Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

Karl Marx


Parte 2 – A Constituição (§§ 272-286)


2.1 – A Coroa

§ 272. A constituição é racional na medida em que o Estado diferencia e determina a sua atividade segundo a natureza do Conceito, de tal modo que cada um desses poderes seja, em si mesmo, a totalidade, e que tenha e contenha dentro de si, ativos, os outros momentos e que estes, uma vez que exprimem a diferença do Conceito, permaneçam simplesmente em sua idealidade e constituam apenas Um todo individual.

A constituição é, portanto, racional, na medida em que seus momentos podem ser dissolvidos em momentos lógico-abstratos. O Estado diferencia e determina sua atividade não segundo sua natureza específica, mas segundo a natureza do conceito, móbil mistificado do pensamento abstrato. A razão da constituição é, portanto, a lógica abstrata, e não o conceito do Estado. Em lugar do conceito da constituição, obtemos a constituição do Conceito. O pensamento não se orienta pela natureza do Estado, mas sim o Estado por um pensamento pronto.

§ 273. O Estado político se divide, assim (como assim?), nestas distinções substanciais:

a) o poder de determinar e estabelecer o universal, o poder legislativo;

b) a subsunção das esferas particulares e dos casos singulares sob o universal – o poder governamental;

c) a subjetividade como a última decisão do querer, o poder soberano – no qual os diferentes poderes estão reunidos em uma unidade individual, que é, portanto, o cume e o início do todo – a monarquia constitucional.

Voltaremos a esta divisão após examinarmos detalhadamente sua exposição.

§ 274. Como o Espírito é somente enquanto real, enquanto é aquilo que ele sabe de si, e o Estado, como espírito de um povo, é ao mesmo tempo a lei que perpassa todas as suas relações, a moral e a consciência de seus indivíduos, a constituição de um determinado povo depende, em geral, do modo e formação da autoconsciência desse povo; nesta autoconsciência reside sua liberdade subjetiva e, com isso, a realidade da constituição... Cada povo tem, assim, a constituição que lhe cabe e que lhe é própria.

Do raciocínio de Hegel segue-se apenas que o Estado, em que o “modo e formação da autoconsciência” e a “constituição” se contradizem, não é um verdadeiro Estado. Que a constituição, que era o produto de uma consciência passada, possa se tornar um pesado entrave para uma consciência mais avançada etc. etc., são, por certo, apenas trivialidades. Disso deveria resultar, antes, a exigência de uma constituição que contivesse em si mesma a determinação e o princípio de avançar com a consciência; de avançar com o homem real, o que só é possível quando se eleva o “homem” a princípio da constituição. Hegel é, aqui, sofista.

§ 275. O poder soberano contém em si mesmo os três momentos da totalidade, a universalidade da constituição e das leis, a deliberação como relação do particular com o universal e o momento da decisão última como a autodeterminação à qual tudo o mais retorna e de onde toma o começo da realidade. Este absoluto autodeterminar-se constitui o princípio distintivo do poder soberano como tal, que é o primeiro a ser desenvolvido.

O início desse parágrafo significa apenas o seguinte: “A universalidade da constituição e das leis” é – o poder soberano; a deliberação ou a relação do particular com o universal é – o poder soberano. O poder soberano não se encontra fora da universalidade da constituição e das leis, desde que por poder soberano se entenda o poder do monarca (constitucional).

Mas, em verdade, o que Hegel pretende demonstrar é apenas isto: a “universalidade da constituição e das leis” é o poder soberano, a soberania do Estado. É, portanto, incorreto fazer do poder soberano o sujeito e, uma vez que o poder soberano pode ser compreendido como o poder do príncipe, produzir a ilusão de que ele é o senhor desse momento, o seu sujeito. Antes, porém, vejamos o que Hegel entende por “princípio distintivo do poder soberano como tal”, a saber: “o momento da decisão última, como a autodeterminação à qual tudo o mais retorna e de onde toma o começo de sua realidade”, esta: “autodeterminação absoluta”.

Hegel diz, aqui, apenas que: a vontade efetiva, isto é, individual, é o poder soberano. É o que afirma o § 12:

A vontade, ... dando-se a forma da singularidade, é decisiva e apenas como vontade decisiva ela é vontade efetiva.

Na medida em que esse momento da “decisão última” ou da “autodeterminação absoluta” é separado da “universalidade” do conteúdo e da particularidade da deliberação, ele é a vontade efetiva como arbítrio. Ou:

“O arbítrio é o poder soberano” ou: “O poder soberano é o arbítrio”.

§ 276. A determinação fundamental do Estado político é a unidade substancial como idealidade de seus momentos, na qual:

α) os poderes e as funções particulares do Estado são tanto dissolvidas quanto conservadas, e conservadas somente na medida em que não possuem uma legitimação independente, mas apenas uma legitimação tão abrangente quanto é determinado, na ideia do todo, que tais poderes e funções derivam da potência do todo e são seus membros fluidos, como seu Si-mesmo simples.

Adendo: Nesta idealidade dos momentos, ocorre o mesmo que com a vida em um corpo orgânico.

Entenda-se: Hegel fala apenas da ideia “dos poderes e funções particulares”. Estes devem ter somente “uma legitimação tão abrangente quanto é determinado na ideia do todo” e devem apenas “derivar da potência do todo”. Que isso deva ser assim está implícito na ideia de organismo. Mas seria preciso demonstrar como isso vem a se realizar. Pois, no Estado, deve reinar a razão consciente; a necessidade substancial meramente interna e, por isso, meramente externa; o cruzamento acidental dos “poderes e funções” não pode-se fazer passar pelo racional.

§ 277. β) As funções e atividades particulares do Estado lhe são próprias como seus momentos essenciais. Conduzidas e exercidas pelos indivíduos, elas não estão vinculadas a eles em razão de sua personalidade imediata, mas apenas por suas qualidades universais e objetivas e, portanto, estão unidas à sua personalidade particular como tal de uma maneira exterior e acidental. As funções e atividades estatais não podem, por isso, ser propriedade privada.

É evidente que se as funções e atividades particulares são chamadas funções e atividades do Estado, função e poder estatais, elas não são propriedade privada, mas propriedade do Estado. Isso é uma tautologia.

As funções e atividades do Estado estão vinculadas aos indivíduos (o Estado só é ativo por meio dos indivíduos), mas não ao indivíduo como indivíduo físico e sim ao indivíduo do Estado, à sua qualidade estatal. É, por isso, ridículo quando Hegel diz: elas estão “unidas à sua personalidade particular como tal de uma maneira exterior e acidental”. Elas estão, antes, unidas ao indivíduo mediante um vinculum substantiale, por uma qualidade essencial do indivíduo. Elas são a ação natural da sua qualidade essencial. Esse disparate advém do fato de Hegel conceber as funções e atividades estatais abstratamente, para si, e, por isso, em oposição à individualidade particular; mas ele esquece que tanto a individualidade particular como as funções e atividades estatais são funções humanas; ele esquece que a essência da “personalidade particular” não é a sua barba, o seu sangue, o seu físico abstrato, mas sim a sua qualidade social, e que as funções estatais etc. são apenas modos de existência e de atividade das qualidades sociais do homem. Compreende-se, portanto, que os indivíduos, na medida em que estão investidos de funções e poderes estatais, são considerados segundo suas qualidades sociais e não segundo suas qualidades privadas.

§ 278. Esta dupla determinação – que as funções e poderes particulares do Estado não são independentes e estáveis, nem para si, nem na vontade particular dos indivíduos, mas têm sua raiz última na unidade do Estado como seu Si-mesmo simples – constitui a soberania do Estado.

O despotismo designa, em geral, a situação da ausência de lei em que a vontade particular como tal, seja a de um monarca seja a de um povo, vale como lei ou, antes, em lugar da lei, ao passo que a soberania, ao contrário, constitui precisamente a situação legal e constitucional, o momento da idealidade das esferas e funções particulares, pelo qual uma tal esfera não é independente e autônoma em seus fins e modos de atuação e centrada apenas em si mesma, mas é determinada, nesses fins e modos de atuação, pelo fim do todo (o que foi designado, em termos gerais, com a expressão vaga de o bem do Estado), sendo dele dependente. Essa idealidade aparece de uma dupla maneira. – Em situação de paz, as esferas e funções particulares dão prosseguimento à satisfação de suas funções particulares, e isso é, por um lado, apenas o modo da necessidade inconsciente da coisa, segundo a qual seu egoísmo se transforma na contribuição à conservação recíproca e à conservação do todo; mas, por outro lado, é a ação direta vinda do alto, pela qual elas são tanto reconduzidas continuamente ao fim do todo, quanto limitadas pela obrigação de contribuir diretamente para a sua conservação; em situação de urgência, porém, seja ela interna ou externa, impõe-se a soberania, em cujo conceito simples conflui o organismo existente em suas particularidades e à qual é confiada a salvação do Estado com o sacrifício daquilo que seria legítimo, situação na qual aquele idealismo chega à sua realidade própria.

Esse idealismo não é, portanto, desenvolvido em um sistema consciente, racional. Ele aparece, em situação de paz ou somente como uma coação externa exercida sobre o poder dominante, sobre a vida privada, por meio da “influência direta do alto”, ou como resultado cego, inconsciente, do egoísmo. Ele tem sua “realidade própria” apenas em “situação de guerra ou de urgência” do Estado, na medida em que sua essência se expressa, aqui, como “situação de guerra e urgência” do Estado realmente existente, enquanto sua situação “pacífica” é precisamente a guerra e a urgência do egoísmo.

Por isso a soberania, o idealismo de Estado, existe somente como necessidade interna: como Ideia. Hegel se satisfaz com isso, pois se trata apenas da Ideia. A soberania existe, portanto, por um lado, apenas como substância inconsciente, cega. Logo conheceremos sua outra realidade.

§ 279. A soberania, primeiramente apenas o pensamento universal dessa idealidade, existe somente como subjetividade certa de si mesma e como autodeterminação abstrata, porque sem fundamento, da vontade, autodeterminação esta na qual reside a decisão última. É essa a individualidade do Estado como tal, que somente assim é Uno. Mas apenas como sujeito a subjetividade está em sua verdade, a personalidade apenas como pessoa e, na constituição que atingiu a sua real racionalidade, cada um dos três momentos do Conceito tem sua configuração separada, real para si. Por isso, esse momento absolutamente decisivo do todo não é a individualidade em geral, mas um indivíduo, o monarca.

1) A soberania, primeiramente apenas o pensamento universal dessa idealidade, existe somente como a subjetividade certa de si mesma. Mas apenas como sujeito a subjetividade está em sua verdade, a personalidade apenas como pessoa... na constituição que atingiu a sua real racionalidade, cada um dos três momentos do Conceito tem sua configuração separada, real para si.

2) A soberania “existe somente como a autodeterminação abstrata, porque sem fundamento, da vontade, autodeterminação esta na qual reside a decisão última. É essa a individualidade do Estado como tal, que somente assim é Uno... (e na constituição que atingiu a sua real racionalidade, cada um dos três momentos do Conceito tem sua configuração separada, real para si). Por isso, esse momento absolutamente decisivo do todo não é a individualidade em geral, mas um indivíduo, o monarca”.

2.2 – Sujeitos e Predicados

A primeira frase significa apenas que o pensamento universal dessa idealidade, cuja triste existência acabamos de ver, deveria ser a obra autoconsciente dos sujeitos e, como tal, existir para eles e neles.

Se Hegel tivesse partido dos sujeitos reais como a base do Estado, ele não precisaria deixar o Estado subjetivar-se de uma maneira mística. Diz Hegel: “Mas apenas como sujeito a subjetividade está em sua verdade, a personalidade apenas como pessoa”. Isto também é uma mistificação. A subjetividade é uma determinação do sujeito, a personalidade uma determinação da pessoa. Em vez de concebê-las como predicados de seus sujeitos, Hegel autonomiza os predicados e logo os transforma, de forma mística, em seus sujeitos.

A existência dos predicados é o sujeito: portanto, o sujeito é a existência da subjetividade etc. Hegel autonomiza os predicados, os objetos, mas ele os autonomiza separados de sua autonomia real, de seu sujeito. Posteriormente, o sujeito real aparece como resultado, ao passo que se deve partir do sujeito real e considerar sua objetivação. A Substância mística se torna sujeito real e o sujeito real aparece como um outro, como um momento da Substância mística. Precisamente porque Hegel parte dos predicados, das determinações universais, em vez de partir do ente real (υποχειμενον, sujeito), e como é preciso haver um suporte para essa determinação, a Ideia mística se torna esse suporte. Este é o dualismo: Hegel não considera o universal como a essência efetiva do realmente finito, isto é, do existente, do determinado, ou, ainda, não considera o ente real como o verdadeiro sujeito do infinito.

Assim, a soberania, a essência do Estado, é aqui, primeiramente, considerada como uma essência autônoma, é objetivada. Depois, compreende-se, esse objeto deve se tornar novamente sujeito. Mas, então, esse sujeito aparece como uma autoencarnação da soberania, enquanto que a soberania não é outra coisa senão o espírito objetivado dos sujeitos do Estado.

Fazendo abstração desse defeito fundamental da exposição, consideremos essa primeira frase do parágrafo. Tal como se apresenta, ela significa apenas que a soberania, o idealismo do Estado como pessoa, sujeito, existe, é claro, como muitas pessoas, muitos sujeitos, pois nenhuma pessoa singular absorve em si a esfera da personalidade, nem um sujeito singular a esfera da subjetividade. Que idealismo de Estado seria este, que, em lugar de ser a real autoconsciência dos cidadãos do Estado, a alma comum do Estado, seria uma pessoa, um sujeito? Hegel não desenvolve mais a respeito nessa frase. Mas consideremos, então, a segunda frase, ligada à primeira. O que importa, para Hegel, é apresentar o monarca como o homem-Deus real, como a encarnação real da Ideia.

A soberania... existe somente... como autodeterminação abstrata, porque sem fundamento, da vontade, autodeterminação esta na qual reside a decisão última. É essa a individualidade do Estado como tal, que somente assim é Uno... e, na constituição que atingiu a sua real racionalidade, cada um dos três momentos do Conceito tem sua configuração separada, real para si. Por isso, esse momento absolutamente decisivo do todo não é a individualidade em geral, mas um indivíduo, o monarca.

Já chamamos a atenção para esta frase: o momento da decisão, arbitrária porque determinada, é, em geral, o poder soberano da vontade. A ideia do poder soberano, como Hegel a desenvolve, é apenas a ideia do arbitrário, da decisão da vontade.

Todavia, enquanto Hegel concebe a soberania precisamente como idealismo de Estado, como a determinação real da parte por meio da ideia do todo, ele a transforma agora em “autodeterminação abstrata, porque sem fundamento, da vontade, autodeterminação esta na qual reside a decisão última. É essa a individualidade do Estado como tal”. O discurso, que antes falava da subjetividade, fala agora da individualidade. O Estado como soberano deve ser Uno, Um indivíduo, deve possuir individualidade. O Estado é Uno “não somente” nesta individualidade; a individualidade é apenas o momento natural de sua unidade, a determinação natural do Estado. “Por isso, esse momento absolutamente decisivo do todo não é a individualidade em geral, mas um indivíduo, o monarca”. Como? Porque “cada um dos três momentos do Conceito” tem “na constituição que atingiu a sua real racionalidade a sua configuração separada, real para si”.

Um momento do Conceito é a “singularidade”; porém isto não é ainda Um indivíduo. E que tipo de constituição seria essa, em que a universalidade, a particularidade e a singularidade teriam, cada uma, “sua configuração separada, real para si”? Já que não se trata, em suma, de uma abstração, mas do Estado, da sociedade, pode-se, então, adotar a classificação de Hegel. O que decorreria disso? O cidadão do Estado, ao determinar o universal, é legislador; ao decidir o singular, ao querer realmente, é soberano; o que significaria: a individualidade da vontade do Estado é “um indivíduo”, um indivíduo particular distinto de todos os outros? Também a universalidade, a legislação, tem uma “configuração separada, real para si”. Disso poderíamos concluir: “Estes indivíduos particulares são a legislação”.

O homem comum:

2) O monarca tem o poder soberano, a soberania.

3) A soberania faz o que quer.

Hegel:

2) A soberania do Estado é o monarca.

3) A soberania é a “autodeterminação abstrata, porque sem fundamento, davontade, autodeterminação esta naqual reside a decisão última”.

Hegel transforma todos os atributos do monarca constitucional na Europa atual em autodeterminações absolutas da vontade. Ele não diz: a vontade do monarca é a decisão última, mas a decisão última da vontade é... o monarca. A primeira frase é empírica. A segunda distorce o fato empírico em um axioma metafísico.

Hegel confunde os dois sujeitos: a soberania “como a sua subjetividade autoconsciente” e a soberania “como a autodeterminação sem fundamento da vontade”, como vontade individual, para, a partir daí, construir a “Ideia” como “Um indivíduo”.

Compreende-se que a subjetividade autoconsciente deve querer também realmente, deve querer como unidade, como indivíduo. Mas quem pôde jamais duvidar que o Estado age por intermédio dos indivíduos? Se Hegel quisesse desenvolver: o Estado deve ter um indivíduo como representante de sua unidade individual, ele não deduziria o monarca. Como resultado positivo desse parágrafo retemos apenas o que segue:

O monarca é, no Estado, o momento da vontade individual, da autodeterminação sem fundamento, do arbítrio.

A nota de Hegel a esse parágrafo é tão curiosa, que devemos elucidá-la mais de perto.

O desenvolvimento imanente de uma ciência, a dedução de todo seu conteúdo a partir do simples Conceito, mostra a peculiaridade de que um único e mesmo conceito – aqui a vontade –, que, inicialmente, porque é o começo, é abstrato, se conserva, mas condensa suas determinações igualmente apenas por si mesmo e, desse modo, ganha um conteúdo concreto. Esse é o momento fundamental da personalidade primeiramente abstrata no direito imediato, momento que se aperfeiçoou mediante suas diferentes formas de subjetividade e que aqui, no direito absoluto, no Estado, na objetividade da vontade plenamente concreta, é a personalidade do Estado, sua certeza de si mesmo – esta última, que suprassume todas as particularidades em seu Si-mesmo simples, interrompe a ponderação dos argumentos e contra-argumentos entre os quais se deixa oscilar para cá e para lá, resolvendo-os por meio do: Eu quero e dando início a toda ação e realidade.

Primeiramente, não é à “peculiaridade da ciência” que o conceito fundamental da coisa sempre retorna.

Tampouco houve, em seguida, qualquer progresso. A personalidade abstrata era o sujeito do direito abstrato; ela não mudou; ela é novamente, como personalidade abstrata, a personalidade do Estado. Hegel não deveria surpreender-se com o fato de que a pessoa real – e as pessoas fazem o Estado – reapareça em toda parte como a essência do Estado. Ele deveria, antes, e ainda mais, surpreender-se com o contrário, com o fato de que a pessoa, como pessoa do Estado, reapareça sob uma abstração tão pobre como a pessoa do direito privado.

Hegel, aqui, define o monarca como “a personalidade do Estado, sua certeza de si mesmo”. O monarca é a “soberania personificada”, a “soberania feita homem”, a consciência corpórea do Estado, por meio da qual, portanto, todos os outros estão excluídos dessa soberania, da personalidade e da consciência do Estado. Mas, ao mesmo tempo, Hegel não sabe dar a esta “Souveraineté Personne(11) nenhum outro conteúdo senão o “Eu quero”, o momento do arbítrio na vontade. A “razão de Estado” e a “consciência de Estado” são uma “única” pessoa empírica, a exclusão de todas as outras, mas esta razão personificada não tem nenhum conteúdo além da abstração do “Eu quero”. L’état c’est moi(12).

Mas, além disso, a personalidade e a subjetividade em geral, como relação infinita consigo mesma, tem pura e simplesmente verdade, e precisamente sua verdade imediata mais próxima, apenas como pessoa, sujeito que é para si mesmo, e o que é para si mesmo é igualmente pura e simplesmente Uno.

É evidente que, na medida em que a personalidade e a subjetividade são somente predicados da pessoa e do sujeito, elas existem, portanto, apenas como pessoa e sujeito, e, de fato, a pessoa é Una. Mas Hegel deveria acrescentar: o Uno tem verdade somente como muitos Unos. O predicado, a essência, jamais esgota as esferas da sua existência em um Uno, mas em muitos Unos.

Ao invés disso, Hegel conclui:

A personalidade do Estado é real somente como uma pessoa, o monarca.

Assim, porque a subjetividade é real apenas como sujeito, e o sujeito apenas como Uno, a personalidade do Estado só é real como uma pessoa. Bela conclusão. Hegel poderia concluir, do mesmo modo: pelo fato de o homem singular ser um Uno, o gênero humano é apenas Um único homem.

A personalidade exprime o Conceito como tal, a pessoa contém simultaneamente a realidade deste último, e o Conceito só é Ideia, verdade, com essa determinação.

A personalidade, sem a pessoa, é certamente apenas uma abstração; mas a pessoa só é a ideia real da personalidade em sua existência genérica, como as pessoas.

O que se denomina uma pessoa moral, sociedade, comunidade, família, por mais concreta que ela seja em si mesma, tem a personalidade apenas como momento, nela abstrato; ela não chegou, aí, à verdade de sua existência, mas o Estado é precisamente essa totalidade, na qual os momentos do Conceito alcançam a realidade segundo a sua verdade peculiar.

Nesta frase reina uma grande confusão. A pessoa moral, a sociedade etc. é dita abstrata, logo precisamente as formações genéricas nas quais a pessoa real traz seu conteúdo real à existência, se objetiva e abandona a abstração da “pessoa quand même(13). Em vez de reconhecer essa realização da pessoa como o que há de mais concreto, o Estado deve ter o privilégio de que nele “o momento do Conceito”, a “singularidade”, alcance uma “existência” mística. O racional não consiste em que a realidade seja alcançada pela razão da pessoa real, mas sim pelos momentos do Conceito abstrato.

O conceito do monarca é, por isso, o mais difícil para o raciocínio, ou seja, para a reflexão do entendimento, porque o raciocínio permanece nas determinações isoladas e, assim, só conhece razões, pontos de vista limitados e o deduzir das razões. Desse modo, ele representa a dignidade do monarca como algo deduzido, não somente segundo a forma, mas segundo sua determinação; ao contrário, seu conceito não é o de ser algo deduzido, mas o de ter início simplesmente por si mesmo. Mais próxima da verdade (sem dúvida!) é, por isso, a representação que concebe o direito do monarca como fundado na autoridade divina, pois aí se encontra seu elemento incondicional.

“Ter início simplesmente por si mesmo” vale, em certo sentido, para toda existência; sob esse ponto de vista, tanto para o piolho do monarca quanto para o monarca. Com isso, Hegel não disse nada de especial sobre o monarca. Mas é uma real insanidade querer dizer sobre o monarca algo especificamente diferente de todos os outros objetos da ciência e da filosofia do direito; isto só é correto, sem dúvida, enquanto a “Ideia-de-uma-única-pessoa” é algo que deva deduzir-se somente da imaginação, e não do entendimento.

A soberania pode ser dita popular no sentido de que um povo em geral seja autônomo em relação ao exterior e constitua um Estado próprio etc.

Uma trivialidade. Se o príncipe é a “soberania real do Estado”, então “o príncipe” pode, também externamente, valer como o “Estado autônomo”, mesmo sem o povo. Mas se ele é soberano porque representa a unidade do povo, então ele é apenas representante, símbolo da soberania popular. A soberania popular não existe por meio dele, mas ele por meio dela.

Assim, da soberania interna pode-se dizer, também, que ela reside no povo, se se fala apenas, em geral, do todo, tal como foi demonstrado anteriormente (§ 277, 278), que a soberania compete ao Estado.

Como se o povo não fosse o Estado real. O Estado é um abstractum. Somente o povo é o concretum. E é notável que Hegel atribua sem hesitação uma qualidade viva ao abstractum, tal como a soberania, e só o faça com hesitação e reservas em relação ao concretum.

Mas soberania popular, definida em oposição à soberania existente no monarca, é o sentido ordinário em que se começou a falar de soberania popular nos últimos tempos – nessa oposição a soberania popular pertence aos pensamentos confusos, em cujo fundamento reside a representação desordenada do povo.

Os “pensamentos confusos” e a “representação desordenada” se encontram, aqui, somente em Hegel. Certamente: se a soberania existe no monarca, é uma estupidez falar em uma soberania oposta existente no povo, pois é próprio do conceito de soberania que ela não possa ter uma existência dupla, e muito menos oposta.

Mas:

1) a questão é, precisamente, a seguinte: não é uma ilusão a soberania absorvida no monarca? Soberania do monarca ou do povo, eis a question(14).

2) pode-se falar, também, de uma soberania do povo em oposição à soberania existente no monarca. Mas, então, não se trata de uma única e mesma soberania, nascida de ambos os lados, mas de dois conceitos absolutamente contrapostos de soberania, dos quais um é tal que só pode chegar à existência em um monarca, e o outro tal que só o pode em um povo. Do mesmo modo em que se pergunta: é Deus o soberano, ou é o homem o soberano? Uma das duas soberanias é uma falsidade, ainda que uma falsidade existente.

O povo, sem seu monarca e sem a articulação do todo que precisamente por isso se relaciona com ele necessária e imediatamente, é a massa informe, que já não é um Estado e para a qual não se aplicam nenhuma das determinações que existem somente no todo formado em si mesmo – soberania, governo, tribunais, magistratura, estamentos (Stände) e o que quer que seja. Pelo fato de se evidenciarem em um povo os momentos relacionados com uma organização, com a vida do Estado, deixa o povo de ser aquele abstrato indeterminado que na simples representação geral se chama povo.

2.3 – Democracia

Tudo isso é uma tautologia. Se um povo tem um monarca e uma articulação necessária e diretamente relacionada com ele, quer dizer, se ele está organizado como monarquia, então ele, uma vez excluído dessa articulação, é uma massa informe e uma simples representação geral.

Se por soberania popular se compreende a forma da República e, mais precisamente, da Democracia, então – em face da ideia desenvolvida, não se pode mais falar de tal representação.

De fato, isto é correto, caso se tenha da democracia apenas uma “tal representação” e não uma “ideia desenvolvida”.

A democracia é a verdade da monarquia, a monarquia não é a verdade da democracia. A monarquia é necessariamente democracia como inconsequência contra si mesma, o momento monárquico não é uma inconsequência na democracia. Ao contrário da monarquia, a democracia pode ser explicada a partir de si mesma. Na democracia nenhum momento recebe uma significação diferente daquela que lhe cabe. Cada momento é, realmente, apenas momento do dêmos inteiro. Na monarquia, uma parte determina o caráter do todo. A constituição inteira tem de se modificar segundo um ponto fixo. A democracia é o gênero da constituição. A monarquia é uma espécie e, definitivamente, uma má espécie. A democracia é conteúdo e forma. A monarquia deve ser apenas forma, mas ela falsifica o conteúdo.

Na monarquia o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos de existência, a constituição política; na democracia, a constituição mesma aparece somente como uma determinação e, de fato, como autodeterminação do povo. Na monarquia temos o povo da constituição; na democracia, a constituição do povo. A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições. Aqui, a constituição não é somente em si, segundo a essência, mas segundo a existência, segundo a realidade, em seu fundamento real, o homem real, o povo real, e posta como a obra própria deste último. A constituição aparece como o que ela é, o produto livre do homem; poder-se-ia dizer que, em um certo sentido, isso vale também para a monarquia constitucional, mas a diferença específica da democracia é que, aqui, a constituição em geral é apenas um momento da existência do povo e que a constituição política não forma por si mesma o Estado.

Hegel parte do Estado e faz do homem o Estado subjetivado; a democracia parte do homem e faz do Estado o homem objetivado. Do mesmo modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, assim também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição. A democracia, em um certo sentido, está para as outras formas de Estado como o cristianismo para as outras religiões. O cristianismo é a religião χατ’ εξοχην(15), a essência da religião, o homem deificado como uma religião particular. A democracia é, assim, a essência de toda constituição política, o homem socializado como uma constituição particular; ela se relaciona com as demais constituições como o gênero com suas espécies, mas o próprio gênero aparece, aqui, como existência e, com isso, como uma espécie particular em face das existências que não contradizem a essência. A democracia relaciona-se com todas as outras formas de Estado como com seu velho testamento. O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal. Tal é a diferença fundamental da democracia.

Todas as demais formas estatais são uma forma de Estado precisa, determinada, particular. Na democracia, o princípio formal é, ao mesmo tempo, o princípio material. Por isso ela é, primeiramente, a verdadeira unidade do universal e do particular. Na monarquia, por exemplo, na república como uma forma de Estado particular, o homem político tem sua existência particular ao lado do homem não político, do homem privado. A propriedade, o contrato, o matrimônio, a sociedade civil aparecem, aqui (Hegel desenvolve de modo bastante correto estas formas abstratas de Estado, mas ele crê desenvolver a ideia de Estado), como modos de existência particulares ao lado do Estado político, como o conteúdo com o qual o Estado político se relaciona como forma organizadora, como entendimento que determina, limita, ora afirma, ora nega,sem ter em si mesmo nenhum conteúdo. Na democracia, o Estado político na medida em que ele se encontra ao lado desse conteúdo e dele se diferencia, é ele mesmo um conteúdo particular, como uma forma de existência particular do povo. Na monarquia, por exemplo, este fato particular, a constituição política, tem a significação do universal que domina e determina todo o particular. Na democracia o Estado, como particular, é apenas particular, como universal é o universal real, ou seja, não é uma determinidade em contraste com os outros conteúdos. Os franceses modernos concluíram, daí, que na verdadeira democracia o Estado político desaparece. O que está correto, considerando-se que o Estado político, como constituição, deixa de valer pelo todo.

Em todos os Estados que diferem da democracia o que domina é o Estado, a lei, a constituição, sem que ele domine realmente, quer dizer, sem que ele penetre materialmente o conteúdo das restantes esferas não políticas. Na democracia, a constituição, a lei, o próprio Estado é apenas uma autodeterminação e um conteúdo particular do povo, na medida em que esse conteúdo é constituição política.

Ademais, é evidente que todas as formas de Estado têm como sua verdade a democracia e, por isso, não são verdadeiras se não são a democracia.

Nos Estados antigos o Estado político constituiu o conteúdo estatal por exclusão das outras esferas; o Estado moderno é um compromisso entre o Estado político e o não político.

Na democracia o Estado abstrato deixou de ser o momento preponderante. A luta entre monarquia e república é, ela mesma, ainda, uma luta no interior do Estado abstrato. A república política é a democracia no interior da forma de Estado abstrata. A forma de Estado abstrata da democracia é, por isso, a república; porém, aqui, ela deixa de ser a constituição simplesmente política.

A propriedade etc., em suma, todo o conteúdo do direito e do Estado é, com poucas modificações, o mesmo na América do Norte assim como na Prússia. Lá, a república é, portanto, uma simples forma de Estado, como o é aqui a monarquia. O conteúdo do Estado se encontra fora dessas constituições. Por isso Hegel tem razão, quando diz: O Estado político é a constituição; quer dizer, o Estado material não é político. Tem-se, aqui, apenas uma identidade exterior, uma determinação recíproca. Dentre os diversos momentos da vida do povo, foi o Estado político, a constituição, o mais difícil de ser engendrado. A constituição se desenvolveu como a razão universal contraposta às outras esferas, como algo além delas. A tarefa histórica consistiu, assim, em sua reivindicação, mas as esferas particulares não têm a consciência de que seu ser privado coincide com o ser transcendente da constituição ou do Estado político e de que a existência transcendente do Estado não é outra coisa senão a afirmação de sua própria alienação. A constituição política foi reduzida à esfera religiosa, à religião da vida do povo, o céu de sua universalidade em contraposição à existência terrena de sua realidade. A esfera política foi a única esfera estatal no Estado, a única esfera na qual o conteúdo, assim como a forma, foi o conteúdo genérico, o verdadeiro universal, mas ao mesmo tempo de modo que, como esta esfera se contrapôs às demais, também seu conteúdo se tornou formal e particular. A vida política, em sentido moderno, é o escolasticismo da vida do povo. A monarquia é a expressão acabada dessa alienação. A república é a negação da alienação no interior de sua própria esfera. Entende-se que a constituição como tal só é desenvolvida onde as esferas privadas atingiram uma existência independente. Onde o comércio e a propriedade fundiária ainda não são livres nem independentes, também não o é a constituição política. A Idade Média foi a democracia da não liberdade.

A abstração do Estado como tal pertence somente aos tempos modernos porque a abstração da vida privada pertence somente aos tempos modernos. A abstração do Estado político é um produto moderno.

Na Idade Média havia servos, propriedade feudal, corporações de ofício, corporações de sábios etc.; ou seja, na Idade Média a propriedade, o comércio, a sociedade, o homem são políticos; o conteúdo material do Estado é colocado por intermédio de sua forma; cada esfera privada tem um caráter político ou é uma esfera política; ou a política é, também, o caráter das esferas privadas. Na Idade Média, a constituição política é a constituição da propriedade privada, mas somente porque a constituição da propriedade privada é a constituição política. Na Idade Média, a vida do povo e a vida política são idênticas. O homem é o princípio real do Estado, mas o homem não livre. É, portanto, a democracia da não-liberdade, da alienação realizada. A oposição abstrata e refletida pertence somente ao mundo moderno. A Idade Média é o dualismo real, a modernidade é o dualismo abstrato.

Na fase anteriormente referida, na qual foi feita a divisão das constituições em democracia, aristocracia e monarquia, segundo o ponto de vista da unidade substancial que permanece ainda em si, que ainda não atingiu sua diferenciação infinita e o infinito aprofundamento em si mesma, o momento da decisão última da vontade que determina a si mesma não surge como momento orgânico imanente do Estado para si em sua realidade peculiar.

Na monarquia, na democracia e na aristocracia imediatas ainda não existe a constituição política como algo distinto do Estado real, material, ou do conteúdo restante da vida do povo. O Estado político ainda não aparece como a forma do Estado material. Ou a res publica(16) é, como na Grécia, a questão privada real, o conteúdo real do cidadão (Bürger), e o homem privado é escravo; o Estado político como político é o verdadeiro e único conteúdo de sua vida e de seu querer; ou, como no despotismo asiático, o Estado político é apenas o arbítrio privado de um indivíduo singular, e o Estado político, assim como o Estado material, é escravo. A diferença do Estado moderno em relação a esses Estados da unidade substancial entre povo e Estado não consiste, como Hegel pretende, no fato de que os diferentes momentos da constituição alcançam uma realidade particular, mas, antes, no fato de que a constituição mesma é desenvolvida como uma realidade particular ao lado da real vida do povo, no fato de que o Estado político se torna a constituição do resto do Estado.

§ 280. Este último Si-mesmo da vontade do Estado é simples nessa sua abstração e, por isso, singularidade imediata; em seu próprio conceito reside, portanto, a determinação da naturalidade; o monarca é, por isso, essencialmente como este indivíduo, abstraído de qualquer outro conteúdo, e este indivíduo destinado à dignidade do monarca de modo imediato, natural, por meio do nascimento natural.

Já ouvimos que a subjetividade é sujeito e que o sujeito é necessariamente indivíduo empírico, Uno. Aprendemos, agora, que a determinação da naturalidade, da corporeidade, reside no conceito da singularidade imediata. Hegel não demonstrou nada senão o óbvio, a saber, que a subjetividade existe apenas como indivíduo corpóreo e, evidentemente, o nascimento natural pertence ao indivíduo corpóreo.

Hegel pretende ter demonstrado que a subjetividade do Estado, a soberania, o monarca é “essencialmente como este indivíduo, abstraído de todo outro conteúdo, e este indivíduo destinado à dignidade do monarca de modo imediato, natural, por meio do nascimento natural”. A soberania, a dignidade do monarca seria, portanto, de nascença. O corpo do monarca determina sua dignidade. No ponto culminante do Estado, então, o que decide em lugar da razão é a mera physis. O nascimento determinou a qualidade do monarca, assim como ele determina a qualidade do gado. Hegel demonstrou que o monarca deve nascer, do que ninguém duvida; mas ele não demonstrou que o nascimento faz o monarca.

O nascimento do homem como monarca é tão pouco passível de se converter em verdade metafísica quanto a imaculada concepção de Maria. Assim como esta última representação, este fato da consciência, também aquele fato empírico pode ser compreendido de acordo com a ilusão humana e as circunstâncias.

Na nota, que examinamos mais de perto, Hegel abandona-se ao prazer de ter demonstrado o irracional como absolutamente racional.

Esta passagem do Conceito, da pura autodeterminação à imediatez do ser e, com isso, à naturalidade, é de natureza puramente especulativa; seu conhecimento pertence, portanto, à filosofia lógica.

Pois o puramente especulativo não é que se passe da pura autodeterminação, uma abstração, ao outro extremo, a pura naturalidade (o acaso do nascimento), car les extrêmes se touchent(17). O especulativo consiste, antes, em que isto seja chamado uma “passagem do Conceito” e em fazer passar a mais perfeita contradição por identidade e a mais alta inconsequência por consequência.

Pode-se considerar como sendo um credo positivo de Hegel o fato de que, com o monarca hereditário, o lugar da razão que se determina a si mesma é tomado pela determinação natural abstrata, não como o que ela é, determinação natural, mas como suprema determinação do Estado, e que este é o ponto positivo em que a monarquia não pode mais salvar a aparência de ser a organização da vontade racional.

De resto, é no fundo a mesma (?) passagem conhecida como a natureza da vontade em geral e é o processo de traduzir um conteúdo da subjetividade (como fim representado) em existência. Mas a forma peculiar da Ideia e da passagem aqui considerada é a conversão imediata da pura autodeterminação da vontade (do Conceito simples mesmo) num Este e numa existência natural, sem a mediação através de um conteúdo particular – (um fim no agir).

Hegel diz que a conversão da soberania do Estado (de uma autodeterminação da vontade) no corpo do monarca inato (na existência) é, no fundo, a passagem do conteúdo em geral que a vontade faz a fim de realizar um fim pensado, de traduzi-lo em existência. Mas Hegel diz: no fundo. A diferença peculiar que ele indica é, portanto, tão peculiar que suprime toda analogia e põe a magia no lugar da “natureza da vontade em geral”.

Em primeiro lugar, a conversão do fim representado em existência é, aqui, imediata, mágica. Em segundo lugar, eis o sujeito: a pura autodeterminação da vontade, o Conceito simples mesmo; é a essência da vontade, como Sujeito místico, que determina; não é um querer real, individual, consciente; é a abstração da vontade, que se transforma numa existência natural; a Ideia pura, que se encarna em um indivíduo. Em terceiro lugar, como a realização da vontade em existência natural acontece imediatamente, isto é, sem os meios que a vontade habitualmente necessita para se objetivar, falta do mesmo modo um fim particular, isto é, determinado; compreende-se que “a mediação através de um conteúdo particular, de um fim no agir” não tenha lugar, pois não há um sujeito que age e a abstração, a pura ideia da vontade, para agir, age de forma mística. Um fim que não é particular não é um fim, assim como um agir sem finalidade é um agir carente de finalidade e de sentido. Toda comparação com o ato teleológico da vontade se revela, ao fim e ao cabo, como uma mistificação. Uma ação sem conteúdo da Ideia.

O meio é a vontade absoluta e a palavra do filósofo; o fim particular é novamente o fim do sujeito filosofante, construir o monarca hereditário a partir da Ideia pura. A realização do fim é a mera garantia de Hegel.

Na assim chamada prova ontológica da existência de Deus é a mesma conversão do Conceito absoluto no ser (a mesma mistificação), conversão que constituiu a profundidade da Ideia nos tempos modernos, mas que mais recentemente foi considerada (com razão) como inconcebível.

Mas como se considera que a representação do monarca cabe inteiramente à consciência comum (isto é, sensata), o entendimento permanece, aqui, cada vez mais em sua separação e nos resultados decorrentes de seu tino raciocinador, e nega, então, que o momento da decisão última no Estado em si e para si (isto é, no Conceito racional) seja ligado à naturalidade imediata.

Nega-se que a decisão última nasça, e Hegel afirma que o monarca é a decisão última nascida; mas quem jamais duvidou que a decisão última no Estado seja ligada a indivíduos reais, corpóreos, e, portanto, “à naturalidade imediata”?

§ 281. Ambos os momentos em sua unidade indivisa, o Si-mesmo último sem fundamento da vontade e a existência também por isso sem fundamento, como determinação reservada à natureza – essa ideia de não ser movido pelo arbítrio constitui a majestade do monarca. Nesta unidade reside a unidade real do Estado, que somente por meio dessa sua imediatez interna e externa escapa à possibilidade de ser reduzida à esfera da particularidade, com seu arbítrio, fins e opiniões, à luta das facções entre si pelo trono e ao enfraquecimento e desintegração do poder do Estado.

Os dois momentos são: o acaso da vontade, o arbítrio e o acaso da natureza, o nascimento; enfim: Sua Majestade, o acaso. O acaso é, portanto, a unidade real do Estado.

Que uma “imediatez interna e externa” deva ser retirada da colisão etc. é uma afirmação incompreensível de Hegel, pois justamente ela é abandonada à colisão.

O que Hegel diz da monarquia eletiva vale em grau ainda maior para o monarca hereditário:

Em uma monarquia eletiva, em razão da natureza da relação na qual a vontade particular é constituída em decisão última, a constituição se torna capitulação eleitoral [...] a entrega do poder de Estado à discrição da vontade particular, do que resulta a transformação dos poderes particulares do Estado em propriedade privada etc.

§ 282. Da soberania do monarca decorre o direito de indultar os criminosos, pois somente a ela compete a realização do poder do Espírito, de tornar o acontecido não acontecido e anular o delito no perdão e no esquecimento.

O direito de indultar é o direito da graça. A graça é a mais alta expressão do arbítrio acidental, significativamente concebido por Hegel como um atributo próprio do monarca. No próprio Adendo, Hegel determina que sua origem é “a decisão sem fundamento”.

§ 283. O segundo momento, contido no poder do soberano, é o da particularidade ou do conteúdo determinado e da subsunção deste último ao universal. Na medida em que ele assume uma existência particular, os mais altos cargos deliberativos e seus ocupantes são aqueles que trazem ao monarca, pela decisão, o conteúdo dos assuntos do Estado que se apresentam ou das determinações legais tornadas necessárias a partir dos carecimentos existentes, com seus lados objetivos, os fundamentos para a decisão, a legislação pertinente, as circunstâncias etc. A escolha dos indivíduos para estas funções, assim como sua remoção, recai no arbítrio ilimitado do monarca, já que eles têm a ver com a sua pessoa imediata.

§ 284. Apenas esses cargos ou indivíduos deliberativos estão sujeitos à responsabilidade, na medida em que o objetivo da decisão, o conhecimento do conteúdo e das circunstâncias, os fundamentos legais e os outros fundamentos de determinação são os únicos passíveis de responsabilidade, isto é, de prova da objetividade e, por isso, ela pode recair em uma deliberação distinta da vontade do monarca como tal; mas a majestade própria do monarca, como subjetividade que decide em última instância, é elevada acima de toda responsabilidade pelos atos do governo.

Hegel descreve aqui de modo inteiramente empírico o poder ministerial, tal como ele é na maior parte das vezes determinado nos Estados constitucionais. Tudo o que a filosofia acrescenta é fazer deste “fato empírico” existência, o predicado do “momento da particularidade no poder soberano”.

(Os ministros representam o lado racional, objetivo, da vontade soberana. Cabe a eles, por isso, a honra da responsabilidade; enquanto o monarca se satisfaz com a peculiar imaginação da “majestade”.) O momento especulativo é, portanto, bastante escasso. Em contrapartida, o desenvolvimento depende, em especial, de fundamentos inteiramente empíricos e, de fato, muito abstratos e muito ruins.

Assim, por exemplo, a eleição dos ministros é deixada ao “arbítrio ilimitado” do monarca, “já que eles têm a ver com a sua pessoa imediata”, isto é, já que eles são ministros. Do mesmo modo, a “eleição ilimitada” do criado de quarto do monarca pode ser desenvolvida a partir da Ideia absoluta.

A responsabilidade dos ministros é melhor fundamentada “na medida em que o objetivo da decisão, o conhecimento do conteúdo e das circunstâncias, os fundamentos legais e os outros fundamentos de determinação são os únicos passíveis de responsabilidade, de prova da objetividade”. Entende-se que “a subjetividade que decide em última instância”, a subjetividade pura, o puro arbítrio, não é objetiva, e portanto também incapaz de uma prova de objetividade ou de responsabilidade tão logo um indivíduo seja a existência consagrada, sancionada do arbítrio. A demonstração de Hegel é contundente se se parte dos pressupostos constitucionais, mas Hegel não demonstrou estes pressupostos pelo fato de tê-los analisado em sua noção fundamental. Nessa confusão reside a total ausência de crítica da filosofia do direito hegeliana.

§ 285. O terceiro momento do poder soberano diz respeito ao universal em si e para si, que consiste, considerado subjetivamente, na consciência do monarca, considerado objetivamente, no todo da constituição e nas leis; o poder soberano pressupõe, nesta medida, os outros momentos, assim como cada um destes o pressupõe.

§ 286. A garantia objetiva do poder soberano, a sucessão legítima ao trono segundo a hereditariedade etc., reside em que, assim como esta esfera tem sua realidade separada dos outros momentos determinados por meio da razão, assim também estes outros têm para si os direitos e deveres próprios à sua determinação; cada membro, ao se conservar para si, precisamente por isso conserva, no organismo racional, os outros em sua peculiaridade.

Hegel não vê que, por meio deste terceiro momento, o “universal em si e para si”, os dois primeiros momentos vão pelos ares, ou vice-versa. “O poder soberano pressupõe, nesta medida, os outros momentos, assim como cada um destes o pressupõe”. Se esta tese fosse tomada não misticamente, mas realisticamente, então o poder do príncipe não seria posto pelo nascimento, mas pelos outros momentos, portanto não hereditariamente, mas de maneira fluida, quer dizer, seria uma determinação do Estado distribuída alternadamente aos indivíduos do Estado segundo o organismo dos outros momentos. Em um organismo racional a cabeça não pode ser de ferro e o corpo de carne. Para que os membros se conservem, eles precisam ser de igual nascimento, de uma só carne e um só sangue. Mas o monarca hereditário não é de igual nascimento, ele é de outra matéria. A prosa da vontade racionalista dos outros membros do Estado defronta-se aqui com a magia da natureza. Além disso, os membros só podem se conservar reciprocamente se o organismo inteiro é fluido e se cada um de seus membros é suprassumido nesta fluidez e que nenhum seja, portanto, “imutável” e “inalterável” como, aqui, a cabeça do Estado. Por meio desta determinação, Hegel suprime a “soberania de nascença”.

Em segundo lugar, a irresponsabilidade. Se o príncipe infringe o “todo da constituição”, as “leis”, cessa sua irresponsabilidade, porque cessa sua existência constitucional; mas precisamente essas leis, essa constituição, o fazem irresponsável. Elas contradizem, portanto, a si mesmas, e esta única cláusula suprime a lei e a constituição. A constituição do monarca constitucional é a irresponsabilidade.

Hegel se contenta, porém, com “que, assim como esta esfera (tem) sua realidade separada dos outros momentos determinados por meio da razão, assim também estes outros têm para si os direitos e deveres próprios à sua determinação”, de modo que ele deveria chamar a constituição medieval de uma organização; assim, ele não tem mais do que uma massa de esferas particulares que encontram-se juntas em uma relação de necessidade exterior e, certamente, aqui convém apenas um monarca corpóreo. Em um Estado onde cada determinação existe para si, também a soberania do Estado deve ser consolidada em um indivíduo particular.

2.4 – Resumo de Hegel sobre o desenvolvimento da Coroa

Resumo do desenvolvimento de Hegel sobre o poder soberano ou a ideia da soberania do Estado.

Na nota do § 279, p. 367, lê-se:

Da soberania popular pode-se dizer que um povo em geral seja independente em relação ao exterior e constitua um Estado próprio, tal como o povo da Grã-Bretanha; mas o povo da Inglaterra ou da Escócia, da Irlanda ou de Veneza, de Gênova, do Ceilão etc. não são mais povos soberanos desde o momento em que deixaram de ter seus próprios príncipes ou governos supremos para si.

A soberania popular é aqui, portanto, a nacionalidade; a soberania do príncipe é a nacionalidade, ou o princípio do principado é a nacionalidade, que forma para si e exclusivamente a soberania de um povo. Um povo cuja soberania consiste apenas na nacionalidade, possui um monarca. As diferentes nacionalidades dos povos não podem ser melhor apreendidas e expressas que por meio dos diferentes monarcas. O abismo entre um indivíduo absoluto e o outro se encontra entre estas nacionalidades.

Os gregos (e romanos) eram nacionais porque e na medida em que eram o povo soberano. Os germanos são soberanos porque e na medida em que são nacionais (vide p. XXXIV)(18).

(ad. p. XII)

“O que se denomina uma pessoa moral”, como consta mais adiante na mesma nota,

sociedade, comunidade, família, por mais concreta que ela seja em si mesma, tem a personalidade apenas como momento, nela abstrato; ela não chegou, aí, à verdade de sua existência, mas o Estado é precisamente essa totalidade, na qual os momentos do Conceito alcançam a realidade segundo a sua verdade peculiar.

A pessoa moral, sociedade, família etc. tem em si a personalidade apenas abstratamente; já no monarca, ao contrário, a pessoa tem em si o Estado.

Na verdade, foi somente na pessoa moral, sociedade, família etc. que a pessoa abstrata deu à sua personalidade uma existência verdadeira. Mas Hegel concebe sociedade, família etc., a pessoa moral em geral, não como a realização da pessoa real, empírica, mas como pessoa real que tem nela, porém, o momento da personalidade apenas abstratamente. É por isso que, para ele, também não é a pessoa real que se converte em Estado, mas é o Estado apenas que deve se converter em pessoa real. Em vez de o Estado ser produzido como a mais elevada realidade da pessoa, a mais elevada realidade social do homem, ocorre que um único homem empírico, uma pessoa empírica, é produzido como a mais alta realidade do Estado. Esta inversão do subjetivo no objetivo e do objetivo no subjetivo (que decorre do fato de Hegel querer escrever a biografia da Substância abstrata, da Ideia; que, portanto, a atividade humana etc. tenha que aparecer como atividade e resultado de uma outra coisa; que Hegel queira deixar agir como uma singularidade imaginária o ser do homem para si, em lugar de deixá-lo agir na sua existência real, humana) tem necessariamente como resultado que uma existência empírica é tomada de maneira acrítica como a verdade real da Ideia; pois não se trata de trazer a existência empírica à sua verdade mas, antes, de trazer a verdade a uma existência empírica, de tal modo que aquilo que se encontra mais próximo é desenvolvido como um momento real da Ideia. (Retomaremos posteriormente esta conversão necessária do empírico em especulativo e do especulativo em empírico.).

Desta maneira, portanto, produz-se também a impressão de algo místico e profundo. É muito banal que o homem tenha que nascer e que esta existência, posta pelo nascimento físico, eleve-se ao homem social etc., até ao cidadão do Estado; o homem se torna, pelo nascimento, tudo o que ele se torna. Mas é muito profundo, é chocante que a ideia do Estado nasça imediatamente e que, no nascimento do príncipe, ela mesma se engendre como existência empírica. Deste modo não se ganha nenhum conteúdo, mas apenas se modifica a forma do conteúdo velho. Ele recebeu uma forma filosófica, um atestado filosófico.

Uma outra consequência dessa especulação mística é que uma existência empírica particular, uma única existência empírica, é concebida como a existência da Ideia em contraste com as demais. Produz, em seguida, uma impressão profunda, mística, ver uma existência particular posta pela Ideia e encontrar em todos os níveis um Deus feito homem.

Se, por exemplo, no desenvolvimento da família, da sociedade civil, do Estado etc., estes modos sociais de existência do homem fossem considerados como realização e objetivação de seu ser, então família etc. apareceriam como qualidades inerentes a um sujeito. O homem permanece sempre como o ser de todos estes seres; estes, no entanto, aparecem também como sua universalidade real e, assim, como o comum. Se, em contrapartida, família, sociedade civil, Estado etc. são determinações da Ideia, a Substância como sujeito, elas devem, então, assumir uma realidade empírica, sendo cidadã a massa dos homens na qual se desenvolve a ideia da sociedade civil e, a outra, cidadã do Estado. Como se trata, no fundo, apenas de uma alegoria, de atribuir a uma existência empírica qualquer o significado da Ideia realizada, então é evidente que estes receptáculos completaram sua determinação tão logo se tornaram uma incorporação determinada de um momento da vida da Ideia. Assim, o universal aparece por toda parte como algo de particular, de determinado, enquanto o singular não atinge em lugar algum sua verdadeira universalidade.

Isto aparece como necessário, portanto, do modo mais profundo e especulativo, quando as determinações mais abstratas – que não são desenvolvidas em nenhuma verdadeira realização social, as bases naturais do Estado, como o nascimento (no príncipe) ou a propriedade privada (no morgadio (Majorat)) – aparecem como as ideias mais elevadas, imediatamente feitas homem.

E é evidente. O verdadeiro caminho a ser percorrido está invertido. O mais simples é o mais complexo e o mais complexo o mais simples. O que deveria ser ponto de partida se torna resultado místico e o que deveria ser resultado racional se torna ponto de partida místico.

Mas se o príncipe é a pessoa abstrata, que tem o Estado em si, isto significa tão somente que a essência do Estado é a pessoa abstrata, a pessoa privada. Só no seu ápice ele exprime seu segredo. O príncipe é a única pessoa privada na qual se realiza a relação da pessoa privada em geral com o Estado.

A hereditariedade do príncipe resulta de seu conceito. Ele deve ser a pessoa especificamente distinta de todo o gênero, de todas as outras pessoas. Qual é, então, a diferença última, precisa, de uma pessoa em relação a todas as outras? O corpo. A mais alta função do corpo é a atividade sexual. O ato constitucional mais elevado do rei é, portanto, sua atividade sexual, pois por meio dela ele faz um rei e dá continuidade a seu corpo. O corpo de seu filho é a reprodução de seu próprio corpo, a criação de um corpo real.


Notas de rodapé:

(11) “Soberania Personificada”. (retornar ao texto)

(12) “O Estado sou eu”. (retornar ao texto)

(13) “como ela mesma”. (retornar ao texto)

(14) Referência à duvida hamletiana estabelecida por Shakespeare. (retornar ao texto)

(15) “preferencialmente”. (retornar ao texto)

(16) “Estado, república; originalmente: coisa pública”. (retornar ao texto)

(17) “pois os opostos se atraem”. (retornar ao texto)

(18) As observações que seguem, até o parágrafo 287, antes do início de “b) O poder governamental”, foram acrescentadas posteriormente por Marx. Isso pode ser visto através da numeração dos cadernos manuscritos originais de Max; o autor deixou claro, todavia, que essas observações deveriam ser acrescentadas exatamente aqui. (retornar ao texto)

Inclusão 17/09/2016