Tabus acerca do Magistério

Theodor Adorno


Fonte: http://planeta.clix.pt/adorno/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O que irei expor constitui apenas a apresentação de um problema; nem é uma teoria constituída, para o que não tenho legitimidade por não ser pedagogo, nem tampouco o relato de resultados de investigações empíricas. Seria necessário acrescentar pesquisas ao que apresento, sobretudo estudos de casos individuais, principalmente em termos psicanalíticos. Minhas considerações prestam-se no máximo a tornar visíveis algumas dimensões da aversão em relação à profissão de professor, que representam um papel não muito explícito na conhecida crise de renovação do magistério, mas que, talvez até por isto mesmo, são bastante importantes. Ao fazê-lo, tocarei simultaneamente, ao menos por alto, numa série de problemas que se relacionam com o próprio magistério e sua problemática, na medida em que as duas coisas dificilmente podem ser separadas.

Permitam-me começar pela exposição da experiência inicial: justamente entre os universitários formados mais talentosos que concluíram o exame oficial, constatei uma forte repulsa frente aquilo a que são qualificados pelo exame oficial, e em relação ao que se espera deles após este exame. Eles sentem seu futuro como professores como uma imposição, a que se curvam apenas por falta de alternativas. Éimportante ressaltar que tenho a oportunidade de acompanhar um contingente não desprezível de tais formados, com motivos para supor que não se trata de uma seleção negativa.

Muitos dos motivos de tal aversão são racionais e tão conhecidos que não preciso me deter neles, O principal é a antipatia em relação ao que se encontra regulamentado, ao que se encontra disposto por meio do desenvolvimento definido por meu amigo Hellmut Becker como dirigido à escola administrada. Existem também motivações materiais: a imagem do magistério como profissão de fome aparentemente é mais duradoura do que corresponde à própria realidade na Alemanha. A desproporção que registro por esta via parece-me, já me adiantando, típica para todo o conjunto em questão, caracterizado pelas motivações subjetivas da aversão contra o magistério, em especial as que são inconscientes. Tabus significam, a meu ver, representações inconscientes ou pré-conscientes dos eventuais candidatos ao magistério, mas também de outros, principalmente das próprias crianças, que vinculam esta profissão como que a urna interdição psíquica que a submete a dificuldades raramente esclarecidas. Portanto utilizo o conceito de tabu de um modo relativamente rigoroso, no sentido da sedimentação coletiva de representações que, de um modo semelhante àquelas referentes à economia, já mencionadas, em grande parte perderam sua base real, mais duradouramente até do que as econômicas, conservando-se porém com muita tenacidade como preconceitos psicológicos e sociais, que por sua vez retroagem sobre a realidade convertendo-se em forças reais.

Permitam fundamentar-me em alguns testemunhos triviais. A leitura de anúncios matrimoniais nos jornais — bastante elucidativa —— revela que em seus anúncios professores ou professoras destacam que não são tipos professorais, que não são mestres de escola. Praticamente nenhum anúncio matrimonial proveniente de professor ou professora deixa de conter ressalvas atenuantes. ---- Outro exemplo: além do alemão, também outras línguas apresentam uma série de expressões degradantes para o magistério; o mais conhecido em alemão é Pauker (quem ensina com a palmatória como quem treina soldados a marchar pelas batidas nos tambores); mais vulgar e também relacionado em alemão a instrumentos musicais é Steisstrommler (quem malha o traseiro); em inglês, utiliza-se schoolmarm para professoras solteironas, secas, mal-humoradas e ressentidas. De uma maneira inequívoca, quando comparado com outras profissões acadêmicas como advogado ou médico, pelo prisma social o magistério transmite um clima de falta de seriedade. Além disso, a sociologia acadêmica e da educação pouco atentaram para a distinção que a população estabelece entre disciplinas com prestígio e desprestigiadas: entre as prestigiadas listam-se a Jurisprudência e a Medicina, e sem dúvida não consta o estudo da Filologia; nas faculdades de filosofia, a exceção visível é a altamente prestigiosa História da Arte. Se estou bem informado -— o que escapa ao meu controle por não ter acesso direto aos ambientes em questão —, num dos círculos hoje mais exclusivos, alegadamente o mais exclusivo de todos, os filólogos simplesmente são recusados. Nesta medida, conforme a percepção vigente, o professor, embora sendo um acadêmico, não seria socialmente capaz; quase poderíamos dizer: trata-se de alguém que não é considerado um "senhor", nos termos em que este termo é usado no novo jargão alemão, aparentemente relacionado à alegada igualdade de oportunidades educacionais. Numa complementariedade peculiar parece encontrar-se o inabalado prestígio do professor universitário, apoiado inclusive em estatísticas. De um lado, o professor universitário como a profissão de maior prestígio; de outro, o silencioso ódio em relação ao magistério de primeiro e segundo graus; uma ambivalência como esta remete a algo mais profundo. Na mesma ordem de questões situa-se a proibição do título de "professor", negado na Alemanha pelos docentes universitários aos docentes do segundo grau (hoje chamados de Studienräte, algo como "conselheiro de estudos"). Em outros países, como a França, não existe essa diferenciação rigorosa dividindo um sistema, o que possibilita uma ascensão continua. Não tenho condições de avaliar se isto influencia o próprio prestigio do magistério e os aspectos psicológicos a que me refiro.

Os que são mais diretamente afetados pela questão deveriam acrescentar a esses sintomas outros mais impositivos. Mas os mencionados até aqui deveriam bastar para possibilitar algumas especulações. Afirmei que na Alemanha a pobreza do professor é uma imagem do passado. Contudo, permanece inquestionavelmente a discrepância entre a posição material do docente e a sua exigência de status e poder, que deveriam lhe corresponder ao menos conforme prega a ideologia vigente. Esta discrepância não deixa de afetar o espírito. Schopenhauer atentou para essa situação no que se refere aos docentes universitários. Acreditava que o comportamento subalterno que constatava neles há mais de cem anos relacionava-se a seus péssimos salários. É preciso acrescentar que na Alemanha essa exigência de poder e status do espírito é em si problemática e nunca foi satisfeita. Haveria nisso a influência do tardio desenvolvimento burguês, da longa sobrevida do feudalismo alemão que não era propriamente afeito ao espírito, e que gerou a figura do mestre de escola como sendo um serviçal. A este respeito gostaria de relatar uma história que me parece característica. Aconteceu em Frankfurt. Num encontro social elegante e burguês a conversa chegou a Hölderlin e sua relação com Diotima. Entre os presentes havia uma descendente direta da família Gontard, muito idosa e inteiramente surda; ninguém a considerava capaz de participar desta conversa. Repentinamente, ela tomou a palavra e disse uma única frase em bom dialeto de Frankfurt: "Sim, sim, sempre há uma má vontade em relação aos preceptores". Num tempo não muito distante, há poucas décadas, ela acompanhara a referida história de amor literalmente nos mesmos termos com que outrora o senhor Von Gontard havia se manifestado frente a Hölderlin: sob o prisma do patriciado burguês, para o qual um preceptor era nada mais do que um lacaio um pouco diferenciado.

Conforme o sentido dessas imagens, o professor é um herdeiro do scriba, do escrivão. Como já assinalei, o menosprezo de que é alvo tem raízes feudais e precisa ser fundamentado a partir da Idade Média e do início do Renascimento; como, por exemplo, na "Canção dos Nibelungos", onde se expressa o desprezo de Hagen, que considera o capelão um débil, justamente aquele capelão que a seguir escaparia com vida. Cavaleiros feudais cuja educação passou pelos livros constituíram exceções; caso contrário o nobre Hartmann von der Aue não teria se vangloriado tanto de sua capacidade de leitura. Além disso, há que se acrescentar a influência de antigas referências de professores como escravos.(1) O intelecto encontrava-se separado da força física. É certo que sempre detinha uma determinada função na condução da sociedade, mas tornava-se suspeito em qualquer lugar onde as prerrogativas da força física sobreviveram à divisão do trabalho. Este passado distante na história ressurge permanentemente. O menosprezo pelos professores que certamente existe na Alemanha, e talvez inclusive nos países anglo-saxônicos, ao menos na Inglaterra, poderia ser caracterizado como o ressentimento do guerreiro que acaba se impondo ao conjunto da população pela via de um mecanismo interminável de identificações. Todas as crianças revelam afinal uma forte tendência a se identificar com "coisas de soldados", como se diz tão bem hoje em dia; lembro apenas o prazer com que os meninos se fantasiam de cowboys, e a satisfação com que correm "armados" por aí. Ao que tudo indica, eles reproduzem de novo, ontogeneticamente, o processo filogenético, que gradualmente libertou os homens da violência física. Todo o complexo da violência física, bastante dotado de ambivalência e de forte conteúdo afetivo em um mundo em que ela é exercida somente nas situações-limite por demais conhecidas, desempenha aqui seu papel decisivo. Numa anedota famosa o condottiere Georg von Frundsberg bate nos ombros de Lutero na Dieta de Worms dizendo: "Padrezinho, padrezinho, agora segues um caminho perigoso". Uma atitude em que se misturam o respeito pela independência do espírito e um desprezo. ainda que tênue, por quem, não portando armas, logo pode se tornar vitima de esbirros. Movidos por rancor, os analfabetos consideram corno sendo inferiores todas as pessoas estudadas que se apresentam dotadas de alguma autoridade, desde que não sejam providas de alta posição social ou do exercício de poder, como acontece no caso do alto clero, O professor é o herdeiro do monge; depois que este perde a maior parte de suas funções, o ódio ou a ambigüidade que caracterizava o oficio do monge é transferido para o professor.

A ambivalência frente aos homens estudados é arcaica. É verdadeiramente mítico o impressionante conto em que Kafka narra o assassinato do médico do interior rural que atendia a um chamado noturno que se revelaria falso; a etnologia sabe que o curandeiro ou o cacique tanto pode usufruir de honrarias quanto pode ser sacrificado em determinadas situações. Pode-se perguntar por que o tabu arcaico, a ambivalência arcaica foram transferidos justamente aos professores, enquanto outras profissões intelectuais ficaram livres deles. Explicar por que algo não ocorreu sempre implica grandes dificuldades do ponto de vista da teoria do conhecimento. Limitar-me-ei a urna consideração baseada no senso comum. Os juristas e os médicos não se subordinam àquele tabu e são igualmente profissões intelectuais. Mas estas constituem o que se chama hoje de profissões livres. Subordinam-se à disputa concorrencial; são providas de melhores oportunidades materiais, mas não são contidas e garantidas por urna hierarquia de servidor público, e por causa dessa liberdade gozam de maior prestigio. Aqui se anuncia um conflito social possivelmente dotado de alcance maior. Uma ruptura no próprio plano da burguesia, ao menos na pequena burguesia, entre os que são livres e ganham mais, embora sua renda não seja garantida, e que gozam de um certo ar de nobreza e ousadia, e, por outro lado, os funcionários permanentes e com pensão assegurada, invejados por causa de sua segurança, mas desprezados enquanto se assemelham a verdadeiros animais de carga em escritórios e repartições, com horários fixos e vida regrada pelo relógio de ponto. Por sua vez, os juizes e funcionários administrativos têm algum poder real delegado, enquanto a opinião pública não leva a sério o poder dos professores, por ser um poder sobre sujeitos civis não totalmente plenos, as crianças. O poder do professor é execrado porque só parodia o poder verdadeiro, que é admirado. Expressões como "tirano de escola" lembram que o tipo de professor que querem marcar é tão irracionalmente despótico como só poderia sê-lo a caricatura do despotismo, na medida em que não consegue exercer mais poder do que reter por uma tarde as suas vitimas, algumas pobres crianças quaisquer.

O reverso dessa ambivalência é a adoração mágica dispensada aos professores em alguns países, como outrora na China, e em alguns grupos, como entre os judeus devotos. O aspecto mágico da relação com os professores parece se fortalecer em todos os lugares onde o magistério é vinculado à autoridade religiosa, enquanto a imagem negativa cresce com a dissolução dessa autoridade. É digno de nota que os professores que gozam do maior prestigio na Alemanha, ou seja, justamente os acadêmicos universitários, na prática muito raramente desempenham funções disciplinares, e, ao menos de modo ideal e para a opinião pública, são pesquisadores produtivos que não se fixam no plano pedagógico aparentemente ilusório e secundário de acordo com a exposição anterior. O problema da inverdade imanente da pedagogia estaria em que o objeto do trabalho é adequado aos seus destinatários, não constituindo um trabalho objetivo motivado objetivamente. Em vez disso, este seria pedagogizado. Só isto já bastaria para dar às crianças inconscientemente a impressão de estarem sendo iludidas. Os professores não reproduzem simplesmente de um modo receptivo algo já estabelecido, mas a sua função de mediadores, um pouco socialmente suspeita como todas as atividades da circulação, atrai para si uma parte da aversão geral. Max Scheler disse certa feita que só atuou pedagogicamente porque nunca tratou seus estudantes de maneira pedagógica. Se me permitem a observação pessoal, a minha própria experiência confirma inteiramente este ponto de vista. Ao que tudo indica, o êxito como docente acadêmico deve-se à ausência de qualquer estratégia para influenciar, à recusa em convencer.

Com a transformação objetiva que se anuncia no magistério, a situação tende a se alterar. Nota-se também uma certa mudança estrutural na relação com o docente universitário. Tal como há muito ocorre nos Estados Unidos, onde processos como este acontecem de modo mais drástico do que na Alemanha, o professor se converte lenta, mas inexoravelmente, em vendedor de conhecimentos, despertando até compaixão por não conseguir aproveitar melhor seus conhecimentos em beneficio de sua situação material. Não resta dúvida que há nisto um grande avanço de esclarecimento, em comparação à imagem do professor como um deus, tal como era considerado ainda nos Buddenbrook.s; ao mesmo tempo, porém, uma racionalidade estratégica nesses termos reduz o intelecto a mero valor de troca, o que é tão problemático como o é qualquer progresso no seio do existente.

Mencionei a função disciplinar. Se não me engano, com ela toco na questão central, embora seja necessário repetir que não se trata de conclusões de pesquisa. Por trás da imagem negativa do professor encontra-se o homem que castiga, figura que também ocorre no Processo de Kafka. Mesmo após a proibição dos castigos corporais, continuo considerando este contexto determinante no que se refere aos tabus acerca do magistério. Esta imagem representa o professor como sendo aquele que é fisicamente mais forte e castiga o mais fraco. Nesta função, que continua a ser atribuída ao professor mesmo depois que oficialmente deixou de existir, e em alguns Outros lugares parece constituir-se em valor permanente e compromisso autêntico, o docente infringe um antigo código de honra legado inconscientemente e com certeza conservado por crianças burguesas. Pode-se dizer que este não é um jogo honesto, limpo, não é um fair play. Esta unfairness(desonestidade) — e qualquer docente o percebe. inclusive o universitário — também afeta a vantagem do saber do professor frente ao saber de seus alunos, que ele utiliza sem ter direito para tanto, uma vez que a vantagem é indissociável de sua função, ao mesmo tempo em que sempre lhe confere uma autoridade de que dificilmente consegue abrir mão. Esta unfairness existe na ontologia do professor, na medida em que excepcionalmente posso usar o termo ontologia neste contexto. É só pensar como o professor universitário pode dispor da cátedra em longas exposições sem qualquer contestação, para se compartilhar este resultado. Quando a seguir o professor oferece aos estudantes a oportunidade de perguntar, procurando aproximar a aula expositiva de um seminário, ironicamente há muito pouca reciprocidade por parte dos alunos. Estes hoje em dia parecem preferir aulas como preleçoes expositivas dogmáticas. Mas de um certo modo não é somente a profissão do magistério que impele o professor à unfairness: o fato de saber mais, ter a vantagem e não poder negá-la. Ele também é impelido nessa direção pela sociedade, e isto me parece mais profundo. A sociedade permanece baseada na força física, conseguindo impor suas determinações quando é necessário somente mediante a violência física, por mais remota que seja esta possibilidade na pretensa vida normal. Da mesma maneira as disposições da chamada integração civilizatória que, conforme a concepção geral, deveriam ser providenciadas pela educação, podem ser realizadas nas condições vigentes ainda hoje apenas com o suporte do potencial da violência física. Esta violência física é delegada pela sociedade e ao mesmo tempo é negada nos delegados. Os executantes são bodes expiatórios para os mandantes. O modelo originário negativo — refiro-me a um imaginário de representações inconscientemente efetivas, e não a uma realidade, a não ser que esta seja referida de modo apenas rudimentar — é constituído pelo carcereiro ou, melhor ainda, o suboficial. Não sei até que ponto é procedente a afirmação de que nos séculos XVII e XVIII soldados veteranos eram aproveitados como professores nas escolas primárias. Mas certamente esta crença popular é bastante característica para a imagem do professor. A expressão "quem malha o traseiro". acima referida, tem conotação militar; inconscientemente os professores talvez sejam imaginados como veteranos, como uma espécie de mutilados, como pessoas que no âmbito da vida propriamente dita do processo real de reprodução da sociedade não têm nenhuma função, contribuindo apenas de um modo pouco transparente e pela via de uma graça especial à continuidade do conjunto e de sua própria vida. Mas, em decorrência dessa imagem, quem se opõe ao castigo físico defende o interesse do professor ao menos tanto quanto o interesse do aluno. Só é possível esperar alguma mudança neste complexo a que me refiro quando até o último resquício de punição tiver desaparecido da memória escolar, como parece ser o caso na maior parte dos Estados Unidos.

Uma parte constitutiva essencial deste complexo parece estar em que a sociedade que se apresenta como liberal-burguesa em hipótese nenhuma reconhece a necessidade da força física para uma formação social baseada na dominação. Isto ocasiona tanto a delegação da violência — um senhor jamais castiga — quanto o desprezo pelo professor que se encarrega de executar o que é necessário para tudo funcionar, sabidamente um mal que é duplamente rejeitado pelas pessoas, na medida em que elas próprias estão por trás da execução, e ao mesmo tempo se julgam boas demais para executá-la pelas próprias mãos. A minha hipótese é que a imagem de "responsável por castigos" determina a imagem do professor muito além das práticas dos castigos físicos escolares. Se eu tivesse que orientar investigações empíricas acerca do conjunto complexo do professor. então esta seria a primeira a me interessar. Ainda que em termos bastante brandos, repete-se na imagem do professor algo da imagem tão afetivamente carregada do carrasco.

Que este imaginário é exitoso em firmar a crença de que o professor não é um senhor, mas um fraco que castiga ou um monge sem cargo, isto pode ser comprovado de maneira drástica no plano erótico. Por um lado, ele não tem função erótica; por outro, desempenha um grande papel erótico, para adolescentes deslumbrados, por exemplo. Mas na maioria dos casos apenas como objeto inatingível; basta que se observem nele leves traços de simpatia, para difamá-lo como injusto. A característica de ser inatingível associa-se à imagem de um ser tendencialmente excluído da esfera erótica. Numa perspectiva psicanalítica, esse imaginário do professor relaciona-se à castração. Um professor que, como aconteceu em minha infância com um docente bastante humano, se veste de maneira elegante porque tem posses ou que, movido por orgulho acadêmico, ostenta comportamento que chama a atenção, imediatamente é ridicularizado. É difícil distinguir até que ponto tais tabus específicos são efetivamente apenas psicológicos ou até que ponto a práxis, a idéia do docente com a vida inquestionável enquanto modelo para os imaturos o obriga a uma ascese erótica maior do que ocorre em muitos outras profissões, como, por exemplo, a do representante, para nomear apenas uma. Nos romances e nas peças de crítica à escola de inícios do século, os professores com frequência aparecem como particularmente repressivos de um ponto de vista erótico, como em Wedekind, por exemplo; como seres inclusive sexualmente mutilados. Esta imagem do quase castrado, da pessoa neutralizada ao menos eroticamente, não livremente desenvolvida, esta imagem de pessoas descartadas na concorrência erótica, corresponde à infantilidade real ou imaginária do professor. Remeto ao grande romance Professor Unrat, de Heinrich Mann, conhecido da maioria provavelmente apenas na versão kitsch do filme O anjo azul. O tirano da escola, cuja decadência forma o conteúdo da obra, não tem a imagem transfigurada pela fachada de humor, como ocorre no filme. Ele de fato se relaciona com a prostituta, respeitosamente tratada por ele como uma artista chamada Fröhlich, exatamente como o fazem seus alunos secundaristas. Identifica-se com eles, como Heinrich Mann destaca explicitamente no texto. Ele o faz com todo seu horizonte intelectual e todas as suas formas de reação: ele mesmo é efetivamente uma criança. Nessa medida acrescenta-se ao desprezo pelo professor um aspecto suplementar: por mover-se num ambiente infantil que é o seu ou ao qual se adapta, ele não é considerado inteiramente como adulto, ao mesmo tempo em que de fato é um adulto que deriva suas exigências desta sua existência como tal. Sua dignidade desajeitada continua a ser experimentada como uma compensação insuficiente dessa discrepância.

Tudo isto é apenas a configuração especifica, relativa ao professor, de um fenômeno que em sua generalidade é conhecido na sociologia pelo nome de déformation professionelle. Contudo, na imagem do professor a déforrmation professionelle toma-se praticamente a própria definição da profissão. Em minha juventude contaram-me a anedota de um professor de colégio de Praga que teria dito: "Para tomarmos um exemplo da vida cotidiana: o general conquista a cidade". Com "um exemplo da vida cotidiana" pretendia-se falar do cotidiano escolar, continuamente povoado nas aulas de Latim por frases exemplares, paradigmas, do tipo do anunciado: o general toma a cidade. Aquilo que é relativo à escola, que justamente agora merece de novo tanta atenção, se impõe no lugar da realidade, que é mantida meticulosamente à distância por intermédio de dispositivos organizatórios. A infantilidade do professor apresenta-se pela sua atitude de substituir a realidade pelo mundo ilusório intramuros, pelo microcosmo da escola, que é isolado em maior ou menor medida da sociedade dos adultos — reuniões de pais e similares são modos desesperados de romper este isolamento. Este é um forte motivo pelo qual a escola defende tão encarniçadamente suas muralhas.

Com frequência os professores são vistos conforme as mesmas categorias com que se focaliza o infeliz herói de uma tragicomédia do naturalismo; em respeito a eles poderíamos falar de um complexo de devaneius. Eles encontram-se em permanente suspeição de estarem fora da realidade. Ao que tudo indica, não estão mais longe da realidade do que, por exemplo, os juizes, para quem o distanciamento da realidade seria uma característica fundamental, conforme as análises de Karl Kraus a partir dos processos judiciais no plano dos costumes. No estereótipo do "estar fora da realidade" fundem-se os traços infantis de alguns professores com os traços infantis de muitos estudantes. O que é infantil é o realismo supervalorizado dos mesmos. Na medida em que se adaptam de modo mais exitoso ao principio da realidade do que pode fazer o professor, que continuamente precisa anunciar e dar corpo a ideais de superego, acreditam compensar aquilo que acreditam ser o que lhes falta, isto é, não constituírem ainda sujeitos independentes. Talvez seja por isto que professores que jogam futebol ou são bons de copo sejam tão populares com os alunos, na medida em que correspondem à imagem de mundanalidade deles; em meus tempos de colégio eram particularmente populares os professores que correta ou incorretamente eram considerados como tendo pertencido às corporações acadêmicas. Reina uma espécie de antinomia: o professor e os alunos praticam injustiças uns em relação aos outros: aquele quando divaga sobre valores eternos, que na verdade não o são, e os alunos quando em resposta se decidem pela idolatria debilóide aos Beatles.

Nexos como esses podem revelar a função das peculiariedades dos professores que em tão ampla dimensão constituem alvo do rancor dos estudantes. O processo civilizatório de que os professores são agentes orienta-se para um nivelamento. Ele pretende eliminar nos alunos aquela natureza disforme que retoma como natureza oprimida nas idiossincrasias, nos maneirismos da linguagem, nos sintomas de estarrecimento, nos constrangimentos e nas inabilidades dos mestres. Triunfarão aqueles alunos que percebem no professor aquilo contra o que, de acordo com seu instinto, se dirige todo o sofrido processo educacional. Há nisto evidentemente uma crítica ao próprio processo educacional, que até hoje em geral fracassou em nossa cultura. Este fracasso é atestado também pela dupla hierarquia observável no âmbito da escola: a hierarquia oficial, conforme o intelecto, o desempenho, as notas, e a hierarquia não-oficial, em que a força física, o "ser homem" e todo um conjunto de aptidões prático-físicas não honradas pela hierarquia oficial desempenham um papel. O nazismo explorou esta dupla hierarquia inclusive fora da escola, na medida em que incitou a segunda contra a primeira, tal como incitaria o partido contra o Estado na macropolítica. A pesquisa pedagógica deveria dedicar especial atenção à hierarquia latente na escola.

As resistências das crianças e dos jovens, igualmente institucionalizadas na segunda hierarquia, foram em parte certamente transmitidas pelos pais. Muitas baseiam-se em estereótipos herdados; muitas, porém, como procurei mostrar, baseiam-se na situação objetiva do professor. A isto acrescenta-se algo essencial, bem conhecido da psicanálise. Na elaboração do complexo de Édipo, a separação do pai e a interiorização da figura paterna, as crianças notam que os próprios pais não correspondem ao ego ideal que lhes transmitem. Na relação com os professores este ego ideal se reapresenta pela segunda vez, possivelmente com mais clareza, e eles têm a expectativa de poder se identificar com os mesmos. Mas por muitas razões novamente isto se torna impossível para eles, sobretudo porque particularmente os próprios mestres constituem produtos da imposição da adequação, contra a qual se dirige o ego ideal da criança ainda não preparada para vínculos de compromisso. O magistério também é uma profissão burguesa; apenas o idealismo hipócrita poderia negá-lo. O professor não é aquela pessoa íntegra que forma a expectativa das crianças, por mais vaga que seja, mas alguém que no plano de todo um conjunto de outras oportunidades e tipos profissionais concentrou-se inevitavelmente como profissional na sua própria profissão, sendo propriamente já a priori o contrário daquilo que o inconsciente aguarda dele: que precisamente ele não seja um profissional, quando justamente ele precisa sê-lo. A sensibilidade idiossincrática das crianças em relação às particularidades dos professores, que possivelmente ultrapassa tudo que se possa imaginar como adulto, provém da constatação de que a existência particular renega o ideal de uma pessoa normal e verdadeira no sentido enfático com que as crianças vêem primariamente os professores, mesmo que já tenham passado por alguma experiência em que se exige astúcia ou algum estereótipo que imponha dureza. Soma-se um momento social que condiciona tensões praticamente inevitáveis. A criança é retirada da primary community (comunidade primária) de relações imediatas, protetoras e cheias de calor, frequentemente já no jardim-de-infancia, e na escola experimenta pela primeira vez de um modo chocante e ríspido, a alienação; para o desenvolvimento individual dos homens a escola constitui quase o protótipo da própria alienação social. O costume que os professores tinham antigamente de distribuir biscoitos entre os alunos no primeiro dia de aula revelaria um pressentimento: serviria para amainar o choque. O agente dessa alienação é a autoridade do professor, e a resposta a ela é a apreensão negativa da imagem do professor. A civilização que ele lhes proporciona, as privações que lhes impõe, mobilizam automaticamente nas crianças as imagens do professor que se acumularam no curso da história e que, como todas as sobras remanescentes no inconsciente, podem ser despertadas conforme as necessidades da economia psíquica. Os professores têm tanta dificuldade em acertar justamente porque sua profissão lhes nega a separação entre seu trabalho objetivo — e seu trabalho em seres humanos vivos é tão objetivo quanto o do médico, nisto inteiramente análogo — e o plano afetivo pessoal, separação possível na maioria das outras profissões. Pois seu trabalho realiza-se sob a forma de uma relação imediata, um dar e receber, para a qual, porém, este trabalho nunca pode ser inteiramente apropriado sob o jugo de seus objetivos altamente mediatos. Por principio, o que acontece na escola permanece muito aquém do passionalmente esperado. Nesta medida, o próprio oficio do professor permaneceu arcaicamente muito aquém da civilização que ele representa; talvez as máquinas educativas o dispensem de uma demanda humana que se encontra impedido de realizar. Um tal arcaismo correspondente à profissão do professor como tal não apenas promove os simbolos arcaicos dos professores, mas também desperta os arcaismos no próprio comportamento destes, quando ralham, repreendem, discutem etc.; atitudes tanto próximas da violência física quanto reveladoras de momentos de fraqueza e insegurança. Mas, se o professor não reagisse subjetivamente, se ele realmente fosse tão objetivo a ponto de nunca possibilitar reações incorretas, então pareceria aos alunos ser ainda mais desumano e frio, sendo possivelmente ainda mais rejeitado por eles. Assim pode-se notar que não exagerei ao me referir a uma antinomia. A solução, se posso dizer assim, pode provir apenas de uma mudança no comportamento dos professores. Eles não devem sufocar suas reações afetivas, para acabar revelando-as em forma racionalizada, mas deveriam conceder essas reações afetivas a si próprios e aos outros, desarmando desta forma os alunos. Provavelmente um professor que diz: "sim, eu sou injusto, eu sou uma pessoa como vocês, a quem algo agrada e algo desagrada" será mais convincente do que um outro apoiado ideologicamente na justiça, mas que acaba inevitavelmente cometendo injustiças reprimidas. Diga-se de passagem que tais reflexões implicam imediatamente a necessidade de conscientização e de aprendizado psicanalítico para o magistério.

Por fim coloca-se a questão inevitável do "que fazer?", para a qual neste caso, como em geral, considero-me extremamente desautorizado. Muitas vezes esta questão sabota o desenvolvimento consequente do conhecimento, necessário para possibilitar qualquer transformação. Nas discussões acerca dos problemas aqui aventados já se automatizou a atitude do "é um belo discurso, mas a situação se coloca de modo diferente para quem trabalha em meio à questão". De qualquer modo posso enumerar alguns aspectos sem qualquer pretensão sistemática ou de resultados maiores. Em primeiro lugar, impõe-se um esclarecimento acerca do complexo em seu conjunto, nos termos em que foi aqui abordado, esclarecimento dos próprios professores, dos pais e, tanto quanto possível, também dos alunos, com quem os professores deveriam conversar sobre as questões cheias de tabus. Não evito a hipótese de que em geral é possível conversar com muito mais seriedade e maturidade com as crianças do que os adultos querem reconhecer para assegurar-se, por esta via, de sua própria maturidade. Mas não se deve superestimar a possibilidade de um tal esclarecimento. As motivações em causa, como assinalei, são muitas vezes inconscientes, e a mera nomeação de situações inconscientes, como se sabe, é inútil, de modo que aqueles em que essas situações se localizam não são esclarecidos espontaneamente em sua própria experiência; nesses termos, o esclarecimento só se verifica a partir do exterior. Com base nessa constatação, uma trivialidade psicanalítica, não se deve esperar muito do esclarecimento meramente intelectual, embora se deva iniciar por seu intermédio; um esclarecimento um pouco insuficiente e apenas parcialmente eficiente ainda é melhor do que nenhum. Além disto seria necessário eliminar quaisquer limitações e obstáculos ainda existentes na realidade que dão suporte aos tabus com que se cercou o magistério. Sobretudo é necessário tratar aqueles pontos nevrálgicos ainda na fase de formação dos professores, em vez de orientar a sua formação pelos tabus vigentes. Em nenhuma hipótese a vida privada dos docentes pode ser submetida a qualquer controle que não o das disposições do direito penal. Seria preciso contrapor-se à ideologia da escola, teoricamente de difícil apreensão, e que também seria renegada, mas que perpassa com tenacidade a prática escolar conforme as minhas observações. A escola possui uma tendência imanente a se estabelecer como esfera da própria vida e dotada de legislação própria. É difícil decidir até que ponto isto é necessário para que ela realize a sua tarefa; certamente não se trata de ideologia. Uma escola aberta ao exterior sem qualquer restrição provavelmente também abriria mão dos aspectos de formação e de amparo. Não me envergonho de ser considerado reacionário na medida em que penso ser mais importante às crianças aprenderem na escola um bom latim, de preferência a estilística latina, do que fazerem tolas viagens a Roma que, via de regra, resultam apenas em desarranjos intestinais sem qualquer aprendizado essencial acerca de Roma. Certamente, na medida em que as pessoas da escola não permitem interferências, o fechamento da escola sempre tende a se enrijecer, sobretudo face à crítica. Tucholsky exemplificaria com aquela malvada diretora de escola rural, que justifica quaisquer horrores cometidos contra seus alunos frente ao protesto do simpático casal de namorados com a explicação: "aqui as coisas são feitas assim". Não interessa saber quanto deste "isto é feito assim"‘ continua dominando a prática escolar. Esta postura é corrente. Seria necessário explicar que a escola não constitui um fim em si mesma, que o fato de ser fechada constitui uma necessidade e não uma virtude como a consideram inclusive determinadas formas do movimento da juventude, por exemplo a fórmula imbecil da cultura jovem como sendo uma cultura própria, atualmente festejada no plano da ideologia da juventude como subcultura.

Por enquanto, embora em grande medida desapareça sua base social, a deformação psicológica de muitos professores perdura, se minhas observações nos exames oficiais de seleção não me enganam. Se abstrairmos da supressão dos controles ainda remanescentes, essa deformação deveria ser corrigida sobretudo mediante a formação profissional. No caso de colegas mais antigos, haveria que se apelar simplesmente —- mediante perspectivas problematizadoras — a que Condutas autoritárias prejudicam o objetivo educacional que também eles defendem racionalmente. Sempre ouvimos, e me restrinjo ao registro sem qualquer intenção de juízo, que se rompem acordos de estudos no que se refere ao tempo de formação, sem levar em conta se deste modo se elimina seu élan, seu conteúdo mais importante. Mudanças de fundo exigem pesquisas acerca do processo da formação profissional Seria preciso atentar especialmente até que ponto o conceito de "necessidade da escola" oprime a liberdade intelectual e a formação do espírito. Isto se revela na hostilidade em relação ao espírito desenvolvido por parte de muitas administrações escolares, que sistematicamente impedem o trabalho científico dos professores, permanentemente mantendo-os down to earth (com os pés no chão), desconfiados em relação àqueles que, como afirmam, pretendem ir mais além ou a outra parte. Uma tal hostilidade, dirigida aos próprios professores, facilmente prossegue na relação da escola com os alunos.

Referi-me aos tabus acerca do magistério, e não à realidade da docência e nem à constituição efetiva dos docentes; mas ambos os planos não são inteiramente independentes entre si. De qualquer modo podem ser observados sintomas que justificam a esperança de que tudo isto se transforme quando a democracia tomar a sério sua chance, desenvolvendo-se na Alemanha. Esta é uma dessas parcelas limitadas da realidade para a qual a reflexão e a ação individual podem contribuir. Não é por acaso que o livro que considero politicamente mais importante publicado na Alemanha dos últimos vinte anos, seja o de um professor: Sobre a Alemanha, de Richard Matthias Müller. Mas não se deve esquecer que a chave da transformação decisiva reside na sociedade e em sua relação com a escola. Contudo, neste plano, a escola não é apenas objeto. A minha geração vivenciou o retrocesso da humanidade à barbárie, em seu sentido literal, indescritível e verdadeiro. Esta é uma situação em que se revela o fracasso de todas aquelas configurações para as quais vale a escola. Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível sombra sobre a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural, então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades. E para isto ela precisa libertar-se dos tabus, sob cuja pressão se reproduz a barbárie. O pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que, no âmbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarização da humanidade, na medida em que se conscientiza disto. Com barbárie não me refiro aos Beatles, embora o culto aos mesmos faça parte dela, mas sim ao extremismo: o preconceito delirante, a opressão, o genocídio e a tortura; não deve haver dúvidas quanto a isto. Na situação mundial vigente, em que ao menos por hora não se vislumbram outras possibilidades mais abrangentes, é preciso contrapor-se à barbárie principalmente na escola. Por isto, apesar de todos os argumentos em contrário no plano das teorias sociais, é tão importante do ponto de vista da sociedade que a escola cumpra sua função, ajudando, que se conscientize do pesado legado de representações que carrega consigo.


Notas de rodapé:

(1) Agradeço a Jacob Tatibes por esta referência. (retornar ao texto)

Inclusão 21/11/2018