História da Revolução Russa

Léon Trotsky


A arte da insurreição


Tal como numa guerra, as pessoas não fazem um revolução de boa vontade. A diferença está, todavia, no que numa guerra o papel decisivo é o da obrigação; numa revolução, não há obrigação, a não ser a das circunstâncias. A revolução produz-se quando não há outra solução. A insurreição, colocando-se acima da revolução como uma cimeira na montanha dos seus acontecimentos, não pode ser provocada arbitrariamente, como a revolução no seu conjunto. As massas, por várias vezes, atacam e recuam antes de decidir dar o último assalto.

A conspiração é facilmente oposta à insurreição como a empresa concertada de uma minoria diante do movimento elementar da maioria. E portanto: uma insurreição vitoriosa, que não pode ser senão a obra de uma massa destinada a tomar a cabeça da nação, pelo seu significado histórico e pelos seus métodos, é profundamente distinta de um golpe de Estado de conspiradores agindo por detrás das costas das massas.

Portanto, em toda a sociedade de classes, há bastantes contradições para que, nos interstícios, se possa construir uma conspiração. A experiência histórica prova, todavia, que é preciso que a sociedade esteja doente com uma certa gravidade – como em Espanha, em Portugal, na América do Sul – para que a política das conspirações tenha que se alimentar constantemente. No estado puro, a conspiração, mesmo em caso de vitória, só pode substituir no poder diferentes cliques da mesma classe dirigente, ou então, menos ainda: substituições de homens de Estado. A vitória de um regime social sobre outro na história só teve sucesso por uma insurreição de massas. Enquanto que as conspirações periódicas são muitas vezes a expressão do marasmo e da estagnação da sociedade, a insurreição popular, em contra-partida, surge como o resultado de uma rápida evolução precedente, que rompe o velho equilíbrio da nação. As «revoluções» crónicas das repúblicas sul-americanas nada têm em comum com a revolução permanente; pelo contrário, num certo sentido, elas são completamente opostas.

O que acaba de ser dito não significa portanto de forma alguma que a insurreição popular e a conspiração se excluem uma à outra em todas as circunstâncias. Um elemento da conspiração, em tal ou tal medida, entra quase sempre na insurreição. A etapa históricamente condicionada da revolução, a insurreição das massas nunca é puramente elementar. Mesmo tendo eclodido de improvisto para a maioria dos seus participantes, ela é fecundada pelas ideias nas quais os insurrectos vêm uma saída às dificuldades da existência. Mas uma insurreição das massas pode ser prevista e preparada. Ela pode ser organizada antecipadamente. Nesse caso, a conspiração é subordinada à insurreição, ela serve-a, facilita a sua marcha, acelera a sua vitória. Mais elevado é o nível político de um movimento revolucionário, mais séria é a sua direcção, maior é o lugar ocupado pela conspiração na insurreição popular.

É indispensável compreender exactamente a relação entre a insurreição e a conspiração, tanto no que as opõe como no que as completa reciprocamente, e tanto mais que o emprego da palavra «conspiração» tem na literatura marxista um aspecto contraditório, que se trate da empresa independente de uma minoria tomando a iniciativa, ou então da preparação por uma minoria do levantamento da maioria.

A história prova, na verdade, que uma insurreição popular pode vencer, em certas condições, mesmo sem conspiração. Surgindo por um empurrão «elementar» de uma revolta geral, os diversos protestos, manifestações, greves, afrontamentos de rua, a insurreição pode arrastar uma parte do exército, paralizar as forças do inimigo e derrubar o velho poder. Foi assim que aconteceu, até a um certo grau, em Fevereiro de 1917, na Rússia. Houve mais ou menos o mesmo quadro no desenvolvimento das revoluções alemãs e austro-húngaras durante o outono de 1918. Na medida, nesses dois casos, onde, à cabeça dos insurrectos, não havia partido profundamente penetrado dos interesses e desejos da insurreição, a vitória desta devia inevitavelmente transmitir o poder para as mãos desses partidos que, até ao último momento, tinham-se oposto à insurreição.

Derrubar o antigo poder é uma coisa. Tomar o poder nas mãos, é outra. A burguesia, numa revolução, pode amparar-se do poder não porque ela é revolucionária, mas porque ela é a burguesia: ela tem na mão a propriedade, a instrução, a imprensa, uma rede de pontos de apoio, uma hierarquia de instituições. Para o proletariado é outra coisa: desprovido de privilégios sociais que existiriam fora dele próprio, o proletariado insurrecto só pode contar com a sua sombra, a sua coesão, sobre os seus quadros, sobre o seu Estado-maior.

Tal como um ferreiro que não pode segurar com a mão nua um ferro em brasa, o proletários não pode, com as mãos nuas, apoderar-se do poder: ele precisa de uma organização apropriada para essa tarefa. Na combinação da insurreição de massas com a conspiração, na subordinação desta última à insurreição, na organização da insurreição através da conspiração, reside o domínio complicado e pesado da responsabilidade da política revolucionária que Marx e Engels chamavam a «arte da insurreição». Isso pressupõe uma justa direcção geral das massas, uma orientação flexível diante de circunstâncias que mudam, um plano pensado da ofensiva, prudência na preparação técnica e ousadia e dar o golpe.

Os historiadores e os homens políticos chamavam habitualmente insurreição das forças elementares um movimento de massas que, ligado pela sua hostilidade em relação ao antigo regime, não tem visão clara, nem métodos de luta elaborados, nem direcção conduzindo conscientemente à vitória. A insurreição das forças elementares é de boa vontade reconhecida pelos historiadores oficiais, pelo menos pelos democratas, como uma calamidade inevitável cuja responsabilidade recai sobre o antigo regime. A verdadeira causa desta indulgência, é o que as insurreições das forças «elementares» não podem sair do quadro do regime burguês.

Na mesma via circula também a social-democracia: ela não nega a revolução em geral, como catástrofe social, tal como ela não nega os tremores de terra, as erupções vulcânicas, as eclipses do sol e as epidemias de peste. O que ela nega, como «blanquismo» ou, pior ainda, como bolchevismo, é a preparação consciente da insurreição, o plano, a conspiração. Noutros termos, a social-democracia está pronta a sancionar, em atraso, os golpes de Estado que transmitem o poder para as mãos da burguesia, condenando com intransigência ao mesmo tempo os métodos que podem transmitir o poder para o proletariado. Sob uma falsa objectividade se esconde uma política de defesa da sociedade capitalista.

Segundo as suas observações e as sua meditações sobre os fiascos de numerosos levantamentos aos quais ele tomou parte ou testemunhou, Augusto Blanqui deduziu um certo número de regras tácticas sem as quais a vitória da insurreição se torna extremamente difícil, mesmo impossível. Blanqui reclamava a criação a dado momento de destacamentos revolucionários regulares, sua direcção centralizada, um bom abastecimento em munições, uma repartição bem calculada das barricadas, cuja construção seria prevista, e que se defenderia sistematicamente e não episodicamente. Todas essas regras, procedendo dos problemas militares da insurreição, deve, bem entendido, ser inevitavelmente modificadas, ao mesmo tempo que as condições sociais e a técnica militar; mas, elas próprias, não são blanquistas no sentido que se entende pouco mais ou menos entre os alemãs o «golpismo» ou «o aventureirismo» revolucionário.

A insurreição é uma arte e, como toda a arte, ela tem as suas leis. As regras de Blanqui eram as exigências de um realismo de guerra revolucionária. O erro de Blanqui consistia não no seu teorema directo, mas na sua reciprocidade. Do facto que a incapacidade táctica condenava a insurreição ao fiasco, Blanqui deduzia que a observação das regras da táctica insurreccional era capaz, por ela própria, de assegurar a vitória. Foi somente a partir daí que é legítimo opor o blanquismo ao marxismo. A conspiração não substitui a insurreição. A minoria activa do proletariado, mesmo bem organizada que seja, não pode amparar-se do poder independentemente da situação geral do país: nisso, o blanquismo é condenado pela história. Mas somente por isso. O teorema directo conserva a sua força. Na conquista do poder, ao proletariado não lhe basta uma insurreição das forças elementares. É preciso uma organização correspondente, falta-lhe um plano, precisa de uma conspiração. É assim que Lenine coloca a questão.

A crítica de Engels, dirigida contra o fetichismo da barricada, apoia-se sobre a evolução da técnica geral e da técnica militar. A táctica insurreccional do blanquismo respondia ao carácter do velho Paris, de um proletariado a meio composto de artesãos, de ruas estreitas e ao sistema militar de Luis-Filipe. Em princípio, o erro do blanquismo consistia a identificar a revolução com a insurreição. O erro técnico do blanquismo consistia a identificar a insurreição com a barricada. A crítica do marxismo foi dirigida contra os dois erros. Considerando, de acordo com o blanquismo, que a insurreição é uma arte, Engels descobria não somente o lugar secundário da insurreição na revolução, mas o papel declinante da barricada na insurreição. A crítica de Engels nada tinha de comum com uma renuncia aos métodos revolucionários em proveito do puro parlamentarismo, como tentaram de mostrar no seu tempo os filistinos da social-democracia alemã, com o concurso das censura do Hohenzollern. Para Engels, a questão das barricadas continuava a ser dos elementos técnicos da insurreição. Ora, os reformistas tentavam, diante da negação do valor decisivo da barricada, de concluir à negação da violência revolucionária em geral. Era pouco mais ou menos como se, raciocinando sobra a diminuição provável da importância da trincheira na próxima guerra, concluía-se ao derrube do militarismo.

A organização com a ajuda da qual o proletariado pode não somente derrubar o antigo regime, mas substituir-se a ele, são os sovietes. O que mais tarde se torna um assunto de experiência histórica não era, até à insurreição de Outubro, senão um prognóstico teórico, apoiando-se, na verdade, sobre a experiência prévia de 1905. Os sovietes são os órgãos de preparação das massas para a insurreição e, depois da vitória, os órgãos do poder.

Todavia, os sovietes, por eles próprios, não resolvem a questão. Segundo o programa e a direcção, eles podem servir a fins diversos. Um programa é dado aos sovietes pelo partido. Se os sovietes, nas circunstâncias de uma revolução – e, fora da revolução, eles são geralmente impossíveis – apoderando-se de toda a classe, com a excepção das camadas completamente atrasadas, passivas ou desmoralizadas, o partido revolucionário está à cabeça da classe. O problema da conquista do poder não pode ser resolvido senão pela combinação do partido com os sovietes ou com outras organizações de massas equivalendo mais ou menos aos sovietes.

O soviete, tendo à cabeça um partido revolucionário, tende conscientemente e em tempo útil a apoderar-se do poder. Regulando-se pelas variações da situação política e sobre o estado de espírito das massas, ele prepara os pontos de apoio da insurreição, liga os destacamentos de choque pela unidade dos objectivos, elabora antecipadamente o plano da ofensiva e do último assalto: isso significa precisamente introduzir a conspiração organizada na insurreição de massas.

Os bolcheviques, mais de uma vez, muito tempo ainda antes da insurreição de Outubro, tiveram que recusar as acusações dirigidas contra eles pelos seus adversários, que lhes imputavam maquinações conspiratórias e do blanquismo. Ora, ninguém mais que Lenine não levou a luta de forma tão intransigente contra o sistema da pura conspiração. Os oportunistas da social-democracia internacional tomaram mais de uma vez sob sua protecção a velha táctica socialista-revolucionária do terror individual contra os agentes do czarismo, resistindo à crítica implacável dos bolcheviques que opunham à aventura individualista da inteligência o curso para a insurreição das massas. Mas em afastando todas as variedades do blanquismo e da anarquia, Lenine não se inclinava nem um instante diante da força elementar «sagrada» das massas. Ele tinha meditado mais cedo e mais profundamente que outros a relação entre os factores objectivos e subjectivos da revolução, entre o movimento das forças elementares e a política do partido, entre as massas populares e a classe avançada, entre o proletariado e sua vanguarda, entre os sovietes e o partido, entre a insurreição e a conspiração.

Mas se é justo que não se possa convocar à sua vontade um levantamento e que, para a vitória, seja necessário tempo, em tempo útil, organizar a insurreição, mesmo por aí, diante da direcção revolucionária, põe-se o problema de um diagnóstico exacto: é preciso, no momento oportuno, surpreender a insurreição que sobe para completar por uma conspiração. A intervenção obstétrica num parto, ainda se abusaram muito desta imagem, resta ainda a ilustração mais viva de uma intrusão consciente num processo elementar. Herzen acusava outrora o seu amigo Bakunine de ter, em todas as suas iniciativas revolucionárias, invariavelmente tomado o segundo mês de gravidez pelo nono. Quanto a Herzen, ele estava antes de mais disposto a negar a própria gravidez mesmo no nono mês. Em Fevereiro, a questão da data do parto quase que não se colocava, mas na medida onde a insurreição tinha rebentado de «forma inesperada», sem direcção centralizada. Mas é precisamente por isso que o poder passou não para aqueles que realizaram a insurreição, mas para os que a tinha parado. Para a nova insurreição era outra coisa: ela foi conscientemente preparada pelo partido bolchevique. O problema: utilizar o momento propício para dar o sinal da ofensiva, caía por aí sobre o Estado-maior bolchevista.

A palavra «momento» não deve ser levada à letra, como um dia e uma hora determinadas: mesmo para os partos, a natureza concede diferenças de tempo consideráveis cujos limites não interessam somente a arte de parir, mas também a causa do direito de sucessão. Entre o momento onde a tentativa de provocar um levantamento deve ainda inevitavelmente mostrar-se prematuro e levar a um aborto revolucionário, e o momento onde a situação favorável deve já ser considerada como irremediavelmente perdia, um certo período da revolução decorre – ele pode medir-se em algumas semanas, por vezes em alguns meses – no decorrer do qual a insurreição pode realizar-se com maior ou menor grande possibilidade de sucesso. Discernir este período relativamente curto e escolher a seguir um momento determinado, no sentido preciso do dia e da hora, para dar o golpe final, é para a direcção revolucionária a tarefa de pesada responsabilidade. Pode-se chamar um problema nodal porque ele associa a política revolucionária à técnica da insurreição: é preciso lembrar que a insurreição, tal como a guerra, é o prolongamento da política por outros meios?

A intuição e a experiência são necessárias à direcção revolucionária, tal como em todos os outros domínios da arte criadora. Mas isso não basta. A arte do mágico pode também, com sucesso, repousar sobra a intuição e a experiência. A arte do curador político não basta todavia senão para as épocas e períodos onde predomina a rotina. Numa época de grandes reviravoltas históricas não tolera as obras dos mágicos. A experiência, mesmo inspirada pela intuição, não basta. É preciso um método materialista permitindo descobrir, por detrás das sombras chinesas dos programas e das palavras de ordem, o momento real dos corpos da sociedade.

As premissas essenciais duma revolução residem no que o regime social existente se encontra incapaz de resolver os problemas fundamentais do desenvolvimento da nação. A revolução só se torna todavia possível no caso onde, na composição da sociedade, se encontra uma nova classe capaz de tomar a cabeça da nação para resolver os problemas colocados pela história. O processo de preparação da revolução consiste em tarefas objectivas, marcadas pelas contradições da economia e das classes, abrindo caminho nas consciências vivas das massas humanas, modificando os aspectos e criando novas relações de força política.

As classes dirigentes, resultando da sua incapacidade manifesta a tirar o país do beco sem saída, perdem a fé nelas próprias, os velhos partidos decompõem-se, uma luta de morte desenvolve-se entre os grupos e cliques, as esperanças são transferidas para o milagre ou o taumaturgo. Tudo isso constitui uma das premissas política da insurreição, extremamente importante, embora passiva.

Uma hostilidade furiosa em relação à ordem estabelecida e a intenção de arriscar esforços heróicos, em abandonar as vítimas, para arrastar o país numa via de renovação tal é a nova consciência política das classe revolucionária que constitui a principal premissa táctica da insurreição.

Os dois campos principais – os grandes proprietários e o proletariado – não representam portanto, no total, toda a nação. Entre eles instalaram-se largas camadas da pequena burguesia, utilizando todas as cores do prisma económico e político. O descontentamento das camadas intermediárias, suas desilusões frente à política da classe dirigente, sua impaciência e sua revolta, sua disposição a apoiar a iniciativa ousadamente revolucionária do proletariado constituem a terceira condição política da insurreição, em parte passiva na medida onde neutraliza as cimeiras da pequena burguesia, em parte activa na medida onde ela leva as bases a lutar directamente, lado a lado com os operários.

A reciprocidade condicional dessas premissas é évidente: mais o proletariado age determinado e com segurança, e mais ele tem a possibilidade de arrastar as camadas intermediárias, mais a classe dominante é isolada, mais a desmoralização se agrava nela. E, em contrapartida, a desagregação dos dirigentes vai a favor dos interesses da classe revolucionária.

O proletariado não pode, para a insurreição, impregnar-se da certeza indispensável das suas próprias forças senão no caso que, diante dele, se descobre uma clara perspectiva, que se ele tem a possibilidade de verificar activamente as relações de forças que mudam a seu proveito, se ele se sente acima dele uma direcção perspicaz, firme e audaciosa. Isto nos leva à condição da conquista do poder: ao partido revolucionário, como vanguarda estreita unida e temperada da classe.

Graças à combinação favorável das condições históricas, tanto interiores como internacionais, o proletariado russo encontra à sua cabeça um partido excepcionalmente dotado de clareza política e de uma temperamento revolucionário sem exemplo: é isso somente que permite a uma classe jovem e pouco numerosa em realizar uma tarefa histórica de envergadura nunca vista. Em geral, como testemunha a história – a da Comuna de Paris, das revoluções alemãs e austríacas de 1918, os sovietes da Hungria e da Baviera, da revolução italiana de 1919, da crise alemã de 1923, a revolução chinesa dos anos 1925-1927, da revolução espanhola de 1931 – o elo mais fraco da cadeia das condições tem sido até ao presente o do partido: o mais difícil para a classe operária é de criar uma organização revolucionária que esteja à altura das suas tarefas históricas. Nos países mais velhos e mais civilizados, forças consideráveis trabalham para enfraquecer e decompor a vanguarda revolucionária. Uma parte importante desse trabalho vê-se na luta da social-democracia contra o «blanquismo», denominação sob a qual fazem aparecer a essência revolucionária do marxismo.

Se numerosas têm sido as grandes crises sociais e políticas, a coincidência de todas as condições indispensáveis para uma insurreição proletária vitoriosa e estável só está à vista até ao presente na história uma só vez: em Outubro de 1917, na Rússia. Uma situação revolucionária não é eterna. De todas as premissas de uma insurreição, a menos estável é o estado de espírito da pequena burguesia. Em tempo de crises nacionais, esta marcha atrás da classe que, não somente pela palavra, mas pela acção, lhe inspira confiança. Capaz de elãs impulsivos, mesmo de delírios revolucionários, a pequena burguesia não tem resistência, ele perde facilmente coragem em caso de insucesso e, as suas ardentes esperanças, cai na desilusão. São precisamente as mudanças violentas e rápidas dos seus estados de espírito que dão uma tal instabilidade a cada situação revolucionária. Se o partido proletário não é suficientemente resoluto para transformar em tempo útil a espera e as esperanças das massas populares numa acção revolucionária, o fluxo é logo substituido pelo refluxo: as camadas intermediárias voltam os seus olhares da revolução e procuram um salvador no campo oposto. Tal como a maré cheia o proletariado arrasta atrás de si a pequena burguesia, no momento de refluxo a pequena burguesia arrasta camadas importantes do proletariado. Tal é a dialéctica das vagas comunistas e fascistas na evolução política da Europa do pós-guerra.

Tentando apoiar-se sobre o aforismo de Marx: nenhum regime desaparece da cena antes de ter esgotado todas as suas possibilidades, os mencheviques negavam que se admitisse lutar pela ditadura do proletariado na Rússia atrasada onde o capitalismo ainda estava longe de se esgotar completamente. Nesse raciocino, havia dois erros, e cada um era fatal. O capitalismo não é um sistema nacional, ele é mundial. A guerra imperialista e as suas consequências mostraram que o regime capitalista vazou-se sobre o sistema mundial. A revolução na Rússia foi a quebra do elo mais fraco no sistema capitalista mundial.

Mas a falsidade da concepção menchevique também se revelou do ponto de vista nacional. Manter-se numa abstracção económica, pode-se, admitamos, afirmar que o capitalismo na Rússia não tinha esgotado as suas possibilidades. Mas os processos económicos têm lugar noutro lado para além das esferas etéreo, eles produzem-se num meio histórico concreto. O capitalismo não é uma abstracção: é um sistema vivo das relações de classes que necessita de todo um poder de Estado. Que a monarquia, sob a protecção da quase formou o capitalismo russo, tendo esgotado as suas possibilidades, os mencheviques não as negavam. A revolução de Fevereiro tentou instituir um regime de Estado intermediário. Seguimos passo a passo a história: nalguns oito meses, esse regime estava completamente esgotado. Qual ordem governamental podia, nessas condições, assegurar o desenvolvimento ulterior do capitalismo russo?

«A república burguesa, defendida somente pelos socialistas de tendências moderadas, que não encontravam mais o apoio das massas … não podia manter-se. Todo o essencial nela estava corroído, só lhe ficou a casca.» Esta apreciação justa pertence a Miliokov. A sorte do sistema corroído devia ser segundo ele a mesmo que a da monarquia czarista: «Um e o outro tinham preparado o terreno para a revolução, e outro, no dia da revolução, não tinham encontrado um só defensor.» Desde Julho-Agosto, Miliokov caracterizava a situação por uma alternativa entre dois nomes: Kornilov ou Lenine. Mas Kornilov já tinha tentado o seu golpe, se terminando numa lamentável derrota. Para o regime de Kerensky, de qualquer forma, não lhe restava mais lugar. Se diversos foram os estados de espírito, testemunha Sokhanov, «só havia unidade no ódio contra o kerenskysmo». Tal como o monarquia czarista se tinha tornado finalmente impossível diante das cimeiras da nobreza e mesmo dos grandes-duques, o governo de Kerensky tornou-se odiado mesmo pelos inspiradores directos do regime. Nesse descontentamento geral, nesse mal-estar político de todas as classes reside um dos mais importantes síntomas de uma situação revolucionária chegada à maturidade. Foi assim que cada músculo, cada nervo, cada fibra do organismo são intoleravelmente tensos na véspera do grande abcesso que vai ser exprimido.

A resolução do Congresso bolchevique de Julho, que prevenia os operários contra os conflitos prematuros, indicava ao mesmo tempo que era preciso aceitar a batalha «quando a crise de toda a nação e o grande levantamento das massas criariam as condições favoráveis para a vinda dos elementos pobres das cidades e do campo para a causa dos operários». Esse momento chegou em Setembro-Outubro.

A insurreição estava no direito de contar a partir de então com o sucesso, porque ela podia apoiar-se sobre uma autêntica maioria popular. Não era necessário bem entendido, compreender isso formalmente. Se, sobre a questão da insurreição se abriu previamente um referendo, teria dado resultados extremamente contraditórios e indecisos. A disposição íntima em apoiar a insurreição não se identifica com a capacidade de se dar claramente conta do avanço da necessidade da insurreição. Além disso, as respostas dependeriam, em grande parte, da maneira de como colocar a questão, do órgão que dirigiria o inquérito, ou, mais simplesmente falando, da classe que se encontrasse no poder.

Os métodos da democracia têm os seus limites. Pode-se questionar todos os viajantes de um comboio para saber qual é o tipo de vagão que lhes convém mais, mas não se pode questioná-los todos para saber se é preciso travar em pleno movimento do comboio que está em vias de descarrilar. Ou, se a operação de segurança é realizada correctamente e num dado tempo, estaríamos certos da aprovação dos viajantes.

As consultas parlamentares do povo têm todas lugar ao mesmo tempo; todavia, as diferentes camadas populares, no tempo da revolução, chegam a uma e só conclusão com o inevitável atraso, por vezes muito pequeno, um sobre o outro. Enquanto que a vanguarda ardia de impaciência revolucionária, as camadas atrasadas começavam apenas a se levantar. Em Petrogrado e em Moscovo, todas as organizações de massas estavam sob a direcção dos bolcheviques; na província de Tambov, que contavam mais de três milhões de habitantes, isto é um pouco menos que as duas capitais juntas, uma fracção bolchevique no Soviete só surgiu pela primeira vez um pouco antes da insurreição de Outubro.

Os silogismos do desenvolvimento objectivo não coincidiam de forma nenhuma – dia a dia – com os silogismos da reflexão das massas. E quando uma grande decisão prática, pelo caminhar das coisas, se torna urgente, ela permite menos de que um referendo. As diferenças de nível e de estado de espírito das diferentes camadas populares são reduzidas pela acção: os elementos da vanguarda arrastam os hesitantes e isolam os resistentes. A maioria não se conta, ela conquista-se. A insurreição surge precisamente quando a questão das contradições só se mostram pela via da acção directa.

A impotência em tirar da sua guerra contra os proprietários nobres as deduções políticas necessárias, o campesinato, todavia, pelo facto mesmo do seu levantamento agrário, se juntou previamente à insurreição das cidades, chamava-o e exigia-o. Ela exprimia a sua vontade não por um boletim branco, mas pelo incêndio: era um referendo mais sério. Nos limites onde o apoio do campesinato era indispensável para estabelecer a ditadura soviética, ele estava lá. «Esta ditadura – respondia Lenine aos indecisos – daria a terra aos camponeses e todos os poderes aos comités de camponeses nas localidades: como se pode a menos de ser louco, duvidar que os camponeses apoiariam esta ditadura? » Para que os soldados, os camponeses, as nacionalidades oprimidas, vagueando na tormenta dos boletins eleitorais, conhecessem os bolcheviques em acção, era preciso que os bolcheviques tomassem o poder.

Qual devia ser portanto a relação de forças permitindo ao proletário apoderar-se do poder? «No momento decisivo, sobre uma questão decisiva, é preciso ter uma esmagadora preponderância das forças, escrevia Lenine mais tarde, explicando a insurreição de Outubro; esta lei dos sucessos militares é também a lei do êxito político, sobretudo nesta guerra escarnecida das classes que se chama a revolução. As capitais ou melhor os grandes centros comerciais e industriais … decidem em grande parte dos destinos políticos do povo, bem entendido com a condição que os centros sejam apoiados pelas forças locais, rurais, suficientes, mesmo se o apoio não chega logo.» Nesse sentido dinâmico, Lenine falava da maioria do povo e indicava o único sentido real do conceito de maioria.

Os adversários democratas se consolavam pensando que o povo que seguia os bolcheviques eram somente a matéria-prima, o barro maleável da história: os moldes seriam democratas, em colaboração com os burgueses instruídos. «Essa gente não vêm – perguntava o jornal dos mencheviques que nunca o proletariado e a guarnição de Petrogrado não tinham sido tão isolados de todas as outras camadas sociais?» A infelicidade do proletariado e da guarnição consistia em que eles estavam «isolados» das classes as quais eles estavam dispostos a retirar o poder.

Podia-se, na realidade, contar seriamente com a simpatia e o apoio das massas ignorantes da província e da frente? O bolchevismo deles, escrevia Sukhanov, com desdém, «não era outra coisa senão ódio pela coligação e o desejo de obter a terra e a paz». Como se isso não fosse suficiente! O ódio da coligação indicava um esforço para retirar o poder à burguesia. A cobiça da terra e da paz era um programa grandioso que os camponeses e soldados se dispunham a realizar sob a direcção dos operários. A nulidade dos democratas, mesmo daqueles que estavam mais à esquerda, partia da falta de confiança dos cépticos «instruídos» em relação às massas obscuras que tomavam os fenómenos sem entrar em detalhes e nuanças. Uma atitude intelectual, falsamente aristocrata, desdenhosa em relação ao povo , era estranha ao bolchevismo, contrário à sua natureza. Os bolcheviques não eram homens de mãos brancas, dos amigos do povo trabalham em escritórios, pedantes. Eles não tinham medo das camadas atrasadas que, pela primeira vez, levantavam-se da escumalha. Os bolcheviques tomavam o povo tal que tinha feito a história, tal que ele estava destinado a realizar a revolução. Os bolcheviques consideravam que a sua missão era de se colocar à cabeça desse povo. Contra a insurreição, «todos» se pronunciavam, com a excepção dos bolcheviques. Mas, os bolcheviques, eram o povo.

A força política essencial da insurreição de Outubro residia no proletariado, na composição do qual o primeiro lugar estava ocupado pelos operários de Petrogrado. Na vanguarda da capital se mantinha, por outro lado, o distrito de Vyborg. O plano de insurreição tinha escolhido esse bairro essencialmente proletário como base de partida para o desenvolvimento da ofensiva.

Os conciliadores de todas as nuanças, a começar por Martov, tentaram, depois da insurreição, de representar o bolchevismo como uma tendência de simples soldados. A social democracia europeia apoderou-se alegremente desta teoria. E aí, fechavam os olhos aos factos históricos fundamentais, a saber: que o proletariado tinha sido o primeiro a passar do lado dos bolcheviques; que os operários de Petrogrado mostrariam o caminho aos operários de todo o país; que as guarnições e a frente continuariam muito mais tempo a apoiar os conciliadores; que os socialistas-revolucionários e os mencheviques instituiriam no sistema dos sovietes toda a especie de privilégios para os soldados, em detrimento dos operários, lutavam contra o armamento destes, excitavam contra eles os soldados; que somente sob a influência dos operários se produziria uma reviravolta nas tropas; que a direcção dos soldados no momento decisivo se encontrou nas mãos dos operários; enfim um ano mais tarde, a social-democracia na Alemanha, segundo o exemplo dos seus correlegionários russos, apoiavam-se sobre os soldados na luta contra os operários.

Perto do outono, os conciliadores de direita tinham já definitivamente perdido a possibilidade de falar nas fábricas e quartéis. Mas os da esquerda tentavam ainda convencer as massas que a insurreição era uma loucura. Martov que combatia a ofensiva da contra-revolução em Julho, tinha encontrado um caminho para a consciência das massas, voltou a uma obra sem esperança. «Nós não podemos prometer – reconhecia ele próprio, no 14 de Outubro, em sessão do comité executivo central – que os bolchevique nos ouvirão». Contudo, ele considerava que era seu dever advertir as «massas». Ora, as massas queriam acção e não lições de moral. Mesmo no caso onde eles escutavam com uma paciência relativa o aviso bem conhecido, elas continuavam, segundo a confissão de Mstislavsky, «a pensar da mesma maneira como antes». Sukhanov conta que, sob um céu chuvoso, procurou convencer os operários das fábricas Putilov da possibilidade de arranjar a coisa sem insurreição. Ele foi interrompido por vozes impacientes. Escutavam-no dois ou três minutos e interrompiam-no outra vez. «Após várias tentativas, abandonei. A coisa não funcionava … e a chuva nos molhava cada vez mais.» Sob o céu pouco clemente de Outubro, o pobres democratas de esquerda, segundo as suas próprias descrições, tinham ar de frangos molhados.

A palavra política favorita dos adversários «de esquerda» da insurreição, e havia igualmente nos meios bolcheviques, consistia em notar a ausência na base de élan combativo. «O estado de espírito dos trabalhadores e das massas de soldados – escreviam Zinoviev e Kamenev, no 11 de Outubro – não lembra de forma alguma mesmo os estados de espírito que existia antes do 3 de Julho.» Isto não era desprovido de motivos; existia, no proletariado de Petrogrado, um certo desânimo no seguimento de uma longa espera. Começavam, mesmo os bolcheviques, desesperar: eles também iriam decepcioná-los? No 16 de Outubro, Rakhia, um dos mais combativos bolcheviques de Petrogrado, de origem finlandesa, dizia na conferência do comité central: «Evidentemente, a nossa palavra de ordem começa já a atrasar-se, porque duvidam que nós realizemos o que prometemos.» Mas a lassitude da espera, que se parecia com a lentidão, só durou até ao primeiro sinal de combate.

A primeira tarefa de toda a insurreição é de levar a ela as tropas. Para isso servem, principalmente, a greve geral, as demonstrações de massas, os afrontamentos de rua, os combates de barricadas. A exclusiva originalidade da insurreição de Outubro, em lado nenhum observado com um grau assim elaborado, é por isso que, graças a um feliz concurso de circunstâncias, a vanguarda proletária consegui levar consigo a guarnição da Capital mesmo antes do início do levantamento; não somente a levar consigo mas a consolidar pela organização a sua conquista, graças à conferência da guarnição. Não se pode compreender o mecanismo da insurreição de Outubro sem estar inteiramente ao corrente do problema mais importante, que se prestava dificilmente a um cálculo prévio, tinha sido, essencialmente, resolvido em Petrogrado antes do início da luta armada.

Isso não significa, todavia, que a insurreição fosse superflua. Do lado dos operários alinhavam, na verdade, a esmagadora maioria da guarnição; mas a minoria estava contra os operários, contra a insurreição, contra os bolcheviques. Esta pequena minoria compunha-se de elementos os mais qualificados do exército: o corpo dos oficiais, os junkers, os batalhões de choque, talvez mesmo os cossacos. Não se podiam conquistar politicamente esses elementos: era preciso vencê-los. Na sua última parte, o problema da insurreição que entrou na história sob o signo de Outubro tinha, assim, um carácter puramente militar. A solução devia vir, na última etapa, das espingardas, das baionetas, das metralhadoras, talvez mesmo dos canhões. Foi nessa via que conduzia o partido dos bolcheviques.

Quais eram as forças militares do conflito que se preparava? Boris Sokolov, que dirigia o trabalho militar do partido socialista-revolucionário, conta que, no período que procedeu a insurreição, «todas as organizações de partidos nos regimentos, com a excepção dos bolcheviques, tinham-se deslocado e as circunstâncias não era de forma alguma favoráveis à formação de novas. A opinião dos soldados era de uma maneira bastante nítida bolchevizante, mas o seu bolchevismo era passivo e eles estavam desprovidos de qualquer propensão a agir activamente pelas armas». Sokolov não esquece de acrescentar: «Bastaria um ou dois regimentos absolutamente devotados e susceptíveis de combater para manter em respeito toda a guarnição.» Decididamente, todos, desde de generais da monarquia até aos intelectuais «socialistas», a todos faltavam, contra a revolução proletária, «de um ou dois regimentos». Mas, o que é verdade, é que a guarnição, na sua imensa maioria profundamente hostil ao governo, não estava portanto em situação susceptível de combater e não alinhavam ao lado dos bolcheviques. A causa estava na ruptura definitiva entre a antiga estrutura militar das tropas e a nova estrutura política. A espinha dorsal de um elemento da de tropas combativas é constituida pelo comando. Este estava contra os bolcheviques. Todavia, não somente eles não sabiam comandar, mas, na maior parte dos casos, eles não sabiam servir-se das armas. A massa dos soldados na era homogénea. Os elementos activos, combativo, formavam, como sempre, a minoria. A maioria dos soldados simpatizantes aos bolcheviques, votavam por eles, elegiam-os, mas não esperavam deles uma solução. Os elementos hostis aos bolcheviques nas tropas eram demasiado insignificantes para ousarem qualquer iniciativa. A opinião política da guarnição era assim excepcionalmente favorável a uma insurreição. Mas, no ponto de vista combativo, ela não era muito importante, já se sabia.

Todavia, não convinha de forma alguma deduzir a guarnição dos cálculos das operações militares. Milhares de soldados prontos a lutarem do lado da revolução estavam disseminados por uma massa mais passiva e, precisamente assim, a arrastavam em certa medida. Diversos contingentes, de uma composição com mais êxito, mantinham a disciplina e a sua capacidade de combate. Acontece que sólidas redes de revolucionários em todas as formações. No sexto batalhão de reserva que contava cerca de dez mil homens, sobre cinco companhias, a primeira distingua-se sempre, e tendo adquirido desde do inicio da revolução, a reputação de ser bolchevista, e ela se mostrou digna durante as Jornadas de Outubro. Em média, na verdade, os regimentos da guarnição não existiam como regimentos, o mecanismo da sua direcção estava avariado, eles não eram capazes de grande esforço militar; mas mesmo assim eram aglomerações de homens armados, cuja maioria já tinha recebido o baptismo do fogo. Todos os contingentes estavam ligados por um e só e mesmo estado de espirito: derrubar o mais cedo possível Kerensky, voltar para casa e proceder às reformas agrárias. Assim, a guarnição, completamente desagregada, teve mais uma vez de unir fileiras durante as Jornadas de Outubro e desencadear um imponente ruído de armas antes de se dissolver definitivamente.

Que força constituíam, do ponto de vista militar, os operários de Petrogrado? Esta questão diz respeito a Guarda vermelha. Chegou o momento de falar mais em detalhe: ela é destinada pelas próximas jornadas a comprometer-se na grande arena da história.

Voltando às suas tradições de 1905, a Guarda renasceu com a revolução de Fevereiro e partilhou logo as vicissitudes da sorte desta. Kornilov, então comandante em chefe da região militar de Petrogrado, afirmava que os depósitos da artilharia tinham deixado escapar, durante os dias do derrube da monarquia, trinta mil revolveres e quarenta mil espingardas. Além disso, uma quantidade considerável de armas caiu nas mãos do povo no seguimento do desarmamento da polícia e graças aos regimentos simpatizantes. Quando se exigiu a restituição das armas, ninguém respondeu. A revolução ensina que é preciso fazer atenção à espingarda. Os operários organizados só puderam todavia procurar uma pequena parte desta pechincha.

Durante os quatro primeiros meses, a questão da insurreição não se colocava de nenhuma forma para operários. O regime democrático da dualidade de poderes abria aos bolcheviques a possibilidade de conquistar a maioria dos sovietes. As companhias (drujiny) operárias de franco-atiradores constituíam um dos elementos da milícia democrática. Mas tudo isso era antes de mais na forma em vez do conteúdo. Um fuzil nas mãos de um operário significava um outro princípio histórico diferente daquele nas mãos de um estudante.

O facto que os operários detinham armas perturbava as classes possuidoras logo no início, dado que assim as relações de forças eram bruscamente viradas para as fábricas. Em Petrogrado, onde o aparelho de Estado, apoiado pelo comité central executivo, representava no princípio uma força indubitável, a milícia operária ainda não parecia ameaçadora. Mas, nas regiões industriais da província, o reforço da guarda operária indicava um transtorno de todas as relações, não somente no interior da empresa, mas também nos arredores. Os operários armados destituíam o contra-mestres, os engenheiros, e faziam prisões. Na base de uma decisão das assembleias de fábrica, os guardas vermelhos eram muitas vezes pagos pelos fundos das empresas. No Ural, onde as ricas tradições da luta dos partidários de 1905, as companhias de franco-atiradores operários estabeleciam a ordem sob a direcção de velhos militantes. Os operários armados liquidaram quase imperceptivelmente o poder oficial, substituindo-lhe os órgãos dos sovietes. A sabotagem praticado pelos proprietários e os administradores impunha aos operários o cargo de proteger as empresas: máquinas, armazéns, reservas de carvão e de matérias primas. Os papéis estavam trocados. O operários cerrava os punhos sobre a sua espingarda para defender a fábrica na qual ele via a fonte da sua força. Assim, os elementos da ditadura operária, nas empresas e nos distritos se fixavam antes mesmo que o proletariado no seu conjunto tomasse o poder de Estado.

Reflectindo como sempre as apreensões dos proprietários, os conciliadores opunham-se com todas as suas forças ao armamento dos operários da capital, reduzindo-o ao mínimo. Segundo Minitchev, todo o armamento do distrito de Narva se compunha «de uma quinzena de espingardas e alguns revólveres». Na cidade, entretanto, multiplicavam-se os assaltos e os actos de violência. De todas as partes vinham rumores alarmantes anunciadores de novas perturbações. Na véspera da manifestação de Julho, esperava-se ver o distrito incendiado. Os operários procuravam armas, batendo a todas as portas e, às vezes, arrombando-as.

Da manifestação do dia 3 de Julho, os operários de Putilov trouxeram um troféu: uma metralhadoras com cinco caixas de fitas cargadores. «Nós estávamos felizes como crianças» - conta Minitchev. Algumas fábricas estavam melhor armadas. Segundo Litchkov, os operários da sua fábrica possuíam oitenta espingardas e vinte grandes revólveres. Toda uma riqueza! Pelo Estado-maior da Guarda vermelha eles obtiveram duas metralhadoras; uma foi instalada num refeitório, outra no celeiro.«Nosso chefe – conta Litchkov - era Kotcherovsky, e os seus próximos colaboradores eram Tomtchak, morto pelos Guardas brancos durante durante as Jornadas de Outubro sob Tsarkoie-Selo e Efimov, fusilado pelas bandas dos Brancos. «Essas linhas parcimoniosas permitiam lançar um golpe de vista no interior do laboratório das fábricas onde se formavam os quadros da insurreição de Outubro e o futuro Exército vermelho, onde se seleccionavam, se habituavam a comandar, se temperavam os Tomtchak, os Efimov, centenas e milhares de operários anónimos que, tendo conquistado o poder, defenderam corajosamente contra o inimigo e caiam, a seguir, sobre todos os campos de batalha.

Os acontecimentos de Julho modificavam imediatamente a situação da Guarda vermelha. O desarmamento dos operários efectuou-se já abertamente, não por persuasão, mas pelo emprego da força. Com a promessa de entregar as armas, os operários só entregaram sucata. Tudo o que é valioso é cuidadosamente escondido. As espingardas são distribuidas aos membros seguros do partido. As metralhadoras, untadas de gordura, são enterradas. Os destacamentos da Guarda passam à clandestinidade, ligando-se mais ainda aos bolcheviques.

A tarefa do armamento operário era primitivamente concentrada nas mãos dos comités de fábrica e dos comités do distrito do partido. Restabelecendo-se depois do esmagamento de Julho, a organização militar dos bolcheviques, que antes só tinham trabalhado na guarnição e na frente, ocupou-se pela primeira vez de instruir a Guarda vermelha dando-lhes instrutores e, em certos casos, armas. A perspectiva da insurreição armada indicada pelo partido dispõe imperceptivelmente os operários avançados a um novo destino da Guarda vermelha. Já não é mais a milícia das fábricas e dos bairros operários, são os quadros do futuro exército da insurreição.

Em Agosto, os incêndios, nas fábricas e oficinas, tornaram-se frequentes. Na sucessão das crises, cada uma é precedida de uma convulsão da consciência colectiva que envia para a frente dela uma onda alarmante. Os comités de fábrica trabalhavam intensamente na protecção das empresas contra os atentados. Os fuzis que tinham sido escondidos saem. O levantamento de Kornilov legaliza definitivamente a Guarda vermelha. As companhias operárias inscrevem cerca de vinte e cinco mil homens que na realidade não se podem, longe disso, armar com todos os fuzis, parcialmente também metralhadoras. Da fábrica de munições de Schlusselburg, os operários trouxeram, pelo Neva, uma barca cheia de granadas e de explosivos: contra Kornilov! O Comité executivo central dos conciliadores afasta esse dom dos «gregos». Os homens da Guarda vermelha de Vyburgo distribuíram, durante a noite, essas prendas perigosas nos bairros.

«A instrução no que respeita a arte de se servir de uma espingarda, que teve lugar antes nas barracas e nos alojamentos – conta o operário Skorinko – fazia-se agora a céu aberto, nos jardins, nas avenidas». «A oficina transforma-se em lugar de armas - diz o operário Rakitov, nas suas Memórias. Diante dos tornos, os fresadores têm a sacola à bandoleira, a espingarda sobre a máquina.» Logo, na oficina onde se fabricam as bombas, todos inscreviam-se na Guarda, salvo os velhos socialistas-revolucionários e os mencheviques. Segundo o sinal da sirene, todos se alinham no pátio para o exercício. «Lado a lado, o operário barbudo e o pequeno aprendiz, todos os dois escutam atenciosamente o instrutor … » Então se deslocavam definitivamente as antigas tropas do czar, nas fábricas lançavam-se as bases do futuro Exército vermelho.

Desde do perigo representado por Kornilov foi ultrapassado, os conciliadores meteram-se a diminuir a execução dos seus compromissos: para trinta mil operários de Putilov, entregaram um total de trezentas espingardas. Logo pararam completamente o fornecimento de armas: o perigo deixava de ser da direita, mas da esquerda; devia-se procurar protecção não no proletariado mas nos junkers.

A falta de objectivo prático imediato e a insuficiência do armamento provocaram um refluxo de operários deixando a Guarda vermelha. Mas isso só foi uma curta pausa. Os quadros essenciais tinham tido o tempo de se ajustar em cada empresa. Entre os diferentes companhias operárias se estabeleceram sólidas ligações. Os quadros sabem por experiência que eles têm sérias reservas, as quais, na hora do perigo, podem ser erguidas.

A passagem do Soviete para as mãos dos bolcheviques modificou radicalmente a situação da Guarda vermelha. Anteriormente perseguida ou tolerada, ela torna-se um órgão oficial do Soviete que prolonga já o braço em direcção do poder. Os operários procuram constantemente armas e só pedem ao Soviete uma autorização. Desde do fim de Setembro, sobretudo desde do 10 de Outubro, os preparativos da insurreição são abertamente actualizados. Um mês antes do levantamento, em várias dezenas de fábricas e oficinas de Petrogrado, entregam-se intensamente ao exercício militar, principalmente ao tiro. Cerca de meados de Outubro, aumenta o interesse pelo manejar das armas. Em centenas de empresas, quase todos se inscrevem nas companhias.

Os operários reclamam cada vez mais impacientemente armas ao soviete, mas há infinitamente menos espingardas que as mãos estendidas para as receber. «Eu vinha todos os dias a Smolny – conta o engenheiro Kozmine – eu via como, antes e depois da sessão do Soviete, os operários e os marinheiros aproximavam-se de Trotsky, oferecendo ou pedindo armas, dando conta da distribuição dessas armas e colocando questões: Quando começam então? A impaciência era enorme ...»

Formalmente, a Guarda vermelha continua independente dos partidos. Mas, mais se caminha para a solução, mais os bolcheviques são levados para o primeiro plano; eles constituem o núcleo de cada companhia, eles têm entre as mãos o aparelho de comando, a ligação como as outras empresas e distritos. Os operários sem partido e os socialistas-revolucionários de esquerda seguem os bolcheviques.

Todavia, ainda agora, na véspera da insurreição, as fileiras da Guarda vermelha ainda são pouco numerosas. No 16, Uritsky, membro do Comité central bolchevique, considerava que o exército operário de Petrogrado tinha quarenta mil baionetas. Esse número é sobretudo exagerado. Os recursos de armamento continuavam ainda muito limitados: qualquer que fosse a fraqueza do governo, não se podia apoderar dos arsenais de outra forma senão pela via da insurreição.

No 22, teve lugar a conferência da Guarda vermelha de toda a cidade: uma centena de delegado representavam cerca vinte mil combatentes. O número não deve ser tomado muito a sério: os inscritos não se mostram todos activos; em contra-partida, nos momentos de perigo, os voluntários afluíam em grande número nos destacamentos. Os estatutos adoptados no dia depois pela conferência definiam a Guarda vermelha como «a organização das forças armadas do proletariado para combater a contra-revolução e defender as conquistas da revolução». Notemos isso: vinte e quatro horas antes da insurreição, o problema é definido nos termos de uma defensiva e não de uma ofensiva.

A formação de base é um pelotão; quatro pelotões constituem um piquete; três piquetes formam uma companhia; três companhias – um batalhão. Com o comando e os contingentes especiais, o batalhão conta mais de quinhentos homens. Os batalhões de distrito constituem um destacamento. Nas grandes fábricas como as de Putilov, criaram-se destacamentos autónomos. As equipas especiais de técnicos – sapadores, automobilistas, telegrafistas, metralhadores, artilheiros, são alistados nas empresas respectivas e adjuntas aos destacamentos de infantaria, ou então operam independentemente, seguindo o carácter da tarefa apresentada. Todo o comando é electivo. Ainda não há nenhum risco: todos aqui são voluntários e todos se conhecem uns aos outros.

Os operários criam destacamentos de ambulâncias. A fábrica de material para os hospitais militares, anuncia-se cursos de enfermagem. «Em quase todas as fábricas – escreve Tatiana Graf – já há serviços regulares de operárias, trabalhando nas ambulâncias, com material enfermeiro indispensável. «A organização é extremamente pobre em recursos pecuniários e técnicos. Pouco a pouco, os comités de fábrica enviam materia para as ambulâncias e os corpos francos. Durante as horas da insurreição, as fracas células se desenvolvem rápidamente; elas encontram logo à sua disposição consideráveis recursos técnicos. No dia 4, o soviete de bairro de Vyborg prescreve o seguinte: «Requisitar imediatamente todos os automóveis … Fazer o inventários de todo o material de cuidados médicos para as ambulâncias e estabelecer serviços de guarda nestas últimas».

Um número cada vez maior de operários sem partido vinha fazer o exercício de tiro e manobra. O número de corpos da guarda aumentava. Nas fábricas, a facção era assegurada dia e noite. Os estados-maiores da Guarda vermelha se instalava nos locais mais espaciosos. Na fábrica de munições, no 23, procedeu-se ao exame dos conhecimentos dos guardas vermelhos. Um menchevique tendo tentado falar contra o levantamento, a sua tentativa foi afogada numa tempestade de indignação: basta, o tempo de discussão passou! O movimento é irresistível, ele apodera-se mesmo dos mencheviques. Eles «alistam-se na Guarda vermelha – conta Tatiana Graf – fazem parte de todos os serviços encomendados e mostram mesmo iniciativa». Skorinko descreve como, no dia 23, fraternizaram no destacamento, com os bolcheviques, os socialistas-revolucionários e os mencheviques, os jovens e os velhos, e como ele próprio, Skorninko, beijou com alegria o seu pai, operário na mesma fábrica. O operário Peskovoi conta: no destacamento armado «havia jovens operários, de cerca de dezasseis anos, e velhos indo para a cinquentena». A diferença das idades acrescentava «ardor e espírito combativo».

O bairro de Vyborg preparava-se para a batalha com um ardor particular. Capturaram os pontos moveis lançados sobre o bairro, estudou-se os pontos vulneráveis do bairro, elegeu-se o seu Comité militar revolucionário, os comités de fábrica restabeleceram permanentes. Com um legítimo orgulho, Kaiorov escreveu sobre os operários de Vyborg: «Eles foram os primeiros a entrar na luta com a autocracia, os primeiros a instituir no seu distrito o dia de oito horas, os primeiros a sair armados para protestar contra os dez ministros capitalistas, os primeiros a protestar, no 7 de Julho, contra as perseguições infligidas ao nosso partido, e não foram os últimos no dia decisivo do 25 de Outubro». O que é verdade é verdade!

A história da Guarda vermelha é em grande medida a história da dualidade de poderes: esta, pelas suas contradições interiores e os seus conflitos, dava aos operários uma grande facilidade de criar, logo antes da insurreição, uma imponente força armada. Estabelecer o total dos destacamentos operários em todo o país no momento da insurreição – é uma tarefa pouco mais ou menos irrealizável, pelo menos no momento presente. De qualquer modo, dezenas e dezenas de milhares de operários armados constituíam os quadros da insurreição. As reservas eram quase inesgotáveis.

A organização da Guarda vermelha continuava, evidentemente, muito longe da perfeição. Tudo se fazia à pressa, na verdade, nem sempre com destreza. Os guardas vermelhos estavam na maior parte mal preparados, os serviços de ligação regulavam-se mal, o abastecimento não era forte, o serviço de ambulâncias estava atrasado. Mas, completada por operários capazes de grandes sacrifícios, a Guarda vermelha fervia de desejo de levar desta vez a luta até ao fim. E foi o que resolveu o assunto.

A diferença entre os destacamentos operários e os regimentos camponeses não era somente determinado pela composição social daqueles e destes. Um grande número destes soldados pacóvios, regressados às suas aldeias e tendo partilhado as terras dos proprietários, combaterão desesperadamente contra os guardas brancos, primeiro nos destacamentos de partidários, a seguir no Exército vermelho. Independentemente da diferença social, não existe outra, mais imediata: enquanto que a guarnição constitui um aglomerado forçado de velhos soldados refractários à guerra, os destacamentos da Guarda vermelha são construídos novos, por uma selecção individual, sobre uma nova base, com novas ambições.

O Comité militar revolucionário dispõe ainda de uma terceira arma: os marinheiros do mar Báltico. Pela sua composição social, seu meio é muito mais próximo dos operários do que a infantaria. Há entre eles, um grande número de operários de Petrogrado. O nível político dos marinheiros é infinitamente mais elevado que o dos soldados. Diferenciando-se dos reservistas pouco combativos, que tinham esquecido como utilizar uma espingarda, os marinheiros não interromperam o serviço efectivo.

Para as operações activas, podia-se com firmeza contar com os comunistas armas, em destacamentos da Guarda, sobre a vanguarda dos marinheiros e sobre os regimentos melhores conservados. Os elementos desta conglomeração militar se completavam entre eles. A numerosa guarnição não tinha bastante vontade de lutar. Os destacamentos de marinheiros não era muito numerosa. À Guarda vermelha faltava-lhe experiência. Os operários, com os marinheiros, traziam energia, ousadia, elã. Os regimentos da guarnição constituíam uma reserva pouco móvel que impunha o número e era esmagadora pela massa.

Frequentando diariamente os operários, os soldados e marinheiros, os bolcheviques constatavam as profundas diferenças qualitativas entre os elementos do exército que eles teriam que levar para o combate. Na base do cálculo dessas diferenças, foi construída uma boa parte do próprio plano da insurreição.

A força social do outro campo era constituída pelas classes possuidoras. Isso significa que elas determinavam a sua fraqueza militar. As importantes personagens do capital, da imprensa, dos postos universitários, onde e quando se tinham batidos? Para os resultados dos combates que determinavam a sua própria sorte, eles tinham o hábito de se informar por telefone ou telégrafo. A jovem geração, os filhos, os estudantes? Eles eram quase todos hostis à insurreição de Outubro. Mas a maior parte deles, com os pais, esperavam afastados a conclusão dos combates. Uma parte aderiu mais tarde aos oficiais e aos junkers que, já antes, eram recrutados em grande medida entre os estudantes. Os proprietários não tinham o povo contra eles. Os operários, os soldados, os camponeses tinham-se voltado contra eles. O desmoronamento dos partidos conciliadores mostrava que as classes possuidoras tinham ficado sem exército.

Se, na vida dos Estados modernos, os caminhos de ferro têm a sua importância, a questão dos ferroviários tomava, nos cálculos políticos dos dois campos, um grande lugar. A composição hierárquica do pessoal ferroviário abria possibilidades a uma extrema diferenciação política, criando assim as condições favoráveis para os diplomatas conciliadores. Os Vikjel (Comité executivo pan-russo dos ferroviários) que se tinha tardiamente formado, conservava raízes muito mais sólidas nos meios dos empregados e mesmo dos operários que, por exemplo, os comités do exército na frente. Os bolcheviques, nos caminhos de ferro, só eram seguidos por uma minoria, principalmente pelo depósitos e oficinas. Segundo o relatório de Schmidt, um dos dirigentes bolchevique do movimento sindical, os ferroviários os mais próximos do partido eram os das redes de Petrogrado e de Moscovo.

Mas, mesmo na massa dos empregados e operários conciliadores, uma brusca reviravolta para a esquerda se produziu a partir do momento da greve dos ferroviários, no fim de Setembro. O descontentamento provocado pelo Vikjel, que se tinha comprometido com rodeios, mostrava-se cada vez mais resoluto. Lenine notava que «os exércitos de ferroviários e empregados dos correios continuam a estar em conflito aberto com o governo». Do ponto de vista dos problemas imediatos da insurreição, isso era quase suficiente.

A situação era menos favorável na administração dos Correios e Telégrafos. Segundo o bolchevique Boki, «perto dos aparelhos telegráficos estão em facção, sobretudo os cadetes». Mas, ainda aí, o pessoal opunha-se com hostilidade às cimeiras. Entre os factores, havia um grupo disposto a se apoderar, no momento propício, do correio.

Convencer todos os ferroviários e os empregados dos Correios pela palavra somente, era inútil pensar nisso. Se os bolcheviques tinham hesitado, os quadros e as cimeiras conciliadoras teriam vencido. Se a direcção revolucionária fosse resoluta, a base devia inevitavelmente arrastar atrás as camadas intermediárias e isolar os dirigentes do Vikjel. Nos cálculos da revolução, a estatística não basta por si só: é preciso o coeficiente da acção viva.

Os adversários da insurreição, mas nas fileiras do próprio Partido bolchevique, encontraram todavia bastantes motivos para deduções pessimistas. Zinoviev e Kamenev avisavam para não subestimar as forças do adversário. «Petrogrado decide, mas em Petrogrado, os inimigos dispõem de forças importantes: cinco mil junkers, perfeitamente armados e sabendo bater-se, mais um Estado-maior, mais os batalhões de choque, mais os cossacos, mais uma importante parte da guarnição. Mais uma muito considerável artilharia disposta em semi-círculo à volta de Petrogrado. Além disso, os adversários, com a ajuda do Comité executivo central, tentarão quase de certeza de trazer as tropas da frente … ». Esta enumeração é imponente, mas é somente uma discrição. Se, no conjunto, o exército é uma aglomeração social, quando ele se divide abertamente, os dois exércitos são aglomerações de campos opostos. O exército dos poderosos traz nele o verme do isolamento e da desagregação.

Os hotéis, os restaurantes e as espelucas, depois da ruptura de Kerensky com Kornilov, estavam cheios de oficiais hostis ao governo. Todavia, o ódio deles em relação aos bolcheviques era infinitamente mais vivo. Segundo a regra geral, a maior actividade em proveito do governo se manifestava do lado dos oficiais monárquicos. «Caros Kornilov e Krymov, o que vocês não puderam fazer, talvez nós consigamos, com a ajuda de Deus ...» Tal é a evocação do oficial Sinegoub, um dos mais valiosos defensores do palácio de Inverno no dia da insurreição. Mas só houve contudo raras unidades que se mostraram efectivamente dispostas a lutar, mesmo se o corpo de oficiais era mais numeroso. Já a conspiração de Kornilov tinha mostrado que o corpo de oficiais, profundamente desmoralizados, não constituía uma força combativa.

A composição social dos junkers é heterogénea, não há unanimidade entre eles. Ao lado dos militares por hereditariedade, filhos e netos de oficiais, há um grande número de elementos de ocasião, recrutados para as necessidades da guerra ainda do tempo da monarquia. O chefe da escola de engenharia disse a um oficial: «Tu e eu, estamos condenados … não somos nobres e podemos raciocinar de outro modo?» Sobre os junkers de origem democrática, esses senhores fanfarões, que tinham escapado com sucesso a uma nobre morte, falam deles como rudes, mujiques», grosseiros e obtusos. Uma linha foi traçada entre eles e os homens de sangue vermelho e os de sangue azul no interior das escolas de junkers, e aí, para a defesa do poder republicano, os mais zelosos são justamente o que lamentam mais a monarquia. Os junkers democratas declararam que eles não são por Kerensky, mas pelo Comité executivo central. A revolução tinha, pela primeira vez, aberto as portas das escolas de junkers ao judeus. Esforçando-se por manter à altura diante dos privilegiados, os filhos de família da burguesia judia manifestam um espírito extremamente belicoso contra os bolcheviques. Infelizmente! Isso não basta, não somente para salvar o regime, nem mesmo para salvar o palácio de Inverno. A composição heterogénea das escolas militares e o seu completo isolamento em relação ao exército davam esse resultado que, nos momentos críticos, os junkers começavam eles também a organizar comícios: como iam se conduzir os cossacos? Haveria alguém mais a marchar para além de nós? Valia a pena em geral bater-se por um governo provisório?

Segundo o relatório de Podvoisky, no princípio de Outubro, nas escolas militares de Petrogrado, contavam-se cerca de cento e vinte junkers socialistas, cujo quarenta e dois ou quarenta e três bolcheviques. «Os junkers dizem que todo o comando das escolas são de espírito contra-revolucionário. Preparam-os ostensivamente para o caso de manifestações, para esmagar o levantamento … » O número de socialistas, e sobretudo dos bolcheviques, como se vê, é completamente insignificante. Mas estes dão a Smolny a possibilidade de conhecer todo o essencial do que se produz no meio dos junkers. Além disso, toda a topografia das escolas militares lhes é extremamente desvantajosa: os junkers são disseminados no meio das casernas e, mesmo se eles falam com desdém dos soldados, eles consideram-nos com grandes apreensões.

Seus temores são suficientemente motivados. Das casernas vizinhas e dos bairros operários, os milhares de olhares hostis observam os junkers. A vigilância é sobretudo tanto mais eficaz que, em cada escola, há um destacamento de soldados que, em palavras, conservam a neutralidade, mas que, de facto, pendem pelos insurrectos. Os arsenais das escolas estão entre as mãos dos soldados saídos das fileiras. «Esses canalhas – escreve um oficial da escola de engenharia – não somente perderam as chaves do depósito, de maneira que fui obrigado a arrobar a porta, mas as culatras das metralhadoras tinham sido retiradas e escondidas não se sabe onde.» Em tais circunstâncias, é difícil esperar dos junkers milagres de heroísmo.

A insurreição de Petrogrado não foi ameaçada por uma acção exterior, das guarnições vizinhas? Durante os primeiros dias da sua existência, a monarquia não tinha parado de contar sobre o pequeno círculo de tropas que cercavam a capital. A monarquia tinha calculado mal. Mas que aconteceria desta vez? Assegurar-se das condições que excluiriam todo o perigo, seria tornar inútil qualquer insurreição: o objectivo desta é precisamente de quebrar os obstáculos que não se podem eliminar pela política. Não se pode calcular tudo antecipadamente. Mas tudo o que se podia prever foi calculado.

No inicio de Outubro, em Cronstadt, tinha tido lugar a Conferência dos sovietes da província de Petrogrado. Os delegados das guarnições dos arredores – de Gatchina, de Tsarkoie-Selo, de Krasnoie-Selo, d´Oranienbaum, mesmo de Cronstadt – ocuparam um lugar de destaque os marinheiros do Báltico. À sua resolução se juntou o soviete dos deputados camponeses da província de Petrogrado: os mujiques, ultrapassando os socialistas-revolucionários de esquerda, pendiam fortemente para os bolcheviques.

A conferência do Comité central do 16, o operário Stapanov esboçava um quadro bastante variado do estado das forças na província, mas onde predominavam todavia nitidamente as cores do bolchevismo. Em Sestroretsk e em Kolpino, os operários armam-se, os estado de espírito é favorável à batalha. Em Novy-Peterhof, o trabalho parou no regimento que está desorganizado. Em Krasnoie-Selo, o 176º regimento (o mesmo que tinha montado a guarda diante do palácio Tauride no 4 de Julho) e o 172º estão do lado dos bolcheviques: «mas, além disso, há a cavalaria». Em Lova, uma guarnição de trinta mil homens voltou-se para o lado dos bolcheviques, uma parte hesita; o soviete ainda está em modo de defesa nacional. Em Gdova, o regimento é bolchevique. Em Cronstadt, o estado de espírito caiu, a agitação das guarnições tinha sido muito forte durante os meses precedentes, os melhores elementos entre os marinheiros encontravam-se na frota em operações de guerra. Em Schlusselburgo, a sessenta verstas de Petrogrado, o Soviete tinha-se desde há muito tempo tornado o único poder; os operários da fábrica de pólvora estavam prontos, a todo o momento, a apoiar a capital.

Combinando com os resultados da conferência dos sovietes em Cronstadt, os dados sobre as reservas de primeira linha podem ser considerados como encorajantes. As ondas provenientes da insurreição de Fevereiro foram suficientes para dissolver a disciplina à volta. Foi com bastante confiança que se pode considerar agora as guarnições mais próximas da capital quando as suas disposições são previamente conhecidas.

As tropas da frente da Finlandia e do Norte ligam-se às reservas da segunda linha. Aí, o assunto apresenta-se de uma maneira ainda mais favorável. O trabalho de Smilga, de Antonov, de Dybenko deu resultados preciosos. Com a guarnição de Helsingfors, a frota se transformou, no território da Finlandia, num poder soberano. O governo não dispunha mais de autoridade. Duas divisões de cossacos introduzidas em Helsingfors – Kornilov tinha-as destinado a golpear Petrogrado – tinham tido tempo de se aproximar estreitamente dos marinheiros e apoiavam os bolcheviques ou os socialistas-revolucionários de esquerda que, na frota do Báltico, se distinguiam pouco dos bolcheviques.

Helsingfors estendeu a mão aos marinheiros da base de Reval, até então menos determinados. O Congresso regional dos sovietes do Norte, cuja iniciativa pertencia também, verosimilmente à frota do Báltico, agrupou os sovietes das guarnições mais próximas de Petrogrado num círculo tão largo que engloba por um lado Moscovo e por outro Arkhangelsk. «Por esse meio, escreve Antonov – se realizou a ideia de blindar a capital da revolução contra os ataques possíveis das tropas de KerenskySmilga, do Congresso, regressou a Helsingfors para preparar um destacamento especial da marinha, de infantaria, de artilharia, destinado a ser enviado para Petrogrado ao primeiro sinal. A ala finlandesa da insurreição de Petrogrado era a melhor garantida. Daí, podia-se esperar, não um golpe, mas uma ajuda séria.

Mas noutros sectores da frente também, o assunto caminhava verdadeiramente bem, de qualquer modo melhor que pressupunham os mais optimistas dos bolcheviques. No decorrer de Outubro, houve no exército novas eleições de comités, por todo o lado com uma mudança marcada no sentido dos bolcheviques. No corpo cantonado sob Dvinsk, «os velhos soldados razoáveis», encontravam-se todos reprovados nas eleições para os comités de regimento e de companhia; seus lugares foram ocupados por «sujeitos sombrios e ignorantes … de olhos irritados, brilhantes, com focinhos de lobo». Noutros sectores, foi a mesma coisa. «Em todo o lado houve novas eleições de comités e foram eleitos somente bolcheviques e os derrotistas.» Os comissários do governo começavam a evitar as missões nos regimentos: «Neste momento, sua situação não é a melhor que a nossa.» Citemos aqui o barão Budberg. Dois regimentos de cavalaria do seu grupo, hussardos e cossacos do Ural, que tinham ficado mais tempo que os outros entre as mãos de seus chefes e não se recusaram a esmagar os motins, fraquejaram de uma vez e exigiram «que os dispensassem do papel de carrascos e de polícias.» O sentido ameaçador desse aviso era, para o barão, mais claro que qualquer outro. «Não se pode enfrentar um bando de hienas, de chacais e de ovelhas tocando violão – escrevia - … a salvação só está na possibilidade de uma aplicação muito larga do ferro em brasa.» E aqui, uma confissão trágica: «Esse ferro falta e não se sabe onde ir buscá-lo.»

Se não mencionamos testemunhas análogas, sobre outros corpos e divisões, é porque os seus chefes não eram tão observadores como Budberg, ou então não redigiram diários íntimos, ou simplesmente porque esses diários ainda não surgiram à luz do dia. Mas o corpo do exército aquartelado em Dvinsk não se distinguia em nada de essencial, senão pelo estilo folclórico do seu chefe, e outros corpos do 5º exército, o qual, tinha apenas um fraco avanço sobre os outros contingentes.

O Comité conciliador do 5º exército, já há muito tempo em suspense, continuava a enviar para Petrogrado telegramas, ameaçando restabelecer a ordem à força de baionetas. «Tudo isso são fanfarronices, é só vento», escreveu Budberg. O Comité estaria a viver os seus últimos dias. No 23, ele foi reeleito. O presidente do novo Comité bolchevique foi o doutor Skliansky, jovem organizador excelente que logo deu toda a liberdade aos seus talentos no domínio da formação do Exército vermelho.

O adjunto do comissário governamental da frente Norte comunicava, no dia 22 de Outubro, ao ministério da Guerra que as ideias do bolchevismo tinham no exército um sucesso cada vez maior, que a massa queria a paz e que mesmo a artilharia, que tinha resistido até ao último momento, tinha se tornado «acessível à propaganda derrotista». Era também um síntoma de importância. «O governo provisório não gozava de qualquer autoridade», assim se exprime num relatório do governo um dos seus agentes directos no exército, três dias antes da insurreição.

O Comité militar revolucionário, na verdade, não conhecia então todos os documentos. Mas o que sabia era já suficiente. No 23, os representantes dos diferentes contingentes da frente desfilaram diante do Soviete de Petrogrado reclamando paz; no caso contrário, as tropas lançariam-se para a retaguarda e «exterminariam todos os parasitas que se dispunham a fazer guerra ainda uma dúzia de anos». Tomai o poder, diriam ao Soviete os homens da frente: «As trincheiras vos apoiarão.»

Nas frentes mais afastadas e atrasadas, sud-oeste, e romena, os bolcheviques eram ainda uma raridade, seres estrangeiros. Mas, aí, as disposições dos soldados eram as mesmas. Eugenia Boch conta que, no 2º corpo da Guarda, aquartelado nas redondezas de Jmerinka, sobre sessenta mil soldados, havia somente um jovem comunista e dois simpatizantes; o que não impediu o corpo, durante as jornadas de Outubro, de caminhar em apoio da insurreição.

Os meios governamentais colocaram suas esperanças nos cossacos até à última hora. Mas, menos cegos, os políticos do campo da direita compreendiam que o assunto, desse lado ainda, se apresentava muito mal. Os oficiais cossacos eram quase todos Kornilovianos. Os cossacos das fileiras tendiam sempre para a esquerda. No governo, durante muito tempo, não se compreendeu isso, considerando que a frieza dos regimentos cossacos em relação ao palácio de Inverno provinha de uma vexação infligida a Kaledine. Mas, afinal, tornou-se claro, mesmo para o ministro da Justiça, Maliantovitch, que Kaledine «só tinha por apoio os oficiais cossacos enquanto que os cossacos das fileiras, tal como todos os soldados, eram simplesmente a favor do bolchevismo».

Dessa frente que, nos primeiros dias de Março, beijava a mão e o pé do sacrificador liberal, levava em ombros os ministros cadetes, embeveciam-se com os discursos de Kerensky e acreditava que os bolcheviques eram agentes da Alemanha, disso nada ficou. As ilusões cor de rosa eram pisadas no lodo das trincheiras que os soldados se recusava a amassar mais tempo com as suas botas rotas. «A conclusão final aproxima-se – escrevia, no mesmo dia da insurreição de Petrogrado, Budberg – e ele não pode haver aí qualquer dúvida sobre a questão; na nossa frente, já não há nem um só contingente … que não seja aos bolcheviques.»


Inclusão 21/01/2014