Trotskismos

Daniel Bensaïd


Capítulo I - As Bagagens do Êxodo


Certas teses "trotskistas", como a teoria da revolução permanente, surgem desde o início do século, a propósito da revolução russa de 1905. Em contrapartida, o termo "trotskismo" não se banaliza no jargão burocrático senão em 1923-1924. Depois da guerra civil vitoriosa, e mais ainda em 1924 após a derrota do Outubro alemão (1923) e a morte de Lenine, os dirigentes da Rússia soviética e da Internacional Comunista encontram-se então numa situação imprevista de estabilização relativa da situação internacional e de longo isolamento da União Soviética. Já não é a base social que mantém o gabinete de Estado, mas sim a vontade do gabinete que se esforça por arrastar a base.

Vítima de um primeiro ataque cerebral em Março de 1923, Lenine apressa Trotsky a empenhar-se na luta contra Estaline sobre a questão do monopólio do comércio externo, sobre a das nacionalidades e sobretudo sobre o regime interno do partido. Numa carta ao Comité Central de Outubro de 1923, Trotsky denuncia a burocratização das instituições do Estado. Em Dezembro do mesmo ano, ele sintetiza essas críticas numa série de artigos apelando a um "Novo Curso". A direcção empenha-se então no combate contra o "trotskismo" e as suas reivindicações: o restabelecimento da democracia interna no partido e a adopção de uma planificação económica para controlar os efeitos desiguais e centrífugos da Nova Política Económica. Em Dezembro de 1924, no Pravda, Estaline caracteriza pessoalmente o trotskismo como uma "desesperança permanente". Opõe-lhe a construção audaciosa "do socialismo num só país", em vez de esperar a salvação de uma hipotética extensão da revolução que tarda em se concretizar.

Após o recrutamento massivo da "promoção Lenine", em 1924, os milhares de veteranos de Outubro já não pesam muito nos efectivos do partido, face às centenas de milhar de recém-chegados, incluindo numerosos carreiristas de última hora. Os massacres da Grande Guerra e as crueldades da guerra civil criaram, num país desprovido de tradições democráticas, um habituar às formas extremas de violência social e física. A mudança radical da II guerra e da guerra civil marcam, assim, "um grande salto atrás" e uma "arcaízação" do país relativamente ao nível de desenvolvimento esperado antes de 1914. Dos 4 milhões de habitantes de Petrogrado em 1917, não restam senão 1,7 em 1929. Mais de 380.000 operários deixaram a produção e apenas 80.000 ficaram no seu posto de trabalho. Cidadela operária, as fábricas Poutilov perderam quatro quintos do seu efectivo. Mais de 30 milhões de camponeses conheceram a escassez e a fome. As cidades devastadas vivem à custa das campanhas submetidas às requisições autoritárias. "Na verdade, nota o historiador Moshe Lewin, o Estado forma-se sobre a base de um desenvolvimento social regressivo".

Os privilégios prosperam sob a penúria. Nisto reside a raiz fundamental da burocratização. No diário ditado aos seus secretários, Lenine, já doente, considerava em 1923: "chamamos nosso a um aparelho que nos é profundamente estranho e que representa uma miscelânea de sobrevivências burguesas e czaristas". Nesse ano, os preços industriais tinham praticamente triplicado relativamente aos preços anteriores a 1914, enquanto os preços agrícolas não tinham aumentado senão 50%. Esta desproporção anunciava já o desequilíbrio entre cidade e campo e a recusa dos camponeses em vender as suas colheitas a preços baixos impostos quando não havia nada que comprar em contrapartida.

Os dirigentes bolcheviques tinham sempre concebido a revolução na Rússia como génese e primeira parte de uma revolução europeia ou, pelo menos, como um prelúdio da revolução alemã. A questão colocada em 1923 era, portanto, como aguentar até à eventual recuperação do movimento revolucionário na Europa? Em 1917, todos os partidos russos admitiam que o país não estava pronto para o socialismo, mas o "democrata" Milioukov considerava que também não o estava para a democracia. Ele não via alternativa senão entre uma ditadura militar de direita e a dos sovietes. Tratava-se de uma luta impiedosa entre revolução e contra-revolução.

Já antes da morte de Lenine, as respostas divergiam. A estratégia da "construção do socialismo num só país", defendida por Estaline e seus aliados, subordina as hipóteses de uma revolução mundial aos interesses da burocracia soviética; a da "revolução permanente", desenvolvida por Trotsky e pela corrente chamada A Oposição de Esquerda, subordina o futuro da revolução russa à extensão da revolução mundial. Estas estratégias contrárias implicam respostas divergentes face aos principais acontecimentos internacionais: sobre a segunda revolução chinesa de 1927, sobre o crescimento do nazismo na Alemanha e, mais tarde, sobre as orientações radicalmente inversas na guerra civil espanhola, sobre o pacto germano-soviético de 1939, ou sobre a preparação da guerra.

Elas implicam igualmente escolhas na política interna da própria União Soviética. Trotsky e a Oposição de Esquerda propuseram, a partir de 1924, um "Novo Curso" que visava reanimar a democracia soviética e a vida do partido. Eles preconizam uma política de planificação e de industrialização para reduzir as tensões entre a agricultura e a indústria. Mas vão opor-se à viragem brutal de Estaline, passando em 1928 do "socialismo a passo de tartaruga" pronunciado por Bukharin à colectivização forçada e à industrialização acelerada do primeiro plano quinquenal que semeia a desolação nos campos e provoca a grande fome de 1932 na Ucrânia.

Perante oposições tão vincadas, certos historiadores interrogaram-se sobre a passividade relativa de Trotsky após a morte de Lenine, sobre as suas reticências em desenvolver o combate sem tréguas contra Estaline, sobre a sua aceitação de manter oculto o testamento de Lenine. O próprio interessado forneceu explicações lógicas plausíveis. Estava, no meio dos anos 1920, perfeitamente consciente da fragilidade de uma revolução cuja base operária e urbana estava desgastada e da necessidade de convergência com um campesinato recuado constituinte da esmagadora maioria da população. Num equilíbrio instável propício às soluções bonapartistas autoritárias, ele recusa apoiar-se no exército (no qual a sua popularidade permanecia grande) e na casta dos oficiais, pois um golpe de Estado militar não faria senão acelerar o processo de burocratização.

No entanto, a luta política estava bem lançada desde 1923. Em 1926, constituía-se uma oposição unificada que se definia como uma tendência respeitosa da legalidade do partido. O seu projecto inscrevia-se ainda, na verdade, na perspectiva da rectificação e de reforma do regime. Em Maio de 1927, após a derrota da segunda revolução chinesa, ela apela a uma mobilização da base militante. Em Outubro do mesmo ano, pelo décimo aniversário da revolução, Grigory Zinoviev e Trotsky são excluídos do partido. O segundo é exilado em Alma Ata. Mais de 1500 opositores são deportados. As purgas começam.

Em 1929, perante uma situação económica catastrófica, Estaline vira-se contra a direita do partido. Ele parece assumir para si, ao instituir o primeiro Plano Quinquenal, certas reivindicações da oposição. Esta viragem precipita um afundar da Oposição de Esquerda. Alguns dos seus prestigiados dirigentes viam nesta "revolução a partir de cima" uma viragem à esquerda. Sucedem-se capitulações, deserções. Para Trotsky, os que se juntaram ao regime termidoriano são agora "almas mortas": a planificação, sem restauração da democracia socialista, não visa senão reforçar o poder da burocracia. Um longo êxodo forçado nas margens dos movimentos de massas tem então início. Através destas lutas trágicas do período entre as duas guerras no seio do partido bolchevique, como na Internacional Comunista (ou III Internacional), constituía-se assim a bagagem programática definidora do trotskismo original. Ela resume-se, no essencial, em quatro pontos:

1. A oposição entre a teoria da revolução permanente e a do "socialismo num só país".

Os elementos desta estratégia surgiram a partir do ensaio de Trotsky sobre a revolução russa de 1905. São sistematizados no decorrer dos anos 1920 até encontrarem expressão sintética nas teses escritas à luz da revolução chinesa de 1927: "Para os países com desenvolvimento burguês retardatário, e em particular para os países coloniais, a teoria da revolução permanente significa que a verdadeira e completa solução das suas tarefas democráticas e de libertação nacional não podia ser senão a ditadura do proletariado assumindo a direcção da nação oprimida e, em primeiro lugar, das suas massas camponesas. (...)

A conquista do poder pelo proletariado não põe um termo à revolução, apenas a inaugura. A construção do socialismo não é concebível senão sobre a base da luta de classes à escala nacional e internacional (...). A revolução socialista não pode ser conseguida nos limites nacionais. Uma das causas essenciais da crise da sociedade burguesa é que as forças produtivas que ela cria tendem a sair do quadro do Estado nacional. Daí, as guerras imperialistas (...). Os diferentes países chegarão ao socialismo segundo ritmos diferentes. Sob certas circunstâncias, os países atrasados podem chegar à ditadura do proletariado mais rapidamente do que os países avançados, mas chegarão ao socialismo mais tarde do que estes."

Na sua introdução de 1928 aos textos sobre A Revolução Permanente, Trotsky denuncia a colagem estalinista entre um "messianismo nacional" e um "internacionalismo burocraticamente abstracto". Ele defende que a revolução socialista prossegue, após a tomada do poder: "uma luta interna contínua" através da qual a sociedade "não cessa de mudar de pele", do que resulta o choque inevitável entre "os diferentes agrupamentos desta sociedade em transformação". Esta teoria inscreve-se evidentemente numa concepção não-linear e não-mecânica da história, em que a lei do "desenvolvimento desigual e combinado" determina um campo de possibilidades, sem resultado decidido à partida. "O marxismo", escreveu Trotsky, "parte de um ponto de vista da economia mundial concebida não como uma soma de partes nacionais, mas como uma potente realidade, criada pela divisão internacional do trabalho e pelo mercado mundial, que na nossa época domina de forma esmagadora os mercados nacionais."

2. Sobre as reivindicações transitórias, a frente única e a luta contra o fascismo.

A questão, colocada à luz da revolução russa, é a das reivindicações capazes de mobilizar na maior unidade possível, de elevar na acção o nível de consciência e de criar a melhor relação de forças na perspectiva de confronto inelutável com as classes dominantes. Foi o que souberam fazer os bolcheviques em 1917, em torno de questões vitais: o pão, a paz, a terra. Tratava-se de sair de uma discussão abstracta sobre a virtude intrínseca das reivindicações, umas qualificadas de reformistas por natureza (compatíveis com a ordem estabelecida), as outras revolucionárias por natureza (não integráveis nessa ordem). O sentido das palavras de ordem depende do seu valor mobilizador relativamente a uma situação concreta e do seu valor educativo para aqueles que entram em luta. Esta problemática das "palavras de ordem transitórias" ultrapassa as antinomias estéreis entre um reformismo gradualista que crê poder mudar a sociedade sem a revolucionar, e um fetichismo da grande noite que reduz a revolução ao seu momento paroxístico, em detrimento do paciente trabalho de organização e de educação.

Este debate está directamente ligado àquele que esteve no centro das discussões estratégicas sobre o programa do V e do VI congressos da IC (Internacional Comunista). Reportando sobre a questão em 1925, Bukharin reafirma a validade da "táctica da ofensiva" do início dos anos 1920. O representante alemão Thalheimer defendia, em contrapartida, ao V Congresso a problemática da Frente Única e das reivindicações transitórias. Ele afirma nomeadamente:

"Basta repensar a história da II Internacional e da sua desagregação para reconhecer que é precisamente a separação entre as questões quotidianas e os grandes objectivos que constitui o ponto de partida da sua derrapagem oportunista (...) A diferença específica entre nós e os socialistas reformistas não reside no facto de nós querermos eliminar do nosso programa as reivindicações de reformas, seja qual for o nome que lhes dermos, para as metermos num quarto separado. Consiste, sim, no facto de situarmos essas reivindicações transitórias na relação mais estreita com os nossos princípios e fins."

A questão voltou a estar na ordem do dia do VI Congresso de 1928, em condições profundamente diferentes. Exilado na Turquia a partir de 1929, Trotsky aproveitará a sua reforma forçada para aprofundar o balanço dos dez anos de experiências revolucionárias. Esta reflexão fornece a matéria dos ensaios sobre A Internacional Comunista após Lenine, publicados em Istambul em 1929. Na sua crítica ao programa da IC, Trotsky condenava o abandono da palavra de ordem dos Estados Unidos Socialistas da Europa. Ele rejeitava a confusão entre a sua própria teoria da revolução permanente e a da ofensiva em permanência, de Bukharin. Ele caracterizava o fascismo como um "estado de guerra civil" levada a cabo pela sociedade capitalista contra o proletariado.

Pouco depois do Congresso, por uma uma reviravolta de 180°, a par da concretização da liquidação dos kulaks(1) e da colectivização forçada na União Soviética, a IC adoptava uma orientação "classe contra classe", fazendo da social-democracia o inimigo principal, o que levaria a uma divisão fatal do movimento operário alemão face ao crescimento do nazismo. Numa brochura intitulada O terceiro período de erro da Internacional Comunista, Trotsky denunciava o curso desastroso como uma recaída, não num esquerdismo juvenil explicável pelo entusiasmo revolucionário, mas num esquerdismo senil e burocrático subordinado aos interesses do Kremlin e ao zig-zag da sua diplomacia. Na sua História da Revolução Russa, ele insistia sobre o estudo atento dos sinais de radicalização das massas (a evolução dos efectivos sindicais, os resultados eleitorais, a curva das greves) em vez de se proclamar abstractamente a disponibilidade constante para a acção revolucionária:

"a actividade das massas pode, segundo as condições, assumir expressões muito diferentes. Em certos períodos, a massa pode estar totalmente absorvida pela luta económica e manifestar muito pouco interesse por questões políticas. Em contrapartida, depois de ter sofrido vários reveses importantes no campo da luta económica, ela pode virar bruscamente a sua atenção para o domínio político."

Os seus Escritos sobre a Alemanha avançam, dia após dia, propostas unitárias de acção para vencer o resistível crescimento do nazismo. Eles fornecem um brilhante exemplo de um pensamento político concreto ajustado às mudanças da conjuntura. Valeram-lhe, no entanto, a ira do aparelho "ortodoxo" do Partido Comunista alemão, ligado à estúpida profecia segundo a qual "depois de Hitler, viria a vez de Thalheimer [então secretário-geral do partido]".

Em 1938, o Programa de fundação da futura IV Internacional (ou Programa de Transição) resumia as conquistas dessas experiências:

"É necessário ajudar as massas a encontrar no processo da sua luta quotidiana uma ponte entre as suas reivindicações imediatas e o programa da revolução socialista. Essa ponte deve consistir num sistema de reivindicações transitórias, que partam das condições actuais e da consciência real de largas camadas da classe operária, para as conduzir invariavelmente a uma e à mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado (...). A IV Internacional não rejeita as reivindicações do velho programa mínimo na medida em que elas conservem alguma força de vida. Ela defende incansavelmente os direitos democráticos dos trabalhadores e as suas conquistas sociais. Mas coloca esse trabalho quotidiano numa perspectiva revolucionária."

Entre essas reivindicações, o programa insiste na escala móvel dos salários e das horas de trabalho, no controle operário sobre a produção (escola da economia planificada), e no levantamento do segredo bancário, na "expropriação de certos grupos capitalistas", na estatização do sistema de crédito. Ele atribui uma importância particular às reivindicações democráticas e nacionais nos países coloniais e semi-coloniais. Este programa não constitui a chave de um modelo de sociedade. Desenvolve, sim, uma pedagogia da acção na qual a emancipação dos trabalhadores é obra deles mesmos.

3. A luta contra o estalinismo e a burocracia.

No início dos anos 1920, certos economistas soviéticos viam a economia capitalista mundial mergulhar num marasmo sem fim. Trotsky foi um dos primeiros a analisar o seu restabelecimento relativo. Nesse contexto, ele foi levado a pensar a economia soviética não como uma economia socialista, mas como "a economia de transição" num país submetido à ameaça constante de uma intervenção militar e obrigado a consagrar à defesa uma parte desmesurada dos seus magros recursos. Não se tratava, portanto, de construir uma sociedade ideal num só país, mas de ganhar tempo, seguindo os fluxos e refluxos da revolução mundial, da qual dependia em última instância, o futuro da revolução russa. Enquanto o movimento revolucionário não a importasse para os países mais desenvolvidos, a revolução russa continuaria sob a pressão do mercado mundial e da concorrência com países de tecnologia mais desenvolvida e de produtividade do trabalho mais elevada.

No quadro destas contradições, Trotsky foi um dos primeiros a aperceber-se do perigo da burocracia enquanto nova força social que gozava de privilégios sociais ligados ao monopólio do poder político. Se foi, na época da guerra civil e do comunismo de guerra, partidário de métodos autoritários, como testemunha o seu pior livro, Terrorismo e Comunismo, em 1923 ele começou a analisar a burocratização como um fenómeno social, mesmo se o perigo principal vinha ainda, a seus olhos, da "nova burguesia" dos kulaks e dos novos ricos da Nova Política Económica (NEP). Esta questão decisiva da periodização da contra-revolução burocrática não deixou, desde então, de agitar os meios revolucionários russos e internacionais. Tratava-se de saber se "o termidor soviético" estava já cumprido ou por cumprir.

A contra-revolução burocrática não é, de facto, um acontecimento único, simétrico àquele de Outubro, mas mais um processo cumulativo pejado de níveis e de patamares. De Outubro de 1917 ao Gulag estalinista, não há simples continuidade mas mudança de escala na repressão e no peso do fenómeno burocrático. Simultânea à colectivização forçada, uma reforma capital do sistema de detenção entra em vigor em Junho de 1929, generalizando os campos de trabalho para os detidos condenados a penas superiores a três anos. Perante as grandes fomes de 1932-33 e a importância das migrações interiores, uma decisão de Dezembro de 1932 introduz os passaportes internos. A lei do 1° de Dezembro de 1934 legaliza os procedimentos expeditivos que forneceriam instrumento jurídico ao grande terror. Começa então o ciclo propriamente terrorista, marcado pelas grandes purgas de 1936-38. Mais de metade dos delegados ao Congresso de 1934 foram eliminados. Mais de 30.000 quadros do exército, entre 178.000, foram presos. Paralelamente, os efectivos do aparelho do estado burocrático explodiam. Segundo as estatísticas analisadas pelo historiador Moshe Lewin, o pessoal administrativo passou de 1.450.000 membros em 1928, para 7.500.000 em 1939. O número de "colarinhos brancos" cresceu de 4 milhões para cerca de 14 milhões. O aparelho de Estado devorava o partido que acreditava poder controlá-lo.

Sob o chicote burocrático, o país conhece então uma mudança radical sem equivalente mundial. Entre 1926 e 1939, as cidades engrossam em 30 milhões de habitantes. A força de trabalho assalariada passa de 10 a 22 milhões. Do que resulta uma ruralização massiva das cidades e a imposição despótica de uma nova disciplina de trabalho. Esta transformação a passo forçado era acompanhada de uma exaltação nacionalista e de um desenvolvimento massivo do carreirismo. Nessa grande agitação social e geográfica, ironiza Moshe Lewin, a sociedade era, num certo sentido, "sem classes", pois todas as classes eram informes, em fusão perpétua.

Para além das diferentes problemáticas, autores tão diferentes como Trotsky e Hannah Arendt estão de acordo em datar por altura do primeiro Plano Quinquenal e das grandes purgas dos anos 1930, a reviravolta qualitativa a partir da qual se tornou possível falar de contra-revolução burocrática (por Trotsky) ou de totalitarismo propriamente dito (por Arendt). O contributo de Trotsky seria fornecer os elementos de uma compreensão materialista da contra-revolução burocrática, em que as condições sociais e históricas primam sobre as intrigas de palácio e sobre a psicologia dos actores. Ele não reduz acontecimentos colossais, em que estão envolvidas multidões, aos caprichos de uma "história que parte de cima", feita pelos guias supremos ou grandes timoneiros. A sua contribuição não encerra, portanto, o debate e não resolve definitivamente o hieróglifo histórico que continuou a despedaçar os seus herdeiros "ortodoxos" ou "heterodoxos".

Ele empenhou-se sobretudo em assinalar os degraus do processo em cujo decurso a burocracia se autonomiza e o poder se concentra nas mãos de um indivíduo. O grau de cristalização dos privilégios, as relações entre as classes, o partido e o Estado, a política internacional da direcção burocrática, constituem indicadores combinados suficientes para tentar determinar os seus umbrais. O principal revelador da sua mudança reaccionária não é no entanto sociológica, mas política: reside no falhanço da Internacional Comunista face à ascensão e à vitória do nazismo na Alemanha. Em 1937, quando os processos de Moscovo e o grande terror estão no seu auge, Trotsky corrige a sua visão:

"Antes, definimos o estalinismo como um centrismo burocrático. Esta afirmação encontra-se ultrapassada. Os interesses da burocracia bonapartista não correspondem já ao carácter híbrido do centrismo. O carácter contra-revolucionário do estalinismo na arena mundial está definitivamente estabelecido."

Ele deduz então a necessidade de abandonar a linha da rectificação e da reforma na URSS: a tarefa central torna-se então a

"do derrube da própria burocracia termidoriana."

Esta nova revolução é qualificada de política na medida em que supostamente se apoia sobre as conquistas sociais (a propriedade estatal e a planificação) existentes. No seu ensaio sobre Trotsky, Ernest Mandel utiliza, a propósito do estalinismo, a fórmula paradoxal de "contra-revolução política na revolução". Estas fórmulas ambíguas conduzem à insistência na caracterização do Estado como Estado operário burocraticamente degenerado, atribuindo-lhe assim uma substância social fonte de bastantes equívocos.

O programa da revolução política comporta também uma série de reivindicações democráticas já avançadas, em 1927, na Plataforma da Oposição de Esquerda:

"1 - cortar pela raiz qualquer tentativa de aumentar o dia de trabalho; 2 - Aumentar os salários, pelo menos em relação ao rendimento industrial actual; 5 - Melhorar as condições habitacionais dos trabalhadores..."

Esta plataforma condenava categoricamente a destituição dos representantes sindicais eleitos sob o pretexto de desacordos internos ao partido. Ela reclamava uma plena independência para os comités de fábrica e os comités locais relativamente às administrações do Estado. Em contrapartida, não colocava em causa "a situação de partido único que ocupa o Partido Comunista da União Soviética". Contentava-se em assinalar que essa situação, "absolutamente indispensável à revolução", origina uma série de "perigos particulares". O Programa de Transição de 1938 marca, nesse ponto, uma viragem fundamental. O pluralismo político, a independência dos sindicatos face ao partido e ao Estado, as liberdades democráticas tornam-se uma questão de princípio, na medida em que exprimem a heterogeneidade do proletariado e os conflitos de interesses susceptíveis de o atravessar, muito depois da conquista do poder. Na Revolução Traída, Trotsky expõe os fundamentos teóricos deste pluralismo de princípio. As classes não são homogéneas "como se a consciência de uma classe correspondesse exactamente ao seu lugar na sociedade". Elas são "despedaçadas pelos antagonismos internos e não atingem os seus fins comuns senão pela luta de tendências, de agrupamentos, e de partidos. Podemos admitir, com algumas restrições, que um partido é uma fracção de classe, mas como uma classe é feita de numerosas fracções, a mesma classe pode formar vários partidos". Assim, o proletariado da sociedade soviética "não é menos, mas sim muito mais heterogéneo e complexo do que aquele dos países capitalistas e pode consequentemente fornecer um terreno fértil largamente suficiente para a formação de vários partidos". Trotsky concluía que a democratização dos sovietes era a partir de agora "inconcebível sem o direito ao pluripartidarismo".

4. A questão do partido e da Internacional.

É a quarta grande questão constitutiva do "trotskismo" original. Ela é o corolário organizacional da teoria da revolução permanente e da compreensão da revolução como processo internacional. O último combate de Trotsky por uma nova Internacional, que ele considerará como o mais importante da sua vida, opõe-se à evolução estalinista do regime soviético e à sua consequência previsível: a liquidação da própria Internacional Comunista, oficializada em 1943.


Notas:

(1) N.T.: Grandes latifundiários na Rússia czarista (retornar ao texto)

Este texto foi uma colaboração
logo
Inclusão 16/03/2010
Última alteração 19/01/2013