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Esta seção final do volume oferece um panorama mais amplo do cenário em que Marx e Engels escreveram seus textos sobre a década de 1860: quais eram as principais potências no tabuleiro político da segunda metade daquele século e como se davam as relações diplomáticas entre os Estados nacionais europeus. No curso destes anos, os iniciadores da tradição marxista tiveram a oportunidade de exercitar suas aptidões como analistas dos assuntos internacionais em publicações europeias e norte-americanas, em particular nas páginas do diário estadunidense New York Daily Tribune, do qual foram correspondentes na Europa não só durante a Guerra Civil Americana, mas já a partir de 1851.
O New York Daily Tribune foi fundado em 1841 e publicado até 1924. Até meados dos anos 50 do século XIX, orientava-se por posições liberais de esquerda tornando-se, a partir de então, órgão do Partido Republicano. Quando foi deflagrada a Guerra Civil norte-americana, o Tribune, coerente com a posição adotada pelo Partido Republicano, perfilou claramente ao lado das forças abolicionistas, apoiando os estados setentrionais em sua luta contra a secessão sulista. Entretanto, em virtude de dificuldades financeiras sofridas no curso da guerra, dispensou todos os seus colaboradores internacionais, interrompendo a correspondência de Marx em 1862.
Os primeiros artigos que Marx e Engels dedicaram às relações diplomáticas entre os Estados europeus no Tribune tiveram, como pano de fundo, o refluxo dos movimentos revolucionários que se haviam disseminado ao longo do continente no período 1847-1849 e o estabelecimento do Segundo Império Francês sob a direção de Luís Bonaparte, no ano de 1851. Foi justamente à atividade desta última personagem que os dois articulistas dirigiram suas primeiras observações em matéria de diplomacia internacional. Contudo, no primeiro ano de colaboração de Marx e Engels para com o Tribune, a emergência nacional das populações da Europa Centro-Oriental e o balanço dos movimentos democrático-radicais no interior do mundo germânico constituíram os temas privilegiados da correspondência jornalística dos dois pensadores revolucionários alemães com o diário estadunidense.
Somente a partir do biênio 1853-1854, as articulações político-diplomáticas entre os principais Estados nacionais europeus situaram-se no centro das preocupações internacionais dos dois companheiros de lutas e letras. Os interesses internacionais tangidos pelo movimento de unificação italiana, o destino da Turquia e as ações da Rússia, tais foram os temas internacionais que mais catalisaram a atenção de Marx e Engels no período.
Não escaparam ao olhar dos dois críticos alemães os objetivos restauracionistas e conservadores que presidiram a fundação do sistema internacional da Convenção de Viena.(1) Interessados como estavam nos destinos do movimento revolucionário europeu, Marx e Engels não pouparam críticas às concepções e aos métodos das cinco potências (Áustria, Prússia, Rússia, Inglaterra e França) que constituíam o núcleo duro deste sistema. Para os dois autores, por detrás da verborragia altissonante dos homens de Estado europeus do período ocultavam-se dois objetivos inconfessáveis: o desejo de supremacia e o repúdio à revolução. Para eles, portanto, tais desígnios não poderiam inspirar outras atitudes internacionais se não aquelas caracterizadas pela hipocrisia e a simulação entre as grandes potências, o desrespeito à soberania nacional e a prática sistemática de chantagens e intimidações no tratamento dispensado por estas aos Estados menores. Como regra geral, vigorava, portanto, a prática da interferência recíproca nos assuntos internos de outros Estados, limitada apenas pelo equilíbrio de poder nas relações entre eles.
Ainda naquele contexto, Marx e Engels já percebiam o aprofundamento das tensões entre as potências europeias com relação aos problemas do Oriente Próximo. Verificava-se então um deslocamento da atenção dos principais Estados euro-ocidentais para as perspectivas geradas pela deterioração do poder do Império Turco, o que significava possibilidades reais de absorção de parcelas valiosas do antigo império dos sultões como aquelas situadas na região dos Balcãs, bem como nas imediações do Estreito de Bósforo e dos Dardanelos. Destarte, uma extensa série de artigos dos dois autores versou sobre a chamada “Questão Oriental”, ponto nodal da futura Guerra da Crimeia.
A forma obstinada com que Marx e Engels se dedicaram a denunciar e combater o czarismo traz à tona o tema da pretensa “russofobia” destes autores. Nos escritos que dedicaram à então chamada “questão oriental”, Marx e Engels não se limitaram a atacar as ações da diplomacia moscovita, como também procuraram desnudar os propósitos conservadores e antirrevolucionários das potências ocidentais. De acordo com seus pontos de vista, a finalidade da política externa das potências euro-ocidentais consistia em enfraquecer a Rússia como rival na disputa pela supremacia nas regiões do Oriente Próximo e dos Balcãs, ao mesmo tempo que procuravam preservar o poderio russo para que o país continuasse a desempenhar seu papel de gendarme dos movimentos democrático-revolucionários nessas mesmas regiões. Segundo a percepção de Marx e Engels, portanto, a atuação do Ocidente frente à “questão oriental” caracterizava-se por desígnios ao mesmo tempo antirrevolucionários e hegemonistas. Interessava aos planos estratégicos anglo-franceses a existência de uma política de contenção recíproca entre o czar e o Sultão capaz de tensionar e paralisar os dois Estados rivais, sem lhes subtrair a capacidade de esmagar pela força os movimentos revolucionários que porventura se insinuassem no âmbito das áreas sob sua possessão.
Enquanto partidários e militantes ativos dos movimentos revolucionários europeus – os quais, é bom lembrar, possuíam, em termos continentais, caráter predominantemente democrático-republicano –, opunham-se à natureza contrarrevolucionária do czarismo. Na condição de analistas das relações internacionais, combatiam os objetivos expansionistas e desestabilizadores da política externa da Rússia Imperial, voltada para a conquista e a subordinação dos povos situados no campo de projeção estratégica desta potência. A multidimensionalidade de tal perspectiva contribuiu para inseri-los no âmago da intelectualidade progressista europeia, ao lado, simultaneamente, de outras personalidades e tendências socialistas, democráticas e liberais. David Riazanov, cujo nome verdadeiro era David Goldenbank, foi talvez o primeiro marxólogo da história. Nascido na Rússia em 1870, ingressou no movimento revolucionário em 1889. Trabalhou na recuperação e organização dos manuscritos inéditos de Marx e Engels, então em poder do SPD, sendo responsável pela sua transferência para Moscou após a revolução russa. Organizou as primeiras edições de textos como a Ideologia Alemã e os Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844, trabalho em que contou com a colaboração de György Lukács. Em seu estudo, “Origens da Hegemonia da Rússia na Europa”,(2) o erudito russo historicizava as razões da oposição irredutível de Marx e Engels ao czarismo. Segundo ele, tal postura havia sido adotada pelos demiurgos da filosofia da práxis no curso de suas experiências à frente da Nova Gazeta Renana, órgão do republicanismo radical alemão nos anos 1848-1849. O fracasso da revolução na Alemanha, bem como em outras partes da Europa, haveria cristalizado no pensamento de Marx e Engels uma dada interpretação acerca do papel contrarrevolucionário que estaria sendo desempenhado, naquele momento, pelas principais potências europeias. Como escrevera na época o jovem Friedrich Engels:
A Prússia, a Inglaterra e a Rússia são as três potências que mais temem a revolução alemã e sua consequência primordial – a unificação alemã: a Prússia, porque deixaria de existir, a Inglaterra, porque o mercado alemão seria subtraído à sua exploração, a Rússia, pelo fato de que a democracia não deixaria de progredir, não somente até o Vístula, como até mesmo às margens do Duna e do Dniepr.(3)
Datam desta época, portanto, não apenas a construção de uma imagem violentamente anticzarista, como também uma convicção acerca da inevitabilidade dos alinhamentos contrarrevolucionários da Inglaterra. Para Marx e Engels, havia duas ordens de fatores que conduziriam o primeiro país capitalista do mundo a perfilar ao lado das autocracias mais reacionárias da Europa. O primeiro deles seria o monopólio do processo de formulação e execução da política externa britânica por parte dos representantes da aristocracia territorial daquele país. O segundo, o fato de que, para Marx e Engels, qualquer triunfo revolucionário na Europa continental, em particular na França e na Alemanha, fortaleceria incomensuravelmente o cartismo no interior da própria Inglaterra. O fracasso da unificação alemã sob a égide de uma república democrática e cada derrota da revolução na França significariam, segundo Marx e Engels, aos olhos da aristocracia e dos círculos conservadores da política britânica, derrotas do próprio cartismo inglês. A corporificação humana desta política seria Lorde Palmerston, Henry John Temple Palmerston. (1784-1865), homem de Estado britânico e uma das mais destacadas personalidades da política inglesa no século XIX.
Marx e Engels conceberam que suas tarefas, primeiro enquanto partidários da unificação da Alemanha sobre bases democráticas, e também como propugnadores da revolução europeia, consistiriam em: a) desmascarar o oportunismo da diplomacia inglesa presidida por Palmerston (que se fazia passar internacionalmente como campeão do constitucionalismo e das liberdades), denunciando seu caráter reacionário e pró-autocrático; b) intensificar o combate político contra os círculos dirigentes prussianos em prol da unificação da Alemanha sob a forma de uma República democrática; e c) denunciar e conclamar ao combate todas as forças democráticas contra o czarismo russo, visto como a quintessência da reação europeia, e inimigo jurado da revolução alemã. É muito significativo observar o fato de que essas avaliações produzidas no curso das malogradas iniciativas revolucionárias alemãs dos anos 40 marcariam profundamente as leituras de Marx e Engels sobre o papel histórico-político desempenhado pelas principais potências europeias nas décadas seguintes. O fato de que o engajamento no processo revolucionário alemão e europeu dos anos 40 tenha constituído de fato a primeira experiência de atuação política concreta de Marx e Engels explica, em grande medida, a longevidade das impressões recolhidas naquele processo. Tal fato determinaria que os temas da revolução alemã e as “lições” retiradas dali marcariam indelevelmente as visões políticas de Marx e Engels até o fim de suas vidas.
Riazanov observa que, apesar do desserviço prestado por Palmerston à fracassada revolução alemã do final dos anos 40, o homem de Estado britânico ainda desfrutava de expressiva simpatia junto aos círculos liberais alemães. Reivindicando a herança de George Canning,(4) que fora uma espécie de contraponto liberal e constitucionalista à linha dura reacionário-conservadora do “Clube de Viena” nos primeiros anos da década de 20 do século XIX, Palmerston era visto por amplos segmentos liberais como um campeão do constitucionalismo. “Desmascarar” Palmerston constituía, acima de tudo, uma forma de solapar sua influência junto a importantes segmentos políticos inseridos no campo da revolução democrática alemã.
Marx e Engels dedicaram à Turquia Otomana um complacente desprezo. Para eles, a entidade turca era pouco mais do que uma relíquia do passado, um vestígio decadente e quase inofensivo de um império outrora agressivo e orgulhoso. No interior de sua sociedade, identificavam uma fusão do despotismo asiático com o anacronismo bizantino. Destituídos de qualquer idílio em relação às formações orientais ou pré-capitalistas, os dois pensadores alemães eram incapazes de compartilhar as simpatias que certos intelectuais do Ocidente dedicavam à Porta. De fato, este antigo Estado muçulmano, que um dia alvoroçara a Europa com seu fôlego anexionista, não passava, em meados do século XIX, de uma potência moribunda. Dividida entre o avassalamento pelo czar e a dependência política e econômica frente às potências ocidentais, a pátria do Sultão de Constantinopla não passava de simples objeto da política internacional. Marginalizada das decisões políticas mundiais e corroída por seus conflitos internos, como na questão das nacionalidades balcânicas, essa formação histórica encontrava-se em adiantado processo de decomposição. Aos círculos dirigentes ocidentais interessava, naturalmente, tirar proveito do esfacelamento do Império Otomano, incorporando territórios e populações até então subordinados à soberania deste, às suas hegemonias. Mas lhes interessava também impedir que o vazio de poder legado pelo refluxo otomano gerasse um quadro de instabilidade generalizada nas imediações do Mar Mediterrâneo. Pior ainda, eles temiam que a absorção das antigas províncias por parte de outras potências – em primeiro lugar a Rússia, mas também, em menor medida, a Áustria e a Prússia – propiciasse condições para um acúmulo “excessivo” de poder por uma destas potências, em detrimento dos próprios desígnios hegemonistas anglo-franceses.
Marx e Engels imprimiram à “Questão Oriental”, um enfoque semelhante na forma, porém distinto no conteúdo. Receavam que o recuo turco deixasse o czarismo de mãos livres para empreender uma escalada anexionista em direção ao centro do continente europeu. Compreendiam também que o fortalecimento da Rússia no leste da Europa reforçaria o poder das forças sociais mais conservadoras naquela região, inviabilizando assim uma solução democrático-revolucionária para o problema da unidade alemã, bem como no que se referia à emergência nacional dos eslavos meridionais. Por outro lado, avaliavam que, do ponto de vista das pretensões hegemonistas e contrarrevolucionárias das potências ocidentais, o alijamento da Turquia da Convenção de Viena constituía um certo embaraço. Particularmente após a ascensão de Luís Bonaparte ao trono francês, certos círculos diplomáticos do Ocidente, sobretudo ingleses e austríacos, teriam passado a temer os resultados das tentativas de tutela da Turquia por Napoleão III. A intimidade das relações entre o imperador dos franceses e o sultão de Constantinopla antes e durante a guerra da Crimeia teria estimulado os gestores da Santa Aliança a buscarem uma incorporação da Turquia ao sistema emanado da Convenção de Viena. Em seu artigo “Excentricidades da política”,(5) Marx, após delinear tal cenário, afirma que uma das consequências da Guerra da Crimeia seria a produção de uma cláusula suplementar que garantiria a inclusão turca nos protocolos de 1815. Tal previsão, por mais sugestivo que fosse seu embasamento, acabaria não se verificando historicamente.
Engels e Marx defenderam em seus artigos no Tribune que as chancelarias ocidentais não cogitavam a possibilidade de restauração do decadente Império Otomano, mas sim que seu gradativo desaparecimento não engendraria o colapso da estabilidade política nas regiões então sob sua autoridade, nem possibilitaria um acréscimo desproporcional de poder por parte da Rússia. Inversamente, cada qual seguindo seus próprios objetivos nacionais, buscava estabelecer a própria influência da forma mais profunda e abrangente possível nas áreas abandonadas pelo recuo do sultão. Neste aspecto, Londres e Paris privilegiavam formas distintas de materializar as mesmas ambições. A potência britânica privilegiaria, embora de maneira não exclusiva, o exercício do papel de mediador das controvérsias russo-turcas, procurando aparecer como um suposto peace maker nos antagonismos entre os dois impérios eurasiáticos. Já a França de Napoleão III, a quem Marx e Engels já haviam estigmatizado asperamente por seu “aventureirismo”, teria optado por uma política mais claramente engajada ao lado da monarquia otomana, desempenhando, destarte, o papel de principal instigador da Guerra Russo-Turca. No artigo: “A imprensa londrina – A política de Napoleão acerca da questão turca”, publicado no Tribune, no dia 19 de abril de 1853,(6) Marx investiu mais uma vez contra as posturas adotadas por Luís Bonaparte frente à questão turca. Para ele, o aventureirismo manifestado pelo governante do Segundo Império Francês diante daquele problema teria por objetivo conquistar o reconhecimento das potências monárquicas europeias para as quais, tanto ele quanto seu finado tio, não passavam de usurpadores de tronos. Ademais, buscava também granjear para a França um lugar de destaque no interior do “concerto das nações”.
Marx, como já foi dito, dedicou vários escritos ao exame da ação do Foreign Office ante o chamado “problema oriental”. Nesses artigos, desenvolveu uma tentativa de caracterização da diplomacia britânica do ponto de vista de seus condicionantes sociais. De acordo com tal definição, a política externa da Grã-Bretanha “burguesa” seria formulada e executada tendo como horizonte os interesses sociais dos círculos aristocráticos daquela sociedade. Concepção que, por sua vez, se sustentava sobre as seguintes ideias:
Esses textos foram publicados sob a forma de brochura independente na Inglaterra, ainda durante a vida de seu autor. Marx baseou suas formulações no exame de uma ampla coleção de documentos diplomáticos, atas do parlamento e material jornalístico. O trabalho que resultou daí possui como uma de suas peculiaridades principais a descrição aguda dos mecanismos de tomada de decisão, sobretudo em matéria de política exterior, utilizados pelo governo britânico no século XIX. Efetuou-se uma apreciação minuciosa dos processos de definição do comportamento da diplomacia britânica frente aos mais importantes conflitos internacionais do período como a luta pela unificação da Itália, a emergência nacional na Polônia e na Hungria, o problema irlandês, as reformas liberais na Grécia, em Portugal e na Espanha. O aspecto mais controvertido destes textos é a fixação de Marx em comprovar a “russofilia” de Palmerston a todo custo.
A Guerra da Crimeia opôs França, Grã-Bretanha e o Império Otomano à Rússia czarista. Mais do que isso, foi resultado de uma aproximação entre a Grã-Bretanha, tida como a mais liberal e constitucionalista das potências do Sistema Internacional do Congresso de Viena, com a França, eterno outsider e suposto fator de desestabilização do mesmo, confrontando a Rússia, guardiã de primeira hora da ordem internacional pós-napoleônica.
O escrito que mais bem expressa as percepções de Marx acerca do significado da Guerra da Crimeia do ponto de vista das relações de poder entre as potências gestoras do sistema internacional da Convenção de Viena é o já citado artigo “Excentricidades da Política”, publicado no Tribune em julho de 1955.(8) Este artigo se baseia na leitura de dois livros: Du Congrès de Vienne (Sobre o Congresso de Viena) do abade Dominique Dufour de Pradt e Denkschrift, betreffend die Gleichgewichts-Lage Europas, beim Zusammentritt des Wiener Kongress verfaßt (Memorial relativo à situação de equilíbrio da Europa, redigido durante as reuniões do Congresso de Viena), do marechal prussiano K. F. Knesebeck. Na primeira obra, o autor defende a ideia, apoiada por Marx, de que o Congresso de Viena havia lançado as bases para o estabelecimento da supremacia russa na Europa. De acordo com aquele autor, a “guerra de independência da Europa contra a França”, ou seja, as Guerras Napoleônicas, foram concluídas com a sujeição da Europa diante da Rússia. Corroborando tal argumento, cuja inspiração antirrevolucionária dispensa qualquer observação, Marx acentua que
A guerra contra a França, que foi ao mesmo tempo uma guerra contra a Revolução, uma guerra anti-jacobina, conduziu a uma transferência da influência do Ocidente para o Oriente, da França para a Rússia. O Congresso de Viena foi o resultado natural da Guerra Anti-jacobina, o Tratado de Viena, produto legitimo do Congresso de Viena e da supremacia russa, a filha natural do Tratado de Viena.(9)
Na sequência, Marx acorreu em defesa de Frederico Guilherme III da Prússia diante das acusações a ele imputadas de haver, através de sua dedicação cega ao soberano russo, solapado as bases do projeto concebido por Castlereagh, Metternich eTalleyrand, no sentido de “erguer barreiras territoriais seguras contra as usurpações russas”.(10) Segundo Marx, não se deveria responsabilizar solitariamente o príncipe prussiano por uma situação (a supremacia russa) inevitavelmente engendrada pelo sistema internacional aprovado no Congresso. Para Marx a supremacia russa na Europa estava de tal forma vinculada às resoluções do Congresso de Viena que mesmo uma guerra contra a Rússia que não se propusesse expressamente a revogar as disposições daquele tratado só faria reforçar a situação vigente. Era sob essa ótica que ele interpretava naquele momento o significado da Guerra da Crimeia, então em curso, como um conflito que, longe de representar a superação do status quo aprovado em 1815, efetuaria apenas um pequeno reparo no mesmo, de modo a permitir a introdução da Turquia no esquema das cinco potências gestoras do sistema internacional.
Do panfleto de Knesebeck, Marx retira citações que engendram uma defesa apaixonada do fortalecimento da Turquia para o exercício do papel de barreira à irrupção de populações incivilizadas e bárbaras através do continente europeu e fator de estabilidade dos limites orientais da Europa contra a anarquia inata dos poloneses e as perturbações provocadas pelos gregos. Marx interpreta esse libelo furibundo como uma simples ratificação dos propósitos inspiradores da Guerra da Crimeia: a extensão e a consolidação do Tratado de Paris de 1815.
Na conclusão do artigo, Marx não perde a oportunidade de estigmatizar Luís Bonaparte, segundo ele, um dos atores centrais da mascarada então em curso, indivíduo que, em seu oportunismo, era capaz de decepcionar as expectativas mais elementares no que concerne à coerência e à fidelidade para com a própria legenda bonapartista:
Durante todo o período da Restauração e da Monarquia de Julho havia uma ilusão disseminada na França de que o napoleonismo (sic) significava a abolição do Tratado de Viena, que havia colocado a Europa sob a tutela da Rússia e a França sob a ‘surveillance publique’(11) da Europa. Agora, o atual imitador do próprio tio, assombrado pela ironia inexorável de sua posição fatal, está provando ao mundo inteiro que o napoleonismo significa guerra, não para emancipar a França do, mas para submeter a Turquia ao Tratado de Viena. Uma guerra no interesse do Tratado de Viena e sob o pretexto de colocar em xeque o poder da Rússia!(12)
Tendo-se estendido formalmente ao longo de três anos (1853-1856), mas produzindo na verdade um número relativamente reduzido de operações militares, a guerra da Crimeia contou ainda, a partir da 1855, com a adesão do reino da Sardenha à coalizão anglo-franco-otomana contra os exércitos do czar. Seu fator de deflagração foi um motivo aparentemente inusitado: as disputas entre as autoridades das igrejas Católica Romana e Grega Ortodoxa pelo controle dos lugares sagrados da Palestina. Tal querela externava inquestionavelmente o choque entre as aspirações expansionistas russas em relação aos territórios subordinados à Porta nas regiões balcânica e mediterrânea e o temor ocidental frente a essa ameaça. Papel cardeal foi desempenhado pela França do Segundo Império Napoleônico, ansiosa por neutralizar as disposições antifrancesas do Congresso de Viena e enxergando no Império Russo o maior obstáculo a tal reversão. Ademais, segundo Marx e Engels, o papel de incendiário da guerra representado pelo imperador dos franceses respondia a necessidades múltiplas: a) granjear reconhecimento de seu poder imperial, tido como ilegítimo e usurpador pelas demais monarquias europeias; b) desviar a atenção do povo francês dos problemas internos através do empreendimento de aventuras no exterior; c) aproveitar a excepcionalidade da guerra para promover um saque contra o tesouro francês e d) conquistar junto às nacionalidades oprimidas da Europa o prestígio de “libertador”, um dia reivindicado por seu tio. Uma tradução mais contemporânea das ambições de Luís Bonaparte poderia caracterizá-las – abstraindo suas implicações mistificadoras e manipulatórias em relação ao próprio povo francês e às nacionalidades oprimidas da Europa – como um esforço pela conquista de uma posição de protagonista da ordem internacional de então, revertendo a situação de alijamento das decisões e consequente marginalização no interior do sistema internacional, relegado à França pelos vencedores de Napoleão.
A neutralidade austro-prussiana constituía para Marx e Engels uma manifestação de covardia e reafirmação do caráter antirrevolucionário das classes dirigentes destes dois Estados alemães. Para os dois pensadores socialistas germânicos, a causa principal do não engajamento tanto da Prússia quanto da Áustria na guerra fora o temor de seus governantes de que a luta contra a Rússia se convertesse em uma guerra revolucionária dos povos europeus contra as autocracias do continente. Essa interpretação considerava, sobretudo, as forças revolucionárias que um colapso do império ortodoxo liberaria nas áreas ocupadas pelas nacionalidades “revolucionárias”, então carentes de um Estado nacional unificado na Europa, em grande parte, segundo eles, devido à atividade da diplomacia e das armas russas: Alemanha, Polônia, Hungria e Itália.
Seguindo o mesmo balizamento teórico, os correspondentes europeus do Tribune consideravam que a neutralização das influências reacionárias do czarismo no continente europeu, ao debilitar as forças sociais conservadoras que em grande medida se apoiavam em seu poderio militar, estimularia a ação das forças revolucionárias, inclusive socialistas, em países como a Inglaterra e a França. Decorreria daí, portanto, a vigência da atitude, em última análise, contemporizadora das classes dirigentes destes países em relação ao Império czarista, mesmo diante de seus mais ousados empreendimentos. Esta postura generalizada de contemporização conheceria manifestações radicalizadas na ação de círculos políticos e elementos acerbamente pró-russos, como Lorde Palmerston, grande aliado do czarismo na Europa Ocidental, segundo a inclemente e não poucas vezes exagerada acusação de Marx. Sendo assim, a política das potências ocidentais com relação à Rússia deveria se orientar, na interpretação de Marx e Engels, por um duplo enfoque: a) no que se referia à vigência das preocupações sociais de suas classes dirigentes, atemorizadas diante da possibilidade de revoluções políticas e/ou sociais na Europa, tratava-se de preservar, a todo custo, a existência da autocracia czarista para que esta pudesse desempenhar, sempre que preciso, seu papel de polícia contrarrevolucionária no continente e b) do ponto de vista estrito da raison d’État, tratava-se, no entanto, de conter o avanço russo nas áreas mediterrânea e caucasiana, impossibilitando o acúmulo pelo Estado russo de um excesso de poder que instabilizasse o equilíbrio de forças do sistema internacional em seu benefício e em detrimento das potências ocidentais.
Peculiar, posto combinar elementos que se plasmariam posteriormente em tradições de pensamento e ação frequentemente dissonantes. este posicionamento era caracterizado por aquilo que tento definir como uma perspectiva realista revolucionária. Realista porque interpretava a evolução das relações internacionais, observando as correlações de força entre os Estados, os interesses nacionais das potências e suas projeções estratégicas. Revolucionária porque orientada pela ideia de que as transformações necessárias à geração de um sistema de relações internacionais mais justas e democráticas, adequadas ao pleno desenvolvimento dos povos, seriam produzidas pela ação das forças revolucionárias. Que tipo de revoluções? Não restam dúvidas de que para a Inglaterra e a França, Marx e Engels apostavam, senão em curto, pelo menos em médio prazo, na ocorrência de revoluções proletárias orientadas para o socialismo e o comunismo. Mas no que se referia aos Estados alemães, nacionalidades eslavas euro-orientais e aos impérios russo e otomano, as expectativas de Marx e Engels se concentravam na criação de repúblicas democráticas em substituição às autocráticas monarquias então existentes. Porém, também não são estranhas a tais considerações, apreciações “antediluvianas” quanto a uma retomada bem próxima dos movimentos revolucionários e uma forte dose de “germanocentrismo”, herança de suas iniciações políticas no seio das sublevações revolucionárias que haviam sacudido o mundo de fala alemã na década anterior.
Nos artigos que dedicaram ao desenvolvimento da política externa francesa no contexto da Guerra da Crimeia, Marx e Engels não se mostraram muito indulgentes. Trata-se também aqui de todo um vasto repertório de denúncias e acusações contra o governo encabeçado por Louis Bonaparte.(13) Neles, Marx descarregou suas baterias contra o que considerava ser a degenerescência do exército francês, estimulada pelo caráter supostamente aventureiro, demagógico e corrupto de Napoleão III. Situação exemplificada pela descrição da trajetória de St. Arnaud, Marechal do Exército Francês e Ministro da Guerra, quem, segundo o articulista, construíra sua reputação militar servindo na Legião Estrangeira na Argélia, ao lado de bandoleiros, mercenários e desertores de vários países, “o rebotalho dos exércitos europeus”. O próprio imperador francês, caracterizado como um indivíduo ofuscado por ilusões operísticas acerca de sua própria grandeza, era estigmatizado como a caricatura oficial de um passado glorioso. A virulência antibonapartista de Marx e Engels não pouparia também os líderes políticos liberais e democratas, franceses e estrangeiros, que dedicavam confiança aos protestos de Luís Bonaparte em defesa da liberdade das nacionalidades oprimidas da Europa. Em consequência, com a mesma falta de cerimônia com que impingiram a outros militantes da esquerda democrática e revolucionária europeia o estigma de colaboradores da autocracia czarista, Marx e Engels imputavam a personalidades como Barbès, Kosuth e os emigrados poloneses, a acusação de contribuírem para a legitimação de Luís Napoleão.
As políticas interna e externa dos dois maiores Estados alemães da época, a Áustria e a Prússia, também não escaparam às atenções dos correspondentes do Tribune.(14) Através de seu sistema comum de análise da processualidade histórica, consideravam que, após a deflagração da Guerra da Crimeia, a Prússia, desejosa de enfraquecer a influência russa em sua fronteira euro-oriental e assegurar supremacia plena sobre a maior parte do território polonês compartilhado por ambos, poderia declarar guerra à Rússia. Ao se engajar em um confronto com o principal bastião das autocracias europeias, os dirigentes prussianos despertariam as energias democráticas e revolucionárias das populações alemãs, adormecidas desde o malogro revolucionário da década anterior, desencadeando um movimento que poderia conduzir à tão sonhada solução republicano-democrática para o problema da unificação nacional alemã. Ao assim fazê-lo, a Prússia dos aristocratas junkers estaria desempenhando o papel de “instrumento inconsciente da história”, segundo a concepção histórico-dialética que Marx e Engels herdaram e reelaboraram a partir de Hegel.
Já no que concerne à Áustria, as perspectivas não eram tão otimistas. No artigo intitulado “A bancarrota austríaca”,(15) Marx avaliava que a debilitação econômica por que passava o Estado dos Habsburgo naquele momento, combinada com a emergência nacional na Galícia, na Hungria e na Itália, inviabilizava a participação austríaca em qualquer aventura além fronteiras. Ademais, o crescimento da preocupação dos círculos dirigentes desse Estado germânico meridional com a preservação de seu império empurraria sua diplomacia em direção às posições mais conservadoras possíveis. Por essa razão, ainda que temessem a irradiação do poderio russo através da península balcânica, não desejavam qualquer enfraquecimento mais sério do czarismo, segundo eles, porque nesse caso os Habsburgo não teriam um amigo a quem recorrer por ocasião da próxima ofensiva revolucionária. Por outro lado, segundo a expectativa de Marx e Engels sobre uma retomada eminente das ações revolucionárias no continente, o ingresso da Áustria na guerra poderia significar um deslocamento das operações militares para o coração da Europa, gerando uma escalada de insurgência revolucionária por parte dos povos oprimidos da região. Segundo eles, as populações mais imediatamente interessadas na questão das complicações orientais seriam, além dos alemães, os húngaros e os italianos, apreciação que acentua, não só o germanocentrismo revolucionário dos fundadores da filosofia da práxis, como seu persistente apelo à concepção acerca do caráter potencialmente revolucionário das “nacionalidades históricas”.
A ideia de que aos círculos dirigentes das potências do ocidente não interessava o colapso da Rússia aparece reiterada em uma série de artigos publicados no biênio 1855-1856, quando se desenrolou a última e decisiva fase da Guerra da Crimeia. Marx e Engels se empenharam em demonstrar que as operações militares anglo-francesas se encontravam condicionadas pelas aspirações contrarrevolucionárias de suas cúpulas governamentais. De acordo com tais desígnios, os combates contra as forças do czar deveriam ocorrer em áreas periféricas, afastadas dos principais centros da vida política e social russa, neutralizando com isso qualquer perspectiva de que, uma vez conduzida a estas regiões, a guerra pudesse se converter em uma sublevação popular. A partir desse ponto de vista, reinterpretavam as diretivas francesas e britânicas voltadas para o desenvolvimento das operações militares em níveis estritamente locais. Segundo os governos e os comandos militares destes países, tratava-se de limitar a extensão dos combates de modo a restringir o número de perdas, mas, para Marx e Engels, o objetivo almejado era evitar que a “guerra de contenção” enfraquecesse excessivamente aquele baluarte da Santa Aliança e evitasse a subversão de suas estruturas internas. Em um artigo assinado por eles, inicialmente publicado no periódico alemão Neue Oder Zeitung(16) e mais tarde reproduzido parcialmente no Tribune, os dois autores acentuavam suas opiniões sobre o caráter paradoxal e inusitado da Guerra da Crimeia em seu terceiro ano de deflagração.
A guerra da coalizão anglo-francesa contra a Rússia irá, indubitavelmente, figurar nos anais da história militar como ‘a guerra incompreensível’. O máximo de conversações combinado com o mínimo de ações, extensas preparações e significados insignificantes, uma precaução que beira a timidez seguida de atos temerários gerados pela ignorância, generais mais do que medíocres à frente de tropas mais do que corajosas, revezes quase deliberados na sequência de vitórias obtidas em meio a equívocos, exércitos inicialmente arruinados pela negligência posteriormente salvos pelo mais estranho dos acidentes – um grande conjunto de contradições e inconsistências.(17)
A tibieza das potências ocidentais sugerida neste texto haveria de se transferir, na futura avaliação dos dois autores, dos campos de batalha para as mesas de negociações ao término da contenda. E, com efeito, nas reuniões preparatórias da assinatura do Tratado de Paris, que pôs termo ao conflito, a diplomacia russa teria habilmente se aproveitado das indecisões e divergências dos dois grandes aliados ocidentais para assegurar termos que lhe fossem mais favoráveis. O Tratado de Paris foi firmado em 30 de março de 1856, pelos representantes dos Estados que se confrontaram na Guerra da Crimeia de 1853-1856 (Grã-Bretanha, França, Rússia, Sardenha e Turquia). Sua assinatura é considerada um ponto de inflexão nas relações internacionais do século XIX, na medida em que encerrava de fato o sistema de alianças estabelecido pelo Congresso de Viena de 1815. Polarizado pelas figuras de Bismarck, Cavour e Gorchakov, o encontro que originou o Tratado garantia a independência formal e a integridade territorial do Império Otomano, obrigava a Rússia a devolver a cidadela de Kars aos turcos, cedia parte da Bessarábia à Turquia, instituía a região do Mar Negro como zona de neutralidade. A Rússia, em compensação, confirmou sua condição de protetora dos principados do Danúbio, formalmente submetidos à tutela das grandes potências, e de guardiã de todos os cristãos residentes no interior do Império Otomano; além disso, assegurou a livre navegação através do Danúbio.
O período imediatamente posterior ao Tratado de Paris registra um refluxo na produção de Marx e Engels, então dedicada aos temas da política e da diplomacia internacionais nas páginas do Tribune. Pode-se inferir que o mencionado Tratado reestabilizara a ordem internacional europeia, fundada em um determinado alinhamento de forças. Por outro lado, o próprio desenrolar da guerra da Crimeia provocou, inequivocamente, uma certa exaustão dos principais protagonistas da política europeia, naquilo que se referia aos movimentos político-diplomáticos de âmbito continental. Mesmo a Áustria e a Prússia, ausentes daquele conflito, provavelmente não deixaram de perceber nele uma oportunidade de demonstração do poderio militar de seus parceiros no “concerto das nações”, o que pode lhes haver sugerido cautela e concentração, visando ao acúmulo de forças para os enfrentamentos que inevitavelmente estariam por vir.
Porém, afora tais contingências, uma associação de processos políticos e diplomáticos interfeririam de forma determinante na moldura das relações de poder entre as grandes potências europeias no imediato pós-guerra da Crimeia.
Quanto ao comportamento das demais grandes potências europeias no período, podemos constatar a ocorrência de algumas inflexões muito significativas no que concerne aos papéis até então desempenhados, ou pelo menos reivindicados, do ponto de vista da gestão da ordem internacional em vigor. A Áustria, um dos principais bastiões continentais do Sistema Internacional da Convenção de Viena, experimentaria um processo acentuado de isolamento político e diminuição de influência. Tal movimento se iniciara ainda na década de 1830, quando o Império Austríaco, fiel aos inegociáveis princípios do “legitimismo” que orientavam sua atividade internacional, aliara-se solitariamente à Turquia contra os nacionalistas gregos; quando, pela primeira vez desde a formação da Santa Aliança, posicionara-se em campo distinto de suas consortes Rússia e Inglaterra, que, a propósito, perfilaram no mesmo campo que a “perigosa” França. Mais tarde, veria sua estabilidade interna significativamente abalada em consequência das insurreições revolucionárias do período da “Primavera dos Povos”, quando teve seu império salvo de um eminente desmembramento (revolução húngara) pelas tropas do czar. Porém, o pior momento de sua diplomacia ocorrera por ocasião da Guerra da Crimeia, quando a Áustria conseguiu desagradar as potências ocidentais com sua recusa de combater a Rússia e, mais tarde, desagradar a Rússia com as pressões para que esta aceitasse os termos do Tratado de Paris. Ademais, as relações entre os Habsburgos austríacos e os Romanovs russos tendiam a deteriorar-se gradualmente, na medida em que evidenciavam suas divergências quanto à situação dos principados do Danúbio e das províncias balcânicas, entregues à proteção russa pelo Tratado de Paris, mas cobiçados com cerimônia cada vez menor pelos germanos do sul. O resultado geral do enfraquecimento da Áustria como potência, de sua perda de influência e isolamento político internacionais foi a sua conversão de um dos pilares fundamentais do sistema em um ator insignificante.
A Rússia emergiu da guerra da Crimeia dominada por sentimentos de frustração, humilhação e ressentimento. Frustração por não haver consumado seu objetivo de desferir um golpe de misericórdia na incômoda entidade otomana, que em sua letargia pós-imperial obstruía a marcha russa em direção ao Mar Negro e ao Mediterrâneo. Humilhação por ter sua secular trajetória de conquistas militares interrompida pela coalizão anglo-francesa, a qual lhe impôs o respeito à integridade turca e a evacuação dos principados do Danúbio (Moldávia e Valáquia), além de lhe vetar a construção de sua tão sonhada esquadra no Mar Negro, desguarnecendo militarmente suas fronteiras meridionais. Porém, poucos sentimentos devem ter sido mais amargos às cúpulas russas do que o ressentimento do czar Nicolau I em relação ao príncipe Karl Philipp von Schwarzenberg, que retribuiu ao apoio decisivo prestado pelos russos no esmagamento da sublevação dos revolucionários húngaros liderados por Louis Kossuth em 1848 com o abandono do velho aliado no momento do enfrentamento com as potências ocidentais e, pior ainda, atuando como agente ocidental no convencimento dos estadistas russos à aceitação dos termos do Tratado de Paris. O resultado final do processo, no que se refere ao comportamento da Rússia, foi a transformação do principal bastião da ordem conservadora europeia em “revisionista” do sistema internacional.
A França de Napoleão III aparece neste momento como a potência mais ativa do sistema internacional. Como Marx e Engels observaram diversas vezes, a necessidade de conquistar legitimidade no âmbito de uma família de potências aristocráticas, a tentativa de reeditar a trajetória internacional gloriosa de Napoleão I e o esforço de desviar a opinião pública francesa dos problemas internos vividos pelo país imprimiam ao Segundo Império Francês a marca do “militantismo” no que se referia às questões da política e da diplomacia europeias. A participação na coalizão vencedora durante a guerra da Crimeia conferiria ao império bonapartista apreciáveis dividendos diplomáticos. O mais elementar de todos: era a primeira vez, desde Waterloo, que o Estado Francês se envolvia diretamente em uma conflagração bélica continental, triunfando militar e diplomaticamente sobre a Rússia, importante inimigo do passado, cuja vitória sobre as forças francesas em 1812 iniciara o processo de desagregação do império de Napoleão I. Em segundo lugar, o fato de que nessa guerra a França teve como sua aliada a Inglaterra, arqui-inimiga de antanho, primeira potência mundial e a única capaz de assegurar o isolamento econômico francês no cenário internacional. Em terceiro lugar, o maior de todos os triunfos franceses: o país, que fora marginalizado quando da Convenção de Viena, chancelava então um novo pacto internacional que desmontava as bases do sistema anterior, dividia seus antigos adversários e relegava quase todos eles (Áustria, Rússia e Prússia) a uma inequívoca marginalização política.
Ora, se esses sucessos atualizavam a mística do sucessor de Napoleão Bonaparte, devolvendo à França a posição de gestora dos negócios europeus, a qual um dia lhe fora tomada, por outro lado não fazia senão estimular Napoleão III a novas arremetidas internacionais. Afinal, a França se autoproclamava um império e o modo de vida dos impérios é a conquista territorial. Frequentador de círculos carbonários em seu exílio italiano, subproduto político da emersão liberal de 1848 na França, Luís Napoleão exprimiria suas ambições político-territoriais na Europa nos termos de um apoio à afirmação nacional das nacionalidades oprimidas naquele continente. Reivindicação essa que, se já o conduzira antes a disputar a proteção das populações cristãs do império otomano com o czarismo russo, o conduziria agora a afrontar o imperador Habsburgo no apoio à causa nacional italiana.
Marx, que analisara com acuidade singular as circunstâncias que presidiram a inauguração do chamado II Império Francês, jamais conseguiu divisar qualquer traço positivo na personalidade política de Luís Bonaparte.(18) Para Marx, por detrás das declarações de Napoleão III em defesa dos direitos das nacionalidades oprimidas da Europa, ocultava-se pura e simplesmente o desígnio de obter aquisições territoriais. Em alguns artigos publicados no período 1856-1858, Marx reiterou as qualificações estigmatizadoras acerca de Luís Bonaparte e seu governo, inicialmente delineadas na brochura de 52.
Pensadores dialéticos, Engels e Marx compreendiam as implicações que o movimento particular dos Estados, impulsionadas por “interesses nacionais” não expressamente vinculadas às necessidades do capital e às aspirações econômicas das classes dirigentes europeias, poderiam produzir para o desenvolvimento histórico revolucionário do continente. Ademais, vivendo no contexto político-cultural anglo-saxônico e tendo como interlocutoras privilegiadas as opiniões públicas inglesa e norte-americana, os dois autores não poderiam deixar de moldar suas análises internacionais segundo temas e, sob certo aspecto, valores característicos das tradições anglo-americanas em matéria de política e diplomacia internacionais. Isto, porém, não significa que a compreensão dos fenômenos internacionais em termos de uma “política de poder” protagonizada pelos Estados nacionais – e não pelas classes sociais –, impulsionados por seus interesses “estratégicos”, desenvolvida pelos colaboradores europeus do Tribune tenha significado apenas uma adequação oportunista aos padrões de análise dominantes. A especificidade da visão de Marx e Engels consiste justamente em sua capacidade singular de articular essas duas dimensões distintas, porém interligadas e situadas na base do desenvolvimento das relações internacionais de seu tempo: a esfera dos interesses sociais conflitantes, motor da luta de classes e catalisador de possíveis revoluções político-sociais no interior dos Estados e no marco europeu, e a esfera da ação dos Estados nacionais, determinada por interesses estratégicos de poder e geradora das configurações dos sistemas internacionais.
Notas:
(1) Ordenamento político internacional pactuado na capital austríaca ao final das guerras napoleônicas do início do século XIX. Teve como seus principais protagonistas a Inglaterra, o Império Austríaco, a Prússia e a Rússia, sendo a França incorporada após a restauração monárquica. Seu principal objetivo foi constituir um sistema de segurança coletiva que preservasse os regimes monárquicos e absolutistas da Europa de então da ameaça revolucionária. (retornar ao texto)
(2) D. Riazanov, “Origine de l’Hégemonie de la Russie en Europe”. Estudo introdutório à coletânea de escritos de Marx e Engels”. La Russie. Paris, Union Générale D’Éditions, 1974, pp. 15-58. (retornar ao texto)
(3) Friedrich Engels, “O Armistício Prusso-dinamarquês”. Nova Gazeta Renana, 9 de setembro de 1848, apud Marx e Engels, La Russie, op. cit. 17. É curiosa nesta citação a ausência da Áustria, pedra angular do sistema internacional de Viena e apontada por Marx e Engels em outras passagens como a mais reacionária das monarquias da Europa Centro-Oriental. (retornar ao texto)
(4) George Canning (1779-1827) foi um destacado político e estadista Whig na Inglaterra da primeira metade do século XIX. Substituiu Castlereagh, – político profundamente conservador e o principal responsável pela estruturação da Quádrupla Aliança (Inglaterra, Áustria, Prússia e Rússia) que derrotou Napoleão em 1814 – à frente da Chancelaria Britânica. Inverteu a pauta da política externa inglesa, substituindo a ênfase nos temas “continentais” por um enfoque mais insular, o que resgatava a centralidade das preocupações britânicas com seu comércio marítimo em detrimento do “policiamento da Europa” contra possíveis perturbações. (retornar ao texto)
(5) Karl Marx, “Eccentricities of politics”. New York Daily Tribune, no 4437, 10 de julho de 1855, Marx e Engels, Collected Works, op. cit. vol. 14, pp. 283-286. Publicado como artigo principal. (retornar ao texto)
(6) Karl Marx, “The London Press – Policy of Napoleon on the Turkish Question”. New York Daily Tribune, no 3.746 de 19/04/1853, publicado como artigo principal. Collected Works, Vol. 12, op. cit. pp. 18-20. (retornar ao texto)
(7) Estes artigos podem ser consultados em sua versão original nas Collected Works, vol. 12 (1853-1854) op. cit. pp. 341-406, ou na tradução espanhola, antecedida por uma apresentação de Robert Payne, El desconocido Carlos Marx, Barcelona, Editorial Bruguera, 1975, pp. 147-231. (retornar ao texto)
(8) Karl Marx, “Eccentricities of Politics”. New York Daily Tribune, no 283, 21 de junho de 1955 (publicado como artigo principal), in: CollectedWorks, op. cit. vol. 14, pp 283-286. (retornar ao texto)
(9) Idem, p. 283. (retornar ao texto)
(10) Idem, p. 283. (retornar ao texto)
(11) Em francês, no original, vigilância pública. (retornar ao texto)
(12) Idem, p. 286. (retornar ao texto)
(13) K. Marx. “Reorganisation of the British War Administration. – The Austrian Summons. – Britain’s Economic Situation. – St. Arnaud”. New York Daily Tribune, no 4.144, 24 de junho de 1854. Reproduzido em Collected Works, vol. 13, pp. 227-233. (retornar ao texto)
(14) Karl Marx, “The Treaty Between Austria and Prussia – Parliamentary debates of May 29” (O Tratado entre a Áustria e a Prússia – Debates Parlamentares do dia 29 de maio). New-York DailyTribune, no 4.103, 12 de junho de 1854. Reproduzido em Collected Works, vol. 13, pp. 215-219. (retornar ao texto)
(15) New-York Daily Tribune, no 4.033, de 22 de março de 1854. Collected Works, vol. 13, pp. 43-49. (retornar ao texto)
(16) Jornal publicado pelos círculos democráticos radicais da Alemanha. Um dos primeiros a surgir no ambiente de reação política que se seguiu ao fracasso das revoluções germânicas dos anos 1847-1848. Marx colaborou com ele entre dezembro de 1854 e novembro de 1855; durante o período, parcela significativa dos artigos produzidos por Marx e Engels foram publicados, simultânea ou alternadamente no Tribune e no Neue Oder Zeitung. (retornar ao texto)
(17) Karl Marx e Friedrich Engels, “The Anglo-French War Against Russia”, Neue Oder Zeitung, nos 385 e 387, 20 e 21 de agosto de 1855, reproduzido de forma abreviada como editorial no New-York Daily Tribune, no 4.483 de 1o de setembro de 1855. Collected Works, vol. 14, pp. 484-488. (retornar ao texto)
(18) Os motivos originais da repulsa que Marx dedicou a este estadista francês podem ser apreciados in loco na obra The Eighteen Brumaire of Louis Bonaparte de 1852. Collected Works, op. cit. vol. 11, pp. 99-197. (retornar ao texto)
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