Observações Adicionais Sobre o Regime Partidário

Leon Trotsky

3 de Outubro de 1937


Primeira edição: Observações adicionais sobre o regime partidário. Do arquivo de James P. Cannon. Com autorização da Library of Social History (Biblioteca de História Social). Carta a Cannon.
Fonte: http://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro5/T08V332.htm
Tradução: Victor Pixinga
HTML:
Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

Estimado camarada Cannon:

Ontem lhe enviei uma carta para tratar de certos assuntos de importância, mas é necessário voltar a escrever-lhe hoje.

1. Há pouco li uma carta de Harry Milton a Rae [Spiegel](1). Tenho lido algumas de suas cartas desde a Espanha e ontem Rae me disse que fez um discurso muito bom sobre a Espanha em uma grande assembleia e que todos ficaram espantados com seu êxito, ele mais que ninguém. Por último, disse que o Comitê Nacional havia resolvido enviá-lo a sós e não com o camarada Goldman, como havia decidido a princípio. Este fato me parece muito importante e sintomático. Observei aqui outro operário de sua organização, o camarada Lankin(2). Na presença de [Jack] Weber, F. e outros camaradas permanecia em silêncio, trabalhando a todo instante. Permaneceu conosco por mais tempo. Mostrou possuir uma grande experiência de vida e de luta, penetração psicológica e fez observações políticas de grande valor. Precisamos desses camaradas nos comitês do partido, tanto no comitê central quanto nos comitês locais. Assinalei em centenas de ocasiões que o operário que passa despercebido nas condições “normais” da vida partidária revela qualidades notáveis quando muda a situação, quando não bastam as fórmulas gerais e a escrita fluida, quando é necessário um conhecimento da vida operária e qualidades práticas. Em tais condições um operário avançado revela segurança em si mesmo e também capacidade política geral.

O predomínio dos intelectuais é inevitável no primeiro período de desenvolvimento da organização. Mas, ao mesmo tempo, é uma grande trava para a educação política dos operários mais avançados. Naturalmente esta é uma verdade muito elementar que você conhece há anos. Mas qual é o problema prático? Falei sobre isso com o camarada Weber. É absolutamente necessário que o próximo congresso eleja a maior quantidade possível de operários aos comitês locais e central. Para um operário, a militância no organismo de direção partidária é uma escola política superior. Alguns dos novos membros operários dos comitês partidários demonstrarão não estar à altura do posto: podem ser removidos no congresso seguinte. A seleção dos elementos mais capazes e abnegados para os organismos de direção é, naturalmente, um processo lento e que jamais termina. Ao eleger estes novos camaradas, corre-se um risco inevitável. Se só um terço dos novos membros operários dos comitês locais e central demonstrarem estar à altura do posto, o resultado é excelente.

Existe em todas as organizações a dificuldade de haver membros tradicionais do comitê, assim como que as considerações secundárias, de tipo fracional e pessoal, desempenhem um papel excessivamente grande na confecção da lista de candidatos. A tarefa é romper com a rotina, que é o início da burocratização; convencer a organização, e especialmente seu estrato dirigente (o que é mais difícil), de que é necessário renovar sistematicamente a composição de todos os organismos dirigentes do partido. Naturalmente a renovação jamais pode ser total; é necessário manter um núcleo, selecionado com base na experiência do passado, para preservar a continuidade da política do partido.

2. Parece-me importante desenvolver estas considerações desde o ponto de vista da democracia partidária. É impossível superestimar este aspecto. O que é a democracia partidária?

a) O estrito cumprimento dos estatutos partidários pelos organismos de direção (congressos regulares, período de discussão, direito à minoria para expressar seus pontos de vista nas reuniões partidárias e na imprensa).

b) O comitê central e seus membros devem manter uma atitude paciente, fraternal, em certa medida pedagógica para com a base, incluídos os desafiadores e os descontentes, porque não é grande mérito estar satisfeito “com qualquer um que esteja satisfeito comigo”. Quando Lênin propôs expulsar Ordzhonikidze do partido (1923), disse com toda razão que o militante de base tem direito a ser revoltoso, mas não o membro do comitê central(3). Os métodos do “terrorismo” psicológico, incluindo o de responder a qualquer objeção, crítica ou dúvida de forma arrogante ou sarcástica: estes são os métodos jornalísticos ou “intelectuais” que são intoleráveis para os operários e os condenam ao silêncio.

c) Não bastam as regras democráticas puramente formais assinaladas no ponto (a) nem as medidas puramente negativas – não aterrorizar, não ridicularizar – assinaladas em (b). Tanto os comitês locais quanto o comitê central devem manter permanentemente um contato ativo e informal com a base, sobretudo quando se está preparando uma nova palavra-de-ordem, uma nova campanha ou se está verificando os resultados de uma campanha recém terminada. Nem todos os membros do comitê central são capazes de manter esses contatos de tipo informal; tampouco todos os militantes têm tempo ou encontram uma ocasião para fazê-lo; isso depende não só da boa vontade e de uma determinada postura psicológica, mas também da profissão do militante e, por conseguinte, do meio onde vive. O comitê central deve ser integrado não só por bons organizadores e bons oradores, escritores, administradores, mas também por pessoas estreitamente ligadas à base e que as representem organicamente.

3. Nas últimas semanas recebi várias cartas dos camaradas Glotzer e Abern, onde dizem que não querem formar um agrupamento especial, tendo em vista que não existem diferenças principistas, e que estão dispostos a colaborar de maneira sincera e leal, mas que o regime partidário contém vestígios psicológicos de um tratado de Versalhes imposto pela ex-maioria à ex-minoria (militantes de base e de comitês de segundo escalão, etc.). Por outro lado, o camarada Weber me disse que suas intenções de restabelecer as relações fraternais com a ex-minoria não tiveram êxito.

Não lhe parece que os dirigentes da ex-maioria poderiam tomar alguma medida concreta e sincera para eliminar os vestígios psicológicos da velha luta? Qual poderia ser esta medida? Em primeiro lugar uma discussão franca no comitê com os camaradas mais representativos da ex-minoria: Temos diferenças principistas? Quais são suas objeções organizativas, práticas ou pessoais? Agora que estamos prestes a iniciar um grande novo capítulo da história do partido, estamos totalmente dispostos a eliminar todo tipo de obstáculo no caminho de uma colaboração estreita e harmoniosa. Por exemplo, estamos dispostos a eliminar qualquer coisa que se pareça com um bloco fracional no comitê central. Consideram que o regime partidário não é suficientemente democrático? Estamos totalmente dispostos a aceitar qualquer sugestão prática com o fim de eliminar qualquer tendência burocrática, ampliar a democracia partidária geral, etc. Esta discussão deveria se realizar sem considerar as práticas formais; ou seja, sem incluí-la nas atas, etc. Se a primeira discussão desse tipo se demonstra mais ou menos promissora, poderia ser repetida no congresso, com o consentimento dos membros do novo Comitê Nacional.

A iniciativa deveria vir da “maioria”, que só poderá desarmar a minoria se conta com a boa vontade geral. Imaginemos que apesar de toda boa vontade do mundo alguns dos representantes minoritários mantém sua atitude fracional. Quem se beneficiará com a marcha dos acontecimentos? Não os fracionistas, com certeza. Ficarão isolados de seus amigos mais próximos. Uma tentativa sincera de restabelecer a plena confiança mútua só poderia beneficiar a educação e a coesão interna do comitê central.

Minha carta de ontem, assim como a de hoje, foi escrita considerando a discussão e o congresso que se realizaram há pouco. Ontem tratei de sugerir uma “linha geral” política para o próximo período de atividade partidária. Esta carta refere-se essencialmente ao regime interno. Fico um pouco envergonhado de meu enfoque excessivamente abstrato dos problemas concretos que estão colocados. Algumas de minhas afirmações parecerão vagas generalidades, impossíveis de aplicar... mas não há o que fazer. Apesar das visitas e do correio aéreo, sigo sendo um observador à distância. Você e os camaradas verão quais destas sugestões serão úteis e quais não.

Com minhas melhores saudações e desejos,
Hansen [Trotsky]

P.S.: Alguns camaradas seguem caracterizando o stalinismo como “centrismo burocrático”. Esta caracterização está totalmente superada. Na arena internacional o stalinismo já não é centrismo, senão oportunismo e socialpatriotismo em sua forma mais grosseira. Veja-se a Espanha!


Notas de rodapé:

(1) Harry Milton: ativista trotskysta do sindicato têxtil de Nova York, foi à Espanha como voluntário antifascista. Os stalinistas o prenderam e deportaram. (retornar ao texto)

(2) Sol Lankin: membro fundador da Oposição de Esquerda dos EUA e guarda-costas de Trotsky em Coyoacán. (retornar ao texto)

(3) Trotsky cita Lênin de memória. Ver o texto exato de Lênin nas suas Obras Completas, artigo de 30 de dezembro de 1922, vol. 36, pág. 307 [edição em inglês] (retornar ao texto)

Inclusão 15/09/2014