Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

Karl Marx


Parte 1 – O Estado (§§ 261-271)


1.1 — Direito Privado frente ao Estado

§ 261. Em face das esferas do direito privado e do bem privado, da família e da sociedade civil, o Estado é, de um lado, uma necessidade externa e sua potência superior, a cuja natureza as leis daquelas esferas, bem como seus interesses, encontram-se subordinados e da qual são dependentes; porém, de outro lado, é o Estado seu fim imanente e tem sua força na unidade de seu fim último geral e no interesse particular dos indivíduos, na medida em que tais indivíduos têm deveres perante ele assim como, ao mesmo tempo, têm direitos(1).

O parágrafo precedente nos ensina que a liberdade concreta(2) consiste na identidade – normativa, dúplice (sein sollende, zwieschlächtige)(3) – do sistema de interesses particulares (da família e da sociedade civil) com o sistema do interesse geral (do Estado). A relação dessas esferas será, agora, determinada mais de perto.

De um lado, o Estado é, em face das esferas da família e da sociedade civil, uma “necessidade externa”, uma potência à qual “leis” e “interesses” são “subordinados” e da qual são “dependentes”. Que o Estado seja, em face da família e da sociedade civil, uma “necessidade externa”, isso já se encontrava em parte na categoria da “transição”, em parte em sua “relação consciente” para com o Estado. A “subordinação” ao Estado ainda corresponde plenamente a essa relação da “necessidade externa”. Mas o que Hegel entende por “dependência” mostra-se na seguinte frase da nota a esse parágrafo:

Que a ideia da dependência, particularmente das leis do direito privado, em relação ao caráter determinado do Estado, e a concepção filosófica de que a parte deve ser considerada somente em relação com o todo, já o havia visualizado [...] principalmente Montesquieu etc.

Hegel fala aqui, portanto, da dependência interna ou da determinação (Bestimmung) essencial do direito privado etc. pelo Estado; mas, ao mesmo tempo, ele subsume essa dependência na relação da “necessidade externa” e a contrapõe, como o outro lado, à outra relação, em que família e sociedade civil se comportam em relação ao Estado como seu “fim imanente”.

Por “necessidade externa” pode-se somente entender que “leis” e “interesses” da família e da sociedade civil devem ceder, em caso de colisão, às “leis” e “interesses” do Estado; que aquelas são subordinadas a este; que sua existência é dependente da existência do Estado; ou também que a vontade e as leis do Estado aparecem à sua “vontade” e às suas “leis” como uma necessidade.

Mas Hegel não fala, aqui, de colisões empíricas; ele fala da relação das “esferas do direito privado e do bem privado, da família e da sociedade civil” com o Estado; trata-se da relação essencial dessas próprias esferas. Não apenas seus “interesses”, mas também suas “leis”, suas determinações essenciais são “dependentes” do Estado e à ele “subordinadas”. Ele se relaciona com seus interesses e leis como “potência superior”. Tais “interesses” e “leis” apresentam-se como seus “subordinados”. Eles vivem na “dependência” do Estado. Precisamente porque “subordinação” e “dependência” são relações externas, que restringem e se contrapõem à essência autônoma, é a relação da “família” e da “sociedade civil” com o Estado aquela da “necessidade externa”, de uma necessidade que vai contra a essência interna da coisa. Que “as leis do direito privado” dependem “do caráter determinado do Estado”, que elas se modificam segundo ele, é algo que está subsumido na relação da “necessidade externa”, precisamente porque “sociedade civil e família”, em seu verdadeiro, quer dizer, autônomo e pleno desenvolvimento, são pressupostas ao Estado como “esferas” particulares. “Subordinação” e “dependência” são as expressões para uma identidade “externa”, forçada e aparente, para cuja expressão lógica Hegel utiliza, corretamente, a “necessidade externa”. Na “subordinação” e na “dependência”, Hegel continuou a desenvolver o lado da identidade discrepante, o lado da alienação no interior da unidade,

porém, de outro lado, é o Estado seu fim imanente e tem sua força na unidade de seu fim último geral com os interesses particulares dos indivíduos, na medida em que tais indivíduos têm deveres perante ele assim como têm direitos.

Hegel estabelece, aqui, uma antinomia sem solução. De um lado, necessidade externa; de outro, fim imanente. A unidade do fim último geral do Estado e dos interesses particulares dos indivíduos deve consistir em que seus deveres para com o Estado e seus direitos em relação a ele sejam idênticos. (Assim, por exemplo, o dever de respeitar a propriedade coincide com o direito sobre ela).

Essa identidade torna-se explícita na nota ao parágrafo:

Uma vez que o dever é, primeiramente, a relação perante algo para mim substancial, algo em si e para si geral, e o direito é, pelo contrário, a existência em geral dessa substancialidade e, com isso, o lado de sua particularidade e de minha liberdade particular, ambos aparecem, assim, nos níveis formais, divididos em lados ou pessoas distintos. O Estado, como fato da eticidade (Sittlichkeit), como interpenetração da substancialidade e do particular, estabelece que minha obrigação perante a substancialidade é, ao mesmo tempo, a existência de minha liberdade particular, quer dizer, no Estado dever e direito estão unidos em uma e na mesma ligação.

§ 262. A Ideia real, o Espírito, que se divide ele mesmo nas duas esferas ideais de seu conceito, a família e a sociedade civil, como em sua finitude, para ser, a partir da idealidade delas, Espírito real e infinito para si, divide, por conseguinte, nessas esferas, a matéria dessa sua realidade, os indivíduos como a multidão, de maneira que, no singular, essa divisão aparece mediada pelas circunstâncias, pelo arbítrio e pela escolha própria de sua determinação.

Se traduzirmos essa frase em prosa, teremos:

O que serve de mediação para a relação entre o Estado, a família e a sociedade civil são as “circunstâncias, o arbítrio e a escolha própria da determinação”. A razão do Estado nada tem a ver, portanto, com a divisão da matéria do Estado em família e sociedade civil. O Estado provém delas de um modo inconsciente e arbitrário. Família e sociedade civil aparecem como o escuro fundo natural donde se acende a luz do Estado. Sob a matéria do Estado estão as funções do Estado, bem entendido, família e sociedade civil, na medida em que elas formam partes do Estado, em que participam do Estado como tal.

Essa argumentação é notável em dois sentidos:

1) Família e sociedade civil são apreendidas como esferas conceituais do Estado e, com efeito, como as esferas de sua finitude, como sua finitude. É o Estado que nelas se divide, o que as pressupõe; e ele o faz, em verdade, “para ser, a partir da idealidade delas, Espírito real e infinito para si”. “Ele se divide, para”. Ele “divide, por conseguinte, em esferas, a matéria de sua realidade, de maneira que essa divisão etc. apareça mediada”. A assim denominada “Ideia real” (o Espírito como infinito, real) é, portanto, apresentada como se ela agisse segundo um princípio determinado, mediante um desígnio determinado. Ela se divide em esferas finitas e o faz “para a si retornar, para ser para si”; ela o faz de um modo que é precisamente como é na realidade.

Aqui aparece claramente o misticismo lógico, panteísta.

A relação real é: “que a divisão” da matéria do Estado é, “no singular, mediada pelas circunstâncias, pelo arbítrio e pela escolha própria de sua determinação”. Esse fato, essa relação real é expressa, pela especulação, como manifestação, fenômeno. Essas circunstâncias, esse arbítrio, essa escolha da determinação, essa mediação real são tão somente a manifestação de uma mediação que a Ideia real executa nela mesma e que se passa por detrás das cortinas. A realidade não é expressa como ela mesma, mas sim como uma outra realidade. A empiria ordinária não tem como lei o seu próprio espírito, mas um espírito estranho e, ao contrário, a Ideia real tem como sua existência não uma realidade desenvolvida a partir dela mesma, mas a empiria ordinária, comum.

A Ideia é subjetivada e a relação real da família e da sociedade civil com o Estado é apreendida como sua atividade interna imaginária. Família e sociedade civil são os pressupostos do Estado; elas são os elementos propriamente ativos; mas, na especulação, isso se inverte. No entanto, se a Ideia é subjetivada, os sujeitos reais, família e sociedade civil, “circunstâncias, arbítrio” etc. convertem-se em momentos objetivos da Ideia, irreais e com um outro significado.

A divisão da matéria do Estado “no singular, pelas circunstâncias, pelo arbítrio e pela escolha própria de sua determinação”, tudo isso não é simplesmente expresso como o verídico, o necessário, o legítimo em si e para si; não é dado como tal para o racional; mas, por outro lado, o é apenas na medida em que se dá para uma mediação aparente, em que é deixado tal como é; porém, ao mesmo tempo, recebe a significação de uma determinação da Ideia, de um resultado, um produto da Ideia. A diferença não reside no conteúdo, mas no modo de tratamento ou no modo de expressão. Trata-se de uma dupla história, uma esotérica e outra exotérica. O conteúdo permanece na parte exotérica. O interesse da parte esotérica é sempre o de novamente achar, no Estado, a história do Conceito lógico. Mas é na parte exotérica que o desenvolvimento verdadeiro prossegue.

Racionalmente, as sentenças de Hegel significam apenas que:

A família e a sociedade civil são partes do Estado. Nelas, a matéria do Estado é dividida “pelas circunstâncias, pelo arbítrio e pela escolha própria da determinação”. Os cidadãos do Estado (Staatsbürger) são membros da família e membros da sociedade civil.

1.2 – O Estado como manifestação da Ideia ou produto do homem

“A Ideia real, o Espírito, que se divide ele mesmo nas duas esferas ideais de seu conceito, a família e a sociedade civil, como em sua finitude” (portanto: a divisão do Estado em família e sociedade civil é ideal, isto é, necessária, pertence à essência do Estado; família e sociedade civil são partes reais do Estado, existências espirituais reais da vontade; elas são modos de existência do Estado; família e sociedade civil se fazem, a si mesmas, Estado. Elas são a força motriz. Segundo Hegel, ao contrário, elas são produzidas pela Ideia real. Não é seu próprio curso de vida que as une ao Estado, mas é o curso de vida da Ideia que as discerniu de si; e, com efeito, elas são a finitude dessa Ideia; elas devem a sua existência a um outro espírito que não é o delas próprio; elas são determinações postas por um terceiro, não autodeterminações; por isso, são também determinadas como “finitude”, como a finitude própria da “Ideia real”. A finalidade de sua existência não é essa existência mesma, mas a Ideia segrega de si esses pressupostos “para ser, a partir da idealidade delas, espírito real e infinito para si”, quer dizer, o Estado político não pode ser sem a base natural da família e a base artificial da sociedade civil; elas são, para ele, conditio sine qua non.(4) Mas a condição torna-se o condicionado, o determinante Ideia real só se degrada, rebaixa-se à “finitude” da família e da sociedade civil, para, por meio da suprassunção destas, produzir e gozar sua infinitude); ela divide, por conseguinte (para alcançar sua finalidade), nessas esferas, a matéria dessa sua realidade finita (dessa qual? Essas esferas são, de fato, a “sua realidade finita”, sua “matéria”?), os “indivíduos como a multidão” (“os indivíduos, a multidão” são aqui matéria do Estado, “deles provém o Estado”, essa sua procedência se expressa como um ato da Ideia, como uma “distribuição” que a Ideia leva a cabo com sua própria matéria. O fato é que o Estado se produz a partir da multidão, tal como ela existe na forma dos membros da família e dos membros da sociedade civil. A especulação enuncia esse fato como um ato da Ideia, não como a ideia da multidão, senão como o ato de uma ideia subjetiva e do próprio fato diferenciada), “de maneira que essa divisão, no singular (antes, o discurso era apenas o da divisão dos singulares nas esferas da família e da sociedade civil), pelas circunstâncias, pelo arbítrio etc. aparece mediada”. A realidade empírica é, portanto, tomada tal como é; ela é, também, enunciada como racional; porém, ela não é racional devido à sua própria razão, mas sim porque o fato empírico, em sua existência empírica, possui um outro significado diferente dele mesmo. O fato, saído da existência empírica, não é apreendido como tal, mas como resultado místico. O real torna-se fenômeno; porém, a Ideia não tem outro conteúdo a não ser esse fenômeno. Também não possui a Ideia outra finalidade a não ser a finalidade lógica: “ser espírito real para si infinito”. Nesse parágrafo, encontra-se resumido todo o mistério da filosofia do direito e da filosofia hegeliana em geral.

§ 263. Nessas esferas, nas quais seus momentos, a singularidade e a particularidade, possuem sua realidade imediata e refletida, o Espírito é como sua universalidade objetiva que nelas se manifesta, como a potência do racional na necessidade, quer dizer, como as instituições anteriormente tratadas.

§ 264. Os indivíduos da multidão, na medida em que contêm, eles mesmos, naturezas espirituais e, com isso, o dúplice momento, quer dizer, o extremo da singularidade que sabe e quer para si e o extremo da universalidade que sabe e quer o substancial e que, por isso, só podem chegar ao direito na medida em que sejam reais como pessoas privadas e, ao mesmo tempo, como pessoas substanciais – atingem, em cada esfera, em parte, imediatamente o primeiro extremo e, em parte, o outro, de maneira que têm a sua autoconsciência essencial nas instituições como o universal em si existente de seus interesses particulares e que, em parte, erigem um ofício e uma atividade na corporação voltados a um fim geral.

§ 265. Essas instituições fazem, em particular, a constituição, isto é, a racionalidade desenvolvida e realizada e são, por isso, a base firme do Estado, bem como da confiança e da disposição (Gesinnung) dos indivíduos em relação a ele e aos pilares fundamentais da liberdade pública, visto que nelas a liberdade particular se realiza e se racionaliza, de modo que a união da liberdade e da necessidade venha a existir em si, nelas mesmas.

§ 266. Somente(5) o Espírito é objetivo e real não apenas como essa (qual?)(6) necessidade [...], mas como a idealidade dessa necessidade e como sua interioridade; assim, essa universalidade substancial é, para ela mesma, objeto e fim, e essa necessidade se encontra, por isso, igualmente na forma da liberdade.

A passagem da família e da sociedade civil ao Estado político consiste, portanto, em que o espírito dessas esferas, que é em si o espírito do Estado, se comporte agora, também, como tal em relação a si mesmo e que ele seja, quanto a sua interioridade, real em si. A passagem não é, portanto, derivada da essência particular da família etc. e da essência particular do Estado, mas da relação universal entre necessidade e liberdade. É exatamente a mesma passagem que se realiza, na lógica, da esfera da Essência à esfera do Conceito. A mesma passagem é feita, na filosofia da natureza, da natureza inorgânica à vida. São sempre as mesmas categorias que animam ora essas, ora aquelas esferas. Trata-se apenas de encontrar, para determinações singulares concretas, as determinações abstratas correspondentes.

§ 267. A necessidade na idealidade é o desenvolvimento da Ideia dentro de si mesma; ela é, como substancialidade subjetiva, a disposição política e, como objetiva, diferentemente daquela, é o organismo do Estado, o Estado propriamente político e sua constituição.

O sujeito é, aqui, a “necessidade na idealidade”, a “Ideia dentro de si mesma”; o predicado é a disposição política e a constituição política. Em linguagem clara: a disposição política é a substância subjetiva do Estado e a constituição política sua substância objetiva. O desenvolvimento lógico da família e da sociedade civil ao Estado é, portanto, pura aparência, pois não se desenvolve como a disposição familiar, a disposição social; a instituição da família e as instituições sociais como tais relacionam-se com a disposição política e com a constituição política e com elas coincidem.

A passagem em que o Espírito é “não apenas como essa necessidade e como um reino da aparência”, mas como “sua idealidade”, como a alma desse reino que é para si real e que possui uma existência particular, não é de modo algum uma passagem, uma vez que a alma da família existe para si como amor etc. A pura idealidade de uma esfera real só poderia, contudo, existir como ciência.

O importante é que Hegel, por toda parte, faz da Ideia o sujeito e do sujeito propriamente dito, assim como da “disposição política”, faz o predicado. O desenvolvimento prossegue, contudo, sempre do lado do predicado.

1.3 — O Sentimento Político

O parágrafo 268 contém uma bela exposição sobre a disposição política, o patriotismo, que não tem nada em comum com o desenvolvimento lógico, a não ser que Hegel a determina “somente” como “resultado das instituições existentes no Estado, nas quais a racionalidade existe realmente”, enquanto, por outro lado, essas instituições são, ao mesmo tempo, uma objetivação da disposição política. Cf. a nota a esse parágrafo.

§ 269. A disposição toma seu conteúdo particularmente determinado dos diferentes lados do organismo do Estado. Esse organismo é o desenvolvimento da Ideia em suas distinções e em sua realidade objetiva. Esses lados distintos são, assim, os diferentes poderes, suas funções e suas atividades, por meio dos quais o universal continuamente, e aliás na medida em que esses poderes são determinados pela natureza do Conceito, se mantém, se engendra de modo necessário e, na medida em que é igualmente pressuposto de sua produção, conserva a si mesmo; – esse organismo é a constituição política.

A constituição política é o organismo do Estado, ou o organismo do Estado é a constituição política. Que os diferentes lados de um organismo se encontrem em uma coesão necessária e oriunda da natureza do organismo, é pura tautologia. Que, uma vez que a constituição política é determinada como organismo, os diferentes lados da constituição, os diferentes poderes, relacionem-se como determinações orgânicas e se encontrem em uma relação racional recíproca, é, igualmente, tautologia. É um grande progresso tratar o Estado político como um organismo, tratar, por consequência, a distinção dos poderes não mais como uma distinção anorgânica(7), mas como uma distinção viva e racional. Mas como Hegel apresenta essa descoberta?

“Esse organismo é o desenvolvimento da Ideia em suas distinções e em sua realidade objetiva.” Isso não significa: esse organismo do Estado é seu desenvolvimento em distinções e em sua realidade objetiva. O verdadeiro pensamento é: o desenvolvimento do Estado ou da constituição política em distinções e em sua realidade é um desenvolvimento orgânico. O pressuposto, o sujeito, são as distinções reais ou os diferentes lados da constituição política. O predicado é a sua determinação como orgânicos. Em vez disso, a Ideia é feita sujeito, as distinções e sua realidade são postas como seu desenvolvimento, como seu resultado, enquanto, pelo contrário, a Ideia deve ser desenvolvida a partir das distinções reais. O orgânico é justamente a ideia das distinções, a determinação ideal destas. Mas aqui se fala da Ideia como de um sujeito, da Ideia que se desenvolve em suas distinções. Além dessa inversão de sujeito e predicado, produz-se aqui a aparência de que o discurso trata de outra ideia que não a do organismo. Parte-se da Ideia abstrata, cujo desenvolvimento no Estado é a constituição política. Não se trata, portanto, da ideia política, mas da Ideia abstrata no elemento político. Quando eu digo: “Esse organismo (organismo do Estado, a constituição política) é o desenvolvimento da Ideia em suas distinções etc.”, não sei ainda absolutamente nada sobre a ideia específica da constituição política; a mesma sentença pode ser dita, com a mesma verdade, tanto do organismo animal quanto do organismo político. Em que se diferencia, portanto, o organismo animal do organismo político? Tal distinção não resulta dessa determinação universal. Mas uma explicação que não dá a differentia specifica não é uma explicação. O único interesse é, pura e simplesmente, reencontrar “a Ideia”, a “Ideia lógica” em cada elemento, seja o do Estado, seja o da natureza, e os sujeitos reais, como aqui a “constituição política”, convertem-se em seus simples nomes, de modo que há apenas a aparência de um conhecimento real, pois esses sujeitos reais permanecem incompreendidos, visto que não são determinações apreendidas em sua essência específica.

“Esses lados distintos são, assim, os diferentes poderes, suas funções e sua atividade.” Por meio da pequena palavra “assim”, cria-se a aparência de uma consequência, de uma derivação, de um desenvolvimento. Deve-se, antes, perguntar: “Como assim?”. Que os “diferentes lados do organismo do Estado” sejam os “diferentes poderes”, com suas “funções e atividade”, é um fato empírico; que eles sejam membros de um “organismo” é o “predicado” filosófico.

Chamemos a atenção, aqui, para uma peculiaridade estilística de Hegel, que se repete frequentemente e é um produto do misticismo. O parágrafo, em seu conjunto, diz o seguinte:

A disposição toma seu conteúdo particularmente determinado dos diferentes lados do organismo do Estado. Esse organismo é o desenvolvimento da Ideia em suas distinções e em sua realidade objetiva. Esses lados distintos são, assim, os diferentes poderes, suas funções e atividades, por meio dos quais o universal continuamente, e, aliás, na medida em que esses poderes são determinados pela natureza do Conceito, se mantém, se engendra de modo necessário e, na medida em que é igualmente pressuposto de sua produção, conserva a si mesmo; – esse organismo é a constituição política.

1) A disposição toma seu conteúdo particularmente determinado dos diferentes lados do organismo do Estado. Esses lados distintos são... os diferentes poderes, suas funções e suas atividades.

2) A disposição toma seu conteúdo particularmente determinado dos diferentes lados do organismo do Estado. Esse organismo é o desenvolvimento da Ideia em suas distinções e em sua realidade objetiva... por meio dos quais o universal continuamente, e aliás na medida em que esses poderes são determinados pela natureza do Conceito, se mantém, se engendra de modo necessário e, na medida em que é igualmente pressuposto de sua produção, conserva a si mesmo; – esse organismo é a constituição política.

Vê-se como Hegel une as determinações ulteriores em dois sujeitos, nos “diferentes lados do organismo” e no “organismo”. Na terceira frase, os “lados distintos” são determinados como os “diferentes poderes”. Intercalando-se a palavra “assim”, é produzida a aparência de que esses “diferentes poderes” são derivados, como desenvolvimento da Ideia, da frase intermediária sobre o organismo.

Continua-se falando, em seguida, dos “diferentes poderes”. A determinação de que o universal “se engendra” continuamente e, por meio disso, se conserva, não é nada original, pois isso já está presente na determinação desses poderes como “lados do organismo”, como lados “orgânicos”. Ou, ainda, essa determinação dos “diferentes poderes” não é senão uma paráfrase para dizer que o organismo é “o desenvolvimento da Ideia em suas distinções etc.”.

As frases: esse organismo é “o desenvolvimento da Ideia em suas distinções e na realidade objetiva destas”, ou em distinções por meio das quais “o universal” (o universal é, aqui, o mesmo que a Ideia) “continuamente, e aliás na medida em que esses poderes são determinados pela natureza do Conceito, se mantém, se engendra de modo necessário e, na medida em que é igualmente pressuposto de sua produção, conserva a si mesmo” são frases idênticas. A última é, simplesmente, uma explicação mais aproximada do “desenvolvimento da Ideia em suas distinções”. Hegel não avançou, com isso, um passo sequer no conceito universal “da Ideia” e, no máximo, avançou um pouco no conceito de “organismo” em geral (pois trata-se, precisamente, apenas dessa ideia determinada). O que o autoriza, portanto, a concluir que “esse organismo é a constituição política”? Por que não: “esse organismo é o sistema solar”? Porque ele determinou, mais adiante, os “diferentes lados do Estado” como os “diferentes poderes”. A frase: “os diferentes lados do Estado são os diferentes poderes” é uma verdade empírica e não pode se passar por uma descoberta filosófica. Tal frase não é, ademais, de modo algum o resultado de um desenvolvimento anterior. Porém, ao determinar o organismo como o “desenvolvimento da Ideia”, ao falar das distinções da Ideia e ao intercalar, em seguida, o fato concreto dos “diferentes poderes”, produz-se a aparência de que se desenvolveu um conteúdo determinado. À sentença: “a disposição toma seu conteúdo particularmente determinado dos diferentes lados do organismo do Estado”, Hegel não poderia ajuntar: “esse organismo”, mas “o organismo é o desenvolvimento da Ideia etc.”. O que ele diz vale, no mínimo, para todo e qualquer organismo e não há nenhum predicado que justifique o sujeito “esse”. O verdadeiro resultado a que ele almeja chegar é à determinação do organismo como constituição política. Não se construiu, porém, nenhuma ponte pela qual se possa chegar à ideia determinada do organismo do Estado ou da constituição política a partir da Ideia universal de organismo, e tal ponte não pode ser construída nem na eternidade. Na frase inicial, fala-se dos “diferentes lados do organismo do Estado”, que são, em seguida, determinados como os “diferentes poderes”. Diz-se, portanto, simplesmente: “os diferentes poderes do organismo do Estadoou o organismo estatal dos diferentes poderesé a constituição política” do Estado. A ponte para a “constituição política” não é construída a partir do “organismo”, “da Ideia”, de suas “distinções” etc., mas a partir do conceito pressuposto de “diferentes poderes”, de “organismo do Estado”.

Na verdade, Hegel não faz senão dissolver a “constituição política” na abstrata Ideia universal de “organismo”, embora, aparentemente e segundo sua própria opinião, ele tenha desenvolvido o determinado a partir da “Ideia universal”. Ele transformou em um produto, em um predicado da Ideia, o que é seu sujeito; ele não desenvolve seu pensamento a partir do objeto, mas desenvolve o objeto segundo um pensamento previamente concebido na esfera abstrata da lógica. Não se trata de desenvolver a ideia determinada da constituição política, mas de dar à constituição política uma relação com a Ideia abstrata, de dispô-la como um membro de sua biografia (da Ideia): uma clara mistificação.

Outra determinação é a de que os “diferentes poderes” são “determinados pela natureza do Conceito” e que, por isso, o universal os “engendra de modo necessário”. Os diferentes poderes não são, portanto, determinados por sua “própria natureza”, mas por uma natureza estranha. Do mesmo modo, a necessidade não é extraída de sua própria essência, nem tampouco demonstrada criticamente. Sua sorte é, antes, predestinada pela “natureza do Conceito”, encerrada nos registros sagrados da Santa Casa(8) (da Lógica). A alma dos objetos, no caso presente, do Estado, está pronta, predestinada antes de seu corpo, que não é propriamente mais do que aparência. O “Conceito” é o filho na “Ideia”, em Deus-pai; é o agens(9), determinante e diferenciador. “Ideia” e “Conceito” são, aqui, abstrações autônomas.

§ 270. Que o fim do Estado seja o interesse universal como tal e que, nisso, seja a conservação dos interesses particulares como substância destes últimos, isso é 1) sua realidade abstrata ou substancialidade; mas esta última é 2) sua necessidade, enquanto ela se divide nas distinções conceituais de sua atividade, que são, do mesmo modo, graças àquela substancialidade, determinações estáveis e reais, poderes; 3) porém, tal substancialidade é, precisamente, o espírito que, por haver passado pela forma da cultura, sabe-se e quer a si mesmo. O Estado sabe, por isso, o que quer, e o sabe em sua universalidade, como algo pensado; ele age e atua, por isso, segundo fins sabidos, princípios conhecidos e segundo leis que não são somente em si, mas para a consciência; e, do mesmo modo, na medida em que suas ações se atêm às circunstâncias e relações existentes, age e atua segundo o conhecimento determinado que tem delas.

(A nota a esse parágrafo, sobre a relação entre Estado e Igreja, será vista mais adiante).

A aplicação dessas categorias lógicas merece um exame todo especial.

Que o fim do Estado seja o interesse universal como tal e que, nisso, seja a conservação dos interesses particulares como substância destes últimos, isso é 1) sua realidade abstrata ou substancialidade.

Que o interesse universal como tal e como existência dos interesses particulares seja o fim do Estado – isso é sua realidade, sua existência, abstratamente definida. O Estado não é real sem este fim. É esse o objeto essencial de sua vontade, mas, ao mesmo tempo, apenas uma determinação completamente universal desse objeto. Esse fim, na condição de ser, é o elemento da existência para o Estado.

Mas esta última (a realidade abstrata, a substancialidade) é 2) sua necessidade, enquanto ela se divide nas distinções conceituais de sua atividade, que são, do mesmo modo, graças àquela substancialidade, determinações estáveis e reais, poderes.

Ela (a realidade abstrata, a substancialidade) é sua necessidade (do Estado), enquanto sua realidade se divide em atividades distintas, cuja distinção é racionalmente determinada e que são, com isso, determinações estáveis. A realidade abstrata do Estado, a sua substancialidade, é necessidade, na medida em que o fim do Estado e a existência do todo só se realizam na existência dos poderes distintos do Estado.

Compreende-se: a primeira determinação de sua realidade era abstrata. O Estado não pode ser tratado como realidade simples; ele deve ser tratado como atividade, como uma atividade distinta.

Sua realidade abstrata ou substancialidade é sua necessidade, enquanto ela se divide nas distinções conceituais de sua atividade, que são, do mesmo modo, graças àquela substancialidade, determinações estáveis e reais, poderes.

A relação de substancialidade é relação de necessidade, quer dizer, a Substância aparece dividida em realidades ou atividades autônomas, porém essencialmente determinadas. Eu poderia empregar essas abstrações a toda e qualquer realidade. Na medida em que, primeiro, eu trato o Estado sob o esquema da realidade “abstrata”, tenho que tratá-lo, em seguida, sob o esquema da “realidade concreta”, da “necessidade”, da distinção realizada.

3) Porém, tal substancialidade é, precisamente, o espírito que, por haver passado pela forma da cultura, sabe-se e quer a si mesmo. O Estado sabe, por conseguinte, o que quer, e o sabe em sua universalidade, como algo pensado; ele age e atua, por isso, segundo fins sabidos, princípios conhecidos e segundo leis que não são somente em si, mas para a consciência; e, do mesmo modo, na medida em que suas ações se atêm às circunstâncias e relações existentes, age e atua segundo o conhecimento determinado que tem delas.

1.4 — Análise

Traduzindo-se esse parágrafo para nossa língua, temos:

1) O espírito que se sabe e se quer é a substância do Estado (o espírito cultivado, autoconsciente, é o sujeito e o fundamento, é a autonomia do Estado).

2) O interesse universal e a conservação dos interesses particulares nele é o fim universal e o conteúdo desse espírito, a substância existente do Estado, a natureza estatal do espírito que se sabe e se quer.

3) O espírito que se sabe e se quer, o espírito cultivado e autoconsciente, atinge a realização desse conteúdo abstrato apenas como uma atividade distinta, como a existência de diferentes poderes, como uma potência articulada.

Sobre essa exposição hegeliana, há que se chamar a atenção:

a) São transformados em sujeitos: a realidade abstrata, a necessidade (ou a distinção substancial), a substancialidade; portanto, as categorias lógicas abstratas. Com efeito, a “realidade abstrata” e a “necessidade” são designadas como “sua” realidade e necessidade, isto é, do Estado, embora 1)ela”, “a realidade abstrata” ou “substancialidade”, seja sua “necessidade”. 2) ela é que “se divide nas distinções conceituais de sua atividade”. As “distinções do Conceito” são, “do mesmo modo, graças àquela substancialidade, determinações estáveis e reais, poderes”. 3) A “substancialidade” não é mais tomada como uma determinação abstrata do Estado, como “sua” substancialidade; ela é, como tal, transformada em sujeito, pois diz-se, por fim: “Tal substancialidade é, porém, precisamente, o espírito que, por haver passado pela forma da cultura, sabe-se e quer a si mesmo”.

b) Por fim, também não se diz: “o espírito cultivado etc. é a substancialidade”, mas, ao contrário: “a substancialidade é o espírito cultivado etc.”. O espírito torna-se, portanto, predicado de seu predicado.

c) A substancialidade, depois de ter sido determinada 1) como o fim universal do Estado e, então, 2) como os poderes distintos, é determinada como 3) o espírito real cultivado que se sabe e se quer. O verdadeiro ponto de partida, o espírito que se sabe e se quer, sem o qual o “fim do Estado” e os “poderes do Estado” seriam ficções inconsistentes, vazias de essência, ou até mesmo existências impossíveis, aparece apenas como último predicado da substancialidade, já anteriormente determinada como fim universal e como os diferentes poderes do Estado. Caso se tivesse partido do espírito real, o “fim universal” seria seu conteúdo e os diferentes poderes seriam seu modo de se realizar, sua existência real ou material, cuja determinidade teria sido desenvolvida precisamente a partir da natureza de seu fim. No entanto, porque se partiu da “Ideia” ou da “Substância” como sujeito, como essência real, o sujeito real aparece apenas como o último predicado do predicado abstrato.

O “fim do Estado” e os “poderes do Estado” são mistificados, visto que são apresentados como “modos de existência” da “Substância” e aparecem como algo separado de sua existência real, do “espírito que se sabe e se quer”, do “espírito cultivado”.

d) o conteúdo concreto, a determinação real, aparece como formal; a forma inteiramente abstrata de determinação aparece como o conteúdo concreto. A essência das determinações do Estado não consiste em que possam ser consideradas como determinações do Estado, mas sim como determinações lógico-metafísicas em sua forma mais abstrata. O verdadeiro interesse não é a filosofia do direito, mas a lógica. O trabalho filosófico não consiste em que o pensamento se concretize nas determinações políticas, mas em que as determinações políticas existentes se volatilizem no pensamento abstrato. O momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da lógica.

1) O interesse universal e, nele, a conservação dos interesses particulares como fim do Estado,

2) os diferentes poderes como realização desse fim do Estado,

3) o espírito cultivado e autoconsciente, que quer e age, como o sujeito do fim e de sua realização.

Essas determinações concretas são compreendidas exteriormente, como hors-d’oeuvre(10); seu sentido filosófico é que o Estado tem nelas o sentido lógico:

1) como realidade abstrata ou substancialidade;

2) que a relação de substancialidade se converte na relação da necessidade, da realidade substancial;

3) que a realidade substancial é, em verdade, Conceito, subjetividade.

Omitindo as determinações concretas, que poderiam, igualmente, ser bem confundidas com determinações concretas de uma outra esfera, como, por exemplo, a da Física, e que são, portanto, inessenciais, temos, diante de nós, um capítulo da lógica.

A Substância deve “dividir-se nas distinções conceituais, que são, do mesmo modo, graças àquela substancialidade, determinações estáveis e reais”. Essa frase, a essencial, pertence à lógica e já se encontra pronta e acabada antes da filosofia do direito. Que essas distinções do Conceito sejam, aqui, distinções “de sua atividade (do Estado)” e que sejam “determinações estáveis”, “poderes” do Estado, tal parêntese pertence à filosofia do direito, à empiria política. Toda a filosofia do direito é, portanto, apenas um parêntese da lógica. O parêntese é, como por si mesmo se compreende, apenas hors-d’oeuvre do desenvolvimento propriamente dito. Cf., por exemplo, p. 347. [§ 270, Adendo]:

A necessidade consiste em que o todo seja dividido nas distinções do Conceito e em que essa divisão forneça uma determinidade (Bestimmtheit) estável e durável, que não é fixa, mas que sempre se reproduz na dissolução.

Cf. também a Lógica.

§ 271. A constituição política é, em primeiro lugar: a organização do Estado e o processo de sua vida orgânica em relação a si mesmo, na qual ele diferencia seus momentos em seu seio e os desdobra em existência.

Em segundo lugar, ele é, como uma individualidade, uma unidade exclusiva que se relaciona com outros, dirige sua distinção, portanto, para o exterior eestabelece dentro de si mesmo, segundo essa determinação, em sua idealidade,as suas distinções existentes.

Adendo: O Estado interno como tal é o poder civil, sendo a direção para o exterior o poder militar, que é, contudo, no Estado, um lado nele mesmo determinado.


Notas de rodapé:

(1) Marx cita Hegel a partir da seguinte edição: G. W. F. Hegel, Werke (Vollständige Ausgabe, 1, Berlin, Auflage, 1833), v. 8, organizado por Eduard Gans. Sobre os destaques: nas citações de Hegel, as palavras em itálico foram destacadas pelo próprio Hegel, as em negrito são destaques – muitas vezes irônicos, em todo caso importantes, quase sempre antecipando um ponto a ser debatido mais tarde ou opondo dois conceitos ou duas noções de maneira dialética – do próprio Marx. Nos manuscritos marxianos elas aparecem sublinhadas. (retornar ao texto)

(2) Marx muitas vezes faz uso irônico do itálico para destacar tanto o que Hegel diz quanto os pontos altos de sua própria argumentação. (retornar ao texto)

(3) Em alguns casos – bem poucos e especiais – será apresentado o original alemão entre parênteses. (retornar ao texto)

(4) Condição absoluta necessária. (retornar ao texto)

(5) Em Hegel, “todavia”. (retornar ao texto)

(6) Marx não hesita, aqui, em usar parênteses críticos – o parêntese, além do destaque em negrito, é outra de suas estratégias crítico-argumentativas fundamentais – no meio das citações de Hegel. (retornar ao texto)

(7) Ao que tudo indica um erro de escrita de Marx, que provavelmente quis escrever “mecânica” ou “inorgânica” (anorganische). (retornar ao texto)

(8) Marx faz referência ao ato V, cena 10, do drama Don Carlos, de Friedrich von Schiller. Santa Casa (em espanhol no original) era o nome da prisão da Inquisição, em Madri. (retornar ao texto)

(9) “princípio ativo”. (retornar ao texto)

(10) Coisa Secundária. (retornar ao texto)

Inclusão 17/09/2016