Carta a Marcuse

Theodor Adorno

5 de Maio de 1969


Fonte: http://planeta.clix.pt/tadorno16.htm Jornal "Folha de São Paulo", domingo, 24 de agosto de 1997. As cartas reproduzidas pertencem ao Arquivo Herbert Marcuse de Frankfurt. Foram cedidas pela revista "praga" (Ed. Hucitec, tel. 011/530-4532), que as publicará, com outras mais, em seu número 3
Tradução: Isabel Maria Loureiro.

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Em sua carta, Adorno justifica a Marcuse a razão de ter chamado a polícia quando estudantes ameaçaram, em 69, invadir o prédio do instituto em que dava aulas. A resposta de Marcuse é uma defesa da rebelião estudantil.

Frankfurt am Main, 5 de maio de 1969
Caro Herbert,

Tua carta de 5 de abril, recebida durante minhas curtas férias em Baden-Baden, deixou-me extraordinariamente surpreso e, franqueza contra franqueza, magoado. Como sei muito bem que a controvérsia entre nós só se resolve oralmente, não gostaria de ficar até lá devendo a resposta.

Antes de mais nada, não entendo como a situação mudou decisivamente para ti depois de uma conversa, pois, segundo confirmas expressamente, ela não contradiz em nada minhas informações e não pode conter quase nada de novo. Pelo menos, penso, deverias ter me comunicado algumas divergências no relato e dado a possibilidade de exprimir-me sobre elas. Parece-me realmente impossível formar um juízo sobre a questão à distância de seiscentas milhas. Tu fizeste-o sem nem sequer me ouvir.

A sugestão de não falar aos estudantes nem mesmo num grande espaço público veio anteriormente de ti. Ela correspondia certamente às minhas intenções. Afinal, preciso defender os interesses do Instituto -nosso velho Instituto, Herbert-, e, podes acreditar em mim, esses interesses seriam imediatamente comprometidos por esse circo. A tendência, que se alastra, de cortar as subvenções, se fortaleceria violentamente. Por isso é melhor que tu, se queres discutir com os estudantes à vontade, que o faças inteiramente por tua própria conta e risco, sem envolver o Instituto ou o Seminário. Acredito poder inferir da tua carta que compreendes esta minha reação e que não me guardarás rancor por isso.

Para falar no jargão da Oposição Extraparlamentar, não se deve caluniar abstratamente a polícia. Só posso repetir-te que ela tratou os estudantes de maneira incomparavelmente mais tolerante que estes a mim. Isso ultrapassou todos os limites. Também sou de opinião diferente da tua no que diz respeito a quando se deve chamar a polícia. Recentemente, o sr. Cohn-Bendit disse-me, durante uma discussão numa associação profissional, que eu só teria o direito de procurar a polícia se alguém quisesse espancar-me a pauladas; respondi que então talvez fosse tarde demais. O caso da ocupação do Instituto não permitia nenhum comportamento diferente do nosso. Como o Instituto é uma fundação independente e não se encontra sob a proteção da Universidade, a responsabilidade por tudo o que aqui acontecesse recairia sobre Friedeburg e sobre mim. Os estudantes tinham a intenção, em vez de participar do Seminário, de "ocupar, de maneira diferente" o Instituto, como diziam antes; no que isso daria, com pichações e tudo o mais, pode-se imaginar. Hoje eu não reagiria de modo diferente de 31 de janeiro. A exigência que os estudantes me lançaram recentemente -fazer autocrítica pública-, considero-a puro stalinismo. Isso nada tem a ver com "business as usual".

Sei que no tocante à relação entre teoria e prática não estamos longe um do outro, embora precisássemos algum dia discutir realmente essa relação (estou justamente trabalhando em teses que se ocupam disso). Também concordaria contigo que há momentos nos quais a teoria é impulsionada pela prática. No entanto, hoje nem uma tal situação domina objetivamente, nem o praticismo monótono e brutal, com que em todo caso nos encontramos confrontados aqui, tem qualquer coisa a ver com teoria.

A tua mais forte alegação consiste em dizer que a situação é tão horrível que se deve tentar quebrá-la, mesmo reconhecendo ser isso objetivamente impossível. Eu levo o argumento a sério. Mas considero-o falso. Nós, tu assim como eu, suportamos outrora uma situação muito mais terrível ainda, o assassinato dos judeus, sem que tivéssemos passado à prática, simplesmente porque nos era vedada. Considero como uma questão de autoconsciência ter claro o elemento da frieza em cada um de nós. Dito asperamente: encaro como um auto-engano que tu, em virtude do que ocorre no Vietnã ou em Biafra, não possas mais simplesmente viver sem participar das ações estudantis. Mas, se realmente se agir assim, então não se deve protestar apenas contra o horror das bombas de napalm, mas igualmente contra as indescritíveis torturas ao estilo chinês, que os vietcongues continuamente praticam. Se não se pensar nisso também, o protesto contra os americanos tem algo de ideológico. Max, com toda razão, dá grande valor precisamente a esse ponto. Justamente eu, que afinal deixei a América, devo ter uma certa razão na minha opinião.

Reclamas da expressão de Jürgen, "fascismo de esquerda", como "contradictio in adjecto". No entanto, és um dialético. Como se não existissem tais "contradictiones", como se um movimento, em virtude de suas antinomias imanentes, não pudesse transformar-se em seu contrário. Parece-me não haver dúvidas de que o movimento estudantil, na sua atual configuração, e na verdade de imediato, desemboca justamente na tecnocratização da Universidade, a qual quer supostamente impedir. Parece-me igualmente inquestionável que atitudes como as que tive de observar e de cuja descrição poupo, a ti e a mim, possuem realmente algo daquela violência sem conceito que uma vez pertenceu ao fascismo.

Portanto, respondendo sem equívocos à tua pergunta: se vieres a Frankfurt para discutir com os estudantes que dão provas de uma regressão calculada contra todos nós, então deves fazê-lo por conta própria, não sob nossa égide. A decisão cabe unicamente a ti.

Naturalmente seria ótimo se pudéssemos encontrar-nos na Suíça com Max, mas duvido que isso possa realizar-se, pois ficaremos pouco tempo em Basiléia. Seria importante para nós conversas realmente infindáveis. Para isso, Zermat seria o melhor lugar, pois, apesar de não ter lagos italianos, nem por isso te desencorajou outrora. A propósito, no início de setembro estarei na Itália; por volta dos dias 8 e 9 é certo encontrar-me em Veneza.

Afetuosamente teu
Teddy

Leia a resposta de Marcuse


Inclusão 21/11/2018