifestação penetraram na Nevsky, artéria da burguesia, da burocracia e do corpo dos oficiais, como num país estrangeiro. Os passeios, as janelas, as varandas, milhares de olhares mal-intencionados espreitavam-os com circunspecção. Tal regimento dirige-se a uma fábrica, tal fábrica para um regimento. Sem parar chegam novas massas. Todas as bandeiras, ouro sobre fundo vermelho, clamam pelo mesmo: «Todo o poder aos sovietes!» O desfile ocupa a Nevsky e, essa corrente irresistível, vaza sobre o palácio de Tauride. Os cartazes: «Abaixo a guerra!» provocam grande hostilidade entre os oficiais, entre os quais a um grande número de inválidos. Gesticulam, esgotam-se, o estudante, a estudante, o funcionário tentam persuadir os soldados que os agentes da Alemanha, que se mantêm detrás das suas costas, querem dar acesso às tropas de Guilherme para abafar a liberdade. Os oradores julgam os seus próprios argumentos irresistíveis. «Eles foram enganados pelos espiões!» dizem os funcionários sobre os operários que respondem com um tom brusco. «Arrastados por fanáticos!» retomam os mais indulgentes. «Ignorantes!», e sobre esse ponto, uns e outros estão de acordo.

Mas os operários têm a sua maneira de medir as coisas, não é entre os espiões alemãs que eles aprenderam as ideias que os empurram hoje para a rua. As manifestações afastam sem urbanidade os pregadores importunos e avançam. Isso exaspera os patriotas da Nevsky. Grupos de choque, comandados maioritariamente por inválidos e cavaleiros de São Jorge, jogam-se sobre certos destacamentos de manifestantes para lhes arrancar suas bandeiras. Zaragatas têm lugar aqui e ali. A atmosfera aquece. Tiros são disparados de um lado e de outro. De uma janela ? Do palácio Anitchkine? A calçada responde com uma salva para o ar, sem destino. Durante um certo tempo, toda a rua se agita. Cerca da meia-noite, conta um operário da fábrica Vulkan, no momento onde passava pela Nevsky o regimento de granadeiros, nas redondezas da biblioteca pública, um tiroteio começou não se sabe de onde, que durou alguns minutos. O pânico rebenta. Os operários espalham-se nas ruas adjacentes. Os soldaos, sob o fogo, deitam-se no chão: não é em vão que um certo número deles tinha passado pela escola da guerra. Esta Nevsky da meia-noite, onde os granadeiros da Guarda se tinham deitado de barriga sobre a calçada, sob o tiroteio, dava um espectáculo fantástico. Nem Puchkine nem Gogol, que celebraram a Nevsky, não a tinham imaginado assim! Portanto, esta fantasmagoria era uma realidade: sobre a calçada, ficaram mortos e feridos.

O palácio de Tauride nesse dia vivia particularmente. Os cadetes tendo dado sua demissão do governo, os dois comités executivos, o dos operários e soldados e o dos camponeses, discutiam juntos o relatório de Tseretelli sobre a questão de saber como limpar a pele da coligação sem molhar um pêlo. O segredo desta operação tinha sido provavelmente descoberto enfim se não houvesse impedimentos do lado dos turbulentos arrabaldes. As comunicações telefónicas, anunciando o início da marcha do regimento dos metralhadores, que se prepara, suscitam as caretas de cólera de contrariedade dos dirigentes. É possível que os soldados e os operários na sejam capazes de esperar que os jornais lhes traga uma decisão saudável? A maioria olha os bolcheviques de soslaio. Mas a manifestação era, desta vez, igualmente imprevista para estes últimos. Kamenev e outros representantes do partido, que estão lá, concordam em ir, depois da sessão do dia, nas fábricas e nos quartéis para conter as massas. Mais tarde, esse gesto foi interpretado pelos conciliadores como um estratagema. Os comités executivos adoptam urgentemente um manifesto declarando como habitualmente que todas as manifestações traíam a revolução. Mas, portanto, como sair da crise do poder? A saída é encontrada: manter o governo troncado tal que ele é, adiando o exame da questão no conjunto até à convocação dos membros provinciais do comité executivo. Adiar, ganhar tempo, para sair da hesitação, não é a mais douta de todas as políticas?

É somente na luta contra as massas que os conciliadores julgavam inadmissível perder tempo. O aparelho oficial preparou-se imediatamente contra a insurreição – porque é assim que a manifestação foi nomeada desde do início. Os líderes procuravam por todo o lado uma força armada para a protecção do governo e do comité executivo. Sob as assinaturas de Tchkheidze e de outros membros do órgão máximo foram enviados, a diversas instituições militares, advertências de enviar ao palácio Tauride viaturas blindadas, canhões de três polegadas, munições. Ao mesmo tempo, quase todos os regimentos receberam ordem de enviar destacamentos armados para a defesa do palácio. Mas não ficaram por aí. O gabinete apressou-se, no próprio dia, em telegrafar à frente, ao Vº exército, o mais próximo da capital, a imposição de «enviar a Petrogrado uma divisão de cavalaria, uma brigada de infantaria e carros blindados». O menchevique Voitinsky, que tinha sido encarregado de segurança do comité executivo, declarou redondamente, mais tarde, numa declaração retrospectiva: «Todo o dia do 3 de Julho foi empregue a juntar a tropa para fortificar o palácio Tauride … Nossa tarefa era reunir pelo menos algumas companhias … Durante um momento as forças nos faltaram completamente. À entrada do palácio Tauride, havia um posto de seis homens que não estavam em condições de conter a multidão … » Depois retoma: «No primeiro dia da manifestação, tínhamos à nossa disposição somente cem homens, não tínhamos outras forças. Expedimos comissários a todos os regimentos, rogando-lhes para nos darem soldados para fazerem a guarda … Mas cada regimento voltava a cara para um lado e outro para ver como ele se comportava. Era preciso a todo o preço acabar com esse escândalo, e nós chamámos tropas da frente.» Seria difícil, mesmo intencionalmente, inventar uma sátira maldosa contra os conciliadores. Centenas de milhares de manifestantes exigem que o poder passe para os sovietes. Tchkheidze, colocado à cabeça dos sovietes e, seguidamente candidato ao papel de primeiro-ministro, procura uma força armada contra os manifestantes. O movimento grandioso para o poder da democracia declarou pelos seus líderes um ataque de bandos armados contra democracia.

No mesmo palácio de Tauride juntou-se após uma longa inter-sessão, a secção operária do soviete que, durante os dois últimos meses, por eleições parciais nas fábricas, tinha podido renovar o seu efectivo que o comité executivo, com razão, teimava ver aí a predominancia dos bolcheviques. Artificialmente atrasada, a reunião da secção, fixada enfim pelos próprios conciliadores alguns dias antes, coincidia por acaso com a manifestação armada: os jornais viram aí a mão dos bolcheviques. Zinoviev desenvolveu de uma maneira convincente no seu relatório à secção esta ideia que os conciliadores, aliados da burguesia, não queriam e não podiam lutar com a contra-revolução, porque, sob esse nome, eles incluíam diversas manifestações da brutalidade dos Cem Negros, mas não o reforço político das classes possuidoras visando esmagar os sovietes como centro de resistência dos trabalhadores.

O relatório caía mesmo bem. Os mencheviques, sentindo-se pela primeira vez, sobre o terreno soviético, em minoria, propunham não tomar qualquer decisão, mas repartir nos bairros para manter a ordem. Portanto, é demasiado tarde! O anúncio da chegada diante do palácio de Tauride de operários armados e de metralhadores causa a maior sobreexcitação na sala. Na tribuna levantou-se Kamenev. « Não apelámos a qualquer manifestação, disse ele, mas as massas populares saíram por sua própria iniciativa … E no momento que as massas saíram, nosso lugar é no meio delas … Nossa tarefa, agora, é dar ao movimento um carácter organizado.»

Kamenev termina em propondo a eleição de uma comissão de vinte e cinco pessoas para dirigir o movimento. Trotsky apoiou esta proposição. Tchkheidze teme a comissão bolchevique e insiste em vão para que a questão seja transmitida ao comité executivo. Os debates ganham um carácter tumultuoso. Tendo-se definitivamente convencido que não constituíam a maioria da assembleia, os mencheviques e os socialistas-revolucionários abandonam a sala.

Isso torna-se, em geral, a táctica favorita dos democratas: eles começam a boicotar os sovietes a partir do momento onde eles perdem aí a maioria. A resolução apelando o comité executivo central a tomar o poder é adoptada por duzentos e setenta e seis votos, na ausência da oposição. Por instante, procede-ce à eleição de quinze membros da comissão: dez lugares são deixados à minoria; eles ficarão desocupados. O facto da eleição da comissão bolchevique significou para os amigos e inimigos que a secção operária do soviete de Petrogrado tornou-se então a base do bolchevismo. Um grande passo em frente! Em Abril, a influência dos bolcheviques estendia-se pouco mais ou menos sobre um terço dos operários de Petrogrado; no soviete, eles ocupavam nesses dias um sector completamente insignificante. Agora, no início de Julho, os bolcheviques davam à secção operária cerca de dois terços dos delegados: isso significa que, nas massas, a influência deles tornara-se decisiva.

Nas ruas perto do palácio de Tauride, com bandeiras, cantos, música, convergem colunas de operários, operárias, soldados. E chega a artilharia ligeira cujo comandante suscita o entusiasmo ao anunciar que todas as baterias da sua divisão estão com a causa dos operários. A grande rua e a praça diante do palácio de Tauride estão cheias de gente. Todos tentam chegar junto da tribuna, diante da entrada principal do palácio. Tchkheidze apresenta-se aos manifestantes, com um ar deprimido de um homem que acabam de incomodar inutilmente das suas ocupações. O popular presidente do soviete é acolhido por um silêncio malevolente. A voz cansada e rouca de Tchkheidze repte lugares comuns, velhas lengalengas. Voitinsky, que vem ajudar-lhe, também é mal recebido. «Por sua vez Trotsky – segundo Miliokov – tendo declarado que o momento tinha chegado para que o poder passasse para os sovietes, foi acolhido por ruidosos aplausos …» Esta frase é, intencionalmente, equivoca. Nenhum bolchevique não tinha dito que o «momento tinha chegado». Um serralheiro da pequena fábrica Duflon, do bairro dito de Petrogrado, contou que o que se passou no comício junto às paredes do palácio de Tauride: «Lembro-me do discurso de Trotsky que dizia que o tempo ainda não tinha chegado para tomar o poder.» O serralheiro reproduz o sentido do discurso mais exactamente que o professor de História. Dos lábios dos oradores bolcheviques, os manifestantes souberam que a vitória obtida recentemente na secção operária, e isso lhes dava uma satisfação palpável, como uma introdução na época do poder soviético.

A sessão comum dos comités executivos reabriu pouco antes da meia-noite: entretanto, os granadeiros colavam-se em posição de combate sobre a Nevsky. Sob proposição de Dan, decidiu-se que só podem ficar na assembleia os que comprometem antecipadamente defender e executar as decisões adoptadas. Nova maneira de falar! Nesse parlamento de operários e de soldados, como os mencheviques designavam o soviete, eles tentavam transformar num órgão administrativo da maioria conciliadora. Quando ficarem em minoria – só há dois messes de espera – os conciliadores defenderão apaixonadamente a democracia soviética. Mas hoje, como em geral, a democracia foi banida. Um certo número de delegados inter-distritos deixaram a sessão protestando; os bolcheviques estavam ausentes: eles discutiam no palácio Kczensinska a conduta a adoptar no dia seguinte. A sessão perseguindo-se, os delegados inter-distritos apresentam-se na sala para declarar que ninguém não pode retirar-lhes um mandato que eles obtiveram dos eleitores. A maioria mantém-se calada e a moção de Dan é esquecida sem que alguém se dê conta. A sessão arrasta-se como uma agonia. Uma voz discordante, os conciliadores procuram provar uns aos outros que têm razão. Tseretelli, como ministro dos Correios, queixa-se do pessoal: «Só agora acabei de saber sobre a greve dos correios … No que diz respeito às reivindicações políticas, a palavra de ordem deles é a mesma: todo o poder aos sovietes!» …

Os delegados dos manifestantes que cercavam o palácio de Tauride por todos os lados exigiram a sua demissão na sessão. Deixaram-nos entrar com preocupação e hostilidade. Ora, os delegados acreditavam sinceramente que os conciliadores não poderiam, desta vez, evitar de ir ao seu encontro. Porque, nesse dia, os jornais dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários, excitados pela demissão dos cadetes, denunciam eles próprios as intrigas e a sabotagem dos seus aliados burgueses. Além disso, a secção operária tinha-se pronunciado pelo poder dos sovietes. Que esperar ainda? Mas os apelos entusiasmados, nos quais a indignação mantém ainda um sopro de esperança, caem, impotentes e impertinentes, no marasmo do parlamento conciliador.

Os líderes estão preocupados só com uma coisa: como eliminar os intrusos? Convidam estes últimos a subir às galerias: mandá-los para a rua, para os manifestantes, seria de uma grande imprudência. Da varanda, os metralhadores ouviram com estupefacção os debates que se desenvolviam, cujo objectivo era ganhar tempo: os conciliadores esperavam dos regimentos de confiança. «Nas ruas, há um povo revolucionário – declarou Dan – mas esse povo entrega-se à acção contra-revolucionária … » Dan é apoiado por Abromovitch, um dos líderes do Bund judeu, igualmente conservador, cujos instintos são ofendidos pela revolução. «Somos testemunhas de uma conspiração», afirma ele, contra qualquer prova; e convida os bolcheviques a declarar francamente que «é a obra deles». Tseretelli aprofundou o problema: «Descer à rua com esta reivindicação: todo o poder aos sovietes, significa isso apoiar os sovietes? Se os sovietes o desejam o poder poderia ser-lhe transmitido, não há qualquer obstáculo de qualquer lado, à vontade dos sovietes … Tais manifestações não vão no sentido da revolução, mas no sentido da contra-revolução.» Os delegados operários não compreendem esse raciocínio. Parecia-lhes que os grandes líderes desesperavam. No fim de contas, a assembleia, mais uma vez, confirma, à quase unanimidade, contre onze votos, que a manifestação armada é um golpe dado nas costas do exército revolucionário, etc. A sessão terminou às cinco horas da manhã.

As massas, pouco a pouco, voltavam para os seus bairros. As viaturas armadas corriam toda a noite, agora a ligação entre os regimentos, as fábrica, os centros de distrito. Assim como no fim de Fevereiro, as massas faziam, à noite, o balanço da batalha desenrolada durante o dia. Mas agora elas fazem isso com a participação de um sistema complexo de organizações: as das fábricas, do partido, das tropas, que conferiam em permanência. Nos distritos julgava-se coisa adquirida que o movimento não podia parar a meio do caminho. O comité executivo tinha adiado a sua decisão sobre o poder. As massas interpretaram isso como hesitações. A dedução era clara; era preciso ainda pressionar. A sessão da noite dos bolcheviques e dos delegados inter-distritos, que teve lugar no palácio de Tauride paralelamente com a sessão dos comités executivos, resumia assim os resultados do dia e tentava prever o que aconteceria no dia seguinte. Os relatórios dos distritos testemunhavam que a manifestação do dia tinha somente agitado as massas, colocando diante delas pela primeira vez com toda intensidade a questão do poder. Amanhã, as fábricas e os regimentos exigem uma resposta, e nenhuma força não os limitará aos arrabaldes. Os debates tratarão não sobre a questão de saber se se chamará ou não à tomada do poder, como afirmaram mais tarde os adversários, mas se tentassem liquidar a manifestação ou se tomassem a cabeça no dia seguinte pela manhã.

Já tarde, à noite, cerca das quatro horas, diante do palácio de Tauride se juntou a fábrica de Potilov, uma massa de trinta mil pessoas, entre as quais estavam numerosas mulheres e crianças. O cortejo iniciou sua marcha cerca das onze da noite, e, a caminho, juntaram-se outras fábricas. Às portas da Narva, já em hora avançada, havia tanta gente que ninguém parecia ficar no bairro. Mulheres gritavam: «Todos devem ir … Nós guardamos as casas … » Após o toque do sino da igreja do Salvador (Spass), tiros foram ouvidos, como sendo de metralhadores. Em baixo, uma salva fois dirigida ao sino. «Diante de Gostiny Dvor (Galeria dos comerciantes), uma banda de junkeres e estudantes caiu sobre os manifestantes e arrancou-lhes um cartaz. Os operários resistiram, houve empurrões, alguém disparou, o autor destas linhas foi agredido na cabeça e brutalmente pisado nas costelas e peito.» É o que conta o operário Efimov. Tendo atravessado toda a cidade, já muda, os operários de Potilov chegaram enfim ao palácio de Tauride. Graças à rápida intervenção de Riazanov, que estava, nesse momento lá, estreitamente ligado aos sindicatos, uma delegação de fábrica foi admitida nos comités executivos. A massa operária, esfomeada e extenuada, estendeu-se na rua e no jardim, a maior parte dos manifestantes estenderam-se logo ali esperando uma resposta. A fábrica Potilov, deitada no chão às três horas da manhã à volta do palácio de Tauride, no qual os líderes democratas esperavam a chegada das tropas da frente – eis um dos quadros dos mais emotivos da revolução no ponto de demarcação entre Fevereiro e Outubro. Douze anos antes, um bom número desses operários tinham participado ne procissão de Janeiro, em direcção do palácio de Inverno, com ícones e bandeiras da igreja. Séculos passaram após esse domingo. Novos séculos passarão nos quatro meses que vão seguir.

Sobre a conferência dos líderes e organizadores bolcheviques que discutem no dia seguinte pesa fortemente a sombra da fábrica Potilov deitada lá fora. Amanhã, os trabalhadores de Potilov não irão ao trabalho; e com efeito, que trabalho seria possível após esta vigília? Zinoviev, entretanto, é chamado ao telefone; de Cronstadt, é Raskolnikov que diz que amanhã, cedo, a guarnição da fortaleza marchará sobre Petrogrado: ninguém e nada podem retê-la. O segundo tenente da marinha ficará agarrado ao outro lado do telefone: é possível que o comité central lhe ordene de se libertar dos marinheiros e de se afastar? A esta imagem da fábrica Potilov que se mantém lá em grupo juntou-se outro, não menos imponente, o da ilha dos marinheiros que, nessas horas nocturnas de insónia, prepara-se para apoiar os operários e soldados de Petrogrado. Não, a situação é demasiado evidente. Já não há lugar a hesitações. Trotsky pede pela última vez: talvez se tente obter desta manifestação que ela não seja armada? Não, isso está fora de questão. Uma esquadra de junkers é suficiente para expulsar dezenas de milhares de homens desarmados, como um rebanho de ovelhas. Os soldados e os operários também vão considerar com indignação um tal convite como uma armadilha. A resposta é categórica e convincente. Todos unanimemente decidem chamar no dia seguinte as massas a continuar a manifestação em nome do partido. Zinoviev liberta da sua ansiedade Raskonikov, que está agarrado ao telefone. Logo ali redige-se um apelo aos operários e aos soldados: na rua!

O apelo do comité central para parar a manifestação é redigido; mas é demasiado tarde para o substituir por outro texto. A página em branco da Pravda tornar-se-á amanhã uma prova pesada contra os bolcheviques: evidentemente, assustados no último momento, retiraram o apelo à insurreição; ou então talvez, ao contrário, teriam renunciado ao primeiro apelo para um manifestação pacífica a fim de empurrar o caso até à insurreição? Portanto, a autêntica resolução dos bolcheviques apareceu em panfleto. Este convidava os operários e soldados «a dar a conhecer sua vontade, por uma manifestação pacífica e organizada, aos comités executivos actualmente em sessão.» Não, não é um apelo à insurreição!


Inclusão 24/11/2010