O Capital
A Chamada Acumulação Original

Karl Marx

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5. Retroacção da Revolução Agrícola Sobre a Indústria. Edificação do Mercado Interno para o Capital Industrial


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A expropriação e expulsão do povo do campo, por sacões mas sempre renovadas, forneciam, como vimos, à indústria citadina repetidamente massas de proletários que estavam totalmente fora das relações corporativas, uma sábia circunstância que leva o velho A. Anderson (a não confundir com James Anderson), na sua história do comércio[N84], a acreditar numa intervenção directa da Providência. Temos ainda de nos demorar um momento sobre este elemento da acumulação original. À rarefacção do povo do campo, independente e trabalhando para si, não correspondeu só a condensação do proletariado industrial, [tal] como Geoffroy Saint-Hilaire explica a condensação da matéria do mundo, aqui, pela sua rarefacção, além(84*). Apesar do número mais pequeno dos seus cultivadores, a terra deu tanto ou mais produto do que antes, porque a revolução nas condições da propriedade fundiária foi acompanhada por métodos de cultura melhorados, maior cooperação, concentração dos meios de produção, etc, e porque os operários assalariados rurais não só foram aplicados mais intensivamente(85*) como também o campo de produção em que eles trabalhavam para eles próprios se contraiu cada vez mais. Com a parte do povo do campo libertada, foram também libertados os seus anteriores meios de subsistência. Transformam-se agora em elemento material do capital variável. O camponês posto na rua tem de comprar o valor deles ao seu novo senhor, o capitalista industrial, sob a forma de salário. O que acontece com os meios de vida, acontece também com a matéria-prima agrícola doméstica da indústria. Transforma-se num elemento do capital constante.

Suponhamos, por exemplo, uma parte dos camponeses da Vestefália que, no tempo de Frederico II, fiavam todos linho — se bem que nenhum seda —, expropriados pela força e expulsos da terra; e a outra parte restante transformada, porém, em jornaleiros de grandes rendeiros. Ao mesmo tempo, erguem-se grandes fiações de linho e tecelagens em que os «deixados livres» trabalham agora assalariadamente. O linho tem precisamente o mesmo aspecto que antes. Nenhuma fibra se alterou nele, mas entrou-lhe no corpo uma nova alma social. Ele forma agora uma parte do capital constante do dono da manufactura. Repartido anteriormente entre uma quantidade enorme de pequenos produtores, que o cultivavam eles próprios e o fiavam em pequenas porções com as suas famílias, está agora concentrado nas mãos de um capitalista, que manda outros fiar e tecer para ele. O trabalho extra despendido na fiação de linho realizava-se anteriormente em rendimento extra de inúmeras famílias de camponeses ou também, no tempo de Frederico II, em impostos pour le roi de Prusse(86*). Realiza-se agora em proveito de uns poucos capitalistas. Os fusos e teares, anteriormente repartidos pela superfície do país, estão agora reunidos em poucas grandes casernas de trabalho, como os operários, como a matéria-prima. E fusos e teares e matéria-prima estão doravante transformados de meios de existência independente para fiandeiros e tecelãos em meios para mandar neles(87*) e para lhes chupar trabalho não pago. Não se vê que as grandes manufacturas, assim como as grandes quintas, se organizam a partir de muitos pequenos lugares de produção e são formadas pela expropriação de muitos pequenos produtores independentes. Contudo, a intuição ingénua não se deixa desconcertar. No tempo de Mirabeau, o leão da revolução, as grandes manufacturas chamavam-se ainda manufactures réunies, manufacturas reunidas, tal como falamos de campos reunidos.

«Só se presta atenção», diz Mirabeau, «às grandes manufacturas, onde centenas de homens trabalham sob [as ordens de] um director e a que comummente se chama manufacturas reunidas. Aquelas em que um número muito grande de operários trabalham, cada um separadamente e cada um por sua própria conta, mal são consideradas; são postas a uma distância infinita das outras. É um erro muito grande, pois só estas últimas são um objecto de prosperidade nacional verdadeiramente importante...

«A fábrica reunida enriquecerá prodigiosamente um ou dois empresários, mas os operários não serão senão jornaleiros mais ou menos pagos, e não participarão em nada no bem da empresa. Na fábrica separada, pelo contrário, ninguém se tornará rico, mas muitos operários viverão desafogados; os poupados e industriosos poderão reunir um pequeno capital, arranjar algum recurso para o nascimento de um filho, para uma doença, para eles próprios ou para algum dos seus. O número dos operários poupados e industriosos aumentará, porque verão no bom comportamento, na actividade, um meio de melhorarem essencialmente a sua situação e não de obterem uma pequena elevação de soldo, que nunca pode ser um objecto importante para o futuro, e cujo único produto é pôr os homens em estado de viver um pouco melhor, mas só no dia-a-dia...

«As manufacturas reunidas, as empresas de alguns particulares que pagam a operários dia a dia para trabalharem por sua conta, podem dar desafogo a esses particulares; mas nunca constituirão um objecto digno da atenção dos governos(88*). As manufacturas separadas individuais, na maioria dos casos, ligadas a um pequeno cultivo da terra, são as [únicas] livres.»(89*)

A expropriação e expulsão de uma parte do povo do campo não deixa apenas livres para o capital industrial, juntamente com os operários, os seus meios de vida e o seu material de trabalho; cria o mercado interno.

De facto, os acontecimentos que transformam os pequenos camponeses em operários assalariados e os seus meios de vida e de trabalho em elementos materiais [sachliche] do capital criam ao mesmo tempo para este último o seu mercado interno. Anteriormente, a família de camponeses produzia e preparava os meios de vida e matérias-primas que, depois, ela própria consumia na maior parte. Estas matérias-primas e meios de vida tornaram-se agora mercadorias; o grande rendeiro vende-os, eles encontram o seu mercado nas manufacturas. Fio, tela, tecidos grosseiros de lã — coisas cujas matérias-primas se encontravam ao alcance de toda a família de camponeses e por ela eram fiadas e tecidas para o seu uso próprio — transformam-se agora em artigos de manufactura, para os quais, precisamente, os distritos rurais formam o mercado de escoamento. A numerosa clientela dispersa, até agora condicionada por um conjunto de pequenos produtores trabalhando por conta própria, concentra-se agora num grande mercado proporcionado pelo capital industrial(90*). Deste modo, de braço dado com a expropriação de camponeses que anteriormente trabalhavam para si próprios e com a separação deles dos seus meios de produção, vai o aniquilamento da indústria rural adjacente, o processo de separação da manufactura e da agricultura. E só o aniquilamento da indústria caseira rural pode dar ao mercado interno de um país a extensão e a consistência firme de que o modo de produção capitalista precisa.

Contudo, o período da manufactura propriamente dito não trouxe qualquer reorganização radical. Recorde-se que ela só se apodera da produção nacional muito fragmentariamente e repousa sempre sobre a oficina da cidade e sobre a indústria caseira-rural adjacente, como amplo pano de fundo. Se ela aniquila as últimas sob uma forma, em ramos de negócio particulares, em certos pontos, apela de novo para elas em outros, porque precisa delas até um determinado grau para a preparação da matéria-prima. Ela produz, portanto, uma nova classe de pequenos rurais que prosseguem o amanho do solo como ramo adjacente e o trabalho industrial para venda do produto à manufactura — directamente, ou por intermédio do comerciante — como ocupação principal. Esta é a razão, ainda que não a razão principal, de um fenómeno que, antes do mais, confunde o investigador da história inglesa. Do último terço do século XV em diante, ele encontra continuamente queixas — só interrompidas em certos intervalos — sobre a crescente economia capitalista no campo e o progressivo aniquilamento do campesinato. Por outro lado, ele encontra sempre de novo este campesinato, ainda que em número mais reduzido e sempre numa forma pior(91*). A razão principal é: a Inglaterra ora é, de preferência, cultivadora de cereal, ora criadora de gado, em períodos alternados e, com eles, flutua o volume da exploração camponesa. Só a grande indústria, com as máquinas, fornece a base constante da agricultura capitalista, expropria radicalmente a enorme maioria do povo do campo e completa a separação entre a agricultura [Ackerbau] e a indústria caseira-rural, cujas raízes — fiação e tecelagem — ela arranca(92*). Ela conquista, portanto, também pela primeira vez, todo o mercado interno para o capital industrial(93*).


Notas de rodapé:

(84*) Nas suas Notions de philosophie naturelle [Noções de Filosofia Natural] Paris, 1838. (Nota de Marx.) (retornar ao texto)

(85*) Um ponto que Sir James Steuart ressalta[N85]. (Nota de Marx.) (retornar ao texto)

(86*) Em francês no texto, literalmente: para o rei da Prússia, em sentido figurado: para nada. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(87*) «Permitirei», diz o capitalista, «que tenhais a honra de me servir, na condição de que me deis o pouco que vos resta pelo incómodo que tenho em comandar-vos.» (J. J. Rousseau, Discours sur l'économie politique [Discurso sobre a Economia Política], [Genève, 1760, p. 70].) (Nota de Marx.) (retornar ao texto)

(88*) Na edição francesa a citação termina aqui. Na edição alemã, em substituição do período que acabamos de traduzir, a citação inclui a frase que a seguir traduzimos. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(89*) Mirabeau, l. c, t. III, pp. 20, 21, 109. Se Mirabeau considera as oficinas separadas também como mais económicas e produtivas do que as «reunidas» e vê nas últimas plantas de estufa simplesmente artificiais sob os cuidados do governo do Estado, isto explica-se pela situação de então de uma grande parte das manufacturas continentais. (Nota de Marx.) (retornar ao texto)

(90*) «Vinte libras de lã convertidas discretamente no vestuário anual de uma família de camponeses por sua própria indústria, nos intervalos de outros trabalhos — isso não faz sensação; mas, leve-se isso para o mercado, envie-se para a fábrica, dali para o revendedor, e ter-se-ão grandes operações comerciais e envolvido um capital nominal no montante de vinte vezes o seu valor... A classe operária é assim afundada para sustentar uma população fabril miserável, uma classe lojista parasita e um sistema comercial, monetário e financeiro fictício.» (David Urquhart, Familiar Words as Afecting England and the English [Palavras Informais Relativas à Inglaterra e aos Ingleses], London, 1855, p. 120.) (Nota de Marx.) (retornar ao texto)

(91*) O tempo de Cromwell constitui aqui uma excepção. Enquanto a República durou, a massa do povo inglês de todas as camadas ergueu-se da degradação em que se havia afundado com os Tudors. (Nota de Marx.) (retornar ao texto)

(92*) Tuckett sabe que a grande indústria da lã surge das próprias manufacturas e da destruição da manufactura caseira ou rural, com a introdução da maquinaria. (Tuckett, l. c., vol. I, pp. 139-144.) «A charrua, o jugo, foram "invenção dos deuses e ocupação de heróis"; o tear, o fuso, a roca, serão de ascendência menos nobre? Separais a roca e a charrua, o fuso e o jugo, e obtendes fábricas e asilos para pobres, crédito e pânicos, duas nações hostis: a agrícola e a comercial.» (David Urquhart, /. c., p. 122.) Mas vem agora Carey e acusa a Inglaterra, seguramente não sem razão, por se esforçar por transformar todos os outros países num povo simplesmente de agricultura, de que a Inglaterra seria o fabricante. Ele pretende que a Turquia foi arruinada desta maneira, porque «aos donos e ocupantes da terra nunca foi permitido pela Inglaterra fortalecerem-se pela formação daquela aliança natural entre a charrua e o tear, o martelo e o ancinho». (The Slave Trade [O Comércio de Escravos], p. 125.) Segundo ele, o próprio Urquhart é um dos principais agentes da ruína da Turquia, por ter feito propaganda do comércio livre no interesse inglês. O melhor é que Carey — a propósito: grande lacaio dos russos — quer impedir aquele processo de separação pelo sistema de proteccionismo que o acelera. (Nota de Marx.) (retornar ao texto)

(93*) Economistas filantrópicos ingleses, como Mill, Rogers, Goldwin Smith, Fawcett, etc, e fabricantes liberais, como John Bright e consortes, perguntam aos aristocratas fundiários ingleses — tal como deus a Caim pelo seu irmão Abel — para onde foram os nossos milhares defreeholders a? Mas, então, de onde é que vós vindes? Do aniquilamento daqueles freeholders.(94*) Por que é que não lhes perguntam, além disso, para onde foram os tecelãos, fiandeiros, artesãos, independentes? (Nota de Marx.) (retornar ao texto)

(94*) Em inglês no texto: proprietários livres. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N84] A. Anderson, An Historical and Chronological Deduction of the Origin of Commerce, from the Earliest Accounts to the Present Time {Dedução Histórica e Cronológica da Origem do Comércio, desde os Primeiros Relatos até ao Tempo Presente). A primeira edição foi publicada em Londres em 1764. (retornar ao texto)

[N85] J. Steuart, An Inquiry into the Principies of Political Economy, vol. I, Dublin,  1770, First book, ch. XVI (Uma Investigação sobre os Princípios da Economia Política, vol. I, Dublim,  1770, Livro primeiro, cap. XVI). (retornar ao texto)

Inclusão 06/08/2008