Porque Crê em Deus a Burguesia

Paul Lafargue

III — Origens económicas da crença em Deus da burguesia


Era de esperar que o extraordinário desenvolvimento e vulgarização dos conhecimentos scientíficos e a demonstração do encadeamento necessário dos fenómenos naturais, teriam estabelecido a ideia de que o universo, regido por uma lei precisa, estava fora do alcance dos caprichos duma vontade humana ou sobrehumana e que, por conseguinte, Deus era inútil, desapossado das múltiplas funções que a ignorância do selvagem o havia investido. Não obstante, forçoso é reconhecer que a crença num Deus, podendo por sua vez alterar a ordem precisa das coisas, subsiste ainda entre os homens de sciência, achando-se entre os burgueses os que pedem, como os selvagens, chuvas, vitórias, ou a cura de enfermidades.

Ainda que os sábios houvessem criado entre os burgueses a convicção de que os fenómenos naturais obedecem à lei de precisão, de sorte que, determinados pelos que os precedem, determinam os que lhes hão-de seguir, ficaria ainda por demonstrar que os fenómenos do mundo social estão por igual submetidos à lei de precisão. Porém os economistas, os filósofos e os políticos que estudam as sociedades humanas e que teem até a pretensão de dirigi-las, não chegaram nem podiam ter chegado a impor a convicção de que os fenómenos sociais dependem da lei de precisão, como os fenómenos naturais.

E porque não puderam estabelecer esta convicção, a crença em Deus constitue uma necessidade para os cérebros burgueses, mesmo para os mais cultivados.

O determinismo filosófico só actua nas sciências naturais, porque a burguesia permitiu a seus sábios estudar livremente a combinação das forças da natureza, que tem todo o interesse em conhecer, pois que as utiliza para a produção das suas riquezas. Devido, porém, à situação que ocupa na sociedade, não podia conceder igual liberdade aos seus economistas, filósofos, moralistas, historiadores, sociólogos e políticos, motivo porque êstes não puderam aplicar o determinismo filosófico às sciências do mundo social. Pela mesma razão impediu noutro tempo à igreja católica o livre estudo da natureza, sendo preciso destruir a sua dominação social para criar as sciências naturais.

O problema da crença em Deus, da burguesia, só pode ser abordado tendo uma noção exacta do papel que desempenha na sociedade.

O papel social da burguesia moderna não é o de produzir riquezas, mas o de fazê-las produzir pelos trabalhadores assalariados, de açambarcá-las e distribuí-las entre os membros da sua classe, depois de ter entregue aos seus produtores manuais e intelectuais o precisamente indispensável para viver e reproduzir-se.

As riquezas arrancadas aos trabalhadores, constituem a pilhagem da classe burguesa. Os guerreiros bárbaros, depois do saque duma cidade, punham em comum os produtos da pilhagem, dividiam-nos em partes quanto possivelmente iguais e distribuiam-nos por meio de sortes entre os que tinham arriscado a vida para conquistá-los.

A organização da sociedade permite à burguesia apoderar-se das riquezas sem que nenhum de seus membros se veja obrigado a arriscar a sua vida: — toma-a por posição nesta pilhagem colossal, sem experimentar perigos, o que constitue um dos maiores progressos da civilização! As riquezas arrancadas aos produtores não são divididas em partes iguais, para ser distribuídas por meio de sortes, mas repartidas por meio de alugueres, rendas, dividendos, interesses e lucros industriais e comerciais proporcionalmente ao valor da propriedade móvel ou imóvel, ou seja respeitante à importância do capital que cada burguês possue.

A posse duma propriedade, dum capital, — e não das qualidades físicas, intelectuais ou morais, é a condição sine qua non para receber uma parte na distribuição das riquezas, — um morto possui-as, enquanto que um vivo carece delas enquanto não tiver o título que o acredite como seu possuidor. A distribuição não se realiza entre homens, mas entre proprietários. O homem é um zero; só se tem em conta a propriedade.

Quis-se assimilar, equìvocamente, a luta darwiniana que mantém os animais entre si, para procurar-se os meios de subsistência e de reprodução, com a que se verificou entre os burgueses para o ratear das riquezas. As qualidades de força, valor, agilidade, paciência, engenho, etc, que asseguram a vitória ao animal, são parte integrante do seu organismo, enquanto que a propriedade, que proporciona ao burguês uma parte das riquezas que não produziu, não está incorporada no indivíduo. Esta propriedade pode aumentar ou diminuir e proporcionar-lhe, por isso, uma parte maior ou menor de riqueza, sem que tal aumento ou diminuição sejam motivados pelo exercício das suas qualidades físicas ou intelectuais.

Mais se poderia dizer da velhacaria, da intriga e do charlatanismo, numa palavra, que as qualidades mentais mais inferiores permitem ao burguês apoderar-se duma parte maior que aquela que o autoriza a receber o seu capital: — neste caso arrebenta com os seus colegas burgueses. Se a luta pela vida pode ser, pois, em muitas circunstâncias, uma causa de progresso para os animais, a luta pelas riquezas é uma causa de degenerescência para os burgueses.

A missão social de apoderar-se das riquezas produzidas pelos assalariados, faz da burguesia uma classe parasitária: — os seus membros não concorrem à criação das riquezas, à excepção de alguns, cujo número diminue incessantemente. Ainda nestes casos, o trabalho que proporcionam não corresponde à parte de riqueza de que beneficiam.

Se o cristianismo, depois de ter sido nos primeiros séculos a religião das multidões mendicantes, que o Estado e os ricos mantinham mediante distribuições diárias de víveres, se converteu na religião da burguesia, classe parasitária por excelência, é porque o parasitismo é a essência do cristianismo. No sermão da montanha, Jesus expôs magistralmente o seu carácter. Formou ali o «Padre Nosso», a oração que todo-o fiel deve elevar a Deus para pedir-lhe «seu pão cotidiano», em vez de pedir trabalho e afim de que nenhum cristão digno deste nome seja tentado a recorrer ao esforço para obter o essencial à vida; Jesus acrescenta: — «observai os pássaros do ar: — não semeiam nem recolhem e, não obstante, o Pai do céu alimenta-os». Não vos inquieteis pois e não pregunteis nunca ¿que comeremos amanhã, que beberemos, de que nos havemos de vestir?... O vosso Pai celestial conhece todas as vossas necessidades». O Pai celestial da burguesia é a classe dos assalariados manuais e intelectuais: — ela é o Deus que satisfaz todos os seus desejos.

A burguesia, porém, não pode reconhecer o seu carácter usurpador sem afirmar ao mesmo tempo o seu decreto de morte. Por isso, emquanto dá tréguas aos seus homens de sciência para que sem ser molestados por nenhum dogma, nem detidos por nenhuma consideração, se dediquem ao estudo mais livre e mais profundo, que aplica à produção das riquesas, impede os seus economistas, filósofos, moralistas, historiadores, sociólogos e políticos ao estudo imparcial do problema social e condena-os a procurar razoes que possam servir de justificação à sua descomunal fortuna(2). Preocupados os sábios pela única fonte das remunerações recebidas ou a receber, teem-se dedicado a investigar com ardor se por um acaso feliz as riquesas sociais teriam outra origem além da do trabalho assalariado e descobriram que o trabalho, a economia, a ordem, a honradez, o saber, a inteligência e muitas outras virtudes burguesas, dos industriais, comerciantes ou proprietários territoriais, banqueiros e acionistas, concorriam para a sua produção de uma maneira tão eficaz como o trabalho dos assalariados manuais e intelectuais e que por êle tinham o direito de manter-se com a parte de leão, não deixando para os outros mais que a parte da besta de carga.

O burguês ouve-os sorrindo, porque fazem o seu elogio, logo fazendo repetir êstes assertos imprudentes e declarando-os verdades eternas. Mas, por muito acanhada que seja a sua inteligência, não pode admiti-los intimamente, pois só terá que olhar à sua volta para certificar-se de que aqueles que trabalham tôda a sua vida, são mais pobres do que Job, e que os que não possuem mais do que o saber, a inteligência, a economia e a honradez, e que exerçam estas qualidades, devem limitar a sua ambição [à] ração diária — raras vezes a nada mais. «Se os economistas, os filósofos e os politicos que têem muita argúcia e conhecem a literatura não têem podido, a-pesar-das suas porfiadas investigações, encontrar razões mais cómodas para explicar a origem das riquezas da burguesia, é porque há mistificações no assunto, é porque há causas desconhecidas cujos mistérios não podem sondar-se». Ergue-se diante do burguês um desconhecimento de ordem social.

Para tranquilidade da sua ordem social, o capitalista tem interesse que os assalariados acreditem que as riquezas são o fruto das suas inumeráveis virtudes. Mas, na realidade, está convencido de que estas constituem uma recompensa das suas qualidades. Uma coisa única o preocupa: — é possuir tais riquezas, e o que o tortura é supor que um dia possa perde-las sem que a culpa seja sua. E não pode evitar esta perspectiva desagradável, pois que no círculo estreito de seus conhecimentos, viu indivíduos perder seus bens, enquanto que outros, vivendo na pobreza, aparecem ricos.

As causas destes revezes e destas fortunas escapam à sua inteligência de modo igual àqueles que as têem experimentado. Numa palavra: — observa uma contínua mudança de riquezas, que são para êle de desconheeido domínio, vendo-se induzido a atribuir estas mudanças de fortuna à sorte, ao acaso.(3)

Não é possível esperar que o burguês chegue algum dia a ter a noção positiva da distribuição das riquezas, porque à medida que a produção mecânica se despersonaliza, reveste a forma colectiva e impessoal das sociedades por acções, cujos títulos acabam por ser arrastados à mercê da Bolsa. Ali passam, de mão em mão, sem que compradores nem vendedores tenham visto a propriedade que representam nem saibam exactamente o lugar geográfico em que se acha situada. Ali se trocam, perdidos por uns e ganhos por outros, duma forma tão semelhante à do jogo, que as operações da Bolsa têem êste nome. Todo o desenvolvimento económico moderno tende, cada vez mais, a transformar a sociedade capitalista num vasto estabelecimento de jogo, onde os burgueses ganham e perdem capitais por efeito de circunstâncias que ignoram e que escapam a tôda a previsão e a todo o calculo, e que parecem depender, exclusivamente, do acaso. Na sociedade burguesa reina o imprevisto, tal como numa casa de batota.

O Jogo, que na Bolsa se manifesta sem disfarces, foi sempre uma das condições da vida do negócio e da indústria. Os seus sucessos são tão imprevistos e tão numerosos, que, a miúde, fracassam as operações melhor realizadas e melhor concebidas, enquanto que outras, empreendidas de ânimo leve, resultam acertadas. Estes acertos ou êstes fracassos, devidos a causas inesperadas, geralmente desconhecidas, parecem ser obra exclusiva do simples acaso e predispõem o burguês ao jogo da Bolsa, o qual aviva e fortifica esta disposição.

O capitalista, cuja fortuna emprega em valores de Bolsa, que ignora o porquê das alterações dos preços e dos dividendos, é um jogador profissional. E o jogador que só atribue os seus ganhos ou as suas perdas à sorte ou à fatalidade, é um indivíduo eminentemente supersticioso. Os concorrentes habituais das casas de jogos, empregam todos êstes mágicos encantos para conjurar a sorte: — um balbucia uma oração a Santo António de Pádua, ou a qualquer santo, outro aposta somente depois de ter ganho determinado valor, outro conserva na mão uma pata de coelho, etc...

O burguês vive em completo desconhecimento da ordem social, como o selvagem desconhece quanto influe nele a ordem natural. Todos os actos da vida civilizada, ou quási todos, tendem a desenvolver no homem o hábito supersticioso e místico próprio do jogador de profissão. O crédito, por exemplo, sem o qual não é possível o comércio nem a indústria, é um acto de fé no acaso, ao desconhecido que faz quem o cede — pois não tem nenhuma garantia positiva de que o vencimento possa cumprir seus compromissos, porquanto a solvabilidade depende de mil e um acidentes tão imprevistos quanto desconhecidos.

Outros fenómenos económicos diários insinuam no espírito burguês a crença numa força mística, sem base material, desprendida de tôda a substância. O bilhete de Tesouro, para não citar senão um exemplo, incorpora uma força social tão pouco relacionada com tão limitada matéria, que prepara a inteligência burguesa a aceitar a ideia duma força que existira independentemente da matéria.

Êste miserável pedaço de papel, que ninguém se dignaria possuir se não fora o seu poder mágico, proporciona a quem o tem, quanto há de mais material e desejável no mundo civilizado: — pão, carnes, vinhos, casas, terras, cavalos, mulheres, saúde, considerações e honras, etc, etc; os prazeres dos sentidos e as satisfações do espírito; Deus não faria mais. A vida burguesa é um tecido de misticismo(4).

A crise do comércio e da indústria representa ante o burguês tímido enormes forças, de irresistível poder, que parecem catástrofes tão espantosas como a cólera do Deus cristão. Quando estas forças se desencadeiam no mundo civilizado, arruiaam os burgueses, aos milhares e destroem os produtos e os meios de produção no valor de centenares de milhões. Os economistas, registam, há um século, a sua repetição periódica, sem poder emitir uma hipótese quanto às causas que originam estas catástrofes. A impossibilidade de descobrir estas causas na terra, sugeriu a alguns economistas ingleses a ideia de buscá-las no Sol, cujas manchas, — dizem — destruindo por meio da seca as colheitas da India diminuem seus meios de compra das mercadorias europeias e determinam crises.

Estes sábios sizudos levam-nos, scientificamente, à astrologia da Idade Média, que subordinava à análise dos astros os acontecimentos das sociedades humanas e à crença dos selvagens na acção das estrelas errantes, dos cometas e dos eclipses da lua sôbre os seus destinos.

O mundo económico proporciona ao burguês mistérios insondáveis, que os economistas se resignam a não profundar.

O capitalista, que graças aos seus sábios, tem chegado a dominar as forças naturais, fica tão pasmado ante os efeitos incompreensíveis das forças económicas, que as considera invencíveis — tanto como Deus ser Deus. E deduz que o mais prudente é suportar com resignação as desgraças que desencadeiam e aceitar com reconhecimento as vantagens que ocasionam. Como Job, diz: — «O Eterno m'o tinha dado, o Eterno m'o há tirado — bendito seja o nome do Eterno». As forças económicas parecem-lhe fantásticas, como seres benéficos ou maléficos(5).

Os terríveis enigmas de carácter social que envolvem o burguês e que sem saber a causa atentam contra o seu comércio, contra a sua indústria, contra a sua fortuna, contra o seu bem-estar e contra a sua vida, são tão incompreensíveis para êle, como o eram para o selvagem os enigmas de carácter natural que estremeciam e exaltavam sua exuberante imaginação. Os antropologistas atribuíam a bruxaria, a crença na alma, nos espíritos e em Deus, do homem primitivo, ao seu desconhecimento do mundo natural.

A mesma explicação é aplicável ao homem civilizado:— as suas ideias espiritualistas e a sua crença em Deus devem ser atribuídas à sua ignorância do mundo social. A constante incerteza da sua prosperidade e as causas ignoradas da sua adversidade ou da sua fortuna, predispõe os burgueses a admitir, tal como o selvagem, a existência de seres superiores que, segundo as suas fantasias, obram com os fenómenos sociais, para que sejam favoráveis ou desfavoráveis, como o dizem Teognis e os livros do Antigo Testamento. Por isso, com o propósito de tê-los seguros, entrega-se à prática da mais grosseira superstição, comunica com os espíritos do outro mundo, acende velas às santas imagens e faz orações ao Deus tríplice dos cristãos ou ao Deus único dos filósofos.

Vivendo em plena natureza, o selvagem sente-se impressionado, em primeiro lugar, pelos enigmas de ordem natural que, pelo contrário, afectam muito pouco o burguês, o qual só conhece uma natureza decorativa, raquítica, familiar. Os serviços numerosos que a sciência lhe prestou para enriquecê-lo, e os que, todavia, espera dela, fazem nascer no seu espírito uma fé cega no seu poder — ao ponto, até, de não admitir a menor dúvida de que acabará por resolver um dia os enigmas da natureza e de prolongar mesmo, indefinidamente, a sua vida, como promete M. Metchnikoff, o micróbio-maníaco. O mesmo não acontece, porém, com os enigmas do mundo social, únicos que o preocupam e os quais considera incompreensíveis.

O desconhecimento destes enigmas de ordem social, e não os de ordem natural, são os que insinuam na sua cabeça — pouco imaginativa — a ideia de Deus, que não teve o trabalho de inventar, pois a encontrou em condições de ser apropriada.

Os incompreensíveis e insolúveis problemas sociais tornam Deus tão necessário que o teriam inventado se não existisse. Preocupado o burguês pelo oscilar desconcertante das fortunas e dos fracassos e pelo jogo incompreensível das forças económicas, vê-se confundido, por consequência, pela brutal contradição da sua conducta e da de seus camaradas com as noções de justiça, de moral e de probidade propagadas entre o povo. Estas noções repete-as êle sentenciosamente; porém, esquiva-se muito a ajustar a elas suas acções, embora peça às pessoas que se acham em contacto com ele que as cumpram estrictamente. Por exemplo: — se o negociante entrega ao cliente um género avariado ou falsificado, êle quer pagar-se, em troca, em boa e legítima moeda; se o industrial desfalca o operário ao medir a sua obra, nem por isso deixa de exigir-lhe, sequer, um minuto de trabalho pelo qual o contratou; se o burguês patriota — todos os burgueses são patriotas — se apodera da pátria dum povo mais fraco, tem por dogma comercial a integridade da sua pátria, que — segundo expressão de Cecil Rodes — é uma razão social. A justiça, a moral e os outros princípios mais ou menos eternos, apenas são válidos, para os burgueses, quando servem os seus interesses. Estes princípios têem duas caras: — risonha e indulgente uma, a que olha para eles; feroz e imperativa a outra, que está voltada para os restantes.

A perpétua e geral contradicção entre os actos e as noções de justiça e de moral que supôr-se-ía bastante para enfraquecer entre os burgueses a ideia de um Deus justiceiro, consolida-a, pelo contrário, e prepara o terreno para a imortalidade da alma, que se tinha desvanecido entre os povos chegados ao período patriarcal. Esta ideia é mantida, fortificada e constantemente avivada entre os burgueses, pelo seu costume de esperar uma inteira remuneração, quer do que fazem, quer do que não fazem(6).

Não emprega operários, não fabrica géneros, não vende, não compra, não empresta dinheiro nem faz qualquer serviço sem que haja esperança de ser retribuído, isto é, de obter benefícios.

A ideia constante do lucro faz com que não realize nenhuma acção pelo prazer de realizá-la, mas com o propósito de obter uma recompensa. Se é generoso, caritativo, honrado, ou até se se limita a não ser desonesto, não lhe basta a satisfação da sua consciência: — precisa de mais, duma retribuição. E se na terra não obtém a recompensa desejada, o que sucede frequentemente, conta alcançá-la no céu. Não somente espera uma remuneração pelas suas boas acções, e por abster-se das más, mas espera ainda uma compensação pelos seus infortúnios, pelos seus fracassos, pelos seus dissabores, e também pelas suas tristezas. O seu Eu é tão imenso que, para contê-lo, une o céu à terra. Às injustiças na civilização são tão numerosas e tão manifestas, que as de que êle é víctima tem a seus olhos proporções tão infinitas que, em seu entender, hão-de ser um dia forçosamente reparadas. Porém, êste dia, só pode luzir no outro mundo; só no céu tem a certeza de alcançar a remuneração pelos seus infortúnios. A vida depois da morte é para êle uma coisa certa, pois que o seu bom Deus, justo e reconhecido às virtudes burguesas, não poderá menos que conceder-lhe recompensas, tanto pelo que fez como pelo que deixou de fazer, reparando-o pelo que sofreu. No tribunal do comércio do céu serão apuradas as contas que na terra não puderam saldar-se.

O burguês não chama injustiça ao açambarcamento das riquezas criadas pelos assalariados: — êste despojo é, na sua opinião, a mesma justiça, e não pode conceber que Deus ou outro ser qualquer tenha sôbre êste ponto uma opinião diferente da sua. Não crê, todavia, que quando se permite aos operários ter o desejo de melhorar as suas condições de vida e do trabalho se viole a justiça eterna; mas, como sabe perfeitamente que estas melhorias deverão ser realizadas a expensas suas, pensa que é uma medida de prudência política prometer-lhes uma vida futura, onde nadarão em abundância, como os burgueses. A promessa da vida póstuma é para êle a maneira mais económica de dar satisfação às reclamações operárias.

A vida mais além da morte, para êle — que se compraz a esperar até então, para dar satisfação ao seu Eu — converte-se em instrumento de exploração.

A partir do momento em que as contas da terra sejam definitivamente saldadas no céu, Deus conver-te-se, necessariamente, num juiz, tendo à sua disposição um Eldorado para uns e um presídio para outros, como o assegura o cristianismo, segundo Platão.(7)

O juiz celeste pronuncia as suas sentenças subordinadas ao Código judicial da civilização, acrescido de algumas leis morais que não puderam ser incluídas naquele.

O burguês moderno não se preocupa, em primeiro lugar, mais do que com as remunerações e compensações de além campa. Em contraposição manifesta ter muito pouco interesse no castigo dos maus, quere dizer, dos que lhe infligiram faltas pessoais. Apenas o inferno cristão o preocupa. Primeiramente, porque está convencido de que nada fêz nem pode fazer para merecê-lo, e além disso porque conserva pouco ódio aos camaradas que cometeram faltas para com êle, estando até sempre disposto a reatar as relações de negócios ou de prazeres se nisso vê proveito. Tem mesmo certa afeição àqueles que o enganaram, porque, no fim de tudo, não lhe fizeram mais do que êle lhes teria feito se pudesse. Na sociedade burguesa todos os dias se vêem indivíduos cujas quebras motivaram grosso escândalo e aos quais julgaram afundados para sempre, voltar à superfície e alcançar uma honrosa posição. Para começar de novo negócios e para patente de honestos só se lhes exige que tenham dinheiro(8).

O inferno só podia ser inventado por homens e para homens torturados pelo ódio e pela paixão da vingança. O Deus dos primeiros cristãos é um implacável verdugo que experimenta grande prazer ante os suplícios impostos eternamente aos infiéis, seus inimigos. «Jesus, disse S. Paulo, subirá ao céu com os anjos da sua potestade, com labaredas flamígeras, exercendo a vingança contra os que não reconhecem Deus e não se submetem ao seu Evangelho. Estes serão punidos com a pena eterna, em presença do Senhor e ante a glória do seu poderio» (II. Thess; I, 6 9).

O cristão de então esperava com fé tão ardente a recompensa da sua piedade como o castigo dos seus inimigos, que se convertiam em inimigos de Deus. Como o burguês já não alimenta êstes ódios ferozes, pois que o ódio não proporciona benefício algum, não tem necessidade de um inferno para satisfazer a sua vingança, nem de um Deus verdugo para castigar os colegas que o tenham ludibriado.

A crença da burguesia em Deus e na imortalidade da alma é um dos fenómenos ideológicos do seu meio social e não se desembaraçará dela senão depois de tê-la desapossado das suas riquesas arrancadas aos assalariados e tê-la transformado de classe usurpadora em classe produtora.

A burguesia do século XVIII, que lutava em França para apoderar-se da ditadura social, atacou com fúria o clero católico e o cristianismo porque eram os pilares da aristocracia. Se, no ardor da batalha, alguns dos seus chefes, Diderot, La Metrie, Helvetius e d'Holbach, levaram a sua irreligião até ao ateísmo, outros, tão intérpretes do seu espírito — se não mais — Voltaire, Rousseau, Turgot, etc, não chegaram nunca à negação de Deus. Os filósofos materialistas e sensualistas, Cabanis, Maine de Biran, de Gerando, que sobreviveram à Revolução, retrataram-se publicamente das suas doutrinas ímpias. Não deve acusar-se êstes homens notáveis de terem traído as doutrinas filosóficas que, desde o início da sua carreira, lhes tinham assegurado a notoriedade e meios de existência; só a burguesia é disso culpável, pois que, vitoriosa, perdeu a sua irreligiosa combatividade e como os infiéis da Bíblia, vomitou novamente o cristianismo que, — como a sífilis — é uma enfermidade constitucional que tem no sangue. Aqueles filósofos sofreram a influência do ambiente social: — eram burgueses e evolucionaram com a sua classe.

Êste ambiente, ao qual não podem substraír-se os burgueses mais instruídos nem os mais intelectualmente emancipados, é responsável do deísmo de homens de génio como Cuvier, Geoffroy Saint-Hilaire, Faraday e Darwin e do positivismo de sábios contemporâneos que, não se atrevendo a negar Deus, se abstêem de ocupar-se dele. Porém, esta abstenção, é um ímplicito reconhecimento da existência de Deus, do qual tem necessidade para conhecer o mundo social, que lhes parece joguete do acaso, em vez de estar regido pela lei de precisão como o mundo natural.

Julgando fazer um epigrama contra a liberdade da sua classe, M. Brunetière repete a frase do jesuíta alemão Gruber, que «o desconhecido é uma ideia de Deus adequada à franco-maçonaria». O desconhecido não pode ser a ideia de Deus para ninguém, mas é a sua causa genésica, de igual modo que entre os selvagens e os bárbaros, que entre os burgueses cristãos e os franco-maçons. Se os enigmas do meio natural tornaram necessário para o selvagem e para o bárbaro a ideia de um Deus, criador e regulador do mundo, os enigmas do meio social tornam necessária para o burguês a ideia de um Deus, distribuidor das riquezas arrebatadas aos assalariados manuais e intelectuais, repartidor dos bens e dos males, remunerador das acções, o remetente das injustiças e reparador das faltas. O selvagem e o burguês são induzidos na crença em Deus, sem se aperceberem disso, como são levados pela rotação da terra.


Notas:

(2) A história da Economia é instrutiva. Emquanto a produção capitalista, ao princípio da sua evolução, não havia ainda transformado a massa dos burgueses em parasitas, os fisiocratas Adam Smith, Ricardo, etc, podiam estudar, sem prevenção, os fenómenos económicos e investigar acerca das leis gerais da produção; todavia, desde que a máquina-ferramenta e o vapor só obrigam a concorrer com os assalariados à produção das riquesas, os economistas límitam-se a enumerar factos e estatísticas úteis às especulações do comércio e da Bolsa, sem pretender agrupá-los e classificá-los afim de tirar conclusões teóricas, que não poderiam .deixar de ser perigosas ao predomínio de uma classe. E em vez de fazer sciência, combatem o socialismo; quizeram até refutar a teoria ricardiana do valor, porque a crítica socialista se apoderara dela. (retornar ao texto)

(3) O espírito burguês foi em todos os tempos atormentado pela incertesa da fortuua, que a mitologia grega representava por meio de uma mulher posta de pé sôbre uma roda dentada e com os olhos vendados. Teognis, opoeta megaro do século V antes da era cristã, cujas poesias, segundo Isócrates, constituíam um livro de texto nas escolas gregas, dizia: «Ninguém é causador de lucros ou perdas, pois que os deuses são os distribuidores das riquesas... Nós, homens, alimentamo-nos com pensamentos vãos, mas nada sabemos. Os deuses fazem chegar as coisas segundo a sua própria vontade. Júpiter faz inclinar a balança ora de um lado ora de outro, segundo julga conveniente, afim de que o rico de hoje nada tenha amanhã. Nenhum homem é rico ou pobre, nobre ou plebeu, sem a intervenção de Deus». Os autores do «Eclesiaste», dos livros dos «Salmos», dos «Provérbios» e de «Job» fazem desempenhar o mesmo papel que Jehovah. O poeta grego e os escritores judeus, formulam, pois, o pensamento burguês!
Megara, como Corinto, sua rival, foi uma das principais cidades da antiga Grécia, onde se desenvolveram o comércio e a indústria. Formara-se nelas uma numerosa classe de artistas e de burgueses, os quais fomentavam guerras civis para se apossarem do poder. Uns sessenta anos antes do nascimento de Teognis, os democratas, depois de uma revolta vitoriosa aboliram as dívidas contraídas com os aristocratas e exigiram a devolução dos interesses percebidos. Membro, embora, da classe aristocrata e ainda que alimentando um ódio feroz contra os democratas, dos quais quizera «beber o sangue negro», porque o haviam despojado dos seus bens e o desterraram, não pôde Teognis subtrair-se à influência do meio social burguês. Ele está impregnado destas ideias, destes sentimentos e até da mesma linguagem; assim, estabeleoe repetidas vezes comparações àcêrca do ágio do ouro, a que os comerciantes se viam constantemente obrigados a recorrer para conhecer o valor das moedas e dos lingotes dados em troca. Precisamente porque o poema de Teognis, assim como os livros do Antigo Testamento continham máximas de previsão burguesa era um livro de texto nas escolas da democrática Atenas. Deste livro, disse Xenofonte, que «era um tratado sôbre o homem, semelhante ao que escrevia um hábil cavaleiro sôbre a arte de montar». (retornar ao texto)

(4) Renán, cujo cultivado espírito fora tomado de misticismo, sentia simpatia manifesta pela forma impessoal da propriedade. Nos seus «Souvenirs d’enfance» (VI) conta que em vez de empregar os seus capitais na aquisição de uma propriedade imóvel, terra ou casa, preferiu comprar «valores de Bolsa, que são coisas mais leves, mais frágeis, mais etéreas». O bilhete de Tesouro é um valor tão etéreo como as acções das companhias e os títulos da dívida pública. (retornar ao texto)

(5) As crises impressionam tão vivamente os burguêses, que falam delas como se fossem sêres córporeos. O célebre humorista americano Artemus Ward conta que ouvindo aos jogadores da bolsa e aos industriais de Nova York afirmar tão positivamente que «a crise tinha chegado, que estava ali», acreditou que se encontrava no salão e para vêr a cara que faziam, alvitrou que a procurassem debaixo das mesas e das cadeiras. (retornar ao texto)

(6) Teognis, assim como Job e como os autores dos livros do Antigo Testamento, vêem-se embaraçados ante a dificuldade de conciliar as injustiças dos homens com a justiça de Deus. «Oh! Filho de Saturno! —diz o poeta grego — (¿Como podes conceder a mesma sorte ao justo como ao injusto? ; Oh! Rei dos imortais! ¿É justo que o que não foi desonrado, o que não fez transgressão á lei, que não jurou falso e que foi sempre honrado, sofra?... O homem injusto que não teme a cólera dos homens nem dos Deuses, que comete injustiças, está cheio de riquesas, — emquanto que o justo está despojado delas e se encontra submetido à dura pobresa... ¿Qual é o mortal que ante estas coisas temerá os Deuses?» O salmista diz: — «Os maus vivem com satisfação e adquirem fortunas de dia para dia... Quiz investigar êste extremo, mas pareceu-me difícil... Ao vêr a prosperidade dos maus, senti inveja dos insensatos (os que não temem o Eterno). («Salmos». LXXI1I-8-10)».
Não crendo na existência da alma depois da morte, Teognis e os judeus do Antigo Testamento, supõem que o injusto é castigado na terra, «pois a sabedoria dos Deuses é superior, diz o moralista grego. Isto, porém, turva o espírito dos homens, pois não é no momento em que o acto é cometido quando os imortais se vingam da falta. Um, paga pessoalmente a sua dívida, outro condena seus filhos ao infortúnio. Segundo o cristianismo, os homens são castigados pelo pecado de Adão. (retornar ao texto)

(7) No seu décimo e último livro de «A República», Sócrates conta como coisa digna de crédito, a história de um arménio que, abandonado como morto durante dez dias no campo de batalha, ressuscitou como Jesus e explicou que vira no outro mundo «as almas castigadas dez vezes por cada uma das injustiças cometidas durante a vida». Estas almas eram torturadas «por homens horrorosos, que pareciam de fogo... os quais martirisavam os criminosos e os lançavam sôbre esqueletos», etc. Os cristãos, que tiraram do sofisma platónico uma parte das suas ideias morais, só tiveram que completar e confeccionar a história de Sócrates para continuar o seu inferno embelezado de tão espantosos horrores. (retornar ao texto)

(8) No dia imediato ao do escandaloso «krach» do «Crédit Mobilier», de Paris, Emílio Pereira, que era o fundador e director, encontrava nos «boulevards» um amigo que fingia não conhecê-lo. Ao verificar isso, Pereira foi ao seu encontro e increpou-o em alta voz: — «Podeis saüdar-me — disse êle — pois ainda me restam dois milhões!» A interpelação, que traduzia perfeitamente o sentimento burguês, foi muito celebrada e apreciada. Pereira morreu cem vezes milionário, muito venerado e chorado. (retornar ao texto)

Inclusão 02/02/2010
Última alteração 16/04/2012