A Revolução Traída
O que é e para onde vai a URSS?

Leon Trotsky


Introdução: o propósito desse trabalho


Num primeiro momento, o mundo burguês tentou não divulgar os sucessos econômicos do regime soviético – a prova experimental, isto é, a aplicabilidade dos métodos soviéticos. Os economistas autorizados do capital frequentemente ainda tentam manter um silêncio meditativo sobre o ritmo de desenvolvimento industrial sem precedentes da Rússia ou se confinam em comentar sobre uma extrema “exploração do campesinato”. Eles estão perdendo uma oportunidade incrível de explicar o porquê da exploração brutal do campesinato na China, por exemplo, Japão ou Índia nunca produziu um ritmo de crescimento industrial remotamente próximo daquele da União Soviética.

Os fatos, afinal, são o critério da verdade. As livrarias de todos os países civilizados estão hoje cheias de livros sobre a União Soviética. E isso não é de admirar; pois os prodígios são raros. A literatura ditada pela reação cega e cheia de ódio está diminuindo rapidamente. Uma notável proporção dos mais recentes trabalhos da União Soviética adota um tom favorável - isso quando não entusiástico. Como sinal da crescente reputação do Estado “novo-rico”, essa abundância de literatura pró soviética só pode ser bem-vinda. Ademais, é incomparavelmente melhor idealizar a União Soviética que a Itália fascista. O leitor, entretanto, iria procurar em vão nas páginas dessa literatura uma ponderação científica sobre o que de fato está acontecendo na pátria da revolução de Outubro.

Os escritos dos “amigos da União Soviética” podem ser classificados normalmente em três categorias:

  1. Um jornalismo diletante, com um teor mais ou menos de “esquerda”; compõe a principal quantidade dos artigos e livros;
  2. Ao lado desses, embora mais pretensiosos, encontramos a produção de um “comunismo” lírico, humanitário e pacifista;
  3. Em terceiro lugar vem a literatura de esquematismo econômico, ao velho estilo alemão do Socialismo de Cátedra(1).

Louis Fischer e Duranty são os suficientemente bem-conhecidos representantes do primeiro tipo. O último Barbusse e o romano Rolland representa a categoria dos amigos “humanitários”. Não é acidental que antes da chegada de Stálin o primeiro escreveu uma biografia de Cristo e o segundo uma de Gandhi. Finalmente, o socialismo pedante e conservador tem a sua maior expressão no incansável casal Fabiano: Beatrice e Sidney Webb.

O que unifica essas três categorias, apesar das diferenças, é uma subserviência ante aos fatos tais como são e uma parcialidade de fazer generalizações que tranquilizam o leitor. Se revoltar contra o capitalismo está além do escopo desses escritores. Eles são os mais prontos, portanto, para levantar a bandeira de uma revolução estrangeira, que ia se tornando mais importante nos seus meios. Antes da revolução de Outubro – e uns tantos anos depois, vale dizer – ninguém dessa gente, nem de seus amigos mais chegados, deram uma contribuição sequer sobre como o socialismo iria chegar à Terra. Isso torna mais fácil para eles identificar com socialismo o que se passa na União Soviética. Isso os dá não somente o aspecto de pessoas progressistas, marchando à sua época, como dá também uma certa estabilidade moral. E ao mesmo tempo isso não os compromete com coisa alguma. Esse tipo de literatura otimista, contemplativa, quando não, destrutiva, que vê todas as falhas somente no passado, tem um efeito bastante tranquilizante na cabeça do leitor, e, exatamente por isso, acha um mercado pronto a consumir seus trabalhos. Assim, há uma aproximação sorrateira desses escritores com uma escola internacional do tipo Socialismo para a Burguesia Culta, ou, de forma mais consequente, Socialismo para Turistas Radicais.

Nós não vamos entrar em polêmica com esses senhores, haja vista que não apresentam qualquer material sério que mereça uma polêmica. As questões se encerram para eles assim que elas começam. O propósito desse trabalho é estimar corretamente o que é [a URSS](2) para melhor entender o que está se tornando. Nós vamos recorrer ao passado somente na medida em que isso nos ajude a ver o futuro. Nosso livro será crítico. Quem quer que seja que adore os fatos tais como são, se mostram incapazes de preparar o futuro.

O processo de desenvolvimento econômico e cultural da União Soviética já passou por vários estágios, mas jamais chegou a atingir um equilíbrio interno. Se você se lembrar que a tarefa do socialismo é construir uma sociedade sem classes baseada na solidariedade e na satisfação harmoniosa de todas as necessidades, então ainda não há, nessa concepção fundamental, qualquer sombra de socialismo na União Soviética. Mas eles estão, não obstante, bastante tensionados. Eles acham sua expressão em desigualdades econômicas e cultural, repressão governamental, agrupamentos políticos e luta de frações. A repressão policial silencia e distorce a luta política, mas não a elimina. As ideias que foram proibidas exercem uma influência na política governamental, seja a estimulando, seja a bloqueando. Nessas circunstâncias, uma análise do desenvolvimento da União Soviética não pode negligenciar, nem por um minuto, essas ideias e slogans sob os quais uma asfixiada porém apaixonada luta política está se desenvolvendo país adentro. Aqui, a história se funde à política.

Os sensatos filistinos “de esquerda” adoram nos dizer que no processo de crítica à União Soviética nós devemos ser extremamente cautelosos para que não lesemos o processo de construção socialista. Da nossa parte, estamos longe de considerar a União Soviética uma estrutura tão instável. Os inimigos da União Soviética estão muito melhor informados sobre isso do que os seus aliados, os trabalhadores de todos os países. Nos Estados-Maiores dos governos imperialistas há uma balança precisa sobre os prós e contras da União Soviética, e não é em base a notícias públicas. O inimigo pode, infelizmente, tirar vantagem do lado fraco do Estado Operário, mas jamais de uma crítica dessas tendências, as quais eles mesmos consideram características favoráveis. A hostilidade à crítica por parte da maioria desses “amigos” revela não um medo da fragilidade da União Soviética, senão da própria fragilidade do apoio que têm à União Soviética. Nós podemos, com tranquilidade, desconsiderar todos esses tipos de medos. Fatos, e não ilusões, são o que realmente decidem. Nós desejamos ver a cara, não a máscara.

4 de agosto de 1936

Posfácio

Esse livro foi completado e mandado para a edição antes de que os “terroristas” processos de Moscou fossem anunciados. Naturalmente, portanto, os procedimentos dos julgamentos não puderam ser avaliados nessas páginas. Sua indicação de lógica história desse julgamento “terrorista” e sua exposição avançada do fato de que seus segredos são mistificações deliberadas, é, de longe, o mais significante.

Setembro de 1936


Notas de rodapé:

(1) Em alemão, no original: “Katheder-Sozializmus”, Nota do Tradutor (N.T.). (retornar ao texto)

(2) Entre colchetes, (N.T.). (retornar ao texto)

PSTU
Inclusão 10/06/2014