A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado

Friedrich Engels


V - Gênese do Estado Ateniense


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Em nenhuma parte melhor do que na antiga Atenas podemos observar como o Estado se desenvolveu, pelo menos na primeira fase da sua evolução, com a transformação e substituição parciais dos órgãos da constituição gentílica pela introdução de novos órgãos, até completamente instauradas autoridades com poderes realmente governamentais — quando uma "força pública" armada, a serviço dessas autoridades (e que, por conseguinte, podia ser dirigida contra o povo), usurpou o lugar do verdadeiro "povo em armas", que havia organizado sua autodefesa nas gens, nas fratrias e nas tribos. Morgan descreve principalmente as modificações formais; as condições econômicas que as produziram, tive eu mesmo que acrescentá-las, em grande parte.

Na época heroica, as quatro tribos dos atenienses ainda estavam instaladas em diferentes territórios da Atica. Mesmo as doze fratrias que as compunham parece que tinham diferentes instalações nas doze cidades de Cecrope. A constituição era a da época heroica: assembleia do povo, conselho e basileu. Até onde alcança a história escrita, encontramos a terra já repartida e como propriedade privada, o que corresponde à produção e ao comércio de mercadorias relativamente desenvolvido da fase superior da barbárie. Além de cereais, vinho e azeite eram produzidos. O comércio marítimo no Mar Egeu passava cada vez mais dos fenícios aos áticos. Como consequência da compra e venda da terra e da crescente divisão do trabalho entre a agricultura e os ofícios manuais, comércio e navegação, logo se confundiram os membros das gens, fratrias e tribos. Nos territórios das fratrias e das tribos, fixaram residência habitantes que, embora fossem do mesmo povo, não faziam parte daquelas corporações e, por conseguinte, eram estranhos a elas e ao local. Eram estranhos porque, em tempos de paz, cada fratria e cada tribo administravam, elas mesmas, seus assuntos internos, sem consultar o conselho popular ou o basileu de Atenas, e esses habitantes que passavam a residir na área da fratria e da tribo não podiam, naturalmente, tomar parte na administração delas.

Isso desequilibrou de tal modo a organização gentílica que, nos tempos heroicos, se tornou necessário modificá-la e adotou-se a constituição atribuída a Teseu. A principal mudança foi a instituição de uma administração central em Atenas; parte dos assuntos que até então eram resolvidos independentemente pelas tribos foi declarada de interesse comum e transferida ao conselho geral, sediado em Atenas. Os atenienses foram, com isso, a um ponto ao qual não chegou qualquer dos povos indígenas da América: a simples confederação de tribos vizinhas foi superada pela fusão de todas em um único povo. Daí nasceu o sistema de leis ateniense popular, mais evoluído que o das tribos e das gens. Garantiam-se, assim, os cidadãos de Atenas, quanto a certos direitos e proteção legal, mesmo em territórios que não pertenciam às suas tribos. Deu-se, dessa forma, o primeiro passo no sentido da ruína da constituição gentílica, o primeiro passo no sentido da admissão de cidadãos que não pertenciam a qualquer das tribos da Ática e que não eram, nem se tornaram integrantes da organização gentílica ateniense. A segunda instituição atribuída a Teseu foi a divisão de todo o povo em três classes: os eupátridas ou nobres, os geômoros ou agricultores e os demiurgos ou artesãos, — sem considerar a divisão em gens, fratria e tribo — garantida para os nobres a exclusividade do exercício das funções públicas. É verdade que, tirante a exclusividade garantida à nobreza, essa divisão não teve qualquer efeito mais importante, pois não estabelecia nenhuma outra distinção de direitos entre as classes; mas sua importância para nós é a de indicar os novos elementos sociais que, imperceptivelmente, se iam desenvolvendo. Ela demonstra que o costume de herança de cargos públicos por certas famílias na gens já se tinha transformado em um direito quase incontestado; que essas famílias, poderosas por suas riquezas, começaram a formar, fora de suas gens, uma classe privilegiada especial; e que o Estado nascente sancionou essa usurpação. Demonstra que a divisão do trabalho entre camponeses e artesãos se tinha tomado suficientemente forte para disputar a primazia em importância social à antiga divisão em gens e tribos. Por fim, é a proclamação nítida do inconciliável antagonismo entre a sociedade gentílica e o Estado; o primeiro sintoma de formação do Estado consiste na destruição dos laços gentílicos, dividindo os membros de cada gens em privilegiados e não privilegiados, e dividindo estes últimos em duas classes, segundo seus ofícios, e opondo-as uma à outra.

A história política de Atenas no seguinte período, até Solon, é muito imperfeitamente conhecida. As funções do basileu caíram em desuso; arcontes saídos da nobreza passam a dirigir o Estado. A autoridade da aristocracia vai aumentando cada vez mais, até chegar a se tornar insuportável, por volta do ano 600 antes da nossa era. Os principais meios para estrangular a liberdade comum foram o dinheiro e a usura. A nobreza residia principalmente em Atenas e em seus arredores, onde o comércio marítimo, misturado com ocasional pirataria, a enriquecia e concentrava dinheiro em suas mãos. Desde então, o sistema monetário que se desenvolvia penetrou, como um ácido corrosivo, na vida tradicional das antigas comunidades agrícolas, baseadas na economia natural. A constituição das gens é inteiramente incompatível com o sistema monetário: a ruína dos pequenos agricultores da Ática coincide com o relaxamento dos velhos laços da gens que os protegiam. As letras de câmbio e a hipoteca (porque os atenienses já tinham inventado a hipoteca) não respeitaram nem a gens nem a fratria. A velha constituição das gens desconhecia o dinheiro, bem como o crédito e as dívidas fiduciárias. Por isso, o poder do dinheiro nas mãos da nobreza, poder incessantemente aumentado, criou um novo direito consuetudinário de garantia ao credor contra o devedor e de apoio à exploração dos pequenos agricultores pelos possuidores de dinheiro. Todos os distritos rurais da Atica estavam crivados de hipotecas, afixadas em marcas onde se podia ler que as terras onde se achavam a marca estavam hipotecadas por tanto (em dinheiro) a fulano de tal (pessoa). Os campos que não tinham tais marcas é porque geralmente haviam sido vendidos, já que suas hipotecas teriam vencido e não foram pagas, pelo que o nobre a quem estavam hipotecados os adquirira. O camponês podia considerar-se feliz quando este novo proprietário nobre lhe permitia estabelecer-se ali como colono e viver com um sexto do produto do seu trabalho, pagando ao dono os cinco sextos restantes como arrendamento. E mais: quando o produto da venda do lote de terra não bastava para cobrir o montante da dívida hipotecária, e não havia com que cobrir a diferença, o camponês devedor tinha que vender seus filhos nos mercados de escravos estrangeiros para satisfazer por completo o seu credor. A venda dos filhos pelo pai foi, pois, o primeiro fruto do direito paterno e da monogamia. E, se, ainda assim, o vampiro não se saciasse, podia vender como escravo seu próprio devedor. Essa foi a aurora da formosa civilização do povo ateniense.

Semelhante revolução teria sido impossível no passado, quando as condições de existência do povo ainda correspondiam à constituição gentílica; mas agora isso ocorria — e sem que ninguém entendesse como. Voltemos, por um instante, aos iroqueses: entre eles era inconcebível uma situação como essa agora imposta aos atenienses, por assim dizer sem a sua participação e, certamente, contra a sua vontade. Entre os iroqueses, permanecendo o mesmo o modo de produzir as coisas necessárias à existência, nunca se poderiam criar tais conflitos, como que impostos de fora, jamais se poderia engendrar um antagonismo entre ricos e pobres, exploradores e explorados. Os iroqueses estavam muito longe ainda do domínio da natureza, embora dentro dos limites que esta lhes fixava fossem os donos de sua própria produção. À parte as más colheitas em suas hortas, a escassez de peixe em seus lagos e rios e da caça em seus bosques, sabiam qual podia ser o fruto do seu modo de proporcionar os meios de subsistência. Sabiam que, umas vezes abundantemente, outras não, determinados recursos de subsistência deveriam ser obtidos. Mas não seriam obtidas revoluções sociais imprevistas, ruptura dos vínculos gentílicos ou cisão das gens e das tribos em classes socialmente antagônicas. A produção se realizava dentro dos mais estreitos limites, mas os que produziam eram donos daquilo que produziam. Esta era a imensa vantagem da produção bárbara, vantagem que se perdeu com o advento da civilização e que as gerações futuras terão o dever de reconquistar, dando-lhe por base o poderoso domínio da natureza que o homem já conseguiu em nossos dias, e a livre associação hoje tornada possível.

Entre os gregos, as coisas eram diferentes. A aparição da propriedade privada dos rebanhos e dos objetos de luxo trouxe o comércio individual e a transformação dos produtos em mercadorias. Este foi o germe da revolução subsequente. Quando os produtores deixaram de consumir diretamente os seus produtos, desfazendo-se deles mediante comércio, deixaram de ser donos dos mesmos. Já não podiam saber o que ia ser feito dos produtos, nem se algum dia (conforme se tomou possível) estes seriam utilizados contra os produtores, para explorá-los e oprimi-los. Por essa razão, aliás, é que nenhuma sociedade pode ser dona de sua própria produção, pelo menos de um modo duradouro, nem controlar os efeitos sociais de seu processo de produção, a não ser pela extinção da troca entre os indivíduos.

Os atenienses, porém, deviam aprender, e rapidamente, como ao nascer a troca entre os indivíduos e ao se transformarem os produtos em mercadorias, o produto vem a dominar o produtor. Com a produção de mercadorias, surgiu o cultivo individual da terra e, em seguida, a propriedade individual do solo. Mas tarde, veio o dinheiro, a mercadoria universal pela qual todas as demais podiam ser trocadas; mas, quando os homens inventaram o dinheiro, não suspeitavam que estavam criando uma força social nova, um poder universal único, diante do qual se iria inclinar a sociedade inteira. Este novo poder, subitamente aparecido, sem que o desejassem ou sequer compreendessem seus próprios criadores, fez-se sentir aos atenienses com toda a brutalidade da sua juventude.

Que se podia fazer? A antiga constituição gentílica se havia mostrado impotente contra o avanço triunfal do dinheiro; e além disso era absolutamente incapaz de abranger, dentro de suas limitações de concepção, conceitos como dinheiro, credores, devedores, cobrança compulsiva das dívidas. E, no entanto — ali estava o novo poder social; nem os piedosos desejos nem o ardente afã por voltar aos bons tempos passados conseguiram expulsar do mundo o dinheiro ou a usura. Além disso, outras brechas menos importantes foram abertas na constituição gentílica: a mistura dos membros das gens e das fratrias por todo o território ático, particularmente na cidade de Atenas, aumentava de geração em geração, embora naquele tempo um ateniense ainda não pudesse vender fora da gens a sua casa de moradia, embora pudesse vender lotes de terra em geral. Com os progressos da indústria e do comércio, se havia aprofundado mais e mais a divisão do trabalho entre os diferentes setores da produção — a agricultura e os ofícios manuais — e entre estes últimos (os ofícios manuais) uma infinidade de subdivisões, tais como o comércio, a navegação, etc. A população se dividia agora, segundo suas ocupações, em grupos bem definidos, cada um dos quais tinha uma série de novos interesses comuns, para os quais não havia lugar na gens ou na fratria, levando à criação de novas funções que, precisamente, zelassem por eles. Havia crescido muitíssimo o número dos escravos que, naquela época, já excedia sobejamente o dos atenienses livres. A constituição da gens não conhecia, a princípio, escravidão alguma; não sabia, por conseguinte, manter sob o seu jugo uma massa de pessoas não livres. E, por último, o comércio havia atraído a Atenas uma multidão de estrangeiros, que se tinha instalado ali em busca de lucro fácil — e, apesar da tolerância tradicional, esses adventícios não gozavam de qualquer direito ou proteção legal sob o velho regime, pois constituíam para o povo um elemento estranho e um foco de mal-estar.

Em resumo: a constituição gentílica ia chegando ao fim. A sociedade, crescendo a cada dia, ultrapassava o marco da gens; não podia conter ou suprimir nem mesmo os piores males que iam surgindo à sua vista. Enquanto isso, o Estado se desenvolvia sem ser notado. Os novos grupos, formados pela divisão do trabalho (primeiro entre a cidade e o campo, depois entre os diferentes ramos de trabalho nas cidades), haviam criado novos órgãos para a defesa dos seus interesses, e foram instituídos ofícios públicos de todas as espécies. O jovem Estado precisou, então, de uma força própria, que, para um povo de navegadores como os atenienses, teve que ser, em primeiro lugar, uma força naval, usada em pequenas guerras e na proteção dos barcos de comércio. Num tempo incerto, antes de Solon, foram instituídas as naucrarias, pequenas circunscrições territoriais, doze em cada tribo. Cada naucraria devia prover, armar e tripular um barco de guerra e, ainda, dispor de dois cavaleiros. Essa instituição minava a gens em dois pontos: primeiro porque criava uma força pública que não era de modo algum idêntica ao povo em armas; segundo, pela primeira vez, dividia o povo nos negócios públicos, não conforme grupos consanguíneos e sim de acordo com a residência comum. Vamos ver a significação disso.

Como o regime gentílico não podia prestar qualquer auxílio ao povo explorado, este tinha que se voltar mesmo para o Estado nascente, que lhe acabou prestando a desejada ajuda pela constituição de Solon, com o que aproveitou para se fortalecer ainda mais, em detrimento do velho regime. Não vamos falar aqui de como se realizou a reforma de Solon, no ano 594 antes de nossa era. Solon iniciou a série das chamadas revoluções políticas e o fez com um ataque à propriedade. Até hoje, todas as revoluções têm sido contra um tipo de propriedade e em favor de outro; um tipo de propriedade não pode ser protegido sem que se lese outro. Na grande Revolução Francesa, a propriedade feudal foi sacrificada para que se salvasse a propriedade burguesa; na revolução de Solon, a propriedade dos credores sofreu em proveito da dos devedores: as dívidas foram simplesmente declaradas nulas. Ignoramos os pormenores, mas Solon se gaba, em seus poemas, de ter feito arrancar aos campos hipotecados as marcas de dívida e de ter propiciado o repatriamento dos homens que, endividados, foram vendidos como escravos ou fugiram para o estrangeiro. Isso não podia ser feito senão por uma flagrante violação dos direitos de propriedade. E, na realidade, desde a primeira até a última dessas chamadas revoluções políticas, todas elas se fizeram em defesa da propriedade, de um tipo de propriedade, e se realizaram por meio do confisco dos bens (dito de outro modo: do roubo) por outro tipo de propriedade. Tanto é assim que há dois mil e quinhentos anos não se tem podido manter a propriedade privada senão com a violação dos direitos da propriedade.

Tratava-se, porém, na ocasião, de impedir que os atenienses livres pudessem ser escravizados novamente. A princípio, conseguiu-se isso com medidas gerais, por exemplo, proibindo os contratos de empréstimo nos quais o devedor dava por garantia a sua pessoa. Além disso, fixou-se a extensão máxima de terra que um mesmo indivíduo podia possuir, com o propósito de pôr um freio à avidez dos nobres de se apoderarem das terras dos camponeses. Depois, houve mudanças na própria constituição; consideramos como principais as seguintes:

O conselho elevou-se até quatrocentos membros, cem de cada tribo. Até aqui, a tribo seguia sendo, pois, a base do sistema. Mas este foi o único ponto da constituição antiga adotado pelo Estado recém-nascido. No mais, Solon dividiu os cidadãos em quatro classes, de acordo com a sua propriedade territorial e a produção desta. Os rendimentos mínimos fixados para as três primeiras classes foram de quinhentos, trezentos e cento e cinquenta medimnos de grão, respectivamente (um medimno equivale a uns quarenta e um litros); os que possuíam menos terra ou não a tinham de modo algum formavam a quarta classe. Só podiam ocupar os cargos públicos em geral os indivíduos das três primeiras classes, e os cargos mais importantes cabiam apenas aos indivíduos da primeira classe; a quarta classe não tinha senão o direito de usar da palavra e votar nas assembleias. Era nessas assembleias que se elegiam os funcionários todos; nelas, eles tinham de prestar contas de sua gestão, elaboravam-se todas as leis, e a maioria estava em mãos da quarta classe. Os privilégios aristocráticos foram renovados, em parte, sob a forma de privilégios da riqueza, mas o povo obteve o poder supremo. Por outro lado, as quatro classes formaram a base de uma nova organização militar. As duas primeiras forneciam cavalaria, a terceira servia na infantaria de linha, e a quarta como tropa ligeira (sem couraça) ou na frota; é provável que esta classe servisse a soldo.

Introduzia-se agora, portanto, um elemento novo na constituição: a propriedade privada. Os direitos e os deveres dos cidadãos do Estado eram determinados de acordo com o total de terras que possuíam e, na medida em que ia aumentando a influência das classes abastadas, iam sendo abandonadas as antigas corporações consanguíneas. A constituição gentílica sofria outra derrota.

Entretanto, a gradação dos direitos políticos segundo a propriedade não era uma dessas instituições sem as quais o Estado não pode existir. Por maior que seja o papel representado na história das constituições dos Estados por essa gradação, grande número deles, e precisamente os mais desenvolvidos, prescindiram dela. Na própria Atenas, essa instituição só representou um papel transitório; desde Aristides, todas as funções públicos eram acessíveis a qualquer cidadão.

Durante os oitenta anos que se seguiram, a sociedade ateniense tomou gradativamente a direção que se tornou efetiva em seu desenvolvimento nos séculos posteriores. Pusera-se freio à usura dos latifundiários anteriores a Solon, bem como à concentração excessiva da propriedade territorial. O comércio e os ofícios, incluídos os artísticos, que se praticavam cada vez mais largamente, com base no trabalho escravo, chegaram a ser as ocupações principais. As pessoas ilustravam-se mais. Em lugar de explorar os concidadãos de maneira iníqua, como a princípio, o ateniense passou a explorar os escravos e os estrangeiros. Os bens móveis, a riqueza como dinheiro, o número dos escravos e dos navios cresciam sem cessar; mas ao invés de constituírem simples meios de adquirir terras, como no período anterior, cheio de limitações, converteram-se em uma finalidade por si mesma. De um lado, a nobreza antiga no poder encontrou, assim, competidores vitoriosos nas novas classes de ricos industriais e comerciantes; mas, de outro lado, ficou destruída também a última base dos restos da constituição gentílica. A gens, as fratrias e as tribos, cujos membros já andavam dispersos por toda a Atica e viviam completamente misturados, tomaram-se de todo inúteis como corporações políticas. Muitos, inúmeros cidadãos atenienses, não mais pertenciam a qualquer gens; eram imigrantes que haviam conseguido o direito de cidadania, não tendo sido, porém, admitidos em união gentílica alguma. Além disso, cada dia era maior o número de imigrantes estrangeiros que só gozavam do direito de proteção.

Enquanto isso, prosseguia a luta entre os partidos: a nobreza trabalhava para reconquistar os seus velhos privilégios e, por algum tempo, foi bem sucedida — até que a revolução de Clistenes (ano 509 antes de nossa era) definitivamente a abateu, pondo por terra com ela o derradeiro vestígio da constituição gentílica.

Em sua nova constituição, Clistenes ignorou as quatro velhas tribos baseadas nas gens e nas fratrias. Substituiu-as uma organização nova, cuja base, já ensaiada nas naucrárias, era a divisão dos cidadãos de acordo com o local de residência. Dividia-se, então, não mais o povo, mas o território: politicamente, os habitantes se tornaram meros apêndices das regiões.

Toda a Atica ficou dividida em cem municípios (demos). Os cidadãos (demotas) de cada demos elegiam seu chefe — demarca — e seu tesoureiro, assim como trinta juízes dotados de poderes para resolver os assuntos de pouca importância.

Tinham, igualmente, um templo próprio e um deus protetor ou herói, servido por sacerdotes eleitos pelo povo. O poder supremo no demos pertencia à assembleia dos demotas. Conforme adverte Morgan, com muito acerto, este é o protótipo das comunidades urbanas da América que se governam por si mesmas. O Estado nascente teve como ponto de partida, em Atenas, a mesma unidade que distingue o Estado moderno em seu mais alto grau de desenvolvimento.

Dez dessas unidades (demos) formavam uma tribo; mas esta, ao contrário da antiga tribo gentílica (geschlechtsstamm); chamou-se agora tribo local (Ortsstamm). A tribo local não era apenas um corpo político autoadministrado, era também um corpo militar. Elegia seu phylarca ou chefe de tribo, que comandava a cavalaria, um taxiarca para a infantaria e um stratego para o comando de todas as tropas recrutadas no território da tribo. Armava cinco naves de guerra com seus tripulantes e comandantes. E recebia como guardião simbólico um herói da Atica, cujo nome levava. Por último, cabia à tribo, ainda, eleger cinquenta conselheiros para o conselho de Atenas.

Coroava este edifício o Estado ateniense, governado por um conselho de quinhentos representantes eleitos pelas dez tribos e, em última instância, pela assembleia do povo, na qual todo cidadão ateniense tinha direito a participação e voto. Pela administração da justiça em seus diversos setores, zelavam os arcontes e outros funcionários. Em Atenas não havia depositário supremo do poder executivo.

Com essa nova constituição, e pela admissão de um grande número de clientes (Schutzwerwandter), em parte imigrantes e em parte ex-escravos, os órgãos da gens ficaram à margem da gestão dos assuntos políticos, degenerando em associações privadas e em sociedades religiosas. Mas a influência moral, as concepções e ideias tradicionais da velha época gentílica viveram ainda bastante e só foram desaparecendo paulatinamente. Foi o que se viu em outra instituição, posterior, do Estado.

Vimos que um dos traços característicos essenciais do Estado é a existência de uma força pública separada da massa do povo. Atenas não tinha, ainda, senão um exército popular e uma frota equipada diretamente pelo povo, que a protegiam contra os inimigos do exterior e mantinham em obediência os escravos, que já constituíam a maioria da população na época. Para os cidadãos, essa força pública só existia, a princípio, em forma de polícia; esta é tão velha como o Estado e, por isso, os ingênuos franceses do século XVIII não falavam de nações civilizadas, mas de nações policiadas ("nations policées"). Os atenienses instituíram, pois, junto com o seu Estado, uma polícia — um verdadeiro corpo de guardas a pé e a cavalo — formada de arqueiros, ou, como se diz no sul da Alemanha e na Suíça: Landjäger. Contudo, esse corpo de guardas era constituído de escravos. Tal ofício parecia tão indigno para o ateniense livre que ele preferia ser detido por um escravo armado a cumprir ele mesmo aquelas funções tão aviltantes. Era uma manifestação da antiga maneira de sentir das gens. O Estado não podia existir sem a polícia; mas, quando jovem, não conseguia fazer respeitável um ofício tão desprezível aos olhos dos antigos gentílicos — não tinha ainda autoridade moral para isso.

O rápido desenvolvimento da riqueza, do comércio e da indústria prova como o Estado, já então definido em seus traços principais, era adequado à nova condição social dos atenienses. O antagonismo de classe, no qual se fundamentavam agora as instituições sociais e políticas, não era mais o que existira entre os nobres e o povo, e sim o antagonismo entre escravos e homens livres, entre clientes e cidadãos. No seu tempo de maior florescimento, Atenas contava 90.000 cidadãos livres, aí compreendidas as mulheres e as crianças; os escravos de ambos os sexos, no entanto, somavam 365.000 pessoas, e os imigrantes e libertos chegavam a 45.000. Para cada cidadão adulto havia, no mínimo, dezoito escravos e mais de três metecos. A causa da existência de um número tão grande de escravos, o que possibilitava esse número, era o fato de trabalharem muitos escravos juntos, sob as ordens de capatazes, em grandes oficinas manufatureiras. Mas, com o progresso do comércio e da indústria, vieram o acúmulo e a concentração das riquezas em poucas mãos, e com isso o empobrecimento da massa dos cidadãos livres, aos quais só ficava o recurso de escolher entre: competir com o trabalho dos escravos, fazendo trabalho manual (o que era considerado desonroso, baixo, e era pouco proveitoso), ou converter-se em mendigos. Este último caminho foi o escolhido. Como, porém, constituíam a maior parte dos cidadãos, os que assim fizeram acabaram por levar à ruína todo o Estado ateniense. Não foi a democracia que arruinou Atenas, como pretendem os lacaios pedantes dos monarcas no professorado europeu, e sim a escravidão — que proscrevia o trabalho do cidadão livre.

A formação do Estado entre os atenienses é um modelo notavelmente característico da formação do Estado em geral, pois, por um lado, se realiza sem que intervenham violências externas ou internas (a usurpação de Pisístrato não deixou o menor traço de sua curta duração), enquanto faz brotar diretamente da sociedade gentílica uma forma bastante aperfeiçoada de Estado, a república democrática, e, por outro lado, ainda, porque estamos bem informados de suas particularidades mais essenciais.


Inclusão 06/04/2013