Moral e Revolução

Leão Trotski


10. O Estalinismo é um Produto da Velha Sociedade


A Rússia empreendeu o mais grandioso salto para frente da História, salto que é a expressão das forças mais progressistas do país. Durante o atual período de reação, cuja amplitude é proporcional à da revolução, as forças da inércia tomam sua desforra. O stalinismo tornou-se a encarnação desta reação. A barbárie da velha Rússia, ressuscitada sobre novas bases sociais, assume uma feição ainda mais repugnante, porque agora tem de valer-se de uma hipocrisia sem precedentes na História.

Os liberais e sociais-democratas ocidentais, obrigados pela Revolução de Outubro e pôr em dúvida suas idéias envelhecidas, sentem renascer suas forças. A gangrena moral da burocracia soviética parece-lhes reabilitar o liberalismo. Vêmo-los reeditar os bolorentos aforismos do gênero: "cada ditadura traz em si os germes da própria dissolução", "Só a democracia assegura o desenvolvimento da personalidade", etc. Contrapor-se democracia a ditadura, com o intuito de condenar o regime socialista em nome do regime burguês, revela, do ponto de vista teórico, um espantoso manancial de ignorância e má fé. A infeção do stalinismo, realidade histórica, é contraposta à democracia, abstração supra-histórica. Mas a democracia teve ela também uma historia, na qual os horrores também não estiveram ausentes. Para definir a burocracia soviética, nós tomamos emprestados da história da democracia burguesa os vocábulos "Termidor" e "bonapartismo", porque - tomem nota os atrasados do liberalismo - a democracia não se estabeleceu com métodos democráticos. Só pobres de espírito podem dar-se por satisfeitos com tais raciocínios sobre o bonapartismo "filho legítimo" dos jacobinos, castigo histórico pelos atentados infligidos à democracia, etc. Sem a destruição do feudalismo pelos métodos jacobinos, a democracia burguesa teria sido inconcebível. Opor a abstração "democracia" às etapas históricas reais - jacobinismo, termidor, bonapartismo - é tão falso como opor às dores do parto a tranqüilidade do recém-nascido.

O stalinismo, por sua vez, não é uma "ditadura abstrata", mas uma grandiosa reação burocrática contra a ditadura proletária num país atrasado e isolado. A Revolução de Outubro anulara os privilégios, declarara guerra às discriminações sociais, substituíra a burocracia pelo autogoverno dos trabalhadores, abolira a diplomacia secreta; esforçara-se para dar a mais completa transparência a todas as relações sociais. O stalinismo restaurou as formas mais ofensivas de privilégio, conferiu à desigualdade um caráter provocativo, sufocou com absolutismo policial a atividade espontânea das massas, fez da administração um monopólio da oligarquia do Kremlin, ressuscitou o fetichismo do poder sob formas que a própria monarquia absoluta não tivera sequer coragem de sonhar.

O reacionarismo social sempre procura mascarar seus fins verdadeiros. Quanto mais brutal é a passagem da revolução à reação, mais a reação depende das tradições da revolução. Em outras palavras, mais a reação teme as massas, e mais é obrigada a recorrer à mentira e à impostura em sua luta contra os revolucionários. As falsificações e imposturas stalinistas não são fruto do "amoralismo" bolchevista; como todos os ventos importantes da História, são o produto duma luta social concreta, a mais pérfida e dura: a luta de uma nova aristocracia contra as massas que a levaram ao poder.

É preciso ter realmente uma total indigência intelectual e moral para identificar a moral reacionária e policial do stalinismo com a moral revolucionária do bolchevismo. O partido de Lênin deixou de existir desde longa data; as dificuldades internas e o imperialismo mundial o quebraram. A burocracia stalinista, que o sucedeu, representa um aparelho de transmissão do imperialismo. Na política mundial, a burocracia substituiu a luta de classe pela colaboração de classe, o internacionalismo pelo social-patriotismo(12). Para adaptar o partido dirigente às necessidades da reação, a burocracia "renovou" a composição do PC soviético com o extermínio dos revolucionários e o recrutamento de arrivistas.

Qualquer reação vencedora ressuscita, alimenta e reforça os elementos do passada histórico que a revolução golpeara sem conseguir aniquilar. Os métodos stalinistas levam à mais alta tensão - e portanto ao absurdo - todos os procedimentos de mentira, de brutalidade e de aviltamento que constituem o mecanismo do poder em qualquer sociedade dividida em classes, sem exclusão das sociedades “democráticas”. O stalinismo é a aglutinação das monstruosidades do Estado assim como a história o criou; e é também sua mais funesta caricatura e a máscara mais repugnante. Quando os representantes da velha sociedade opõem puritanamente à gangrena do stalinismo uma estéril abstração democrática, temos bem o direito de dizer-lhes, como a toda a velha sociedade que eles se apaixonaram por sua própria imagem refletida no espelho deformante do termidor soviético. É verdade que, pela audácia de seus crimes, a GPU supera de longe qualquer outro regime. Isto, porém, é conseqüência da grandiosidade dos eventos que convulsionaram a Rússia sob a influência desmoralizante do imperialismo.

11. Moral e Revolução

Não faltam entre os liberais e radicais homens que, por terem assimilado os métodos materialistas de interpretação dos acontecimentos, se consideram marxistas. Isto, todavia, não impede que continuem sendo jornalistas, professores ou homens públicos burgueses. Não é preciso dizer que é impossível conceber-se o bolchevista sem o método materialista, na moral como em qualquer outro campo. Mas esse método não lhe serve apenas para interpretar os acontecimentos, serve-lhe também para construir o partido revolucionário do proletariado, tarefa que só pode ser cumprida num clima de absoluta independência em relação à burguesia e à sua moral. Ora, a opinião burguesa domina de fato, completamente, o movimento operário oficial, de William Green nos Estados Unidos a Garcia Oliver na Espanha, passando por Leon Blum e Maurice Thorez na França. O caráter reacionário da época atual encontra nesse fato sua expressão mais profunda.

O marxista revolucionário não pode enfrentar sua tarefa histórica sem ter rompido moralmente com a opinião pública da burguesia e de seus agentes no seio do proletariado. Esta ruptura exige coragem moral de calibre bem diferente daquela dos que andam berrando nas reuniões públicas: "abaixo Hitler, abaixo Franco!". E é precisamente esta ruptura decisiva, profundamente meditada, irrevogável, dos bolchevistas com a moral conservadora, seja da grande como da pequena burguesia, que incute um medo mortal aos palavreadores da democracia, aos profetas de salão, aos heróis de escrivaninhas. É nesse medo que se originam suas lamentações sobre o "amoralismo" dos bolchevistas.

Sua maneira de identificar a moral burguesa com a moral "em geral" demonstra-se talvez, com maior evidência, na extrema esquerda da pequena burguesia, mais exatamente nos partidos centralistas do chamado Bureau Socialista Internacional de Londres. Já que essa organização "reconhece" o programa da revolução proletária, nossas divergências e confrontos com ela parecem, a primeira vista, secundárias. Na realidade, sua "aceitação" do programa revolucionário não tem qualquer valor, já que não a obriga a nada. Os centristas "reconhecem" a revolução proletária como os kantianos reconhecem o imperativo categórico, isto é, como um princípio sagrado mas inaplicável na vida cotidiana. Na política prática, eles se unem aos piores inimigos da revolução, reformistas e stalinistas, para a luta contra nós. Seu pensamento é impregnado de duplicidade e hipocrisia. Se, de modo geral, não chegam a crimes clamorosos, é porque estão sempre no último plano da política. São, em certo sentido, os ladrões de galinhas da história. Exatamente por isso crêem-se enviados para regenerar o movimento operário com uma nova moral.

Na extrema esquerda desta confraria de "esquerda" coloca-se um pequeno grupo, sem qualquer significação política, de emigrados alemães que publicam a revista Neuer Weg (Novo Caminho). Vamos nos abaixar um pouco e prestar atenção a estes críticos "revolucionários" do amoralismo bolchevista. O Neuer Weg, assumindo o tom de um elogio ambíguo, escreve que os bolchevistas se distinguem positivamente dos outros partidos pelo fato de que não têm hipocrisias: eles proclamam em voz alta o que os outros fazem escondido e, assim, aplicam, por exemplo, o princípio "os fins justificam os meios". Segundo Neuer Weg, esta regra "burguesa" é incompatível com um "sadio movimento socialista". "A mentira e coisas piores, não são meios consentidos na luta de classes, como ainda pensava Lênin". Ainda significa, nesse caso, que Lênin não teve tempo de desfazer-se de suas ilusões, porque morreu antes da descoberta do "novo caminho" (Neuer Weg).

Na expressão "a mentira e coisas piores", a segunda parte significa, evidentemente, a violência, o assassínio, etc, porque, em paridade de condições, a violência é pior que a mentira, e o assassínio é a forma extrema da violência. Chegamos assim à conclusão de que a mentira, a violência e o assassínio são incompatíveis com "um sadio movimento socialista".

Mas o que dizer da revolução? A guerra civil é a mais cruel das guerras. Não pode ser concebida sem violências exercidas sobre terceiros e, tendo-se em conta a técnica moderna, sem a morte de velhos e crianças. É preciso lembrar a Espanha? A única resposta que poderiam dar os "amigos" da Espanha republicana é que a guerra civil é preferível à escravidão fascista. Mas essa resposta absolutamente certa significa apenas que o fim (a democracia ou o socialismo) justifica, em certas circunstâncias, meios como a violência e o homicídio. E nem vale a pena falar da mentira! A guerra é tão inconcebível sem a mentira como uma máquina sem graxa. Com o único fim de proteger as Cortes Gerais (Congresso espanhol) das bombas fascistas, o governo de Barcelona enganou, várias vezes e deliberadamente, os jornalistas e a população. Poderia ter feito de outra maneira? Quem quer o fim - a vitória sobre Franco - têm que acentuar os meios: a guerra civil e seu acompanhamento de horrores e crimes.

Mas a mentira e a violência por acaso não são coisas condenáveis "em si mesmas"? Por certo, como é condenável a sociedade dividida em classes que as engendra. A sociedade sem antagonismos sociais será, evidentemente, sem mentira e sem violência. Mas não é possível lançar uma ponte para ela senão com métodos violentos. A própria revolução é o produto da sociedade dividida em classes, da qual ela leva necessariamente a marca. Do ponto de vista das "verdades eternas" a revolução é, naturalmente, "imoral". Mas isso significa apenas que a moral idealista é contra-revolucionária, isto é, encontra-se a serviço dos exploradores.

"Mas a guerra civil - dirá talvez o filósofo tomado de surpresa - é uma penosa exceção. Em tempos de paz um sadio movimento socialista deveria evitar a mentira e a violência". Esta não é mais que uma piedosa escapatória. Não existe uma nítida linha divisória entre luta de classes "pacífica" e revolução. Cada greve contém em germe todos os elementos da guerra civil. As duas partes contrapostas esforçam-se para assustar o adversário, dando uma imagem exagerada de seu grau de resolução e de seus recursos materiais. Graças a sua imprensa, seus agentes e espiões, os capitalistas procuram intimidar e desmoralizar os grevistas. Por seu lado, os piquetes de greve, quando a persuasão revela-se inoperante, são obrigados a recorrer à força. Vê-se assim que "a mentira e coisas piores" são inseparáveis da luta de classes, mesmo em sua forma embrionária. Resta acrescentar que as próprias noções de mentira e verdade nasceram das contradições sociais.

12. A Revolução e os Reféns

Stalin faz prender e fuzilar os filhos de seus adversários, que por sua vez foram fuzilados sob falsas acusações. As famílias servem-lhe de reféns para obrigar a voltar do estrangeiro aqueles diplomatas soviéticos tão audazes a ponto de pôr em dúvida a infalibilidade de Yagoda ou Yezov. Os moralistas de Neuer Weg lembram, a propósito disso, que "também Trotsky" valeu-se em 1919 de uma lei sobre os reféns. Vale a pena citar textualmente: "A prisão por parte de Stalin das famílias inocentes é uma barbaridade revoltante. Mas essa é uma ação bárbara também quanto ordenada por Trotsky (1919)". Eis a moral idealista em toda a sua beleza! Seus critérios são tão mentirosos quanto as próprias normas da democracia burguesa. Pressupõe, nos dois casos, uma igualdade onde não há sombra de igualdade.

Não vamos insistir sobre o fato de que o decreto de 1919, muito provavelmente, não fez fuzilar nenhum dos parentes dos oficiais, cujas traições nas custavam inúmeras vidas e ameaçavam sufocar a revolução. No fundo, não é disso que se trata. Se a revolução não tivesse manifestado, desde o começo, uma inútil generosidade, milhares de vidas teriam sido poupadas em seguida. Seja como for, assumo inteira responsabilidade pelo decreto de 1919. Foi uma medida necessária na luta contra os opressores. Esse decreto, como toda a guerra civil, que bem se poderia chamar com razão uma "barbaridade revoltante", não tem outra justificação histórica que o objetiva histórica da luta.

Deixemos a Emil Ludwig e seus similares a tarefa de elaborar-nos quadros de Abraão Lincoln com asinhas cor-de-rosa. A importância de Lincoln consiste no fato de que, para alcançar o grande fim histórico exigido pelo desenvolvimento do jovem povo americano, não recuou diante das medidas mais rigorosas, quando foram necessárias. A questão não é sequer saber quais dos beligerantes que infligiram ou padeceram as perdas mais graves. A história tem medidas diversas para as crueldades dos nortistas e sulistas na Guerra da Secessão. Que miseráveis eunucos não nos venham dizer que o escravagista que com a mentira e a violência agrilhoa um escravo, está, diante da moral, no mesmo plano que o escravo que com a mentira e a violência quebra seus grilhões!

Quando a Comuna de Paris foi afogada no sangue e a canalha reacionária de todos o mundo arrastou pelo pó sua bandeira, apareceram muitos filisteus democratas prontos a condenar, junto com a reação, os communards que tinham fuzilado sessenta e quatro reféns, entre os quais o arcebispo de Paris. Marx não hesitou um só instante em assumir a defesa dessa sanguinolenta ação da Comuna. Na circular do Conselho Geral da 'Internacional, Marx relembra - e a lava borbulha sob suas palavras - que a burguesia usou o sistema de reféns na luta contra os povos coloniais e na luta contra seu próprio povo. E em seguida às execuções sistemáticas dos Communards prisioneiros, pelos reacionários: "Para defender a vida de seus combatentes prisioneiros, não restava à Comuna senão recorrer ao método dos reféns, habitual aos prussianos. A vida dos reféns foi perdida e reperdida pelo fato que os versalheses continuavam fuzilando os prisioneiros. Teria sido possível poupar os reféns depois da horrível carnificina com que os pretorianos de MacMahon celebraram seu ingresso em Paris? O último contrapeso oposto à barbárie do governo burguês - a tomada de reféns - deveria transformar-se numa irrisão?"

Esta foi a linguagem de Marx a propósito da execução dos reféns, apesar de ter pelas costas, no Conselho da Internacional, um certo número de Fenner Brocway, Norman Thomas e outros semelhantes indivíduos à la Otto Bauer, A indignação do proletariado mundial diante das atrocidades cometidas pelos versalheses era ainda tão grande que os escrevinhadores reacionários preferiram ficar calados, esperando tempos melhores - tempos que, infelizmente, não tardaram em chegar. Os moralistas pequeno-burgueses, unidos aos funcionários das trade-unions e aos palavreadores anarquistas só torpedearam a primeira Internacional quando a reação triunfou definitivamente.

Quando a Revolução de Outubro resistia às forças coligadas do imperialismo numa frente de oito mil quilômetros, os operários de todo o mundo seguiam essa luta com uma simpatia tão ardente que teria sido arriscado denunciar diante deles a tomada de reféns como uma "barbárie revoltante". Foram necessários a total degeneração do Estado soviético e o triunfo da reação em vários países para que os moralistas saíssem de suas tocas... e acorressem em socorro de Stalin. Com efeito, se as medidas repressivas adotadas para defender os privilégios da nova aristocracia têm o mesmo valor moral das medidas revolucionárias adotadas na luta libertadora, Stalin está plenamente justificado, a menos que... a revolução proletária seja condenada em bloco.

Os senhores moralistas, apesar de procurarem exemplos de imoralidade na guerra civil russa, são obrigados a fechar os olhos sobre o fato de a guerra civil na Espanha também ter restabelecido a lei dos reféns, pelo menos na época em que houve uma verdadeira revolução das massas. Se os detratores ainda não se permitiram condenar essa "barbaridade revoltante" dos operários espanhóis, é porque o solo da península ibérica ainda está muito quente sob seus pés. É muito mais cômodo, para eles, apelar para 1919. Já é História. Os velhos tiveram tempo de esquecer, os jovens ainda não tiveram tempo de aprender. Pela mesma razão, os fariseus de todos os matizes apeiam para Kronstadt e Machno(13). As secreções morais podem aqui ter livre curso !

13. A "Moral dos Hotentotes"

A história percorre estradas cruéis, é preciso convir com os moralistas. Mas que conclusão retirar disto para a atividade prática? Tolstoi aconselhava aos homens ignorar as convenções sociais e melhorar a si próprios. O Mahatma Gandhi aconselha beber leite de cabra. Infelizmente, os moralistas revolucionários do Neuer Weg não andam longe de tais receitas.

"Nós devemos - pregam - libertar-nos da moral dos hotentotes, segundo os quais é mau apenas aquilo que o inimigo faz". Admirável conselho! "Nos devemos libertar-nos..." Também Tolstoi recomendava libertar-nos do pecado da carne. As estatísticas não nos revelam que sua propaganda tenha tido sucesso. Nossos homúnculos centristas conseguiram elevar-se aos píncaros de uma moral acima das classes, numa sociedade dividida em classes. Mas já se passaram quase dois mil anos desde que foi dito: "amai vossos inimigos... Oferecei a outra face..." E todavia nem o próprio Papa de Roma conseguiu libertar-se do ódio para com seus inimigos. Satã, o inimigo do gênero humano, é deveras muito poderoso!

Aplicar diferentes critérios às ações dos exploradores e dos explorados seria, segundo esses homúnculos, colocar-se no nível da "moral dos hotentotes". Perguntemo-nos antes se cabe a "socialistas "professar um tal desprezo pelos hotentotes (povo da África meridional). Sua moral é de fato tão desprezível? Eis o que diz a enciclopédia britânica: "Nas relações políticas e sociais dão prova de muito tato e inteligência; são muito valorosos, belicosos e hospitaleiros; foram honestos e sinceros até que o contato com os brancos tornou-os suspeitos, vingativos e ladrões, isto é, até que não absorveram a maioria dos vícios dos europeus." Não se pode deixar de concluir que os missionários brancos, pregadores da moral eterna, contribuíram para a corrupção dos hotentotes.

Se contassem a um trabalhador hotentote que os operários, insurgidos em algum lugar do mundo, colheram de surpresa seus opressores, ele se alegraria. Ficaria, pelo contrário, desolado, ao saber que os opressores conseguiram enganar os oprimidos. O hotentote que os missionários não corromperam até a medula, jamais aceitará aplicar as mesmas normas de moral abstrata aos opressores e aos oprimidos. Pelo contrário, ser-lhe-á fácil compreender a explicação de que o objetivo destas normas é precisamente o de impedir a revolta dos oprimidos contra os opressores.

Coincidência edificante: para caluniar os bolchevistas, os missionários de Neuer Weg tiveram que caluniar contemporaneamente os hotentotes; e, em ambos os casos, a calúnia segue as pegadas da mentira oficial burguesa: contra os revolucionários e contra os povos de cor. Decididamente, nós preferimos os hotentotes a todos os missionários religiosos ou laicos!

Mas não valorizemos excessivamente o grau de consciência dos moralistas da Neuer Weg e de outros da mesma resma. Suas intenções não são assim tão más. É inconscientemente que servem de instrumento na engrenagem da reação. Numa época como a nossa, quando os partidos pequeno-burgueses agarram-se à burguesia ou à sua sombra — (política de "Frentes Populares"), paralisando o proletariado e abrindo caminho ao fascismo (Espanha, França), os bolchevistas, isto é, os marxistas revolucionários, são particularmente visados pela opinião pública burguesa. A mais forte pressão política de nossos dias exerce-se da direita para a esquerda. Em última instância, todo o peso da reação acumula-se sobre os ombros de uma pequena minoria revolucionária. Essa minoria chama-se IV Internacional. Eis o inimigo!

O stalinismo ocupa na engrenagem da reação muitas posições dominantes. De uma maneira ou de outra, todos os grupos da sociedade burguesa, anarquistas incluídos, correm em seu auxílio contra a revolução proletária. Enquanto isso, os democratas pequeno-burgueses tentam fazer recair, pelo menos em cinqüenta por cento, os odiosos crimes de seu aliado moscovita sobre a irredutível minoria revolucionária. Este é o significado do dito agora em moda: "Trotskismo e estalinismo são idênticos". Os adversários dos bolchevistas e dos hotentotes ajudam, assim, a reação a cobrir de calúnias o partido da revolução.

14. O "Amoralismo" de Lénine

Os "socialistas revolucionários" russos foram sempre homens dos mais morais; no fundo, não eram mais do que pura ética. O que não os impediu de enganar os camponeses durante a revolução. No órgão parisiense de Kerensky, este socialista ético que foi precursor de Stalin nas falsificações contra os bolchevistas, o velho "socialista revolucionário" Zenzinov escreve: "Lênin ensinou, como se sabe, que, para atingir o objetivo almejado, os bolchevistas podem, e às vezes devem, usar qualquer estratagema, como o silêncio e a dissimulação da verdade..." (Novaia Rossia, 17-2-38). E daí retira a conclusão ritual: o stalinismo é filho legítimo do leninismo.

Infortunadamente esse detrator moral não é sequer capaz de reproduzir honestamente uma citação. Lênin escreveu: "É necessário saber adaptar-se a tudo, a todos os sacrifícios e até, se necessário for, usar vários estratagemas, enganos, procedimentos ilegais, usar o silêncio, a dissimulação da verdade para penetrar nos sindicatos, permanecer neles, desenvolver neles a qualquer custo a ação comunista." A necessidade dos estratagemas e dos enganos, segundo a afirmação de Lênin, deriva do fato de que a burocracia reformista, entregando os operários ao capital, perseguia os revolucionários e chamava mesmo a polícia burguesa contra eles. "O engano e a dissimulação da verdade" não são, nesse caso, mais do que os instrumentos duma legítima defesa contra a perfídia duma burocracia reformista.

Em outros tempos, o partido de Zenzinov combateu na ilegalidade o velho regime e depois o bolchevismo. Em ambos os casos valeu-se de enganos, estratagemas, falsos passaportes, e outras formas de "dissimulação da verdade". Todos esses meios eram por eles considerados não apenas morais, mas até heróicos, porque correspondiam aos fins da democracia pequeno-burguesa. Mas a situação muda quando são os revolucionários proletários que se vêem obrigados a recorrer aos meios da ilegalidade contra essa democracia. A pedra de toque da moral desses senhores possui, como se vê, um caráter de classe!

O "amoralista" Lênin recomenda abertamente pela imprensa usar os enganos de guerra para com os dirigentes que traem o movimento operário. O moralista Zenzinov corta conscientemente este texto para enganar seus leitores. Este acusador tão moralista é, como de hábito, um astutozinho sem envergadura. Tinha razão Lênin ao repetir que é terrivelmente difícil encontrar um adversário de boa fé!

O operário que não esconde do capitalista a "verdade" sobre as intenções dos grevistas é um puro e simples traidor, que não merece senão o desprezo e o boicote. O soldado que comunica a "verdade" ao inimigo é punido como espião. O próprio Kerensky tentou acusar fraudulentamente os bolchevistas de ter comunicado a "verdade" aos chefes do estado-maior de Ludendorff. A "verdade sagrada" não é, pois, um fim em si. Ela é dominada por critérios imperativos que, a análise o demonstra, revestem-se de um caráter de classe.

Uma luta de morte não pode ser concebida sem astúcias de guerra; em outros termos, sem a mentira e o engano. Os proletários alemães não podem por acaso enganar a polícia de Hitler? Os bolchevistas soviéticos, por acaso, faltariam à moral enganando a GPU? O honesto burguês aplaude a polícia quando esta consegue, pelo engano, capturar um criminoso. E o engano não seria permitido quando se trata de derrubar os criminosos do imperialismo?

Norman Thomas fala "do estranho amoralismo comunista que nada leva em conta senão o partido e seu poder" (Socialist Call, 12 de março de 1938). Ao dizer isto, Thomas confunde o atual Komintern, isto é a conspiração da burocracia stalinista contra a classe operária, com o partido bolchevista que encarnava o complô dos operários avançados contra a burguesia. Refutamos acima, suficientemente, esta identificação de todo desonesta. O stalinismo camufla-se com o culto do partido, mas na realidade destrói o partido e o arrasta pela lama. Mas é verdade que o partido é tudo para o bolchevista. Esta atitude do revolucionário para com a revolução surpreende e contraria o socialista de salão Thomas, que não é senão um burguês dotado de um "ideal" socialista. Aos olhos de Norman Thomas e de seus semelhantes, o partido não é outra coisa senão o instrumento das combinações eleitorais e similares. A vida privada do homem, suas relações, seus interesses, sua moral, estão fora do partido. Thomas olha com aversão, misturada ao estupor, o bolchevista para quem o partido é o instrumento da transformação revolucionária da sociedade, inclusive da moral dessa sociedade. Não poderia haver no revolucionário marxista contradição entre a moral pessoal e os interesses do partido, porque o partido abraça na sua consciência as tarefas e os fins mais elevados da humanidade. Seria, portanto, ingênuo supor que Thomas tem da moral uma noção mais elevada que os marxistas. O que ele tem é apenas uma idéia muito mais baixa do partido.

"Tudo o que nasce é digno de perecer" diz o dialético Hegel. O fim do partido bolchevista - um episódio da revolução mundial - não diminui a importância deste partido na história mundial. Na época de sua ascensão revolucionária, isso é, quando representava realmente a vanguarda proletária, era o partido mais honesto da história. Quando o pôde, naturalmente enganou as classes adversárias, mas disse a verdade aos trabalhadores, toda a verdade, nada mais do que a verdade. Só em virtude disso ganhou sua confiança, como nenhum outro partido no mundo.

Os assalariados das classes dominantes tratam o fundador deste partido como um imoral. Aos olhos dos operários conscientes, essa acusação é uma honra. Significa que Lênin recusava desdenhosamente submeter-se às normas morais estabelecidas pelos escravocratas para os escravos e que os próprios escravocratas nunca observam para uso próprio; significa que Lênin convidava o proletariado a estender a luta de classes ao plano da moral. Aquele que se inclina perante as regras estabelecidas pelo inimigo jamais vencerá!

O "amoralismo" de Lênin, isto é, sua recusa em admitir uma moral superior às classes, não impediu de permanecer toda a vida fiel a um mesmo ideal; de consagrar-se inteiramente à causa dos oprimidos, de mostrar-se extremamente escrupuloso na esfera das idéias e intrépido na ação, de não assumir nunca atitudes de superioridade em relação ao "simples operário", da mulher sem defesa, da criança. Não parece, nesse caso, que o "amoralismo" é a mais elevada forma da moral humana?

15. Um Episódio Edificante

Vale a pena referir aqui um episódio, em si de pequena importância, que todavia ilustra muito bem a diferença entre a nossa moral e a deles. Em 1935, numa carta a alguns amigos belgas, sustentava a tese segundo a qual um jovem partido revolucionário que tentasse criar seus "próprios sindicatos" marchava em direção ao suicídio. É preciso ir de encontro aos operários onde quer que eles estejam. "Mas isso significa pagar as cotas para a manutenção de um aparelho oportunista?" "Evidentemente", respondia eu, "pelo direito de minar os reformistas é preciso por enquanto pagá-la. Mas os reformistas nos permitirão desenvolver contra eles um trabalho de desagregação? Evidentemente, respondia ainda, o trabalho de desagregação exige algumas precauções conspirativas. Os reformistas constituem a política da burguesia no seio da classe operária. É preciso saber agir sem sua permissão e apesar de suas proibições... Durante uma batida policial na casa do companheiro D., se não me engano por causa de um fornecimento de armas feito à Espanha operária, a polícia belga apoderou-se dessa minha carta. Alguns dias depois ela era publicada. A imprensa de Vandervelde, de De Man e de Spaak não economizou seus raios contra meu "maquiavelismo" e meu "jesuitismo". Mas quem eram meus censores? Desde longos anos presidente da Segunda Internacional, Vandervelde, há muito tempo, é o homem de confiança do capital belga(14). De Man, depois de ter por anos enobrecido o socialismo em maciços volumes, gratificando-o com uma moral idealista e encostando-se na escapatória da religião, aproveitou a primeira ocasião para enganar os operários e tornar-se um vulgar ministro da burguesia. O caso de Spaak é ainda mais clamoroso. Dezoito meses atrás, esse senhor, que pertencia à oposição socialista de esquerda, viera me pedir conselho sobre os métodos de luta a usar-se contra a burocracia de Vandervelde. Eu lhe exprimira as mesmas idéias que mais tarde formaram minha carta. Um ano após, ele renunciava aos espinhos para ficar com a rosa. Traindo seus amigos da oposição, tornava-se um dos mais cínicos ministros do capital belga." Nos sindicatos e em seu partido, esses senhores sufocam qualquer crítica, desmoralizam e corrompem sistematicamente os trabalhadores mais avançados, expelindo os indóceis não menos sistematicamente. Estes cavalheiros não se distinguem da GPU senão pelo fato de que, no momento, procedem sem derramamento de sangue; em sua qualidade de bons patriotas, reservam o sangue operário para a próxima guerra imperialista. E fique claro: é preciso ser um enviado do inferno, um "pretendente", um bolchevista, para dar aos operários revolucionários o conselho de observar na luta contra esses senhores as regras da conspiração!

Do ponto de vista da legalidade belga, minha carta não continha nada de delituoso. A polícia de um país democrático tê-la-ia restituído ao destinatário pedindo desculpas. A imprensa de um partido socialista devia ter protestado contra uma batida organizada no interesse do general Franco. Os senhores socialistas, pelo contrário, não se melindraram em obter uma vantagem através de um serviço de sua polícia; sem a qual teriam perdido a ocasião favorável de demonstrar ainda uma vez a superioridade de sua moral sobre o amoralismo bolchevista.

Tudo é simbólico nesse episódio. Os socialistas belgas deram largas à sua indignação contra mim, no exato momento em que seus companheiros noruegueses guardavam-me sob chave, juntamente com minha mulher, para que não nos pudéssemos defender das acusações da GPU.(15) O governo norueguês sabia perfeitamente que as acusações de Moscou eram inventadas; o órgão oficioso da social-democracia norueguesa o escreveu claramente e com todas as letras desde o primeiro dia. Mas Moscou tocou no bolso dos armadores e comerciantes de peixe noruegueses, e os senhores social-democratas puseram-se logo de joelhos. O chefe do partido Martim Tramael é uma autoridade em matéria de moral; é um justo; não bebe, não fuma, é vegetariano, e no inverno toma banho de água gelada. O que não o impediu de, após ter-nos feito aprisionar por ordem da GPU, convidar o agente norueguês da GPU, Jacob Friese, um burguês sem honra nem consciência, a caluniar-me de maneira particular. Mas basta isso...

A moral destes senhores consiste em regras gerais e procedimentos oratórios destinados a mascarar seus interesses, seus apetites, seus temores. Em sua maioria, eles estão prontos a todas as baixezas - à abjuração, à perfídia, à traição - por ambição e lucro. Na sagrada esfera dos interesses pessoais, para eles o fim justifica qualquer meio. É por isso mesmo que necessitam de um código moral particular, prático e ao mesmo tempo elástico, como um bom par de suspensórios. Eles detestam quem quer que seja que revele perante as massas seus segredos profissionais. Em tempos de "paz", seu ódio exprime-se por meio de calúnias, vulgares ou "filosóficas". Quando os conflitos sociais assumem forma mais aguda, como aconteceu na Espanha, estes moralistas entram em acordo com a GPU para exterminar os revolucionários. Depois, para justificar-se, repetem que "trotskismo e stalinismo são a mesma coisa".

16. Interdependência Dialética Entre Fins e Meios

O meio não pode ser justificado senão pelo fim. Mas também o fim precisa de justificação. Do ponto de vista do marxismo, que exprime os interesses históricos do proletariado, o fim está justificado se levar ao reforço do poder do homem sobre a natureza e à supressão do poder do homem sobre o homem.

Isto significa então que, para atingir este fim, tudo é permitido? — perguntará sarcasticamente o filisteu, demonstrando que não entendeu nada. É permitido, responderemos, tudo aquilo que leve realmente à libertação dos homens. Já que este fim não pode ser atingido senão por via revolucionária, a moral emancipadora do proletariado tem necessariamente um caráter revolucionário. Como aos dogmas da religião, esta moral se opõe a todos os fetiches do idealismo, gendarmes filosóficos da classe dominante. Ela deduz as normas de conduta das leis do desenvolvimento social, isto é, antes de tudo, da luta de classes, que é a lei das leis.

O moralista ainda insiste: Isto significa então ave, na luta de classes contra o capitalismo, são permissíveis todos os meios? A mentira, a falsificação, a traição, o assassínio, etc?

Respondemos: são admissíveis e obrigatórios apenas os meios que aumentam a coesão do proletariado, inflamam sua consciência com um ódio inextinguível para com toda forma de opressão, ensinam-lhe a desprezar a moral oficial e seus arautos democráticos, dão-lhe plena consciência de sua missão histórica e aumentam sua coragem e sua abnegação. Donde se conclui, afinal, que nem todos os meios são válidos.

Quando dizemos que o fim justifica os meios, disto deriva para nós que o grande fim revolucionário repudia, entre estes meios, os procedimentos e os meios indignos que lançam uma parte da classe operária contra outra; ou que tentam fazer "a felicidade das massas" sem a sua organização, substituindo-as pela adoração dos "chefes". Acima de qualquer outra coisa, a moral revolucionária condena irredutivelmente o servilismo para com a burguesia e o desprezo para com os trabalhadores, que é uma das características mais arraigadas na mentalidade dos pedantes e dos moralistas pequeno-burgueses.

Estes critérios, é obvio, não definem o que é consentido ou não em cada situação determinada. Não existem respostas automáticas deste tipo. As questões da moral revolucionária confundem-se com as questões da estratégia e tática revolucionárias. Somente a experiência viva do movimento, iluminada pela teoria, pode dar a resposta certa a esses problemas.

O materialismo dialético não separa os fins dos meios. O fim é deduzido de maneira natural do dever histórico. Os meios estão organicamente subordinados ao fim. O fim imediato transforma-se no meio do fim ulterior.

Ferdinand Lassalle em seu drama Franz von Sickingen faz um de seus personagens dizer:

Não indiques apenas o fim,
mas mostra também o caminho
porque o fim e o caminho
tão unidos estão
que um muda com o outro
e com ele se move
- e cada novo caminho
revela um novo fim.  

Os versos de Lassalle são bastante imperfeitos e, o que é pior, o próprio Lassalle, em sua conduta política prática, abandonou a norma que exprimia nestes termos: sabe-se que chegou inclusive a manter negociações secretas com Bismarck. Mas a interdependência entre fins e meios está expressa nestes versos. É preciso semear um grão de trigo se se quiser obter uma espiga de trigo.

O terrorismo individual, por exemplo, é ou não admitido do ponto de vista da "moral pura"? Nesta forma abstrata, a pergunta é para nós totalmente desprovida de sentido. Os burgueses conservadores suíços ainda tributam elogios oficiais ao terrorista Guilherme Tell. As nossas simpatias estão sem reservas com os terroristas irlandeses, russos, polacos, hindus, que combatem um jugo político e nacional. Kirov, sátrapa brutal, não suscita em nós a mínima compaixão. E se viéssemos a saber que Nicolaiev o abateu conscientemente com o fim de vingar os operários cujos direitos Kirov espezinhava, nossas simpatias estariam sem reserva com o terrorista. Mas o elemento decisivo aos nossos olhos não é o móvel subjetivo, é a utilidade objetiva. Um tal meio pode-nos conduzir ao fim? Pelo que se refere ao terrorismo individual, a teoria e a experiência demonstram o contrário. Nós dizemos ao terrorista: "Não é possível substituir as massas; teu heroísmo só pode encontrar aplicação útil no seio do movimento de massas." Nas condições de uma guerra civil, o assassínio de certos opressores deixa de ser terrorismo individual. Se um revolucionário fizer saltar o general Franco e seu estado maior, duvido que este ato suscitasse indignação moral mesmo entre os eunucos da social-democracia. Em tempos de guerra civil um ato deste gênero seria politicamente útil. Assim, na questão mais grave - a do homicídio - as normas morais absolutas são de todo inoperantes. O juízo moral está condicionado, como o juízo político, pelas necessidades internas da luta.

A emancipação dos operários não pode ser senão obra dos próprios operários. Não há, pois, crime pior do que enganar as massas, do que fazer passar as derrotas por vitórias e os inimigos por amigos, do que corrompei os chefes, do que inventar lendas, do que fabricar processos judiciais de impostura - enfim, do que fazer o que fazem os stalinistas. Estes meios podem servir apenas a um fim: prolongar o domínio duma camarilha condenada pela História. Não podem servir, porém, à emancipação das massas. Eis porque a IV Internacional sustenta contra o stalinismo uma luta de morte.

As massas, normalmente, não estão isentas de falhas. Não estamos inclinados a idealizá-las. Temo-las visto em múltiplas circunstâncias, em várias fases, em meio às vastas convulsões. Notamos suas fraquezas e suas qualidades. Qualidades: a decisão, a abnegação, o heroísmo que encontram sempre sua mais alta expressão nos períodos de ascenso revolucionário. Nestes momentos, os bolchevistas estão à cabeça das massas. Outro capítulo da história se abre quando se revelam as fraquezas dos oprimidos: heterogeneidade, insuficiência cultural, horizontes limitados. Cansadas, deprimidas, desiludidas, as massas perdem a confiança em si mesmas e cedem lugar a uma nova aristocracia. Neste período, os bolchevistas (os "trotskistas") encontram-se isolados das massas.

Na prática já percorremos dois ciclos análogos: 1897-1905, anos de afluxo; 1907-1913, anos de refluxo; 1917-1923, anos marcados por uma ascensão sem precedentes na história; depois um novo período de reação, que ainda não acabou. Graças a esses eventos, os "trotskistas" aprenderam a compreender o ritmo da história - em outros termos, a dialética da luta de classes. Aprenderam, parece que com sucesso, a subordinar a esse ritmo objetivo seus desígnios subjetivos e seus programas. Aprenderam a não desesperar, porque as leis da história não dependem de nossas inclinações individuais ou de nossos critérios morais. Aprenderam a subordinar suas inclinações individuais a estas leis. Aprenderam a não temer nem mesmo os inimigos mais poderosos, se a potência destes inimigos estiver em contradição com as exigências do desenvolvimento histórico. Sabem nadar contra a correnteza com a profunda convicção de que um novo fluxo histórico de renovada potência os levara a outra margem. Nem todos chegarão: alguns se afagarão ao longo do caminho. Mas participar desse movimento com os olhos bem abertos, com a máxima tensão da vontade, esta já é em si a suprema satisfação moral que pode ser dada a um ser pensante!

  Coyocan, 16 de fevereiro 1938

  P.S. Escrevia estas páginas sem saber que nestes dias meu filho lutava contra a morte. Dedico à sua memória este breve trabalho que, espero, teria sua aprovação: porque Leão Sedov era um autêntico revolucionário e desprezava os fariseus.


Notas: 

(12) O Social-Patriotismo: denominação dada pelos bolcheviques e demais revolucionários internacionalistas à política dos partidos da II Internacional durante a 1ª Guerra Mundial. (retornar ao texto)

(13) Machno foi um chefe anarquista dos camponeses ucranianos. Lutou às vezes contra os brancos, às vezes contra os vermelhos. Kronstadt era o nome da fortaleza naval de Petrogrado, fortemente revolucionária. Os seus marinheiros foram durante vários anos quase que a guarda pretoriana do regime soviético e estiveram entre seus mais decididos combatentes. (retornar ao texto)

(14) GPU: Polícia política soviética. Quando começaram os processos de Moscovo, Trotsky acabara de ser expulso da França da "Frente Popular" e obtivera asilo na Noruega, onde o Partido Operário Social Democrata ganhara as eleições.  Stalin necessitava do silêncio de seu adversário a qualquer preço. O governo soviético fez pressão sobre os armadores da frota pesqueira norueguesa da qual era importante cliente. Estes, por sua vez apertaram o governo "operário" que prendeu Trotsky e sua mulher incomunicáveis. Trotsky só pôde responder a Estaline quando Diego de Rivera lhe arranjou o asilo mexicano, concedido pelo presidente Cárdenas. (retornar ao texto)

(15) Leão Sedov, organizador e militante da IV Internacional, foi assassinado em Paris pela GPU no hospital onde se encontrava internado. (retornar ao texto)

Inclusão: 23/11/2002
Última alteração: 28/11/2019