Grande Estética

György Lukács


Volume 2 – Problemas da mimese
5 – A gênese do reflexo estético
5.2 – Magia e mimese(1)


A passagem desses fenômenos miméticos da prática cotidiana até o terreno da arte apresenta etapas intermediárias não menos graduais e fronteiras não mais precisas. Dissemos já varias vezes que na prática mágica se encontram ainda indiferenciados as sementes do que a seguir serão os modos de comportamento independentes da arte e da ciência. O processo de separação ou desengajamento dos modos de comportamento artístico é, como também sublinhamos, o mais lento dos dois, mesmo – ou talvez: porque – eles exatamente podem revelar, já nas etapas muito iniciais, certos traços essenciais de sua particularidade mais claramente que os modos de comportamento científico. Não referimo-nos somente ao princípio antropomorfizador próprio da formação artística. Este princípio, considerado de um modo universal abstrato, é precisamente o que tem de comum a arte e a magia, e a seguir arte e religião, mesmo, por seu conteúdo último, sejam diversas e até oposto a ambas. Como mais tarde veremos, o processo de separação da arte em relação a esses dois exemplos é extraordinariamente lento, contraditório e cheio de crises. Mais o que importa agora não é tanto este princípio quanto a tendência à evocação, nascida, como também se mostrou, no terreno da vida cotidiana. Esta tendência é um fator decisivo como a mimese magica que da inicial mimese artística, não separa ainda praticamente da outra nesta etapa.

Vimos já que as expressões miméticas da realidade cotidiana, cuja finalidade é uma comunicação prática concreta e determinada pelo conteúdo, vão sempre e necessariamente envolvidas em uma “aura” de evocação emocional. Isso no é somente uma consequência do modo de expressão, primitivo e pouco exato do ponto de vista conceitual; melhor, nasceu, por um lado, do fato de que toda comunicação social vá do homem integral ao homem integral e, portanto, não pode contentar-se com a simples transmissão de conteúdos conceitualmente esclarecidos, mas que tem de apelar também para à vida emocional do destinatário. E que com o desenvolvimento da ciência tenha lugar uma debilitação, uma degradação da “aura”, que a divisão social do trabalho especialize as comunicações com crescente intensidade, não são fatos que alterem decisivamente esta estrutura pelo que faz à vida cotidiana. Podemos, pois, contentar-nos com o provisório registro deste fato, tanto mais quanto o problema da gênese é o que temos em primeiro plano. Por outro lado – e isto se refere à totalidade da comunicação, ou seja, igual a seu conteúdo como a sua forma –, na grande maioria dos casos a comunicação se propõe convencer de algo ao destinatário, movimentá-lo para alguma ação, a algum comportamento, etc., o qual, como a relação é de homem integral a homem integral, suscita necessariamente em cada comunicação elementos correspondentes da natureza evocadora.

O modo de expressão central nos tempos primitivos –central enquanto a “concepção do mundo” e central do ponto de vista “prático-social” –, que é a magia entendida no mais amplo sentido, tem sempre finalidades evocadoras. E não somente porque lhe é necessária uma influência evocadora sobre a comunidade, às vezes até a produção do êxtase, com objetivo de que surja na referida comunidade a exigida fé cega nas cerimônias mágicas, mas também porque as relações, de raízes profundas nas concepções mágicas básicas, com as forças naturais que hão de influir negativa ou positivamente, suscitam uma intenção evocadora. Deste modo a magia reúne, sistematiza e desenvolve inúmeras tendências da vida cotidiana. O processo é fácil porque entre o funcionamento da vida cotidiana e o da magia não é necessária nenhuma mudança de direção, nenhuma transformação qualitativa, apenas somente uma ampliação e uma intensificação do já existente. O mais importante é que a mimese se encontre no centro dessa síntese. Como já vimos, Frazer identifica duas convicções essenciais da idade mágica: primeira, que o mago, “mediante a imitação, possa produzir os efeitos que deseje”, segunda, que “tudo que o mago faça a um objeto material operará igualmente sobre a pessoa que haja estado em contato com este objeto, seja este parte daquela pessoa ou não”(2). Como é natural, também nisso estão as fronteiras fluidas, e mesmo é certo que a primeira forma de magia é a predominantemente mimética, na segunda espécie, a que Frazer chama “magia de transmissão”, a imitação está também presente com frequência. Frazer inclusive chega à conclusão de “que a magia de transmissão, pressupõe a aplicação do principio homeopático ou mimético, enquanto que a magia homeopática, ou de imitação, pode exercitar-se independentemente”(3). Resumindo o mais universal, se trata da crença segunda a qual mediante a imitação de fatos ou objetos da realidade pode se influir nesta no sentido desejado. Disso se conclui que a imitação tem de ser a mais concreta possível; pelo menos o ponto de partida da representação mimética tem de ser a própria realidade, e no um reflexo abstrato de momentos isolados da vida, como ocorre na ornamentística. A representação mimética não é pois nunca – em sua intenção –, algo sem mundo como a ornamentistica; inclusive quando o conteúdo aponta ao fantástico, ao nunca visto ou ouvido, o criado sob o sinal da mimese se apresenta com a pretensão de ser realidade refiguração do mundo.

Agora se compreenderá facilmente porque demos tanta importância ao fato de que nem os reflexos mais primitivos próprios da vida cotidiana tenham o caráter de uma fotocópia da realidade, apenas que neles se manifesta sua essência dialética, sem dúvida somente de um modo aproximado, mas ao mesmo tempo também em um processo dialético de aproximação. Pois somente sobre esta base se compreende como possa consumar-se, seja a níveis muito primitivos, a síntese mimética mágica dos processos da vida, abrangendo a natureza e a sociedade. Para representar mimeticamente tal processo (a guerra, a caça, a colheita, etc.) é preciso, certamente, uma compreensão de momentos que na própria realidade estão muito dispersos , uma acentuação enérgica do essencial do fim buscado, uma eliminação das inumeráveis casualidades reais. Se os fragmentos da realidade imitados dos quais se compõe aquela unidade não fossem apenas fotocópias mecânicas, seriam necessários esforços artísticos sobre-humanos para uni-los em tal totalidade, e essas totalidades seriam incompreensíveis para alguns homens acostumados a uma percepção mecânica da realidade. Uma vez limpo o terreno pela crítica anterior, se compreende a origem precoce dessas formações a partir da vida cotidiana, assim como seu profundo efeito evocador.

Deste ponto de vista, as imitações de processos feitas com o fim de conseguir determinados efeitos mágicos decorrem durante muito tempo pelo mesmo caminho que as formações mimético-artísticas da realidade. Pode inclusive se dizer que o impulso inicial destas últimas não pode proceder mais que da idade mágica de uma influência dos fatos do mundo mediante sua imitação. É certo que se tentou muitas vezes explicar geneticamente a arte partindo da sobre-abundância de energias, partindo do jogo. Mas é preciso observar que a sobre-abundância de energia é na primitiva sociedade humana já um fenômeno social: consequência de uma produtividade do trabalho que, com o tempo livre, com o ócio, produz também o excesso de energias físicas e psíquicas(4). Além disso, não se vê em absoluto como o simples jogo pode dar lugar a arte. Sem dúvida, o jogo tem um caráter mimético, mesmo entre os animais. Mas sua intenção, se orienta para a aprendizagem de movimentos e comportamentos de importância prática. Quando o observador os percebe como “belos” é que está em presença, como ocorre no trabalho, no desporto, etc., com um subproduto ao qual não apontava a intenção própria. O movimento e o modo de comportamento estão sobretudo finalisticamente determinados, e portanto e tendencialmente, são poupadores, se reduzem ao mínimo absoluto. Não há dúvida que entre esta teleologia e seu efeito estético existem certas conexões objetivas, mas disso não se segue em absoluto que o estético proceda genericamente do útil, e menos ainda que a finalidade leve já em si uma intenção interna necessária ao estético. A intenção ao estético tem que haver nascido já, tem de estar até certo ponto consolidada, arraigada na vida emocional dos homens, para que possam se perceber como estéticos processos cuja intenção não é primariamente estética, para já não falar da possibilidade de receber uma ação estética em suas intenções.

O estético nasce bem ao lado de um complicado giro: os movimentos, os modos de comportamento – em si miméticos – das ocupações cotidianas do homem em seu comércio com os demais se imitam por sua vez; e esses reflexos de reflexos convertidos imediatos determinados fenômenos da realidade, apenas se agrupam suas imagens segundo princípios plenamente novos: se concentram na intenção de despertar determinadas ideias, convicções, determinados sentimentos, paixões, etc. Como é natural, esta intenção evocadora-mimética se apresenta também na vida cotidiana; sem essa “preparação” não poderia se situar no centro da representação mimética. Mas na vida cotidiana nada mais é que uma parte, um momento do comercio dos homens, vais inserida indissoluvelmente em ações, formas de comunicação, etecetera. Na representação se converte no centro, em princípio organizador do reflexo. Se a finalidade original dessas particulares formações miméticas fossem produto de uma “vontade da arte”, então sua origem seria como a de Palas Atenas, que nasceu pronta da cabeça de Zeus, ou seja, sua fonte se encontrava na capacidade estética “primitiva” ou “inata” do homem que se passeia fantasmagoricamente pela maioria das estéticas. (Nas linhas anteriores, acabamos de falar de formações miméticas, porque, é certo, para realizar as finalidades consideradas, as partes tem de formar uma unidade artificial, previamente determinada, enquanto seus modelos, orientados por finalidades reais, são eles mesmos processos reais cuja natureza, cujo alcance, começo, final, etc., estão determinados em cada caso de um modo diferente pelas dificuldades de realização dos fins). Mas a realidade mostra outo quadro. Embora, como repetimos, sabemos pouco sobre a verdadeira origem das atividades e capacidades humanas, se depreende da totalidade das tradições iniciais dos reflexos miméticos com finalidade evocadora são certamente de origem mágica.

Por isso no estudo filosófico da gênese da estética importa tudo isto: de um lado, descobrir os princípios comuns à magia imitativa e ao reflexo particularmente artístico da realidade, fazendo assim compreensível porquê o fato estético pode nascer, desenvolver-se e crescer envolto durante tanto tempo quase impenetravelmente pela magia. Por outro lado, e ao mesmo tempo, mostrar que – objetivamente, não na consciência dos homens – o unido em aparente plena unidade, e até manifestado como identidade plena, se funda em tendências objetivamente divergentes, as quais, mesmo muito lenta e contraditoriamente, acabam por impor-se e provocam a separação definitiva da arte e a magia. Necessário será deixar para posterior capítulo o estudo conclusivo do processo de separação da estética em relação ao mágico e ao religioso, pois sua análise conceitual pressupõe o conhecimento das principais categorias do reflexo estético e tem de ir, portanto, depois da exposição destas. Agora, no estudo da gênese, são naturalmente momentos comuns os quais se encontram em primeiro plano de nosso interesse; os momentos da diversidade e da oposição não se podem indicar nesta etapa de nossa compreensão da essência da estética senão de um modo extremamente abstrato.

O princípio comum básico da arte e a magia (religião) é o caráter antropomorfizador. Também nisto, desde já, há diferenças entre a magia e a religião: aquela é muito mais ingênua, mais espontânea e natural que esta. A antropomorfização se manifesta sobretudo na identificação ingênua das forças motoras do sujeito com as do mundo objetivo que enfrenta. A mesma separação precisa entre o subjetivo e o objetivo se constitui lentamente. As potências mágicas não se veem obrigadas, como ocorrerá mais tarde, a assumir a figura de homens (deuses) para que o mecanismo representado, o sistema imaginado da realidade objetiva, apareça como movido por motivos humanos. Mas aqui podemos renunciar sem reparos a diferenças deste tipo, que, em suas mais variadas passagens, exigiriam um tratamento muito maior. O que mais nos importa neste momento não é a classe ou grau da antropomorfização, apenas sua simples presença. O fato é que a oposição com a ciência desantropomorfizadora se produz relativamente muito antes. Por isso o caminho em comum da magia e a arte, apesar de todas as diferenças, tem de ser muito mais longo.

Já sabemos, pelas considerações anteriores(5), que a antropomorfização representa na arte desenvolvida, substantiva, algo muito diverso do que é na magia e na religião. Que se sublinhe o punctum saltans dessa diferença: é essencial à estética o conceber a reprodução refletida da realidade precisamente como reflexo, enquanto a magia e a religião atribuem realidade objetiva ao sistema de seus reflexos e exigem fé correspondente. Para a evolução posterior isso tem como consequência a oposição decisiva consistente em que o reflexo estético se constitui como sistema fechado em si (obra de arte), enquanto que todo reflexo da natureza mágica ou religiosa se refira a uma realidade transcendente. Mas é preciso sublinhar que essa afirmação se refere somente ao sentido objetivo das formações da arte, ou da magia ou da religião. Inclusive em períodos de uma arte plenamente desenvolvida e substantiva há criadores ou receptores artísticos que concebem as obras como elementos servis da religião, lhes atribuem efeitos mágicos, etc. As próprias obras artísticas – independentemente dessas opiniões – tem a estrutura objetiva que se afirmou, e quando se trata de determinação das relações entre ambas as esferas o único que importa é a estrutura interna objetiva dos produtos. Essa relação objetiva se impõe na realidade social – somente, naturalmente, como tendência em escala histórico-universal – também de um modo prático, independentemente do equívoco com que a consciência individual conceba sua própria atividade, seu próprio comportamento.

A oposição assim instituída necessita entretanto se concretizar mais. Na descrição das formações estéticas como sistemas fechados do reflexo da realidade se esconde uma particular dialética que mais tarde estudaremos com detalhes: as formações estéticas são reflexos da realidade objetiva, e seu valor, sua significação, sua verdade repousam na capacidade que tenham de captar corretamente a realidade, reproduzi-la e evocar nos receptores da imagem da realidade que subjaz a elas. Assim pois seu fechamento, sua “imanência”, sua “substantividade” não podem significar um isolamento em relação à realidade: a “imanência” não pode ser a de um sistema formal “puro” , nem implicar na indiferença em relação ao efeito da obra. Como mais tarde veremos, a compacticidade das formações é a forma especificamente estética de conseguir um reflexo da realidade verdadeiro e de eficácia duradoura.

Esta orientação básica do reflexo estético tem como conteúdo de máxima universalidade, comum a toda verdadeira obra de arte, a mundanidade da arte, oposta a referencialidade de toda formação mágica ou religiosa para um mais além, a uma realidade transcendente(6). E como é próprio da essência dos conteúdos decisivos o fato de que se tenham de universalizar espontaneamente, porque são revelações das correntes mais importantes, das tendências de crescimento da humanidade, esta orientação de todas as artes a mundanidade apresenta o selo do antropocêntrico. O homem, como centro a que tudo se refere, dá a essa mundanidade um conteúdo autêntico. Pois somente assim pode a reprodução artística fiel da realidade, sua busca de profunda compreensão para conquistar uma reprodução acertada, chegar à realização, fazer-se ao mesmo tempo infinita enquanto ao conteúdo (como o reflexo científico) e estritamente limitada esteticamente rodeando a obra concluída. Em outro contexto afirmamos que a autoconsciência da humanidade é a autêntica subjetividade portadora de arte, e em seguida indicamos que esta não é possível senão sobre a base de um mundo relativamente transparente para o homem, porque tem que se basear em fatos que hajam conseguido um domínio sobre o mundo interior e exterior do homem, submetendo-os à evolução progressista da humanidade. Nessa autoconsciência do homem reside, entre outras coisas, o profundo humanismo do fato estético. Este humanismo exige – inclusive conceitualmente – expressão consumada no célebre coro da Antígona de Sófocles. Seguramente não é casualidade, mas fruto da coexistência orgânica da sabedoria conceitual e poética, proclamação da essência mais profunda do fato estético, que esse coro comece com um hino que descreve as ações com que o homem vence ao mundo, em uma atividade limitada somente pela morte, mas cujos limites o homem amplia sem cessar. E somente ao descrever ao homem como fundador de cidades (o que para os gregos significa ao mesmo tempo em que fundador da sociedade) aparece o problema interno central, o grande tema de toda arte: as colisões entre os homens que se produzem na polis [cidade em grego – ndt].

Acreditamos que basta em mencionar este conteúdo fundamental de toa arte para ver clara a impossibilidade de que aparecesse com toda substancialidade nos começos da evolução humana. Todos admitem – e os etnólogos e antropólogos sensatos o mostraram várias vezes – que toda arte pressupõe um determinado grau evolutivo da técnica. Mas agora se entende além disso que o período preparatório da arte exija outras coisas: sobretudo uma particular atitude em relação à realidade, atitude, que além de ser quase sempre inconsciente, não pode desempenhar senão relativamente mais tarde, porque seus conteúdos tem de se basear numa ampla superação do mundo externo, certa confiança do homem em si mesmo, conseguida na luta pelo domínio do mundo externo, sua confiança em suas próprias conquistas e capacidades. E se já o mínimo necessário de técnica, mais fácil de conseguir, foi produto de uma ampla luta do homem com a natureza, a dilatação dos períodos teve de ser muito maior a propósito dos demais fatores.

Mas a cobertura da mimese artística pela mágica é algo mais do que simples necessidade externa de um começo casual. A particularidade da dialética que domina este problema leva a que a arte mimética e a receptividade artística que ela exige e leva consigo se formem e robusteçam durante aquela ocultação por trás da imitação mágica, de tal modo que quando a evolução social produziu e reproduziu os conteúdos, os modos de comportamento, etc., que descrevemos com uma intensidade suficiente, o reflexo estético da realidade se separa dessa comunidade que não corresponde a sua essência e pode se constituir de um modo independente e substantivo, mesmo desde já lenta, irregularmente, contraditoriamente, e frequentemente com uma crise profunda.

Ao dizer que o longo caminho comum da magia e a arte não foi puramente casual não pensávamos somente no principio antropomorfizador da concepção do mundo que domina em ambos os terrenos, mas também na particularidade da imitação, orientada a evocar, que se pode descobrir como traço destacado em ambos. Na análise do reflexo próprio da vida cotidiana descobrimos a evocação de ideias, sentimentos, etc., como um momento importante especialmente no comércio entre os homens. A evocação mágica de algumas ações, por exemplo, se diferencia deste ponto de vista da prática normal da cotidianidade em que o elemento evocador se situa radicalmente no centro. Por exemplo, quando na vida cotidiana um homem quer suscitar em outras determinadas ideias ou determinados sentimentos, sua intenção se orienta a convencer ao referido homem concreto de tal coisa concreta: por outro lado, a imitação mágica de tal fato, o que importa na representação é despertar em toda série de espectadores e ouvintes a impressão de que aquele processo de convicção se consumou por ambas as partes: o convencer e convencer-se, que na vida constituem o principal, se convertem agora em meios, em conteúdos a conformar e em formas conformadoras, com cuja ajuda se tenta dar ao incidente representado como unidade sensível imediata a capacidade de levantar as ideias ou os sentimentos desejados. Assim, pois, enquanto na vida a estrutura diretora da construção coincide com a do decurso temporal, e a ação, partindo realmente de seu começo, procede para seu término, através, naturalmente, das muitas casualidades que se apresentam sempre na interação de diferentes esforços, por outro lado, sua reprodução mimética arranca do momento final, e agrupa e modela os movimentos que levaram a este momento, de tal modo que referido término opere de um modo convincente para o receptor, e evocador dos sentimentos e pensamentos desejados, etc. Como é natural, isto leva a exigência mínima de que se superem as causalidades supérfluas ou prejudiciais deste ponto de vista, e que se sublinhem com maior intensidade evocadora os momentos que constituem pontos nodais objetivos de conteúdo. Nessa transformação da realidade refletida não aparecem ainda princípios radicalmente novos do ponto de vista de conteúdo da vivência; o abandono do supérfluo, o acento de “elos”, são, como , vimos, momentos importantes do reflexo na vida cotidiana. Mas pelo fato de que o todo de um determinado complexo de reflexo se elabore consequentemente deste ponto de vista, as alterações em si meramente quantitativas mudam em uma nova qualidade, se produz objetivamente um salto entre as presentes formas de comunicação da vida cotidiana e essa reelaboração de uma formação tomada delas, fechada em si, orientada para determinados efeitos evocadores. Como é óbvio, esse salto não tem de ser consciente logo, e seguramente não o será durante muito tempo, mesmo que isto não se possa afirmar senão hipoteticamente, posto carecemos totalmente de dados sobre aquele começo. O sentimento de uma intensificação da vida e das reações a ela basta plenamente para fazer compreensíveis a gênese e o desenvolvimento de tais formações mágico-miméticas.

Todo o anterior permite ver com clareza que as linhas de partida da mimese mágica e a mimese artística convergem à princípio quase até a fusão; nossas análises posteriores , que atendem aos momentos constitutivos capitais, mostrarão a intensidade que é à princípio esta convergência. Mas antes de poder entrar nesse estudo mais detalhado é necessário precisar, por um lado, as sementes das diferenças posteriores existem já objetivamente a esse nível inicial e, por outro lado, que é impossível que nesta etapa cheguem à consciência, nem mesmo acidentalmente. Referimo-nos, como é natural, a questão da mundanidade da mimese. A mundanidade significa deum modo imediato que a ação evocadora do representado se orienta exclusivamente à receptividade do homem, ou seja, que com o efeito evocador conseguido a formação mimética alcançou totalmente sua finalidade. Por outro lado, a transcendência aspira com sua imitação de processos influenciar em forças que supostamente dominam as constelações reais cuja reprodução antecipatória é a formação mimética correspondente. (Imitação da guerra, a caça, etc., na dança, para influenciar favoravelmente no resultado da atividade futura). Do ponte de vista dessa finalidade, a impressão que se produza nos espectadores ou audiência reais é somente coisa acessória. Por mais profundo que seja visto objetivamente, o abismo que se abre entre essas duas finalidades últimas, o fato é que não pode haver tido influência alguma na realidade prática dos primórdios. Pois por um lado, já estabelecemos já que a esse nível é realmente impossível uma posição estética-mundana dessa tarefa, e por outro lado, deve estar claro que a imitação orientada ao domínio das potências transcendentais não pode achar critérios reais de modo imediato de seu êxito mais do que na realização da formação mimética, no êxito ou fracasso eficazes da guerra, da caça, etc., ou seja, muito depois de se concluir a formação mimética. Portanto, as consequências dessa avaliação não poderão ser eficazes senão para as imitações seguinte (no máximo), nas que voltará a se manifestar a finalidade indicada. Assim pois, a transcendência mágica se manifesta praticamente na imanência imediata que está muito próxima à estética. Consequentemente, é preciso tomar nota da unidade dessas tendências, em si muito divergentes, mas separáveis somente pela análise retrospectiva (e nem sempre realizável) no seio da prática arcaica, como de um fato ineliminável. Ao expor detalhadamente toda a situação reconheceremos, de qualquer jeito, alguns pontos nos quais se expressa já a divergência mesmo que poucas vezes conscientemente.

Mas agora já é preciso atentar a uma – somente uma – destas questões, a saber, ao problema de certas tendências ao êxtase, porque estas estão parcialmente em ligação íntima com outras tendências que, encobertas pela capa mágica, se movem inconscientemente no sentido da estética (dança), enquanto que também parcialmente já mostram nessa etapa orientações diametralmente opostas. Que se pense nos rituais, os costumes, etecetera, da época mágica relacionados com a produção de um êxtase. Não podemos, naturalmente, tratar aqui o rico complexo de problemas mencionados, e, sobretudo, nos será impossível considerar por enquanto todo seu vínculo e sua oposição com e ao ascetismo. Observemos somente, de passagem, que esses restos do período mágico, que às vezes se sobrevivem tenazmente, se põem de vez em quando e em certos relações em uma concorrência com o conhecimento e com a ética, ao modo como ao êxtase concorre com a mimese. Esses efeitos de um ascetismo contemplativo se pode observar na Índia, China, etc., mas não somente neste âmbito: também desempenha um papel nada desprezível na cultura europeia, de Plotino até Inácio de Loiola. O motivo comum a todos esses âmbitos culturais é a produção artificial de certos estados subjetivos nos quais se ergue e se difunde uma fé, a fé de que esses estados são capazes de por ao homem em uma ligação direta com forças transcendentes inacessíveis de outro modo.

Gehlen deu uma descrição intuitiva desta situação: “A dança, a embriaguez, as automutilações, etecetera, são séries de ações dirigidas de fora para dentro, e a exasperação e hipertensão da afetividade e sensibilidade que se busca com elas alcança graus máximos porque as mesmas energias inibidoras desencadeadas reforçam a dinâmica, em vez de freiá-la, com o que se dá lugar a uma libertação e uma descarga do homem que este sente como felicidade. Graças à dança o homem se converte até certo ponto em “espírito puro”, e se torna capaz de agir como tal. Surgem assim âmbitos de ação e técnicas que desembocam no mundo interno exacerbado e liberto, ‘la vie à un degré plus intense [ndt- a vida a um grau mais intenso]’ se faz finalidade vivenciável, e se possibilita uma inversão grandiosa do centro de gravidade da vida (...)”(7). O essencial, para nós, de toda esta prática de pajé é o afastamento de toda classe de conhecimento, inclusive do simples registro do mundo externo, o domínio artificial do sujeito para pô-lo em estado no qual se possa imaginar que a embriaguez conseguida – que sem dúvida deixa subjetivamente o indivíduo sua relação com o mundo circundante e às vezes até a anula psicologicamente – o põe em relação direta com o que a cultura de cada caso se apresenta como transcendência. Aqui e em outra renovações análogas da ascética cristalizam tendências baseadas exclusivamente nas ilusões – nascidas das primitivas etapas evolutivas da cultura material e espiritual – resumidas no seguinte princípio: somo o sujeito, em consequência de sua situação primitiva, não pode (objetivamente: não pode entretanto) dominar na teoria e na prática seu mundo ao redor mediante o reflexo da realidade objetiva, mediante a elaboração mental e a aplicação prática do conhecido, o “rodeio” que supõe sempre ao conhecimento tem de se desprezar, para que o sujeito possa empreender um caminho direto para “dentro ; e como o sujeito normal da vida cotidiana parece muito pouco adequado para esse caminho direto para “dentro” posto que todos seus instintos vitais o orientem para “fora” , é preciso superar violentamente suas “limitações” mediante meios artificiais. A origem dessas concepções é obvia no período mágico. Pode inclusive se dizer que o contraste que esboçamos esquematicamente, com simples fins de interpretação, não foi consciente na época. Ou seja: os métodos ascéticos e de êxtase se utilizaram ao mesmo tempo em que o reflexo da realidade, ao mesmo tempo em que a mimese, e sem dúvida houve entre tudo isto passagens muito fluidas. Somente muito mais tarde, quando as tendências de independência da ciência e da arte se robusteceram, a oposição, existente em si desde o princípio, se fizeram para-si. A oposição se apresenta com especial penetração quando grandes crises sociais começam a ameaçar o domínio das classes que costumam se apoiar ideologicamente na magia e na religião. Então os aspectos reacionários dessas tendências aparecem com maior clareza que nos primitivos tempos iniciais. Ao que há de se acrescentar que, enquanto no período mágico, como tentamos mostrar, vão formando-se durante muito tempo elementos e até determinadas categorias da ciência e da arte, inseparavelmente misturadas com as representações mágicas, por outro lado, no período de crise atua as forças puramente paralisadoras já existentes no estado primitivo. E quando essas forças, em consequência da complicada dialética da gênese e o desenvolvimento da sociedade de classes, conseguem influência também em etapas culturais superiores, sua ação tem de se produzir obrigatoriamente no sentido reacionário.

O êxtase e a mimese são, pois, contrários excludentes um do outro, mesmo que na realidade do período mundo mágico apareçam às vezes simultaneamente. Sua oposição aparece com toda clareza na dança, da qual falaremos ainda com mais detalhes: enquanto a dança mimética tem a intenção de despertar no receptor determinados sentimentos por meio da imitação, de modo que a ação mágica da mimese sobre potencias transcendentes não desempenha nenhum papel importante imediato, a dança serve para mergulhar nas tendências, inclusive as miméticas, no êxtase.

Em sua Psique Erwin Rodhe deu uma descrição clássica das danças da Trácia em honra de Dionísio: “A festa se celebra nos cumes das montanhas, em noites escuras, à luz vacilante das tochas e fogueiras. Executava-se uma música barulhenta, com ruído violento de címbalos de bronze, o trono surdo de grandes tambores de mão, e, sobre este fundo, ‘o som que arrasta à loucura’, o som profundo das flautas (...). Excitada por essa música selvagem dança com agudos gritos da tropa dos celebrantes. Nada de cantos: a violência da dança não o permitia. Pois a dança não era o passo medido e movido com o que, por exemplo, avançavam os gregos de Homero na esteira. O enxame dos entusiastas se precipita montanha abaixo em corrida furiosa, em torvelinho, sem freio. Em sua maioria eram mulheres, que se agitavam nessas danças de torvelinho até ao esgotamento; vestidas estranhamente vestidas (...) e com peles de cabrito por cima dos vestidos e provavelmente chifres na cabeça. Os cabelos se agitavam selvagemente, levavam cobras (...) de mãos dadas, esgrimiam punhais ou tirsos, com a ponta da lança coberta hera. Assim se enfurecem até a extrema supressão de todos os sentimentos, e na “sacra mania” se precipitavam sobre os animais escolhidos como vítimas, os prendem e despedaçam o botim apressado, e rasgam com os dentes a carne sangrenta, e a consomem crua”(8). Rodhe resume assim o sentido desses costumes: “Os que participam nessas danças se colocam em uma espécie de loucura, mania, em uma tensão monstruosa de seu ser; os submete a um êxtase no qual se mostram, a si próprios como aos demais, ‘furiosos, possuídos’ (...) Essa excitação extrema era precisamente a finalidade que se buscava. A exacerbação violenta do sentimento tinha como sentido religioso, o fato de que somente mediante essa selvageria, essa ampliação de seu ser, poderia o homem se sentir em contato e união com seres de ordem superior, como o deus e sua tropa de espíritos. O deus está indivisivelmente presente entre seus adeptos adoradores , ou está pelo menos próximo, e o barulho da festa serve para que acuda definitivamente o que se aproxima”(9). O próprio Rhode estava em sua juventude muito próximo de Nietzsche para poder considerar tais fenômenos de uma maneira realmente crítica. Por isso resume este efeito da dança extática em seus participantes do seguinte modo: “O sobre-humano e o desumano se misturam agora neles”(10); porém, em sua condição de verdadeiro cientista Rhode não deixa de observar que não se trata de nenhum traço essencial e exclusivo da história grega, mas de um fenômeno generalíssimo da vida dos povos primitivos, isto é, a prática dos curandeiros, dos pajés, etc., a qual se mantém historicamente muito mais tempo em outros lugares (dervixes, por exemplo)(11). Não temos o porquê nos ocuparmos aqui detalhadamente dos pressupostos e consequências culturais de tais tendências. Bastará mencionar a oposição excludente entre estes fenômenos e os processos miméticos. Em outro contexto falaremos das consequências estéticas que inferiu Nietzsche desses fatos na versão acrítica, fabulosa e modernizada dos mesmos.

Se, depois dessa digressão necessária, tentemos considerar com mais atenção as determinações principais que surgem aqui no reflexo, em sua transposição em formações e processos da natureza mimética, nos apresenta como momento mais primitivo e mais geral o de sua separação em relação à continuidade normal da vida cotidiana. Por mias que fatos isolados da vida possam interromper abruptamente o curso normal desta, suas raízes e consequências seguem pertencendo objetivamente a este curso, e por isto se vivem subjetivamente como elemento, como momentos da vida unitária e indivisível do homem, individual e socialmente. Por outro lado, as formações miméticas da magia – e neste fato se manifesta nelas um traço essencial importante de toda arte posterior – não são partes da totalidade da vida, apenas reflexos de suas partes, mas enredados para formar uma totalidade e delimitar-se do resto da vida. Disso se segue que os homens, para perceber esses reflexos, tem de sair em certa medida da continuidade normal da vida; esta sucessão de refigurações da vida é essencialmente coisa diferente da continuação normal do momento vital com o qual se liga cronologicamente. E de modo semelhante, com a conclusão de uma dessas formações se termina aquela separação da vida: o homem volta a sua existência normal. Por outro lado, o êxtase e o ascetismo querem arrancar totalmente ao homem de sua vida normal; a realidade transcendente que pretendem impor tem de significar um rompimento absoluto com a vida normal. Por isso tal comportamento não se interessa em absoluto pela objetivação, a evocação, a receptividade, enquanto que a conduta mimética se orienta exatamente a estas três coisas.

Esta oposição, muito simples em si e sempre fácil de registrar, requer uma concretude posterior com objetivo de que não se perca sua verdade por causa de um exagero metafísico, de uma exacerbação. O afastamento da vida normal e a volta a ela tem de se entender como relativos, e precisamente com um determinado modo de relatividade: pela forma, não pelo conteúdo. Mas o que isto significa? Sobretudo, que o isolamento da formação em questão em relação à vida cotidiana não significa de modo algum um rompimento radical com os conteúdos desta; pelo contrário: precisamente esses conteúdos (uma parte deles) recebem nesse reflexo uma nova forma particular. E a essa situação objetiva corresponde subjetivamente que nem os criadores da formação – os atores – nem os receptores dessas formações abandonem a totalidade dos conteúdos da vida – coisa que, naturalmente, não poderiam fazer nem mesmo que o quisessem –, senão que somente alterem durante um determinado lapso de tempo e formalmente sua atitude em relação aos referidos conteúdos: sua atenção se orienta provisoriamente não à própria vida, senão somente ao reflexo dela, que lhes oferece ou se ofereceu dessa forma.

E ao concluir-se este suspenso de tempo da relação direta com a vida dos homens voltem necessariamente a esta, com o qual, naturalmente, os experimentos e vivências que lhes deu aquele reflexo se inserem de algum modo na totalidade de seus experimentos e vivências. Por isto aquele suspenso pode se considerar justificadamente como um fato que afeta a forma, posto que a formação mimética, tanto objetiva quanto subjetivamente, se realiza por sua forma particular de separação cronológica em relação a realidade normal, e somente por sua forma específica produz o efeito desejado de conteúdos vitais refletidos, os quais, enquanto conteúdos nascem da vida e voltam para ela. O êxtase, por outro lado, é um rompimento radical com a continuidade da vida cotidiana.

Desse fato se conclui muita coisa importante para as notas essenciais dessas formações miméticas. Indicamos repetidamente que a particularidade dessas formas se concentra em torno de sua capacidade de evocar pensamentos, sentimentos, etecetera. Também já mostramos com tudo isso não se produz nenhuma alteração rígida e metafisica em relação à vida, apenas somente uma mutação em novidade qualitativa experimentada por modos de manifestação que também conhece a vida cotidiana e dos que a esta não pode faltar.

É preciso acentuar igual e simultaneamente os dois aspectos desta relação da formação mimética com a vida cotidiana. Pois, por um lado, seria inimaginável qualquer evocação por mimese se a vida prática não houvesse fixado para determinados conteúdos, palavras, gestos, etc., determinados efeitos desencadeadores de emoções. Esses efeitos experimentam naturalmente uma exacerbação formal, e com ela, também, novidades qualitativas: mas o vínculo com a vida, a procedência vital dos conteúdos, é coisa inevitável se é que há de ser possível um efeito evocado espontâneo. Pode, sem dúvida, ocorrer que alguns desses elementos não estivessem presentes na vida sem coerção, uma significação extensiva e intensiva. É preciso sublinhar com toda energia essa interação a propósito de tais efeitos das formações miméticas. Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, é preciso levar em conta também o qualitativamente novo. Aludimos já ao momento de isolamento relativo do fluxo da vida cotidiana, e também ao fato de que esta situação tem uma essência formal. Mas esta afirmação não exclui, para uma consideração dialética, o caráter alegre das transformações ocorridas na formação mimética e seus efeitos desejados e conseguidos. Ao contrário, Hegel descreveu corretamente do seguinte modo a relação entre a forma e o conteúdo que aqui nos interessa: “Em si encontra aqui a relação absoluta do conteúdo e a forma, isto é, a mutação de um na outra, de tal modo que o conteúdo é a mutação da forma e a forma nada mais é do que a mutação do conteúdo em forma”(12). Esta mutação pode se observar já nas etapas mais primitivas. Pois a afirmação de Aristóteles – tão importante para a arte já substantivada –, segundo a qual o que suscita na vida sentimento de desagrado pode produzir na formação artística um prazer(13), é um momento ineliminável já nas mais primitivas formações mágico-miméticas. Que se pense, por exemplo, na dança guerreira. Os gestos ameaçadores, especialmente os de um homem armado, são naturalmente na vida causa de medo ou, pelo menos, que alguém se ponha na defensiva. Por outro lado, na dança esses gestos suscitam satisfação, prazer e autoconsciência, porque nela e por ela – e tanto mais aterrorizante – se evoca no espectador o seguinte sentimento: estes guerreiros não podem ser vencidos, portanto, derrotarão nossos inimigos. Situação semelhante é a que faz pelos diversos conteúdos desencadeadores de emoções na vida e em sua representação mimética. A mimese, pois, ao isolar ao espectador ou ouvinte do fluxo da vida cotidiana, não é nenhuma forma “neutra” que se limite a conter os conteúdos, alterando de um modo relativo, porém qualitativo, o caráter inicial dos conteúdos.

Este efeito da separação formal em relação da cotidianidade tem ainda outra propriedade subjacente de importância decisiva para o caráter estético – de início inconsciente – das formações miméticas. Referimo-nos ao seu caráter espaço-tempo fechado, e, portanto, necessariamente concentrado, ordenador dos elementos de um ponto de vista unitário. Dito resumidamente: a transformação dos dados da vida em uma ação, por mais primitiva que seja, em uma fábula. G. Thomson(14) oferece uma descrição muito bem resumida de como as danças, os cantos, etc., da mais remota primitividade, aos clãs originários decaírem economicamente, se desenvolveram até converter-se em representação de fábulas, fixações destas, mas também por outro lado em desenvolvimento e secularização dos mesmos. O importante para nós é sobretudo o fato de que inclusive as formações miméticas mais primitivas hajam representado fatos determinados; forçosamente tem de ser assim, porque a finalidade mágica, a vontade de influenciar nas potências das quais, segundo a fé da época, dependia o êxito ou fracasso daquelas ações, não poderiam realizar-se senão desse modo de acordo com o mundo de representações mágicas. Mas seja por simples considerações práticas era forçado que os fatos em apreço, que na realidade talvez se desenvolveram em lugares diferentes, no âmbito de um espaço talvez grande e as vezes durante dias, e até semanas e meses, se concentraram em um só lugar e um tempo relativamente curto. Este princípio de concentração – que é, também uma categoria formal. Como o é a anteriormente vista, a separação ou o isolamento em relação ao fluir da vida cotidiana, e uma categoria que, como esta, tem que mudar imediatamente em elementos de conteúdo – se orienta forçado e sobretudo ao decurso dos fatos que refletem. Ou seja: de qualquer forma se acentuará o essencial do mundo aparente com maior intensidade possível no decurso imediato dos acontecimentos na vida cotidiana. Por isto a dialética da aparência e da essência aparece mais clara e formada mesmo conservando a forma própria da vida cotidiana. A inclusão imanente da essência em aparência , diferente da separação metodológica e a posteior reunião de ambas no pensamento científico dos níveis mais primitivos. O sentido dessa concentração é pois oferecer todos os momentos importantes de um modo abreviado, comprimido, que sublinha energicamente a essência, com a intenção de alcançar o objetivo mágico.

Mas neste caso concentração significa precisamente o que na arte posterior e substantiva aparece como fábula. Aristóteles(15) determina a fábula como uma composição artística acertada dos acontecimentos. A fábula é inclusive , em sua forma mais primitiva, mais do que mera sucessão: precisamente a finalidade mágica aspira a uma ordenação teleológica das partes no sentido de uma finalidade determinada e representada pela qual ocorre não somente, dentro de certos limites, a sucessão se transforma em gênese, em vínculo causal (mesmo que a causalidade seja fantasmagórica), mas também determinadas exacerbações, pausas, retrocessos, etc., se ordenam uns com os outros e encaixam no sentido da finalidade e desenvolvem-se uns aos outros. Uma categoria como a da fábula, tão central cedo para uma literatura posterior, surge assim com necessidade temática das finalidades mágicas das formações miméticas mais primitivas(16).

Como é natural, essa fábula difere ainda enormemente das posteriores ações artísticas. Sobretudo é muito mais relaxante que estas, e a pretensão de apresentar uma sucessão causal constritiva é ainda extremamente modesta. (A dança segue mantendo-se inclusive muito mais tarde – deste ponto de vista – a um nível relativamente primitivo, mesmo que em todos os demais aspectos haja superado em muito seus começos). Mas ainda muito mais importante é outro momento que ocorre também dessa mesma constelação: o da representação humana, da formação das personagens. Também neste ponto é muito instrutivo lançar um olhar retrospectivo aos começos, de um posto de observação posterior, especialmente quando em formações maduras se conservem resíduos das antigas tradições, mesmo que não seja no sentido de um historicismo consciente. Muitas vezes chamou a atenção o modo categórico como Aristóteles afirma a prioridade da ação sobre as personagens no drama: “Pois a tragédia é a apresentação imitativa não de pessoas, mas de ações, da vida na felicidade e na desgraça”(17). E em frase que seguem a esta Aristóteles sublinha com maior energia ainda o primado da ação na vida. Segue-se imediatamente disso – praticamente e teoricamente para a evolução posterior – que no drama é a ação que determina as personagens, e não ao contrário, e a que os expressa. Mas se lemos essas considerações de Aristóteles não atentando à evolução posterior, apenas retrospectivamente atentando ao desenvolvimento da arte, suas palavras nos ensinam que todas as formações miméticas a partir das quais se desenvolveram paulatinamente o drama operaram necessariamente com ações sem personagens (em nosso sentido moderno) que o esboço ou a construção das personagens é, como tarefa da arte, um produto relativamente tardio de seu desempenho, o qual teve de superar para isso obstáculos consideráveis. Isto concorda plenamente com a tradição segundo a qual a tragédia nasceu dos coros ditirâmbico, e suas partes jâmbicas, que são propriamente a que configuram personagens dramáticos, nasceram depois dos coros e partindo destes.

Mas por trás dos fatos aparece algo socialmente importante: em primeiro lugar, que o substrato social da representação de seres humanos, o fato vital cujo reflexo é o esboço de personagens, não estava presente nos estados primitivos, ou, para melhor dizer, se encontrava ainda em uma situação na qual não se podia prestar atenção a sua reprodução mimética. Como é natural, já os homens de tal sociedade eram individualmente diferentes uns dos outros; eram mais ou menos hábeis, firmes, valentes, sinceros ou falsos, etc.; mas estas propriedades se consideravam apenas na medida em que fossem úteis ou nocivas para a sociedade. O modo como essas qualidades se compuseram no comércio “privado” entre os homens – de acordo com as preocupações de nossa sensibilidade, que não é a daquele período- não representou evidentemente na época nenhum interesse público. O comércio “privado” dos homens, podia, se representar em seus efeitos sem que se sentisse como necessidade geral sua “derivação” psicológico-moral, a característica individual da figura. A necessidade de personalização individual – tanto na vida quanto no reflexo – aparece somente com os conflitos nascidos das relações entre os indivíduos e a sociedade, ou seja, em um período posterior, subsequente à dissolução do comunismo primitivo. E o desenvolvimento, o drama grego mostra lentamente que inclusive essas colisões suscitaram um interesse pela personalização individual. De qualquer forma resulta – como complemento do indicado – que a colisão é uma categoria fundamental do reflexo literário da realidade, que ela leva a termo a separação propriamente dita da literatura em relação de sua unidade originária com a dança, o canto, etc.; e, por outro lado. que inclusive uma categoria assim, tão básica não se encontra ao princípio, somente é produto da evolução social relativamente com progresso. Isto confirma a correção de nossa exposição anterior sobre a fábula do caráter “inato” da atitude estética em relação à realidade em um caso concreto. A elaboração precisa dos problemas concretos que aqui surgem é tarefa para a parte histórico-materialista da estética.

Em segundo lugar, pode se seguir neste contexto a origem de outra categoria fundamental da estética: a categoria do típico. Aquela concentração dos fatos da vida no reflexo que, como vimos, já é inseparável da mimese puramente mágica, não pode ser eficaz se os acontecimentos e as reações se selecionam e agrupam de acordo com os momentos da vida que os homens são capazes de perceber imediatamente como reproduções das correspondentes partes de sua existência. Nestas necessidades, nas quais aparece magicamente coberto o posterior e consciente “tua res agitur”, se contem já um cognato de movimento para a tipicidade. Certamente que, como pudemos ver a propósito da ação, o cognato carece ainda da interna e fecunda contrariedade que nasce da unidade, contraditoriamente orgânica, do típico e do individual nas personagens. Por isto tem de faltar a esta etapa inicial o âmbito do jogo para o movimento das contradições dentro do típico, da média até ao excêntrico, nascidas da unidade artística – condicionada por esta contradição – no seio dos fenômenos típicos contraditórios da vida, a qual levanta tão diferentes formas problemáticas na arte já substantiva e desenvolvida. É a típica primitiva não aparece senão o lado social da posterior unidade das contradições e isto precisamente de acordo com nossa exposição anterior, mais como o típico de situações e fatos do que como personagens típicas. Como é natural, também este tem de possuir um mínimo de individualidade; já as qualidades dos que dançam, etc., satisfazem este requisito. Mas este mínimo se dissolve sem deixar rastros no caráter social do típico. O fundamento desta situação é, naturalmente, a situação social indicada. Esta situação encontra nas formas do reflexo então possíveis uma expressão adequada. Pois também do ponto de vista da evolução posterior artística fica evidente que a dança e os gestos aparentados com ela, os versos cantados, a música, etc., não podem sequer individualizar tanto como a palavra pura e simplesmente falada seja, nem tem porque o fazer. Não por acaso que a palavra simplesmente falada seja, no terreno da arte, um produto muito posterior da evolução, nem ainda o é que a dança – na linha básica de seu desenvolvimento – se aferre a este estado de tipificação e se constitua nele como gênero artístico substantivo.

Mas essa particularidade do típico primitivo, nascida com necessidade espontânea da prática mágica, contenha sementes de divergência entre a magia e a arte. Originariamente as duas necessidades coincidem provavelmente do todo. A divergência das duas tendências no pode começar até que a evolução social produzisse colisões entre o indivíduo e a totalidade, a qual, naturalmente, pode se manifestar como fenômeno típico somente com a decomposição do comunismo primitivo e o nascimento das primeiras diferenças de classe. Sem dúvida alguns momentos objetivos da tendência à divergência aparecem cedo. Pois por mais estáveis e – aparentemente – imutáveis que possam ser as sociedades primitivas, o incremento das forças produtivas, mesmo que seja muito lento, introduz momentos novos na vida, nas relações entre os homens, em sua atitude diante da natureza. Esses momentos se expressam inserindo-se espontaneamente nos conteúdos da expressão mágica, mesmo que não seja mais do que através de uma reinterpretação de determinadas velha fábulas, que às vezes é completamente espontânea e inconsciente. E como é próprio da essência da forma estética o ser forma de um determinado conteúdo, e como no intencional efeito evocador das formações mágico-miméticas está implicitamente contida essa particularidade da estética – sem dúvida de um modo espontâneo e inconsciente –, se produzem necessariamente movimentos no sentido da recepção contente e formal do novo. Mas a magia é sempre e rigidamente cerimonial. Do ponto de vista mágico as formações miméticas são sempre feitiço, rito. A tendência a fixar ritualisticamente as notas sonoras, as palavras, os gestos, se segue inevitavelmente do ciclo das representações mágicas, na qual os resultados objetivos que se devem alcançar pelo rito, o domínio ou a influência das potências transcendentes, estão vinculados a determinadas palavras, a determinados gestos, etc., postos todos numa determinada série. Mais tarde falaremos da luta originada entre a magia e a arte. Aqui nos limitaremos a indicar que a orientação mágica tenda a deixar cristalizar o primitivamente típico em convencional, em tradição rigidamente fixada. E a este propósito se depreende já do que afirmamos que a rígida vinculação, o ritual e cerimonial das intenções mágicas (e religiosas) se seguem de seu próprio vínculo a uma transcendência. Imediatamente e a princípio coincidem as duas finalidades mágicas, a influência das potências transcendentes e o efeito evocador imediato sobre a receptividade dos homens. Somente mais tarde, nos casos descritos conflitivos nascidos da penetração de novos conteúdos, em consequência destes, aparecem tendências à separação dos dois momentos: a intenção evocadora é por natureza, a causa da espontaneidade do efeito, disposta a aceitar o novo, formal ou de conteúdo, enquanto que a intenção orientada à transcendência impõe a conservação mais intata possível dos conteúdos e formas tradicionalmente santificados do reflexo e a representação, pois o efeito sobre as potências transcendentes está vinculada a determinados conteúdos e, sobretudo, a determinadas formas de reflexo e representação da vida. A cristalização em convenção tem aqui suas raízes, não em alguma suposta “vontade da arte” que, como tal, não pode existir sequer e com toda probabilidade nasceu precisamente dessa cisão, da decomposição dialética da unidade original, que era também em si originariamente contraditória. As perguntas de se e quando, junto às formações miméticas rituais-convencionais outras do saber tradicional, nas que se expressa já uma alegria mundana pela reprodução da realidade dos homens para o homem, a de se e quando a arte se figura como forma substantiva da vida social, a de se e quando se produz um compromisso entre a evocação e a convenção, etc., são problemas aos quais não se pode dar resposta satisfatória senão por investigações concretas dirigidas por uma estética histórico-materialista. Para nossas finalidades basta mostrar abstratamente a divergência que aqui aparece, com objetivo de concebê-la como etapa, como momento da gênese filosófica da arte.

Mas para não deduzir unilateralmente essa gênese, a partir de uma única contradição, senão proceder no sentido da multiplicidade do objeto, temos de retroceder outra vez ao estado anterior à aparição d divergência e submeter o momento da evocação a uma análise mais minuciosa que a realizada. O primeiro problema que temos de considerar é a ligação dialética da evocação com o mimético. O ponto de partida é , sem dúvida, a imitação como forma mais primitiva , como expressão mais original dos fatos elementares no comércio do homem com a realidade. E isto tanto no sentido subjetivo quanto no sentido objetivo. Objetivamente porque o reflexo dos processos da realidade é imprescindível para a conservação da vida. Subjetivamente - e nisto se manifesta claramente pela primeira vez a forma de imitação primitiva – porque a cópia de formas de reação “assimiladas” e bem provadas, à realidade objetiva desenvolve, fixa e às vezes inclusive intensifica as capacidades do ser vivo na luta pela existência. Por isto a forma mais primitiva de aproveitamento do refletido tem que se apresentar já na vida animal; isto ocorre principalmente, como recordamos, nos jogos dos jovens animais. Aqui, nestes jogos, é possível inclusive identificar as sementes de determinados momentos de distanciamento que mais tarde se fazem decisivos na mimese do homem posterior. E não se trata dos visíveis sentimentos de prazer que o jogo desperta – mesmo também neles haja indícios de vinculação da imitação com a evocação de sentimentos de prazer –, pois estes nascem visivelmente de uma imediata satisfação pela habilidade adquirida e são portanto inseparáveis do ato de jogar. (O grau de aproximação do jogo à vida se manifesta também em muitos jogadores, os quais, ao perde, e mesmo não se trate de perdas materiais, possam sofrer acessos de cólera ou deprimir-se como se tratasse de acontecimentos reais da vida cotidiana; quando se diz que para jogar corretamente, para saber perder sem dor, etc., é preciso certa cultura, se está tendo adequadamente presente este aspecto do jogo, insuficientemente distanciado da vida). Mais importante é à distância na imitação lúdica; quando alguns cães jogando se limitam, por exemplo, a assinalar ar mordidas sem morder realmente, etc., se manifesta em seu comportamento um acerta delimitação – instintiva – entre a realidade imitada e a imitação refletida e com isso, ao mesmo tempo, a evocação assim conseguida de determinados sentimentos.

Mas no mundo dos homens a imitação se supera essa imediação. É verdade que frequentemente exista imitação direta inclusive em níveis humanos já superiores; mas inclusive essa imitação direta aponta mais além de sua imediação, para certa generalização que, de qualquer forma, fica no sensível. A exercitação lúdica se converte assim em subproduto, ou, melhor dizendo, em pressuposto por uma parte por exemplo, ao não tomar parte da dança guerreira senão os que já dominam melhor os movimentos correspondentes – enquanto, por outro lado, a relação à realidade futura na qual o jogo passa à seriedade da vida deixa de ser instintiva e indeterminada para se referir a um acontecimento futuro muito determinado, por exemplo, a uma determinada e iminente ação guerreira. Mas esta concretude contém uma generalização mais superior que a simples referencialidade instintiva e indeterminada à vida em geral. Sem duvida há generalização já a níveis muito inferiores: é o sentimento fixado de uma analogia. E o fato de que a analogia seja simplesmente emocional ou se podem já por em relação dos objetivos (fatos) partindo de certa conceitualidade, sobre a base da maior ou menor semelhança imediata e externa daquelas – pois a dança guerreira, para seguir com o exemplo, é um reflexo uma imitação da batalha real – em nada altera a insegurança e a falta de fundamentação da conclusão analógica: a ideia de que a vitória conseguida no reflexo mimético acarretará a vitória real.

Esta estrutura se manifesta em toda teoria e praticas mágicas da imitação. Frazer deu uma excelente e plástica descrição disto: “Confundido por sua ignorância das verdadeiras causas dos fenômenos, o homem primitivo crê que lhe basta imitar as grandes manifestações da natureza das que depende sua vida para provocá-las , e em seguida, por uma secreta simpatia ou por uma influência mística, o pequeno teatro que monta nas sombras da floresta, na garganta dos montes, nos prados desertos ou na costa agitada pelas tempestades será recolhida e repetida por atores mais poderosos na grande cena. Imagina que se vestindo de folhas e flores ajudará à seca terra a vestir-se de verde, e crê com seu jogo de morte e enterro do inverno desterrará realmente a triste estação e aplainará o caminho para a passagem ligeira da incipiente primavera”(18). É fácil mostrar, como fez Frazer, que esse discorrer por analogias nada tem materialmente o menor fundamento. Porém mais importante é para nós aqui saber que momentos categoriais da concepção do mundo estão por detrás desses fatos, e que perspectiva tem sua capacidade evolutiva, especialmente no sentido do estético. Para estudar este problema temos que recordar o mencionado antes acerca da analogia e a indiferença analógica, pois, não será preciso mostrar que tais generalizações das imitações imediatas se baseiam em analogias. Como já indicamos, Hegel viu que o ponto médio que unifica a inferência analógica uma unidade imediata do geral e o singular, e neste fato funda, acertadamente, o problema do aspecto que apresenta a analogia contemplada do ponto de vista da lógica e do método científico. Mas a pergunta muda completamente se contemplarmos o uso da analogia na pratica mágica do ponto de vista da gênese da estética dentro da cobertura mágica. Em tal caso essa estrutura de inferência, versão abstrata e abreviada do realmente dado em seus reflexos generalizados, do que realmente ocorre neles, tem claramente duas faces. Por outro lado, a ordenação mental, a satisfação dos conteúdos na prática mágica, na qual tem sem dúvida que se manifestar o problema lógico, mas, de consequências do baixo nível do ser e da consciência sociais, tão lentamente que apenas pode ter uma influência perceptível no funcionamento eficaz de tais imitações mágicas. Por outro lado, se encontra a imitação, imediatamente desse ou daquele fato, processo, etc., concreto, os quais, entretanto, em sua totalidade, significam outra coisa superior e mais universal, ou aludem pelo menos a ela. E o fazem de tal modo que a significação da alusão não aparece necessariamente como universalização abstrata, somente que melhor é o fato ou processo sensível-concreto como tal o que tem que conter a significação. É claro que, se , entendemos, com Lenine, que as formas de inferência contêm um reflexo das determinações mais universais e verdadeiras, de fatos e situações concretas que se repetem, neste caso se reflete de modo imediato sensível o mesmo que constitui a essência lógica da inferência por analogia: precisamente a unidade imediata do universal e do individual. Esta identidade última do conteúdo determina que também sejam as mesmas as categorias formadoras daquela unidade. A divergência decisiva se introduz pelo fato de que as categorias , suas relações recíprocas e no conteúdo formado recebem novas funções e, com elas, novas relações estruturais.

Se raciocinarmos sobre essa novidade advertimos que a referida unidade imediata do universal e do singular não pode se realizar neste caso mas que pela intenção evocadora da mimese, a qual, se segue da essência do vínculo forma-conteúdo. Pois no sentido estrito de imediação, o único dado imediatamente é também neste caso o singular. O fato de que em sua reprodução mimética o universal apareça também co-experimentado – como nos exemplos de Frazer sobre a ligação da mudança das estações com tais representações imitativas de processos humanos – é em parte consequência da concepção mágica do mundo e de sua mágica revelação, e parcialmente também, precisamente na vivência imediata, consequência do efeito evocador das formas miméticas. Os dois aspectos, como é natural, não podem separar-se gritantemente senão pela análise intelectual; na vivência imediata cada momento se funde com o outro, ambos se reforçam reciprocamente nessa unificação vivida.

Mas a análise, não pode se deter com a observação desta unificação imediata do universal com o singular – tem consequências extraordinariamente importantes para o destino histórico da mimese. Sobretudo, nos encontramos diante de uma estrutura mimética muito importante para o posterior destino da arte: a alegoria. Para determinar conceitualmente esta, algo mais sutilmente devemos recordar precisamente essa unidade da identidade e da diversidade. O fato de que o singular tenha de ser aqui imediatamente idêntico com o universal lhe dá um destaque novo em relação de sua corrente forma de manifestação: o singular, sem perder sua individualidade como tal, exige uma importante carga significativa. Já na realidade cotidiana há necessariamente uma tendência nesse sentido. Pois sem essa tendência, aquela realidade cotidiana, enquanto vivenciada, seria um caos desconexo e fragmentado. Somente com os meios lógicos-formais é possível vincular essas singularidades mediante relações puramente intelectuais e fazê-las assim compreensíveis. Se já na cotidianidade a relação não colorisse de algum modo os objetos que correlaciona, não seria possível nenhum saber imediato, nenhum pensamento como o cotidiano. (Aqui não podemos discutir o problema desse fato). Tampouco seria possível um efeito evocador das formações miméticas se não se pudesse contar com essa disposição à percepção da singularidade significativamente carregada. O aumento quantitativo produzido mimeticamente produz também aqui uma nova qualidade: uma concretização muito maior da significação que leva imediatamente consigo a singularidade enquanto singularidade e, ao mesmo tempo, uma universalização posterior, mais ramificada, um vínculo imediato ao menos com uma importante potência da vida. Somente uma singularidade tão intensamente carregada de significação pode viver ou se pensar como imediatamente idêntica com a universalidade.

Mas essa coincidência dos dois momentos não deve ocultar sua diferença, sua separação no seio da unidade imediata, pois em realidade os dois não são iguais; o que ocorre é que sua convergência e sua divergência possuem um grau superior de simultaneidade. Pois o singular, por mais carregado que esteja de significação, não é em si o universal em sua conceitualidade determinada, em seu verdadeiro lugar; e por muito que o universal se concretize em sensível, não pode descender imediatamente ao simples “hic et nunc” [ndt – “aqui e agora”] do singular. Este agitado movimento pendular entre identidade de momentos heterogêneos e seu parentesco precisamente no ato do distanciamento leva sua viva mobilidade ao efeito evocador de mencionados reflexos alegóricos-miméticos da realidade. Goethe percebeu muito claramente este traço essencial da alegoria: “A alegoria transforma o fenômeno em conceito, o conceito em imagem, mas de tal modo que o conceito se mantenha e possua sempre limitado e completo na imagem, e que se possa contemplar com tal conceito”(19).

Mas isso se refere a uma situação sócio-cultural na qual ocorram igualmente vivenciáveis a forma aparente mimética da alegoria e o objeto transcendente desta, uma situação na qual o movimento antes descrito atue realmente como unidade imediata do universal e do singular. Porém já isso leva implícito o princípío dissolvente que é essencial à alegoria. Ao dizer que a alegoria é fria e seca, Hegel(20) exprime seu polo de ação negativo tão negativamente como Goethe descreveu o de sua ação positiva. A negatividade em questão obedece a uma necessidade histórica enquanto o desenvolvimento da sociedade, sua transformação, arrebata a universalidade contida na “inferência” mimética seu caráter imediato evocativo, e dissipa totalmente essa universalidade mesma ou ao menos, se é que continua sendo conhecido, a atenua até a simples conceitualidade. A singularidade significativa, desprovida já daquele vínculo, pode às vezes continuar sendo evocadora em alguma medida, porém lhe faltará definitivamente à consumação que a coroava, enredava e aperfeiçoava; agora já fica, por assim dizer, no vazio; ao fazer-se incompreensível sua universalidade transcendente, a única transcendência que a complementa é agora a transcendência real, ou seja, o nada. Como é natural, esse processo tem desenvolvimentos diferentes nas diversas formações miméticas. O observador posterior não nota praticamente nada dessa perda de sentido na ornamentística, a qual, porem, é, como vimos, também refigurativa, e sem dúvida abstratamente alegórica na maioria dos casos de acordo com sua intenção primitiva. Quando se trata de formações autenticamente miméticas há uma ampla escala de passagens entre a vacuidade plena e a perduração quase imperturbável da eficácia inicial. (No último capítulo se tratarão dos problemas estéticos da alegoria).

Não é este o lugar do estudo da natureza e os concretos fundamentos da variedade mencionada> são um problema da parte histórico-materialista da estética. Aqui nos limitaremos a mencionar abstratamente a um momento no qual se manifesta filosoficamente a unidade imediata de ambas. E consegue que a singularidade não se limite já em receber externamente uma carga de significação, somente que se preencha dela, e que a universalidade deixe de ser um objetivo transcendente intencional da singularidade e passe a penetrá-la por todos seus poros, a se introduzir em todos seus átomos, de tal modo que a simples unidade imediata do universal e do individual dê de si a unidade real orgânica de ambos, uma nova categoria, isto é, a particularidade. Uma vez consumado esse processo fica constituído o princípio estético com verdadeiro substantivo do desenvolvimento da humanidade. O problema, entretanto, não pode se apresentar ainda senão como perspectiva, pois entretanto estamos tentando descobrir filosoficamente as vias de sua gênese. A análise e a concretização desse problema pertencem a um estudo posterior de nossas considerações. Mas era preciso apresentá-lo pelo menos como perspectiva de comportamento que preparam a estética nasçam de determinados momentos da prática mágica; somente a visão clara do ponto de chegada pode ilumina as obscuridades do ponte de partida. Pois somente ao final pode ficar claro como o vínculo inseparável do evocativo e o mimético produz uma nova espécie de consideração, mas de igual dignidade: ambas refletem a mesma realidade, portanto, seus conteúdos e as categorias que lhes dão forma têm de possuir em última instância identidade. Porém a nova objetividade, referida, como forma de reflexo evocadora, ao homem integral, produz uma reelaboração original, uma reagrupação dessas categorias, ajuda a descobrir conteúdos ocultos (ignorados inclusive pela ciência) e faz irradiar uma nova luz aos já conhecidos.

Após havermos antecipado agora consideravelmente com objetivo de poder descrever de um modo adequado determinadas ligações entre a vida cotidiana e a gênese da arte, voltemos de novo aos problemas da primeira. Podemos ver já em várias ocasiões que a evocação é um fator importante na vida cotidiana dos homens. Há uma multiplicidade inabarcável de relações sociais humanas – e de relações individuais dentro desse âmbito – nas quais a evocação desempenha um papel imprescindível e decisivo. E isso não somente no sentido de que fenômenos naturais, vasos da vida social e individual produzam espontaneamente, sem intenção, efeitos evocadores, mas também em outro: no da utilização consciente da evocação para alcançar determinados fins. Limitar-nos-emos a aludir as tentativa – certamente muito incipientes – de conquistar a outros homens para determinados fins, manifestação vital da qual logo nasceram o discurso forense, a arte retórica, etc.; é um fato elementar da vida que a vontade recíproca de se influir não pode limitar-se a pura argumentação intelectual, senão que melhor o curso normal da operação de convicção em uma combinação oscilante de momentos argumentativos e evocadores. Em ambos se apresentam sem dúvida aplicações da mimese com maior ou menor frequência, sobretudo para intensificar os efeitos da evocação.

O íntimo vínculo do evocador e o mimético no comércio cotidiano dos homens tem como fundamento o desenvolvimento dos sentidos que falamos já a proposito da influência do trabalho na concepção do mundo. Mencionaremos somente dois fatores de importância decisiva. Em primeiro lugar a fantasia do movimento. Seu desenvolvimento faz que os homens sejam mais hábeis em suas operações cotidianas necessárias, e os capacita ademais para antecipar, com somente, por exemplo, a liberdade de um gesto, o posterior decurso do movimento – nisto consiste a fantasia – , aparte de que a imitação de um fato de movimento possa reproduzir evocativamente o movimento na fantasia do espectador. O mesmo se pode dizer, naturalmente, em relação de barulhos, da denominação de determinadas ações por palavras, etecetera. Também aqui está atuando a dialética da essência e da aparência. Quanto mais desenvolvida está a fantasia do movimento, tanto mais afastadas e elaboradas são as aparências que, por esse caminho, possam se converter em vivências de ação imediata e evocadora.

Em segundo lugar, é necessário falar brevemente da divisão do trabalho entre os sentidos, a qual, naturalmente, é também produto do trabalho. Vimos antes como, por exemplo, percepções de propriedades das coisas que originalmente (de acordo com sua particularidade natural imediatamente considerada) correspondam a impressões táteis, como o peso, passam paulatinamente a ser perceptíveis de modo puramente visual. Os chamados sentidos superiores, a visão e a audição, exigem assim, diferente dos demais sentidos, uma tendência à universalidade que supera em muito o âmbito do trabalho. O comércio inter-humano já desenvolvido e o conhecimento do homem desempenhado sobre sua base repousa, amplamente no posterior desenvolvimento dessa divisão do trabalho entre os sentidos, nesse tendencial universalismo de visão e a audição. Pois nesse processo se desenvolve a capacidade de não limitar-se a julgar – pela comparação de enunciados com a realidade, pela elaboração intelectual das experiência, etc. – complexos de problemas imprescindíveis para o comércio humano, senão, ademais fazer que essas experiências sejam imediatamente visuais e auditivas. (Como é natural, do ponto de vista histórico-cronológico o último precede o primeiro). Quando alguém (para dar um exemplo muito simples) diz a seu interlocutor “vejo que tu mentes” , ou “ouço que mentes”, após este fato cotidiano e trivial se esconde uma universalidade extrema dos olhos e do ouvido humanos. E não se trata somente de uma sutileza de sua capacidade perceptiva. Esse refinamento é possível também nos demais sentidos, mas somente no marco de suas funções propriamente inatas no funcionamento psicossomático do homem. Como é natural, também no campo destes sentidos a difusão de cultura ministra a possibilidade de uma expansão das percepções imediatas até cobrir territórios distantes. Por exemplo, é possível averiguar mediante o olfato (cheirando um perfume, por exemplo) se uma mulher está influenciada por uma moda passada. Porém para isso é necessário saber – fora do âmbito do olfato – qual é a moda dominante em matéria de perfumes, pelo que o vínculo é simplesmente associativo, uma comprovação intelectual que se associa à percepção sensível. As “sinfonias” do gosto e o olfato de que fala Huysman são pois fantasias abstratas, vazias e decadentes, que não tem nada a ver com a essência do estético.

Por outro lado, a universalidade da visão e do ouvido acarreta que percebamos visual e auditivamente fenômenos que, de modo imediato não podem se ver nem se ouvir; dito mais exatamente: na visão e no ouvido humanos se formam capacidades receptivas graças às quais se fazem não somente perceptíveis, senão inclusive interpretáveis e avaliáveis espontaneamente em sua própria imediação sensível, formas de objetividade e de expressividade muito mediadas e distantes no terreno direto desses dois sentidos. Não será desnecessário arguir detalhadamente que o conhecimento do homem ao qual aqui aludimos se desenvolve pela prática da vida cotidiana, de acordo com as necessidades desta. E também é evidente que os reflexos assim produzidos da realidade são de caráter evocador ou, pelo menos, contêm também elementos de evocação. Como procedem da prática cotidiana, possuem uma tendência à concordância aproximada com a realidade objetiva, dentro, naturalmente, dos limites, postos a estas capacidades na vida cotidiana em geral, e inclusive – na vida individual – talvez com fontes de erros mais importantes que as demais esferas do reflexo na cotidianidade. Ao que é necessário acrescentar, naturalmente, que a prática cotidiana, precisamente pela sua imediação e mesmo que seja, muita vezes, lenta e irregularmente, tem por força que eliminar a figurações totalmente falsas da realidade. Por outro lado – e ao mesmo tempo – esta espécie do reflexo visual ou auditivo tendencialmente universal tem um caráter evocador inerente. Quando no simples exemplo antes dado se comprova visual o auditivamente a mentira do interlocutor, a reação emocional (na grande maioria dos casos) não é algo acrescentado de um modo simplesmente associativo ou mental, senão que nasce imediatamente da percepção sensível é parte integrante dela. A tendência objetiva à universalidade que podemos comprovar no olho e no ouvido têm também seu correspondente inverso subjetivo: é o homem integral, com todos seus sentimentos e pensamentos, com todas suas paixões, etc., o que tem a tendência a reagir desse modo a tudo que do mundo lhe é acessível.

Notas:

 

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Notas de rodapé:

(1) Trecho de A particularidade do estético. 5 – Problemas da mimese. I. A Gênese do Reflexo Estético. 5.2 – Magia e mimese. (retornar ao texto)

(2) FRAZER, op. cit., p. 16. (retornar ao texto)

(3) Ibid., p. 17. (retornar ao texto)

(4) Quando a moderna antropologia concede muita importância ao lento desenvolvimento da criança, comparado com animais jovens, costuma passar por cima de que não se trata somente de uma diferença natural entre uns e outros, senão de uma consequência da específica evolução da humanidade; ou seja, metodologicamente falando, não de um ponto de vista de partida, mas de um resultado, sobretudo do trabalho (incluindo, desde já, o período apenas coletor). (retornar ao texto)

(5) As alusões do autor a passagens anteriores se referem, de um modo geral, aos capítulos do volume I. [ndt] (retornar ao texto)

(6) Quando estudarmos o polêmico processo de separação da arte da magia e da religião falaremos detalhadamente da tendência à alegoria que este fato determina na arte religiosa. (retornar ao texto)

(7) GEHLEN, Homem primitivo e cultura tardia, cit., p. 265 e ss. (retornar ao texto)

(8) RODHE, Psyché, Tubinga, 1910, volume II, p.9 e ss. (retornar ao texto)

(9) Ibid., p. 11 e ss. (retornar ao texto)

(10) Ibid., p. 14 e ss. (retornar ao texto)

(11) Ibid., p. 24 e ss. (retornar ao texto)

(12) HEGEL, Enciclopédia, §133. A prioridade do conteúdo nessa interação nos ocupará ainda muitas vezes quando contemos com contextos mais complicados. O que aqui interessa é a mutação recíproca de ambos os casos. (retornar ao texto)

(13) Aristóteles, Poética, cap. IV. (retornar ao texto)

(14) Thomson, op. cit., p. 15 e 103. (retornar ao texto)

(15) Aristóteles, Poética, cap. VI. (retornar ao texto)

(16) Mais tarde veremos até que ponto o fato do reflexo subjacente à fábula, generalizado e modificado oportunamente, desempenha uma papel importante também em outras artes. (retornar ao texto)

(17) Aristóteles, Poética, Cap. VI. (retornar ao texto)

(18) Frazer, op. cit., p.467. (retornar ao texto)

(19) Goethe Máximas e reflexões, op. cit., Volume XXXV, p. 325 e ss. (retornar ao texto)

(20) HEGEL, Estética, Obras, cit. X, I, p. 513 e ss. (retornar ao texto)

Inclusão: 23/03/2021