Link Avante

O Capital
Crítica da Economia Política
Karl Marx

Livro Primeiro: O processo de produção do capital

Segunda Seção: A Transformação de dinheiro em capital

Quarto capítulo. Transformação de dinheiro em capital


2. Contradições da fórmula universal


capa

A forma de circulação, na qual o dinheiro sai do casulo como capital, contradiz todas as leis anteriormente desenvolvidas sobre a natureza da mercadoria, do valor, do dinheiro e da própria circulação. O que a distingue da circulação simples de mercadorias é a sequência inversa dos mesmos dois processos contrapostos, venda e compra. E como haveria tal diferença puramente formal de transformar por magia a natureza destes processos?

Mais ainda. Esta inversão existe apenas para um dos três parceiros comerciais que negoceiam entre si. Enquanto capitalista compro mercadoria a A e volto a vendê-la a B, ao passo que, enquanto simples possuidor de mercadorias, vendo mercadoria a B e depois compro mercadoria a A. Para os parceiros comerciais A e B esta diferença não existe. Eles aparecem apenas como compradores ou vendedores de mercadorias. Eu próprio coloco-me sempre perante eles como simples possuidor de dinheiro ou possuidor de mercadorias, comprador ou vendedor, e, de facto, em ambas as sequências, oponho-me a uma pessoa apenas enquanto comprador e à outra apenas enquanto vendedor, a uma apenas enquanto dinheiro, à outra apenas enquanto mercadoria, a nenhuma das duas enquanto capital ou capitalista ou representante de algo que fosse mais do que dinheiro ou mercadoria ou pudesse exercer um outro efeito fora do do dinheiro ou [do] da mercadoria. Para mim, a compra a A e a venda a B formam uma sequência. Mas a conexão entre estes dois actos existe apenas para mim. A não se rala por causa da minha transacção com B, e B por causa da minha transacção com A. Se eu lhes quisesse explicar porventura o mérito particular que adquiri pela inversão da sequência, eles demonstrar-me-iam que eu próprio me engano na sequência e que a transacção total não começou com uma compra e terminou com uma venda, mas inversamente, começou com uma venda e concluiu-se com uma compra. De facto, o meu primeiro acto, a compra, era — do ponto de vista de A — uma venda e o meu segundo acto, a venda, era — do ponto de vista de B — uma compra. Não contentes com isso, A e B explicarão que toda a sequência era supérflua e um truque. A venderá a mercadoria directamente a B e B comprá-la-á directamente a A. Assim, toda a transacção se reduz a um acto unilateral da circulação habitual de mercadorias: do ponto de vista de A uma mera venda e do ponto de vista de B uma mera compra. Pela inversão da sequência nem por isso saímos da esfera da circulação simples de mercadorias e temos, sim, de ver se ela consente, por sua natureza, uma valorização dos valores que nela entram e, portanto, a formação de mais-valia.

Tomemos o processo de circulação numa forma em que ele se manifesta como mera troca de mercadorias. Este é sempre o caso quando ambos os possuidores de mercadorias compram mercadorias um ao outro e o balanço das suas exigências mútuas de dinheiro se iguala no dia de pagamento. O dinheiro serve aqui de dinheiro de conta para exprimir os valores das mercadorias nos seus preços, mas não se contrapõe como coisa às próprias mercadorias. Na medida em que se trata do valor de uso, é claro que ambos os permutadores podem ganhar. Ambos alienam mercadorias, que lhes são inúteis como valor de uso, e recebem mercadorias de que necessitam para uso. E este pode não ser o único proveito. A, que vende vinho e compra grão, produz talvez mais vinho do que o cultivador de grão B poderia produzir no mesmo tempo de trabalho; e o cultivador de grão B, no mesmo tempo de trabalho, mais grão do que o vinhateiro A poderia produzir. A recebe, pois, pelo mesmo valor de troca mais grão e B mais vinho do que se cada um dos dois, sem troca, tivesse que produzir vinho e grão para si mesmo. Em relação ao valor de uso pode-se portanto dizer que «a troca é uma transacção em que ambas as partes ganham»(1*). Diferentemente com o valor de troca.

«Um homem que possui muito vinho e nenhum trigo comercia com um outro homem que tem muito trigo e nenhum vinho: entre eles faz-se uma troca num valor de 50 em trigo contra um valor de 50 em vinho. Esta troca não é acréscimo de riquezas nem para um nem para o outro; pois cada um deles antes da troca possuía um valor igual ao que conseguiu por este meio.»(3*)

Nada altera à questão se o dinheiro, como meio de circulação, se interpõe entre as mercadorias, e os actos de compra e venda se desmoronam sensivelmente(4*). O valor das mercadorias está exposto nos seus preços, antes de elas entrarem na circulação, [é] portanto pressuposto e não resultado da mesma(5*).

Considerada abstractamente, i. é, prescindindo de circunstâncias que não derivam das leis imanentes da circulação simples de mercadorias, não sucede nada nesta — para além da substituição de um valor de uso por outro — senão uma metamorfose, uma mera mudança de forma da mercadoria. O mesmo valor, ou seja, o mesmo quantum de trabalho social objectivado, permanece na mão do mesmo possuidor de mercadorias, primeiro na figura da sua mercadoria, depois [na] do dinheiro em que ela se transforma, por fim [na] da mercadoria em que este dinheiro se retransforma. Esta mudança de forma não inclui qualquer modificação da magnitude de valor. Todavia, a mudança por que o valor da própria mercadoria passa neste processo limita-se a uma mudança da sua forma-dinheiro. Esta existe primeiro como preço da mercadoria posta à venda, depois como uma soma de dinheiro, que já estava contudo expressa no preço, por fim como o preço de uma mercadoria equivalente. Esta mudança de forma inclui em si e por si tão pouco uma modificação da magnitude de valor quanto o trocar de uma nota de cinco libras por soberanos, meios soberanos e xelins. Portanto, na medida em que a circulação das mercadorias condiciona apenas uma mudança de forma do seu valor, ela condiciona — se o fenómeno decorre de modo puro — uma troca de equivalentes. A própria economia vulgar, por muito pouco que saiba o que é o valor, supõe, por isso — sempre que quer considerar, à sua maneira, de modo puro o fenómeno —, que procura e oferta coincidem, i. é, que o seu efeito em geral cessa. Se, portanto, no que concerne ao valor de uso, ambos os permutadores podem ganhar, não podem ambos ganhar em valor de troca. Aqui diz-se antes: «Onde há igualdade não há lucro.»(6*) As mercadorias podem, na verdade, ser vendidas a preços que se desviam dos seus valores, mas este desvio aparece como uma infracção da lei da troca de mercadorias(7*). Na sua figura pura, ela é uma troca de equivalentes, portanto não um meio de enriquecer em valor(8*).

Por detrás das tentativas de apresentar a circulação de mercadorias como fonte de mais-valia espreita a maior parte das vezes um quiproquó, uma confusão entre valor de uso e valor de troca. Assim, p. ex., em Condillac:

«É falso que, nas trocas, se dê valor igual por valor igual. Pelo contrário, cada um dos contraentes dá sempre um menor por um maior... Com efeito, se se trocasse sempre valor igual por valor igual não haveria ganho a realizar para nenhum dos contraentes. Ora, ambos o realizam ou deveriam realizá-lo. Porquê? E que não tendo as coisas senão um valor relativo às nossas necessidades, aquilo que é mais para um é menos para o outro, e reciprocamente... Não são as coisas necessárias ao nosso consumo que é suposto pormos à venda... Queremos fornecer uma coisa que nos é inútil para obtermos uma que nos é necessária...» Foi «natural julgar-se que, nas trocas, se dava valor igual por valor igual de todas as vezes que as coisas que se trocavam eram estimadas iguais em valor cada uma delas a uma mesma quantidade de dinheiro... Há ainda uma consideração que deve entrar no cálculo: saber se ambos trocamos um sobreabundante por uma coisa necessária.»(9*)

Vê-se como Condillac não apenas mistura valor de uso e valor de troca, mas — de modo verdadeiramente pueril — imputa a uma sociedade com produção desenvolvida de mercadorias um estado em que o produtor produz os seus próprios meios de subsistência e só põe em circulação o excesso acima da própria necessidade, o supérfluo(10*). O argumento de Condillac é, porém, frequentemente repetido por economistas modernos, nomeadamente quando se trata de apresentar a figura desenvolvida da troca de mercadorias, o comércio, como produtivo de mais-valia.

«O comércio [...]», diz-se p. ex., «acrescenta valor aos produtos, dado que os mesmos produtos valem mais nas mãos dos consumidores do que nas mãos dos produtores, e pode ser estritamente (strictly(11*)) considerado um acto de produção.»(12*)

Mas as mercadorias não se pagam a dobrar, uma vez o seu valor de uso e outra vez o seu valor. E se o valor de uso da mercadoria é mais útil ao comprador do que ao vendedor, a sua forma-dinheiro é mais útil ao vendedor do que ao comprador. De outro modo, ele vendê-la-ia? E assim poderia muito bem dizer-se que o comprador cumpre literalmente (strictly) um «acto de produção», ao transformar, p. ex., as meias do comerciante em dinheiro.

Se mercadorias, ou mercadorias e dinheiro do mesmo valor de troca, portanto equivalentes, são trocados, é manifesto que ninguém retira mais valor da circulação do que [o que] nela lança. Portanto, não tem lugar qualquer formação de mais-valia. Porém, na sua forma pura, o processo de circulação das mercadorias implica a troca de equivalentes. Contudo, as coisas não se passam na realidade de modo puro. Suponhamos, pois, a troca de não-equivalentes.

De qualquer modo, no mercado de mercadorias estão apenas possuidor de mercadorias perante possuidor de mercadorias, e o poder que estas pessoas exercem uma sobre a outra é apenas o poder das suas mercadorias. A diversidade material das mercadorias é o motivo material da troca e torna os possuidores de mercadorias reciprocamente dependentes um do outro, na medida em que nenhum deles detém na sua mão o objecto da sua própria necessidade e cada um deles [detém na sua mão] o objecto da necessidade do outro. Fora esta diversidade material dos seus valores de uso, existe ainda uma diferença entre as mercadorias, a diferença entre a sua forma natural e a sua forma transformada, entre mercadoria e dinheiro. E assim os possuidores de mercadorias distinguem-se apenas enquanto vendedores, possuidores de mercadoria, e enquanto compradores, possuidores de dinheiro.

Admitamos agora que, por um inexplicável privilégio, é dado ao vendedor vender a mercadoria acima do seu valor, por 110 se ela vale 100, portanto com um aumento nominal de preço de 10%. O vendedor mete em caixa, pois, uma mais-valia de 10. Mas depois de ser vendedor torna-se comprador. Um terceiro possuidor de mercadorias encontra-o agora como comprador e goza, por seu lado, do privilégio de vender a mercadoria 10% mais cara. O nosso homem, enquanto vendedor, ganhou 10, para perder 10 enquanto comprador(13*). De facto, o resultado de tudo isto é que todos os possuidores de mercadorias vendem as suas mercadorias uns aos outros 10% acima do valor, o que é exactamente o mesmo que se vendessem as mercadorias pelos seus valores. Um tal aumento geral nominal de preço das mercadorias produz o mesmo efeito que se os valores das mercadorias fossem, p. ex., avaliados em prata em vez de ouro. Os nomes monetários, i. é, os preços das mercadorias inchariam, mas as suas relações de valor permaneceriam inalteradas.

Suponhamos, inversamente, que seria privilégio do comprador comprar as mercadorias abaixo do seu valor. Aqui não é preciso sequer recordar que o comprador de novo se torna vendedor. Ele era vendedor antes de ser comprador. Ele já perdeu 10% como vendedor, antes de ganhar 10% como comprador(14*). Tudo fica como dantes.

A formação de mais-valia e, assim, a transformação de dinheiro em capital, não pode portanto ser explicada nem pelos vendedores venderem as suas mercadorias acima do seu valor, nem pelos compradores as comprarem abaixo do seu valor(15*).

O problema não é, de modo algum, simplificado por se introduzirem subrepticiamente relações estranhas, como p. ex. o coronel Torrens que diz:

«A procura efectiva consiste no poder e inclinação» (!) «por parte dos consumidores para dar pelas mercadorias, quer na troca imediata quer na que passa por um circuito, um porção maior de [...] capital do que a sua produção custa.»(16*)

Na circulação, produtores e consumidores encontram-se face a face apenas como vendedores e compradores. Afirmar que a mais-valia para o produtor brota do facto de os consumidores pagarem a mercadoria acima do valor significa apenas disfarçar a simples frase: o possuidor de mercadorias possui, como vendedor, o privilégio de vender demasiado caro. O vendedor produziu a própria mercadoria ou representa o seu produtor, mas não menos [também] o comprador produziu ele próprio a mercadoria manifestada no seu dinheiro ou representa ele o seu produtor. Estão, portanto, produtor perante produtor. O que os distingue é que um compra e o outro vende. Não nos faz dar um passo adiante que o possuidor de mercadorias, sob o nome de produtor, venda a mercadoria acima do seu valor e, sob o nome de consumidor, a pague demasiado cara (17*).

Os representantes consequentes da ilusão de que a mais-valia brota de um aumento nominal de preço, ou do privilégio do vendedor em vender a mercadoria demasiado cara, supõem assim uma classe que apenas compra sem vender e, portanto, apenas consome sem produzir. A existência de uma tal classe é ainda inexplicável do ponto de vista a que até agora chegamos, o da circulação simples. Mas antecipemo-nos. O dinheiro com que uma tal classe constantemente compra tem de fluir constantemente dos próprios consumidores de mercadorias para ela, sem troca, gratuitamente, a qualquer título de direito ou de força. Vender a esta classe as mercadorias acima do valor significa apenas recuperar de novo, por embuste, em parte, dinheiro que se deu gratuitamente(18*). Assim as cidades da Ásia Menor pagavam o tributo anual em dinheiro à antiga Roma. Com este dinheiro, Roma comprava-lhes mercadorias e comprava-as demasiado caras. Os habitantes da Ásia Menor enganavam os romanos ao surripiarem de novo aos conquistadores uma parte do tributo por via do comércio. Contudo, os asiáticos continuavam a ser os enganados. As suas mercadorias eram-lhes pagas, tal como dantes, com o seu próprio dinheiro. Este não é um método de enriquecimento ou de formação de mais-valia.

Conservemo-nos, portanto, dentro dos limites da troca de mercadorias, onde os vendedores são compradores e os compradores vendedores. A nossa perplexidade provêm talvez de termos concebido as pessoas apenas como categorias personificadas, e não individualmente.

O possuidor de mercadorias A pode ser tão manhoso a ponto de intrujar os seus colegas B ou C, enquanto estes — apesar da maior boa vontade — [lhe] ficam a dever vingança. A vende vinho a B no valor de 40 lib. esterl. e obtém, na troca, grão no valor de 50 lib. esterl. A transformou as suas 40 lib. esterl. em 50 lib. esterl., fez mais dinheiro de menos dinheiro e transformou a sua mercadoria em capital. Observemos mais de perto. Antes da troca tínhamos, por 40 lib. esterl., vinho na mão de A e, por 50 lib. esterl., grão na mão de B, valor total de 90 lib. esterl. Depois da troca temos o mesmo valor total de 90 lib. esterl. O valor circulante não aumentou um só átomo, mas a sua repartição entre A e B modificou-se. Por um lado, aparece como mais-valia o que, por outro, é menos-valia; por um lado, aparece como mais o que, por outro, aparece como menos. A mesma mudança se teria verificado se A, sem a forma dissimulante da troca, tivesse roubado directamente a B 10 lib. esterl. A soma dos valores circulantes não pode manifestamente ser aumentada por qualquer mudança na sua repartição, tão pouco quanto um judeu aumenta a massa dos metais nobres num país ao vender um farthing do tempo da rainha Ana por um guinéu. A totalidade da classe dos capitalistas de um país não pode prejudicar-se a si mesma(19*).

Podemos, pois, darmos as voltas que quisermos que a soma total permanece a mesma. Se se trocam equivalentes, não resulta mais-valia alguma e, se se trocam não-equivalentes, também não resulta qualquer mais-valia(21*). A circulação ou a troca de mercadorias não cria qualquer valor(23*).

Assim se entende porque, na nossa análise da forma fundamental do capital — da forma em que ele determina a organização económica da sociedade moderna —, as suas figuras populares e, por assim dizer, antediluvianas, capital comercial e capital usurário, permanecem, por agora, totalmente desconsideradas.

No capital comercial propriamente dito a forma D — M — D', comprar para vender mais caro, aparece do modo mais puro. Por outro lado, todo o seu movimento se processa dentro da esfera da circulação. Mas visto que é impossível explicar, a partir da própria circulação, a transformação de dinheiro em capital, a formação de mais-valia, o capital comercial mostra-se impossível quando são trocados equivalentes(25*), [e] portanto [mostra-se] apenas derivável do duplo prejuízo dos produtores de mercadorias, que compram e vendem, pelo comerciante que entre eles parasitariamente se intromete. Neste sentido diz Franklin: «Guerra é roubo, comércio é [...] burla.»(26*)

Se a valorização do capital comercial não houvesse de ser explicada por mera burla dos produtores de mercadorias caberia fazermos uma longa série de termos intermédios que aqui — onde a circulação de mercadorias e os seus momentos simples constituem o nosso único pressuposto — ainda falta totalmente.

O que vale para o capital comercial vale ainda mais para o capital usurário. No capital comercial, os extremos — o dinheiro que é lançado no mercado e o dinheiro aumentado que é retirado do mercado — são pelo menos mediados por compra e venda, pelo movimento da circulação. No capital usurário a forma D — M —D' é abreviada para os extremos imediados D — D', dinheiro que se troca por mais dinheiro, uma forma que contradiz a natureza do dinheiro e, portanto, inexplicável do ponto de vista da troca de mercadorias. Por isso diz Aristóteles:

«Sendo [a crematística] ela própria dupla, uma do comércio, outra da economia, a última é necessária e louvável, a primeira fundada na circulação e justamente censurada (pois não é segundo a natureza, mas [tirando] uns dos outros), assim a usura é com razão odiada, pois o próprio dinheiro torna-se aqui a fonte da aquisição e não é utilizado para aquilo que foi inventado. Pois ele surgiu para a troca [das mercadorias], mas o juro faz do dinheiro mais dinheiro. Daí também o seu nome» (Πσκος, juro e nascido). «Pois os nascidos são semelhantes aos que os geram. O juro, porém, é dinheiro de dinheiro, de modo que, de todas as crematísticas, esta é a mais contrária à natureza.»(27*)

Tal como o capital comercial, encontraremos no decurso da nossa investigação o capital que rende juro como forma derivada e ao mesmo tempo veremos porque é que elas aparecem historicamente antes da moderna forma fundamental do capital.

Mostrou-se que a mais-valia não pode brotar da circulação e, portanto, na formação daquela tem de processar-se algo nas costas desta, que nesta própria [circulação] é invisível(28*). Pode, porém, a mais-valia brotar de qualquer outro lado senão da circulação? A circulação é a soma de todas as relações de intercâmbio(29*) dos possuidores de mercadorias. Fora desta, o possuidor de mercadorias está apenas em relação com a sua própria mercadoria. No que concerne ao seu valor, a relação limita-se a que ela contêm um quantum do seu próprio trabalho, medido segundo determinadas leis sociais. Este quantum de trabalho exprime-se na magnitude de valor da sua mercadoria e — dado que a magnitude de valor se manifesta em dinheiro de conta — num preço de, p. ex., 10 lib. esterl. Mas o seu trabalho não se manifesta no valor da mercadoria e num excesso acima do próprio valor desta, não num preço de 10 que é ao mesmo tempo o preço de 11, não num valor que é maior do que si mesmo. O possuidor de mercadorias pode, pelo seu trabalho, constituir valores, mas não valores que se valorizam a si mesmos. Ele pode elevar o valor de uma mercadoria, acrescentando a um valor dado um novo valor por meio de novo trabalho, p. ex., fazendo botas a partir do cabedal. A mesma matéria têm agora mais valor pois contêm um quantum de trabalho também maior. A bota tem, portanto, mais valor do que o cabedal, mas o valor do cabedal ficou aquilo que era. Não se valorizou, nem acrescentou uma mais-valia durante o fabrico das botas. É, pois, impossível que o produtor de mercadorias valorize valor e, desse modo, transforme dinheiro ou mercadoria em capital, fora da esfera da circulação, sem entrar em contacto com outros possuidores de mercadorias.

O capital não pode, portanto, brotar da circulação e tão-pouco pode não brotar da circulação. Tem simultaneamente que brotar nela e não nela.

Verificou-se, pois, um duplo resultado.

A transformação do dinheiro em capital é de desenvolver na base de leis imanentes à troca de mercadorias, de modo que a troca de equivalentes sirva de ponto de partida(30*). O nosso possuidor de dinheiro, presente só ainda como lagarta de capitalista, tem de comprar as mercadorias pelo seu valor, vendê-las pelo seu valor e, todavia, no fim do processo, retirar mais valor do que lá lançara. O seu desabrochar em borboleta tem de processar-se na esfera da circulação e de não se processar na esfera da circulação. São estas as condições do problema. Hic Rhodus, hic salta![N63]


Notas de rodapé:

(1*) «L'échange est une transaction admirable dans laquelle les deux contractants gagnent toujours.»(2*)(!) (Destutt de Tracy, Traité de la volonté et de ses effets, Paris, 1826, p. 68.) O mesmo livro apareceu também como Traité D'éc. pol. (retornar ao texto)

(2*) «A troca é uma transacção admirável na qual os dois contraentes ganham sempre.» (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(3*) Mercier de la Rivière, 1. c, p. 544.(retornar ao texto)

(4*) «Que um desses dois valores seja dinheiro ou que sejam ambos mercadorias usuais, nada de mais indiferente em si.» (Mercier de la Rivière, 1. c, p. 543.) (retornar ao texto)

(5*) «Não são [...] os contraentes que se pronunciam sobre o valor; ele está decidido antes da convenção.» (Le Trosne, 1. c, p. 906.) (retornar ao texto)

(6*) «Dove è egualità, non è lucro.» (Galiani, Della Moneta, in Custodi, Parte Moderna, t. IV, p. 244.) (retornar ao texto)

(7*) A troca «torna-se desvantajosa para uma das partes logo que qualquer coisa estranha vem diminuir ou exagerar o preço: então a igualdade é ferida, mas a lesão procede desta causa e não da troca.» (Le Trosne, 1. c, p. 904.) (retornar ao texto)

(8*) «A troca é por sua natureza um contrato de igualdade que se faz de valor por valor igual. Não é, pois, um meio de enriquecer, uma vez que se dá tanto quanto se recebe.» (Le Trosne, 1. c, pp. 903, 904.) (retornar ao texto)

(9*) Condillac, Le Commerce et le gouvernement (1776), édit. Daire et Molinari, nas Mélanges D'économie politique, Paris, 1847, pp. 267, 291. (retornar ao texto)

(10*) Le Trosne responde, pois, ao seu amigo Condillac muito correctamente: «Numa sociedade formada [...] não há sobreabundante em nenhum género.» [Le Trosne, 1. c, p. 907.] Simultaneamente, provoca-o com a glosa «se os dois permutadores recebem igualmente mais por igualmente menos, recebem ambos tanto um como o outro». [L. c.,.p. 904.] Dado que Condillac ainda não possui a menor ideia da natureza do valor de troca, ele é o abonador conveniente do Senhor Prof. Wilhelm Roscher para os seus próprios conceitos pueris. Ver do mesmo: Die Grundlagen der Nationalökonomie, terceira edição, 1858. (retornar ao texto)

(11*) Em inglês no texto. Marx traduz: literalmente. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(12*) S. P. Newman, Elements of Polit. Econ., Andover and New York, 1835, p. 175 (retornar ao texto)

(13*) «Pelo aumento do valor nominal do produto... os vendedores não são enriquecidos... desde que o que eles ganham como vendedores o gastem precisamente na qualidade de compradores.» ([J. Gray,] The Essential Principies of the Wealth of Nations, etc, London, 1797, p. 66.) (retornar ao texto)

(14*) «Se somos forçados a dar por 18 libras uma quantidade de uma dada produção que valia 24, quando empregarmos este mesmo dinheiro para comprar teremos igualmente por 18 libras aquilo que pagávamos por 24 libras.» (Le Trosne 1 c P- 897.) (retornar ao texto)

(15*) «Cada vendedor não pode, pois, chegar a encarecer habitualmente as suas mercadorias senão submetendo-se também a pagar habitualmente mais caro as mercadorias dos outros vendedores; e, pela mesma razão, cada consumidor não pode [...] pagar habitualmente mais barato aquilo que compra senão submetendo-se também a urna diminuição semelhante no preço das coisas que ele vende. » (Mercier de la Rivière, 1. c, p. 555.) (retornar ao texto)

(16*) R. Torrens, An Essay on the Production of Wealth, London, 1821, p. 349. (retornar ao texto)

(17*) «A ideia dos lucros serem pagos pelos consumidores é, seguramente, muito absurda. Quem são os consumidores?» (G. Ramsay, An Essay on the Distribution of Wealth, Edinburgh, 1836, p. 183.) (retornar ao texto)

(18*) «Quando um homem tem falta de procura, o Sr. Malthus recomenda que pague a alguma outra pessoa para lhe levar os bens?», pergunta a Malthus um ricardiano indignado que, como o seu discípulo, o padre Chalmers, enaltece economicamente a classe dos meros compradores ou consumidores. Ver: An Inquiry into Those Principies, Respecting the Nature of Demand and the Necessity of Consumption, Lately Advocated by Mr. Malthus, etc, London, 1821, p. 55.) (retornar ao texto)

(19*) Destutt de Tracy, embora — talvez porque — Membre de l'Institut[N62], era de opinião inversa. Os capitalistas industriais, diz ele, tiram os seus lucros de «venderem tudo o que produzem mais caro do que lhes custou a produzir.» E a quem o vendem? «Primo(20*): a eles próprios.» (L. c, p. 239.) (retornar ao texto)

(20*) Em latim no texto: Primeiro. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(21*) «A troca que se faz de dois valores iguais não aumenta nem diminui a massa dos valores existentes na sociedade. A troca de dois valores desiguais... também não altera em nada a soma dos valores sociais, embora acrescente à fortuna de um aquilo que retira à fortuna do outro.» (J.-B. Say, 1. c, t. II, pp. 443, 444.) Say, não se preocupando naturalmente com as consequências desta frase, tira-a bastante literalmente, dos fisiocratas. A maneira como ele explorou os escritos destes — no seu tempo esquecidos — para aumento do seu próprio «valor», demonstra-o o exemplo seguinte. A frase «mais famosa» de monsieur Say: «Não se compram produtos senão com produtos» (1. c, t. II, p. 438(22*)) soa no original fisiocrático: «As produções não se pagam senão com produções.» (Le Trosne, 1. c, p. 899.) (retornar ao texto)

(22*) Nas edições francesa e inglesa: p. 441. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(23*) «A troca não confere qualquer valor aos produtos.» (F. Wayland, The Elements of Pol. Econ., Boston, 1843, p. 168(24*).) (retornar ao texto)

(24*) Nas edições inglesa e francesa: p. 169. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(25*) Sob a dominação de equivalentes invariáveis o comércio seria impossível. (G. Opdyke, A Treatise on Polit. Economy, New York, 1851, pp. 66 a 69.) «A diferença entre valor real e valor de troca tem por base um facto — nomeadamente que o valor de uma coisa é diverso do chamado equivalente dado por ela no comércio, i. é, que este equivalente não é nenhum equivalente.» (F. Engels, 1. c, pp. 95, 96.) (retornar ao texto)

(26*) Benjamin Franklin, Works, vol. II, edit. Sparks in Positions to be Examined Concerning National Wealth [, p. 376]. (retornar ao texto)

(27*) Arist[óteles], 1. c, c. 10 [, p. 17]. [Política, I, 3, 1258a39 - 1258b8. — Nota da edição portuguesa.] (retornar ao texto)

(28*) «Lucro, na condição usual do mercado, não é feito por troca. Se não tivesse existido antes, também não poderia [existir] depois dessa transacção.» (Ramsay, 1. c., p. 184.) (retornar ao texto)

(29*) 3.ª e 4.ª edições: relações de mercadorias. (Nota da edição alemã.) (retornar ao texto)

(30*) Depois da explicação dada, compreenderá o leitor que isto significa apenas: a formação de capital tem de ser possível mesmo quando o preço das mercadorias é igual ao valor das mercadorias. Ela não pode ser explicada a partir do desvio dos preços das mercadorias em relação aos valores das mercadorias. Se os preços se desviam realmente dos valores, então temos antes de mais de reduzidos a estes últimos, i. é, abstrair desta circunstância como de uma circunstância casual, de modo a termos diante de nós de modo puro o fenómeno da formação de capital com base na troca das mercadorias e não sermos confundidos, na nossa observação, por circunstâncias secundárias, perturbadoras e estranhas ao decurso propriamente dito. Sabemos aliás que esta redução não é de modo algum um procedimento meramente científico. As constantes oscilações dos preços de mercado, as suas subidas e descidas, compensam-se, abolem-se reciprocamente e reduzem-se a si mesmas ao preço médio como a sua regra interna. Isto constitui a Estrela Polar, p. ex., do mercador ou do industrial em qualquer empreendimento que implique um espaço de tempo mais longo. Portanto ele sabe que, considerado um período mais longo no total, as mercadorias são realmente vendidas, não abaixo nem acima, mas ao seu preço médio. Se, portanto, um pensar desinteressado fosse em geral do seu interesse, ele teria de colocar o problema da formação de capital assim: como pode surgir capital com a regulação dos preços pelo preço médio, i. é, em última instância, pelo valor da mercadoria? Digo «em última instância», pois os preços médios não coincidem directamente com as magnitudes de valor das mercadorias, como crêem A. Smith, Ricardo, etc. (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N62] Trata-se do Instituí de France, a mais alta instituição científica, composta por várias secções ou academias; existe desde 1795. Destutt de Tracy era membro da Academia de Ciências Morais e Políticas. (retornar ao texto)

[N63] Hic Rhodus, hic salta! (Rodes é aqui, salta aqui! — Em sentido figurado: É esta a dificuldade sobre a qual há que passar!) — palavras dirigidas ao fanfarrão (da fábula de Esopo O Fanfarrão), que afirmava que na ilha de Rodes tinha dado um salto enorme. (retornar ao texto)

Inclusão 14/12/2011