O Materialismo Histórico em 14 Lições

L. A.Tckeskiss


Lição V: O Materialismo Francês e a Filosofia Crítica de Kant


Caracterizamos a diferença entre o idealismo e o materialismo em sua formação e desenvolvimento histórico. Apontamos seus defeitos e virtudes; vimos aonde ambos podiam levar e onde chegaram. Agora deter-nos-emos no desenvolvimento do materialismo e idealismo nos últimos tempos: — no materialismo do século XVIII e no idealismo da filosofia critica de Kant.

Os materialistas do século XVIII, que já estavam mais ligados à ciência progressista e já tinham atrás de si mais experiências que os materialistas das gerações passadas, já se detinham mais no estudo das leis da natureza, e a idéia de que tudo obedece a leis começou a dominar na filosofia materialista. As ciências naturais já tinham então alcançado um certo grau no seu desenvolvimento, e o materialismo já tinha alguma coisa em que se basear. Uma vez determinado que todos os fenômenos naturais se realizam obedecendo a certas leis, o materialismo chegou à conclusão de que o homem e suas atividades devem também ser o resultado de outras tantas leis naturais. Partindo desse principio, o materialismo francês do século XVIII criticou asperamente a concepção teológica do mundo, e provocou deste modo uma seria revolução nas idéias das camadas mais intelectuais da sociedade; tornou-se a filosofia da nova classe, — a burguesia, que lutava para arrancar o poder das mãos da classe feudal, sendo esta apoiada pelo clero, ambas as quais perturbavam o desenvolvimento da ciência.

Firmada assim a idéia, ou principio do determinismo (obediência as leis), o materialismo procurou estabelecer as mesmas bases para a vida social, à semelhança do que observará nos fenômenos naturais.

Para materialistas como Helvetius e Diderot, por exemplo, a idéia de necessidade histórica já era evidente. Para eles devia ser formulada uma outra questão: — seria possível modificar as formas sociais existentes? Poderemos encontrar os meios de melhorar a vida?

O materialismo que, como vimos, chegou ao ponto de vista do determinismo, era no entanto ainda um materialismo naturista. Os materialistas franceses tomando a natureza e seus fenômenos como necessidade, entendiam que as leis, segundo as quais se operam os fenômenos, devem ser eternas, como a própria natureza. Do mesmo modo, no que concerne à sociedade humana, entendiam que a vida deve aí realizar-se segundo leis internas e imutáveis, por suporem imutáveis e eternas as relações entre os fenômenos aí observados. Quais eram, porem, essas leis, é que não sabiam.

A história nos mostra que na vida social sempre se operam transformações. Mas onde está a causa dessas transformações e mudanças? E ainda mais: as formas existentes da vida social, não são por certo as que seriam de desejar; a sociedade não pode sem deve ficar assim como está; deve ser modificada! No entanto, foi a questão formulada deste modo: — como se pode e se deve modificá-la? Para isso foram dadas duas soluções: a primeira, diz: — sendo o homem de natureza boa e aspirando sempre o bem, o desvio do bem caminho, não é senão o resultado de ter-se o homem afastado de seu estado natural (J.J. Rousseau), tornando-se “civilizado”. Deve-se, portanto, fazer voltar o homem aquele estado natural, para se eliminar essa má organização. A segunda, afirma: a sociedade humana evolui; portanto, este estado de coisas pode ser mudado. Mas como? Pela educação. A sociedade humana é composta de indivíduos e, querendo, pode-se mudar a sociedade toda. Deve-se, para isso, educar os indivíduos. O materialismo colocou-se, em tais condições, num ponto de vista puramente utopista. Ignorando as leis do desenvolvimento da sociedade, teve que se conservar nessa atitude. O historiador da Restauração fez um certo progresso nesse sentido. Tendo atrás de si a tempestuosa Revolução Francesa, chegou á questão da atuação das condições externas, a questão do meio, da qual depende a atividade humana. Mas estando no ponto de vista de que as variações do meio dependem da natureza humana ou das opiniões humanas, recaiu o historiador num circulo vicioso. Chegando assim á questão do meio, não puderam, todavia explicar as variações que se operam na sociedade.

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Lancemos agora um rápido golpe de vista sobre a filosofia dos últimos tempos e passemos em seguida a Kant. O idealismo teve na historia da filosofia muitas formas: os filósofos mais importantes até o século XIX, como Decartes, Spinoza e Leibnitz são considerados idealistas; o seu idealismo, porem, já está de certa forma libertado da teologia. Na realidade, os três colaboraram muito na fundação da ciência moderna. Decartes foi o primeiro, que na moderna filosofia apontou o determinismo matematicamente exato na natureza. O panteísmo de Spinoza está muito próximo do materialismo cientifico da nossa época. A natureza e Deus são para ele sinônimos; o pensamento e a matéria são para ele atributos da mesma substancia — Deus ou a natureza. No campo das matemáticas e da ciência do espírito humano (psicologia), Leibnitz deu um grande passo para a frente.

Numa direção bem diversa seguiram os filósofos ingleses do século XVII e XVIII. Eles tomaram por base do nosso saber a experiência. A experiência é o resultado dos nossos sentidos; estes são por conseguinte a base do nosso saber; deste modo chegaram eles ao sensualismo, que está naturalmente mais próximo ao materialismo. Mas, por outro lado, sendo os sentidos a única base do nosso saber, conhecemos então, somente aquilo que os nossos sentidos nos fornecem. Assim chegamos ao fenomenalismo (isto é, sabemos ou conhecemos somente os fenômenos, aquilo que apreendemos com os nossos sentidos, mas não aquilo que é em si e por si). Mas aí nasce a questão da relação entre a apreensão das coisas, e as próprias coisas. Forma-se o terreno para o ceptismo (duvidar do nosso próprio conhecimento). Assim a filosofia inglesa no seu desenvolvimento, chegou ao ceptismo de Hume, isto é, á duvida na possibilidade e na certeza da ciência.

Aqui é que começa a filosofia critica de Kant. De um lado, diz Kant, existe a natureza objetiva (externa), e, de outro, existe o pensamento humano (o espírito), que investiga a natureza. Pergunta ele: qual a relação existente entre a natureza e aquele que a estuda; — como se manifesta essa relação? Como se realiza a relação entre o “ser” da natureza e o “consciente”: — o saber, o conhecer? E ele responde, — a natureza nós a conhecemos: 1º, graças aos nossos sentidos, com os quais percebemos os fenômenos, as coisas e os objetos, os sentidos, no entanto, só nos fornecem matéria prima; 2º, esta matéria prima que conseguimos, graças á percepção dos nossos sentidos, é elaborada, construída e organizada pelo espírito humano. Na verdade, continua ele, percebemos a natureza porquanto a sentimos; mas, quando a investigamos, fazemos aqui outro trabalho: o do espírito. Para estudarmos uma coisa devemos observá-la, reunir certas partes, destacar outras, abstrair, etc. Resumindo: o nosso espírito deve aqui desenvolver uma atividade sem a qual o fenômeno não pode ser estudado, isto é, conhecido. Se assim é, apresenta-se-nos uma nova questão (independente da hegemonia do espírito ou da matéria) sobre as relações entre o “consciente” e o “ser”.

Essa questão deve, em certo sentido, ser explicada; não podemos negar o fato de que a natureza, isto é, a totalidade dos fenômenos, os objetos, são percebidos pelos nossos sentidos, pelo nosso espírito. Temos por isso a natureza como nos apresenta e é para nós, isto é, como a sentimos. Mas, surge aqui uma pergunta: como é realmente a natureza em si e por si mesma? Ou, em outros termos: o que percebemos da natureza e o que a ela adicionamos ou levamos de nós pelos sentidos? Kant chegou assim a investigar toda a atividade do espírito humano no processo do conhecimento, do saber, da apreensão dos fenômenos e das coisas, para determinar qual o papel exercido pelo espírito no conhecimento.

Kant destaca, de um lado, as formas de nossa imaginação, e de outro, as categorias do nosso espírito.

Há duas formas principais na percepção das coisas, em nosso pensamento: 1º, o espaço, o lugar: tudo o que percebemos deve forçosamente ocupar um lugar; 2º, o tempo: — tudo tem de acontecer em determinado momento. Essas duas formas aprioristicas (que existe no espírito antes da sensação) do nosso espírito, são condições preexistentes a cada experiência.(1) Diz ainda Kant: não podemos imaginar qualquer coisa fora do espaço e do tempo. O espaço e o tempo não são por nós tomados dos fenômenos das coisas; são por nós introduzidos nos fenômenos e nas coisas. Eles não existem fora do nosso espírito. Para imaginarmos uma coisa deve o nosso espírito colocá-la nessas duas formas gerais.

Não nos deteremos sobre as varias categorias do nosso pensamento estabelecidas por Kant. Tomaremos apenas a mais importante: — a categoria da causalidade. Sendo o espaço e o tempo formas gerais aprioristicas de nossa imaginação, assim também, é a causalidade uma categoria geral, aprioristica, do nosso pensamento. Em nosso pensamento, nada pode realizar-se sem uma causa. Para se realizar um fenômeno, deve haver uma causa que determine. Tomamos todos os fenômenos como um encadeia mento de causas e efeitos, uma cadeia, cujo principio não podemos encontrar.

Segundo Kant, a causalidade não é resultado de nossa experiência; ela é uma categoria geral e necessária do nosso pensamento; ela esta em nós, em nosso espírito, antes de cada experiência – fomos nós que a introduzimos na experiência. As relações entre o “saber” e o “ser”, são, desta forma, as seguintes: — o “ser” é um caos, o “saber” é um caos formado por nosso espírito. O “ser”, é a “coisa em si”, é o numero, que, como tal, não podemos conhecer. O “saber”, é a coisa como se nos apresenta: — o fenômeno. Devemos por de lado a “coisa em si”, e ocupar-nos somente com a coisa, como se nos apresenta.

O criticismo de Kant deu, não há duvida, um grande impulso á ciência. Kant determinou as condições da investigação cientifica, do “saber”, apontando o caminho certo que a ciência deveria seguir. Por outro lado, deu uma nova orientação á filosofia. No lugar da metafísica, colocou ele a gnosiologia — o estudo das condições e limites do nosso saber, e que representou então um grande passo.

Kant foi, no entanto, no fundo, um idealista. A natureza é tal, porque assim a percebemos, diz ele. A natureza é para nós o resultado do nosso saber, da nossa organização espiritual, da nossa percepção. A natureza, que temos diante de nós é, assim, a natureza do nosso espírito. Porque este a apreendeu pela organização do caos, através das formas de espaço e tempo e pela categoria da causalidade.


Notas:

(1) – Devemos observar que o grande desenvolvimento da psicifisiologia nos deu a possibilidade de analisar as duas formas principais (de Kant) e de encontrar os seus elementos componentes. Também se podem tomá-los como resultado da experiência, não obstante a sua generalização. No que concerne ao seu caráter absoluto, dele não há mais vestígio após as novas descobertas determinadas pela teoria de Einstein. (retornar ao texto)

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Inclusão 28/02/2010