Notas Marginais Sobre Teoria e Praxis

Theodor Adorno

1969


Primeira Edição: Publicado originariamente em 1969. Texto original alemão em http://www.giga.or.at/others/krisis/t-adorno_marginalien-zu-theorie-praxis.html (www.krisis.org)

Fonte: http://planeta.clix.pt/adorno/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Para Ulrich Sonnemann

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Até que ponto a questão relativa à teoria e práxis depende da relativa a sujeito e objeto, evidencia-se por uma simples reflexão histórica. Ao mesmo tempo em que a doutrina cartesiana das duas substâncias ratificava a dicotomia entre sujeito e objeto, a práxis era apresentada, pela primeira vez, na poesia, como problemática, em virtude de sua tensão frente à reflexão. A razão pura prática, com todo realismo zeloso, é tão desprovida de objeto quanto o mundo é desqualificado para a manufatura e a indústria que o reduzem a material de elaboração e que, por sua vez, não pode legitimar-se senão no mercado. Enquanto a práxis promete guiar os homens para fora do fechamento em si, ela mesma tem sido, agora e sempre, fechada; é por isso que os práticos são inabordáveis, e a referência objetiva da práxis, a priori minada. Até se poderia perguntar se, até hoje, toda práxis, enquanto domínio da natureza, não tem sido, em sua indiferença frente ao objeto, práxis ilusória. Seu caráter ilusório transmite-se também a todas as ações que, sem solução de continuidade, tomam da práxis o velho e violento gesto. Desde o princípio, tem-se reprovado, e com razão, o pragmatismo norte-americano que, ao proclamar como critério de conhecimento a utilidade prática deste, compromete-o com a situação existente; pois de nenhum outro modo pode demonstrar-se o seu efeito prático, útil, do conhecimento. Mas se, no final, a teoria — para a qual está em jogo a totalidade, se ela não for inútil — ficar amarrada ao seu efeito útil aqui e agora, acontecer-lhe-á o mesmo, apesar da crença de que ela escapa à imanência do sistema. A teoria só se libertaria desta imanência onde se desprendesse das cadeias do pragmatismo, por mais modificadas que elas estejam. Que "toda teoria é cinzenta", Goethe faz Mefistófeles pregar ao estudante ao qual conduz pelo nariz; esta frase era ideologia já desde o princípio; foi também engano, já que não é tão verde a árvore da vida plantada pelos práticos, e que o diabo logo compara com o ouro; o gris da teoria, por seu lado, é função do caráter desqualificado da vida. Não deve existir nada que não se possa pegar; nem o pensamento. O sujeito devolvido a si mesmo, separado do seu outro por um abismo, seria incapaz de ação. Hamlet constitui tanto a história primitiva do indivíduo na reflexão subjetiva deste, quanto o drama daquele a quem esta reflexão paralisa o agir. O indivíduo sente como inconveniente para ele a auto-alienação em direção ao que não se lhe assemelha, o que o inibe de realizá-la. Um pouco mais tarde, o romance já descreve como reage o indivíduo frente àquela situação, falsamente designada pela palavra alienação — como se na era pré-individual tivesse existido proximidade, a qual, pelo contrário, dificilmente pode ser experimentada por aqueles que não estão individuados — conforme o dito de Borchardt, os animais são comunidades solitárias: reagem com a pseudo-atividade. As maluquices de Don Quixote são tentativas de compensar o outro que escapa; em linguagem psiquiátrica, fenômenos de restituição. O que, desde então, vale como o problema da práxis, e hoje novamente se agrava na questão da relação entre teoria e práxis, coincide com a perda de experiência causada pela racionalidade do sempre-igual. Onde a experiência é bloqueada ou simplesmente já não existe, a práxis é danificada e, por isso, ansiada, desfigurada, desesperadamente supervalorizada. Assim, o chamado problema da práxis está entrelaçado com o do conhecimento. A subjetividade abstrata, na qual culmina o processo de racionalização, pode, em sentido estrito, fazer tão pouco quanto se pode imaginar do sujeito transcendental, precisamente aquilo que lhe é atestado: a espontaneidade. A partir da doutrina cartesiana da certeza indubitável do sujeito — e a filosofia que a descreveu não fez senão codificar algo historicamente consumado, uma constelação de sujeito e objeto na qual, de acordo com o antigo 'topos', só o dessemelhante pode conhecer o dessemelhante — a práxis adota certo caráter de aparência, como se não franqueasse o fosso. Palavras como industriosidade [Betriebsamkeit] e ocupação [Geschäftigkeit] mostram nitidamente esse matiz. As realidades ilusórias de muitos movimentos de massas práticos do século XX, que se transformaram na mais sangrenta realidade e, não obstante, ficaram sombreados pelo não inteiramente real, pelo delirante, nasceram somente quando se demandou ação. Enquanto o pensamento se restringe à razão subjetiva, suscetível de aplicação prática, o outro, aquilo que lhe escapa, vem a ser correlativamente remetido a uma práxis cada vez mais vazia de conceito, e que não conhece outra medida que não ela própria. O espírito burguês reúne a autonomia e a aversão pragmatista pela teoria tão antinomicamente quanto a sociedade que o sustenta. O mundo, que a razão subjetiva tendencialmente só se limita ainda a reconstruir, na verdade deve ser continuamente transformado conforme sua tendência à expansão econômica e, contudo, sempre permanecendo o que é. O que mexe com isso é amputado do pensar: sobretudo, a teoria que quer algo mais que reconstrução. Dever-se-ia formar uma consciência de teoria e práxis que não separasse ambas de modo que a teoria fosse impotente e a práxis arbitrária, nem destruísse a teoria mediante o primado da razão prática, próprio dos primeiros tempos da burguesia e proclamado por Kant e Fichte. Pensar é um agir, teoria é uma forma de práxis; somente a ideologia da pureza do pensamento mistifica este ponto. O pensar tem um duplo caráter: é imanentemente determinado e é estringente e obrigatório em si mesmo, mas, ao mesmo tempo, é um modo de comportamento irrecusavelmente real em meio à realidade. Na medida em que o sujeito, a substância pensante dos filósofos, é objeto, na medida em que incide no objeto, nessa medida, ele é, de antemão, também prático. Mas a irracionalidade sempre novamente emergente da práxis — seu protótipo estético são as ações casuais com as quais Hamlet realiza o planejado e fracassa na realização — anima incansavelmente a ilusão de uma separação absoluta entre sujeito e objeto. Quando se simula que o objeto é pura e simplesmente incomensurável em relação ao sujeito, um cego destino captura a comunicação entre ambos.

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Seria uma redução grosseira, por amor à construção histórico-filosófica, datar a divergência entre teoria e práxis numa época tão tardia como o Renascimento. Simplesmente ela refletiu-se então pela primeira vez após o desmoronar daquela 'ordo' que tinha a pretensão de assinalar seu lugar hierárquico tanto às boas obras quanto à verdade. A crise da prática foi experimentada dessa forma: não saber o que se deve fazer. Junto com a hierarquia medieval, à qual se ligava uma casuística minuciosa, desvaneceram-se as instruções práticas que, nessa época, e apesar de toda sua problematicidade, pareciam pelo menos adequadas à estrutura social. No formalismo tão combatido da ética kantiana culmina um movimento que entrou em cena, de forma irresistível e com direito crítico, com a emancipação da razão autônoma. A incapacidade para a práxis foi, primariamente, a consciência da carência de um regulativo, debilidade já originária; daí derivam a vacilação, irmanada com a razão, entendida como contemplação, e a inibição da práxis. O caráter formal da razão pura prática constituiu o fracasso desta frente à práxis; sem dúvida, suscitou também a auto-reflexão, que leva a superar o conceito culposo de práxis. Se a práxis autárquica possui desde sempre traços maníacos e coercitivos, a autoreflexão significa — em contraste com estes — interromper a ação cega que tem seus fins fora de si, e o abandono da ingenuidade, como passagem para o humano. Quem não quiser romantizar a Idade Média, tem que perseguir a divergência de teoria e práxis até a mais antiga separação entre trabalho físico e mental, provavelmente até a mais obscura pré-história. A práxis nasceu do trabalho. Alcançou seu conceito quando, o trabalho não mais se reduziu a reproduzir diretamente a vida, mas sim pretendeu produzir as condições desta: isto colidiu com as condições então existentes. O fato de se originar do trabalho pesa muito sobre toda práxis. Até hoje, acompanha-a o momento de não-liberdade que arrastou consigo: que um dia foi preciso agir contra o princípio do prazer a fim de conservar a própria existência; embora o trabalho, reduzido a um mínimo, entretanto não mais precisasse continuar acoplado à renúncia. O ativismo de nossos dias reprime também o fato de que a nostalgia de liberdade é estreitamente aparentada com a aversão à práxis. Práxis foi o reflexo das penúrias da vida: isto a desfigura ainda ali onde ela tenta abolir tais penúrias. Nessa medida, a arte é a crítica da práxis enquanto não-liberdade; extrai disso a sua verdade. A aversão à práxis, tão em voga hoje por toda parte, é um sentimento que pode ser compreendido de maneira chocante em fenômenos da história natural, como as construções dos castores, a laboriosidade das formigas e das abelhas, ou o grotesco e penoso esforço do besouro transportando um talo. Na práxis, o mais recente entrelaça-se com algo antiquíssimo; a práxis converte-se novamente em animal sagrado, assim como, em outros tempos, podia parecer sacrilégio não se entregar de corpo e alma [mit Haut und Haaren] às tarefas de autoconservação da espécie. A fisiognomonia da práxis é seriedade animal; essa desvanece-se quando o talento se emancipa da práxis: é o que Schiller quis significar em sua teoria do jogo. A maioria dos ativistas carece de humor, de forma não menos inquietante que o humor de aluguel(1) que caracteriza outros. A falta de auto-reflexão não emana unicamente da sua psicologia. Ela marca a práxis logo que esta se erige a si mesma como um fetiche, como uma barricada contra a sua finalidade. Esta é uma dialética desesperada: do fascínio que a práxis impõe aos homens não é possível escapar senão através da práxis, ela porém, ao mesmo tempo — apática, estreita, carente de espírito — contribui enquanto tal para reforçar esse fascínio. A mais recente aversão à teoria, que é a sua medula, faz disso um programa. Mas o fim prático, que inclui a liberação de toda obtusidade, não é indiferente aos meios que pretendem alcançá-lo; de outra maneira, a dialética degenera em jesuitismo vulgar. O deputado imbecil da caricatura de Doré, que se vangloria: "Meus senhores, sou, antes de tudo, prático", revela-se como um coitado incapaz de ver mais além dos problemas que o acossam e que, além do mais, ainda acredita ser importante; sua atitude denuncia o próprio espírito da práxis como sendo falta de espírito. O não-obtuso vem a ser defendido pela teoria. Apesar de toda sua própria não-liberdade, ela é, num mundo livre, lugar-tenente da liberdade.

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Hoje, abusa-se outra vez da antítese entre teoria e práxis para denunciar a teoria. Quando destroçaram o quarto de um estudante porque ele preferia trabalhar a participar em ações políticas, picharam-lhe na parede: quem se ocupa com teoria, sem agir praticamente, é um traidor(2) do socialismo. E não só com relação a ele transformou-se a práxis em pretexto ideológico para a coação moral. É evidente que o pensamento, ao qual difamam, fadiga inconvenientemente os práticos: ele dá muito trabalho, é demasiado prático. Aquele que pensa, opõe resistência; é mais cômodo seguir a correnteza, ainda que declarando estar contra a correnteza. Entregando-se a uma forma regressiva e deformada do princípio do prazer, tudo fica mais fácil, tudo anda sem esforço e se tem, por acréscimo, o direito de esperar recompensa moral dos correligionários. O superego substituto coletivo ordena em crua inversão o que o velho superego desaprovava: o abrir mão de si qualifica como pessoas melhores as de boa vontade. Também para Kant, a práxis em sentido enfático consistiria na boa vontade, mas esta equivalia à razão autônoma. Contudo, um conceito de práxis que não seja estreito só pode referir-se ainda à política, àquela condição da sociedade que condena de longe à irrelevância a práxis de qualquer indivíduo. Este é o lugar da diferença entre a ética kantiana e as concepções de Hegel, o qual, como Kierkegaard percebeu, propriamente não mais conhece a ética entendida no sentido tradicional. Os escritos de filosofia moral de Kant, de acordo com o estado de esclarecimento do século XVIII, apesar de todo seu antipsicologismo, de todo seu esforço por obter princípios imperativos e universais de validade absoluta, foram individualistas enquanto se dirigiam ao indivíduo como substrato do agir correto que, para Kant, é radicalmente racional. Os exemplos de Kant provêm todos da esfera privada e dos negócios; isto condiciona o conceito da ética da intenção [Gesinnungsethik](3), cujo sujeito, necessariamente, tem que ser o indivíduo singular. Em Hegel, anuncia-se, pela primeira vez, a experiência de que a conduta do indivíduo, por mais que seja de vontade pura, não alcança uma realidade que prescreve ao indivíduo as condições de seu agir, limitando-o. Ao ampliar o conceito de moral ao político, Hegel o dissolve. Desde então, nenhuma reflexão não-política sobre a práxis é concludente. Mas que também ninguém se engane: precisamente na ampliação política do conceito de práxis já está posta a repressão do indivíduo pelo universal. A humanidade [Humanität], que não é nada sem a individuação, é virtualmente revogada pela malcriada liquidação desta. Mas, urna vez desvalorizada a ação do indivíduo e, portanto, de todos os indivíduos, também se paralisa a coletiva. A espontaneidade, frente à prepotência de fato das condições objetivas, aparece de antemão como nula. A filosofia moral de Kant e a filosofia do direito de Hegel representam dois graus dialéticos da autoconsciência burguesa da práxis. Ambas, como pólos opostos do particular e do universal, que aquela consciência rasga em dois com violência, são também falsas; ambas têm razão uma em relação à outra, enquanto não se descobrir na realidade uma figura de práxis possível mais elevada; sua descoberta necessita de reflexão teórica. É indubitável e incontestado que a análise racional da situação constitui o pressuposto, pelo menos da práxis política; até mesmo na esfera militar, a da burda primazia da práxis, é assim que se procede. A análise da situação não se esgota na adaptação a esta. Enquanto reflete sobre ela, põe em relevo momentos que podem conduzir para além das coações, da situação. Isto assume incalculável relevância para a relação entre teoria e práxis. Por sua diferença com relação a esta, enquanto ação imediata ligada à situação e, portanto, por sua autonomização, a teoria converte-se em força produtiva prática, transformadora. Sempre que alcança algo importante, o pensamento produz um impulso prático, mesmo que oculto a ele. Só pensa quem não se limita a aceitar passivamente o desde sempre dado; desde o primitivo, que reflete de que modo poderá proteger seu fogo da chuva ou onde esconder-se do temporal, até o iluminista, que constrói mentalmente a maneira como a humanidade, no interesse de sua autoconservação, pode sair da menoridade da qual ela mesma é a culpada. Motivos dessa índole continuam atuando, talvez com maior força justamente quando nenhum ensejo prático estiver imediatamente tematizado. Não há pensamento — desde que seja algo mais que um ordenamento de dados e uma peça técnica — que não tenha seu 'telos' prático. Qualquer meditação sobre a liberdade prolonga-se na concepção de sua possível produção, conquanto esta meditação não esteja sujeita pelo freio prático e nem recortada sob medida para os seus resultados encomendados. Entretanto, assim como a separação de sujeito e objeto não é imediatamente revogável pela decisão autoritária do pensamento, do mesmo modo, tampouco existe unidade imediata entre teoria e práxis: ela imitaria a falsa identidade entre sujeito e objeto e perpetuaria o princípio de dominação, instaurador da identidade, cuja derrota é do interesse da verdadeira práxis. O conteúdo de verdade do discurso sobre a unidade de teoria e práxis ligava-se a condições históricas. Em pontos nodais do desenvolvimento, de ruptura qualitativa, podem reflexão e ação detonar-se mutuamente; mas nem mesmo então são ambas a mesma coisa.

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A primazia do objeto deve ser respeitada pela práxis; a crítica do idealista Hegel à ética kantiana da consciência [Gewissensethik]assinalou isto pela primeira vez. Práxis corretamente compreendida — na medida em que o sujeito é, por sua vez, algo mediado — é aquilo que o objeto quer: ela resulta da indigência dele. Mas não por adaptação por parte do sujeito, adaptação que meramente reforçaria a objetividade heterônoma. A indigência do objeto é mediada pelo conjunto do sistema social; daí que só seja criticamente determinável pela teoria. Práxis sem teoria, abaixo do nível mais avançado do conhecimento, tem que fracassar e, segundo seu conceito, a práxis deveria realizá-lo. Falsa práxis não é práxis. O desespero que, por encontrar bloqueadas as saídas, se precipita cegamente para dentro, alia-se, mesmo na vontade mais pura, à desgraça. A aversão à teoria, característica de nossa época, seu atrofiamento de modo nenhum casual, sua proscrição pela impaciência que pretende transformar o mundo sem interpretá-lo, enquanto, em seu devido contexto, afirmava-se que os filósofos até então tinham apenas interpretado — tal aversão à teoria constitui a fragilidade da práxis. Que a teoria deva curvar-se a ela dissolve o conteúdo de verdade da mesma e condena a práxis ao delirante; é hora de enunciar isto como algo prático. Essa partícula de loucura, entretanto proporciona seu sinistro poder de atração aos movimentos coletivos, independentemente, pelo visto, de qual seja seu conteúdo. Pela via de sua integração na loucura coletiva, os indivíduos conseguem conviver com a sua própria desintegração; na opinião de Ernst Simmel, graças à paranóia coletiva, aguentam a paranóia privada. Ela manifesta-se, antes de mais nada, já como incapacidade do sujeito para assumir na consciência, mediante reflexão, as contradições objetivas que não pode resolver de maneira harmoniosa; a unidade admitida de maneira forçada e sem discussão é a imagem encobridora de uma irresistível desavença interior. A loucura sancionada dispensa da prova de realidade que, necessariamente, leva à consciência debilitada antagonismos insuportáveis, como os da necessidade subjetiva e a privação objetiva. Servo maligno e bajulador do princípio do prazer, o momento da loucura contagia com uma enfermidade que, através da ilusão de sua salvação, ameaça mortalmente o Eu. Atemorizar-se diante disso significaria a autoconservação mais simples, por isso mesmo também reprimida: a firme negativa de atravessar o Rubicão — que rapidamente seca — entre razão e loucura. A passagem à práxis sem teoria é motivada pela impotência objetiva da teoria, e multiplica aquela impotência mediante o isolamento e fetichização do momento subjetivo do movimento histórico: a espontaneidade. Sua deformação deve ser deduzida como uma forma de reação frente ao mundo administrado. Mas, enquanto ela fecha espasmodicamente os olhos diante da totalidade desse mundo, comportando-se como se as coisas dependessem imediatamente dos homens, subordina-se à tendência objetiva da desumanização em curso, também nas suas práticas. A espontaneidade, que a indigência do objeto desfibrou, teria que agarrar-se aos pontos frágeis da realidade endurecida, àqueles pontos em que se abrem para o exterior as brechas provocadas pela pressão do endurecimento; não bater ao redor de si indiscriminada, abstratamente, sem levar em conta o conteúdo daquilo que, com frequência, só é combatido por razões de propaganda.

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Caso se arriscasse excepcionalmente uma assim chamada grande perspectiva, ignorando as diferenças históricas, vitais para os conceitos de teoria e práxis, perceber-se-ia o caráter imensamente progressista — tão lamentado pelo romantismo e, em seu rastro, difamado por muitos socialistas, embora não pelo Marx maduro — da separação entre teoria e práxis. Sem dúvida, é ilusória a dispensa do espírito em relação ao trabalho material, pois o trabalho material é um pressuposto para a própria existência do espírito. Mas não é somente ilusão, nem está somente a serviço da repressão. A separação marca a etapa de um processo que conduz da superação do cego predomínio da práxis material, potencialmente rumo à liberdade. O fato de que alguns vivam sem ocupar-se do trabalho material e gozem de seu espírito como o Zaratustra de Nietzsche, esse injusto privilégio implica que tal coisa seria possível para todos; ainda mais em um nível das forças produtivas técnicas que permite vislumbrar a dispensa universal do trabalho material, sua redução a um valor limite. Revogar essa separação por um ato de decisão autoritária [Machtspruch]parece idealista e é regressivo. O espírito, entregue à práxis sem reservas, passaria a ser um concretismo. Ele concordaria com a tendência tecnocrático-positivista, à qual acredita opor-se e com a qual mantém — assim como alguns partidos, aliás — maior afinidade do que se poderia imaginar. Com a separação entre teoria e práxis, desperta a humanidade das pessoas; esta é alheia àquela indiferenciação que, na verdade, se inclina ante o primado da práxis. Os animais, de modo semelhante aos doentes regressivos que sofrem de lesões cerebrais, só conhecem objetos de ação: percepção, ardil, alimento são uma e a mesma coisa sob a coação, que pesa mais sobre os que não são sujeitos do que sobre os sujeitos. O ardil deve ter-se independizado para que os seres individuais conquistassem essa distância em relação ao alimento, cujo ‘telos’ seria o fim da dominação na qual se perpetua a história natural. O suave, benigno, terno, também o elemento conciliador que há na práxis tomam por modelo o espírito, um produto da separação, cuja revogação é empreendida pela reflexão demasiadamente irrefletida. A dessublimação, a qual aliás hoje mal se necessita recomendar expressamente, perpetuou o tenebroso estado que seus defensores gostariam de esclarecer. Que Aristóteles estabelecesse como supremas as virtudes dianoéticas teve, sem dúvida, sua parte de ideologia: a resignação do homem privado do período helenistico que, por temor, tem que abster-se de influir na coisa pública e trata de encontrar uma justificação para isso. No entanto, sua doutrina das virtudes abriu também o horizonte à contemplação ditosa; ditosa, porque estaria livre de exercer e de sofrer a paixão da autoridade. A política aristotélica é tanto mais humana que o Estado Platônico quanto uma consciência quase burguesa é mais humana que outra restaurativa, a qual, com o fim de investir-se de autoridade num mundo já esclarecido, transmuda-se prototipicamente no totalitário. O objetivo de uma práxis justa seria sua própria supressão.

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Marx, em sua famosa carta a Kugelmann, preveniu contra a iminente recaída na barbárie, que já então deveria ser visível. Nada poderia expressar melhor a afinidade eletiva entre conservadorismo e revolução. Esta já apareceu aos olhos de Marx como a última 'ratio' para evitar o colapso por ele prognosticado. Mas esse medo que, por certo, não foi o menos importante dos motivos de Marx está ultrapassado. A recaída já se produziu. Esperá-la para o futuro, depois de Auschwitz e Hiroshima, faz parte do pobre consolo de que ainda é possível esperar algo pior. A humanidade que pratica o mal e o suporta resignadamente ratifica desse modo o pior: basta escutar o palavreado em relação aos perigos da política de distensão. Uma práxis oportuna seria unicamente a do esforço de sair da barbárie. Esta, com a aceleração da história a velocidades supersônicas, estendeu-se tanto que não há nada que resista ao seu contágio. A desculpa de que, contra a totalidade bárbara, somente surtem efeito ainda os métodos bárbaros soa plausível a muitos. Nesse meio tempo, contudo, atingiu-se um ponto extremo. Aquilo que, há cinqüenta anos, ainda poderia parecer justo por um breve período, para a esperança demasiadamente abstrata e ilusória de uma transformação total, — a violência — encontra-se, depois da experiência do horror nacional-socialista e stalinista, e frente à longevidade da repressão totalitária, inextrincavelmente enredado àquilo mesmo que deveria ter sido mudado. Se o contexto culposo [Schuldzusammenhang] da sociedade e, com ele, as perspectivas de catástrofe tornaram-se deveras totais — e nada permite duvidar disso -, assim nada é possível contrapor-lhe a não ser aquilo que denuncia esse contexto geral de ofuscamento [Verblendungszusammenhang] , ao invés de participar nele com suas próprias forças. Ou a humanidade renuncia ao olho por olho da violência, ou a práxis política supostamente radical renovará o velho horror. Ignominiosamente, verifica-se a retrógrada sabedoria burguesa, segundo a qual o fascismo e o comunismo são a mesma coisa, ou, mais modernamente, a de que a ApO colabora com o NPD(4): O mundo burguês acabou tornando-se assim como os burgueses o imaginam. Aquele que não acompanha a passagem à força bruta e irracional vê-se impelido para a vizinhança daquele reformismo que, por sua vez, é também culpado pela persistência da má totalidade. Mas nenhuma conclusão apressada ajuda, e o que ajudaria encontra-se densamente encoberto. A dialética corrompe-se em sofistica, assim que se fixa pragmaticamente no passo mais próximo, o qual, porém, já foi ultrapassado há tempo pelo conhecimento do curso total.

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O que há de falso no primado da práxis, hoje exercido, manifesta-se na primazia da tática sobre qualquer outra coisa. Os meios independizaram-se até o extremo. Enquanto servem irrefletidamente aos fins, alienaram-se destes. Assim, reclama-se discussão por toda a parte, certamente por um impulso antiautoritário, em primeiro lugar. Mas a tática, assim como a esfera pública — uma categoria, aliás, perfeitamente burguesa -, aniquilou completamente a discussão. O que poderia resultar das discussões, acordos que apresentam uma objetividade superior porque intenções e argumentos se ajudam e se interpenetram mutuamente, não interessa àqueles que, de maneira automática, mesmo em situações inteiramente inadequadas, exigem discussão. As facções que dominam cada um dos lados já prepararam de antemão os resultados que procuram obter. A discussão serve à manipulação. Cada argumento é recortado sob medida para uma intenção, sem que se leve em conta a sua solidez. Mal se escuta o que diz a outra parte; quando muito, para poder replicar com fórmulas estereotipadas. Ninguém quer fazer experiências, se é que ainda se é capaz de estar aberto a elas. O adversário da discussão torna-se função do respectivo plano: coisificado pela consciência coisificada 'malgré lui-même'. Pretende-se, mediante as técnicas da discussão e a força da solidariedade, ou torná-lo útil para alguma coisa, ou desacreditá-lo diante de seus adeptos; ou, então, os contendores simplesmente discutem na vitrina em busca de uma publicidade da qual são prisioneiros: a pseudo-atividade somente consegue manter-se viva pela incessante propaganda. Se o contendor não cede, é desqualificado e acusado de carecer exatamente daquelas aptidões que seriam pré-requisito de qualquer discussão. Mas o conceito desta é deformado com tão singular habilidade que, segundo isso, o outro teria a obrigação de deixar-se vencer; isso rebaixa a discussão à farsa. Essas técnicas são presididas por um princípio autoritário: o que discorda teria que aceitar a opinião do grupo. Pessoas inabordáveis projetam sua própria inabordabilidade naqueles que não querem deixar-se aterrorizar. Com tudo isto, o ativismo submete-se à mesma tendência que acredita ou pretende combater: o instrumentalismo burguês, que fetichiza os meios porque a reflexão sobre os fins se torna intolerável para o tipo de práxis que lhe é próprio.

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Pseudo-atividade, práxis que se tem por tanto mais importante e que se impermeabiliza contra a teoria e o conhecimento tanto mais assiduamente quanto mais perde o contato com o objeto e o sentido das proporções, é produto das condições sociais objetivas. Ela está verdadeiramente adaptada à situação do 'huis clos'. O gesto pseudo-revolucionário é complementar daquela impossibilidade, de técnica militar, de que estale uma revolução espontânea, impossibilidade a que se referiu já há alguns anos Jürgen von Kempski. Contra os que administram a bomba, são ridículas as barricadas; por isso, brinca-se de barricadas e os donos do poder toleram temporariamente os que estão brincando. Pode ser diferente com as técnicas de guerrilha no Terceiro Mundo; nada no mundo administrado funciona sem rupturas. Por isso, nos países industrializados desenvolvidos toma-se por modelo os subdesenvolvidos. Estes são tão impotentes quanto o culto da pessoa de um caudilho, ignominiosamente assassinado quando se encontrava indefeso. Modelos que não deram bom resultado nem mesmo na selva boliviana não podem ser transferidos.

A pseudo-atividade é provocada pelo estado das forças produtivas técnicas, estado que, ao mesmo tempo, a condena à ilusão. Assim como a personalização é um falso consolo diante do fato de que o indivíduo carece de importância no mecanismo anônimo, do mesmo modo a pseudo-atividade constitui um engano em relação à despotenciação de uma práxis que pressupõe um agente livre e autônomo, que já não mais existe. É relevante também para a atividade política saber se os astronautas, para a circunavegação da lua, podiam orientar-se somente pelos botões de seu instrumental de bordo ou se, além disso, necessitavam obedecer a minuciosas ordens da grande central lá embaixo. Fisiognomonia e caráter social diferenciam totalmente Colornbo e Borman. Como reflexo do mundo administrado, a pseudoatividade os recupera em si mesma. Os líderes do protesto são virtuoses das regulamentações e dos procedimentos formais. Os inimigos jurados das instituições exigem com predileção que se institucionalize isto e aquilo, quase sempre desejos de grêmios constituídos ao acaso; aquilo de que se fala haverá de ser obrigatório a todo custo. Subjetivamente, tudo isto é favorecido pelo fenômeno antropológico do 'gadgeteering', da catexização afetiva da técnica, que ultrapassa toda razão e se estende a todos os terrenos da vida. Ironicamente — e aqui está o mais completo envilecimento da civilização — tem razão McLuhan: 'the medium is the message'. A substituição dos fins pelos meios substitui as propriedades nos próprios homens. Interiorização seria a palavra errada para designar isto, porque aquele mecanismo não deixa que se forme uma subjetividade firme: a instrumentalização usurpa seu lugar. Na pseudo-atividade, assim como na revolução fictícia, a tendência objetiva da sociedade liga-se, sem fissuras, à involução subjetiva. Parodisticamente, a história universal produz outra vez os tipos de homens de que necessita.

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A teoria objetiva da sociedade, como algo independizado em relação aos seres viventes, retém o primado sobre a psicologia, a qual não alcança o que é decisivo. Nessa concepção, ressoou, frequentemente, decerto, desde Hegel, o rancor contra o indivíduo e sua liberdade, por mais particular que seja esta, sobretudo contra o impulso. Ela acompanhou o subjetivismo burguês como a sua sombra e foi, por fim, a má consciência deste. Mas, a ascese contra a psicologia tampouco é objetivamente sustentável. Desde que a economia de mercado se encontra desorganizada e está sendo remendada de uma medida provisória a outra, suas leis não constituem mais explicação suficiente por si sós. Não seria possível, a não ser graças à psicologia — através da qual se interiorizam sem cessar as coações objetivas — compreender, nem que os homens aceitem passivamente uma irracionalidade sempre destrutiva, nem que se alistem em movimentos cuja contradição com seus interesses não é difícil de perceber. Análoga a isso é a função dos determinantes psicológicos nos estudantes. Em relação ao poder real, ao qual mal e mal faz cócegas, o ativismo é irracional. Os mais espertos têm consciência de sua inutilidade, outros enganam a si próprios com dificuldade. Como não é fácil que grandes grupos se disponham ao martírio, é preciso recorrer a motivos psicológicos; além do mais, os interesses diretamente econômicos estão menos ausentes do que o palavrório sobre a sociedade do bem-estar pretende fazer acreditar: agora, como sempre, muitos estudantes ainda vegetam no limite da fome. É verdade que a construção de uma realidade ilusória é imposta, em definitivo, pelas barreiras objetivas; ela é psicologicamente mediada, e a paralisia do pensamento está condicionada pela dinâmica pulsional. Aqui há uma contradição retumbante. Enquanto os ativistas mostram um acentuado interesse libidinoso por eles mesmos, no que concerne à satisfação de suas necessidades anímicas e à obtenção adicional de prazer que proporciona o ocupar-se da própria pessoa, o fato de que o momento subjetivo se manifeste nos seus contendores provoca neles um maldoso sentimento de ira. Pode-se verificar aqui, antes de mais nada, o prolongamento da tese freudiana de Psicologia das massas e análise do ego, segundo a qual as imagens próprias da autoridade possuem subjetivamente o caráter da falta de amor e de relação com os demais, o caráter da frieza. Assim que a autoridade amadurece nos antiautoritários, eles adornam suas imagens negativamente catexizadas com as qualidades tradicionais do chefe, e se inquietam tão logo essas não correspondam àquilo que os antiautoridades secretamente anseiam nas autoridades. Aqueles que protestam mais violentamente parecem-se aos caracteres autoritários na recusa da introspecção; ali onde se ocupam de si mesmos, fazem-no de maneira acrítica e orientam-se em bloco, agressivamente, para o exterior. Sobrestimam a própria importância de modo narcisista, sem suficiente sentido das proporções. Erigem diretamente suas necessidades subjetivas por exemplo, sob a palavra de ordem Processo de aprendizagem — como medida da práxis; para a categoria dialética da alienação, tem ficado pouco espaço até o momento. Coisificam sua própria psicologia e esperam, daqueles que lhes fazem frente, uma consciência coisificada. No fundo,fazem da experiência um tabu e se tornam alérgicos assim que algo a recorda. Esta se nivela para eles, ao que chamam avanço da informação, sem advertir que os conceitos de informação e comunicação explorados por eles são importados da indústria cultural monopolista e da ciência por ela aferida. Objetivamente, contribuem para a transformação regressiva do que ainda resta no sujeito como sinais de 'conditioned reflexes'.

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No plano da ciência, a separação entre teoria e práxis, na época moderna, nomeadamente na sociologia, para a qual deveria ser temática, foi moldada de maneira irrefletida e extrema conforme a doutrina de Max Weber da neutralidade frente aos valores [Wertfreiheit]. Formulada há quase setenta anos, continua influindo na mais recente sociologia positivista. O que lhe foi contraposto exerceu escassa influência sobre a ciência estabelecida. A doutrina que mais ou menos expressamente constituiu o oposto abstrato daquela, a ética material dos valores [Wertethik] que deveria orientar a práxis com uma evidência imediata, ficou desacreditada por causa de sua arbitrariedade restauradora. A Wertfreiheit weberiana estava amarrada ao seu conceito de racionalidade. Falta saber qual das duas categorias sustenta a outra, na versão weberiana. Como se sabe, racionalidade, centro de toda obra de Weber, significa, para ele, preponderantemente racionalidade com vistas aos fins [Zweckrationalität]. Ela é definida como a relação entre os meios adequados e os fins. Estes estão fora da racionalidade por princípio; ficam entregues a uma espécie de decisão, cujas lúgubres implicações, que Weber não quis, não tardaram a manifestar-se após a sua morte. Mas tal isenção dos fins do campo da 'ratio', a qual Weber cercou de restrições, mas que, mesmo assim, inegavelmente configurou o teor de sua doutrina da ciência e até de sua estratégia científica, não é menos arbitrária que a decretação dos valores. Não se pode separar simplesmente racionalidade de autoconservação, assim como também não se pode separar desta o Eu, a instância subjetiva que serve à racionalidade; além do mais, tampouco o Weber sociólogo — que rechaçava a psicologia, mas se orientava em sentido subjetivo — tentou tal coisa. A 'ratio', no sentido mais amplo, surgiu como instrumento de autoconservação, de prova da realidade. A universalidade da 'ratio', traço que veio a calhar em Weber para descartar a psicologia, alargou-a para além de seu portador imediato, o homem individual. Isto a emancipou, certamente desde que ela existe, da contingência da colocação individual de fins. O sujeito auto-subsistente da 'ratio' é, em sua imanente universalidade espiritual, algo realmente universal: a sociedade, em última análise, a humanidade. Sua subsistência faz parte, irresistivelmente, do sentido de racionalidade: com efeito, seu fim é um ordenamento social racional, pois, do contrário, ela mesma calaria autoritariamente seu próprio movimento. A humanidade está ordenada de modo racional somente na medida em que conserva os sujeitos socializados segundo sua potencialidade liberada. Irracionalmente delirante seria, pelo contrário — e o exemplo é algo mais que um exemplo -, afirmar que, por um lado, a adequação dos meios de destruição à finalidade da destruição é racional, mas, por outro lado, a finalidade da paz e da eliminação dos antagonismos que a impedem 'ad calendas graecas' é irracional. Weber, como fiel megafone de sua classe, virou de cabeça para baixo a relação de racionalidade e irracionalidade. Como por vingança, a racionalidade de meios para fins inverte-se nele dialeticamente. O processo, profetizado por Weber com manifesto horror, do desenvolvimento da burocracia — a forma mais pura de poder racional — rumo à sociedade de engrenagens é irracional. Expressões como engrenagem [Gehäuse], estabilização, autonomização do aparato, e seus sinônimos indicam que os meios designados por elas convertem-se em fins autônomos, ao invés de satisfazer sua racionalidade meios-fins. Mas isto não é um fenômeno de degeneração, como quer acreditar a autoconsciência burguesa. Weber compreendeu de modo tão penetrante quanto sem conseqüências para a sua concepção que essa irracionalidade, simultaneamente descrita e dissimulada por ele, é proveniente da determinação da razão como meio, de sua separação em relação aos fins e à consciência crítica destes. A racionalidade resignante de Weber torna-se irracional precisamente na medida em que, como ele postula em furiosa identificação com o agressor, os fins permanecem irracionais para sua ascese. Sem sustentação na certeza dos objetos, a 'ratio' foge de si mesma: seu princípio converte-se em uma má infinitude. A aparente desideologização da ciência, levada a cabo por Weber, na realidade foi concebida como ideologia contra a análise marxiana. Mas ela, em sua indiferença frente ao sem-sentido manifesto, desmascara-se como desacertada e contraditória em si. A 'ratio' não pode ser menos que autoconservação, a saber, a da espécie, da qual literalmente depende a sobrevivência de cada indivíduo. Passando pela autoconservação, ela decerto alcança o potencial daquela auto-reflexão que algum dia poderia transcender a autoconservação, a que ela foi reduzida por sua limitação ao nível de meio.

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O ativismo é regressivo. Cativado por aquela positividade que há tanto tempo faz o papel de armadura para a debilidade do Eu, recusa-se a refletir sobre a sua própria impotência. Os que não param de gritar: Demasiado abstrato! , empenham-se num concretismo, numa imediatez, que estão abaixo do nível dos meios teóricos disponíveis. Isso favorece a práxis aparente. Os mais finórios dizem — de maneira tão sumária como julgam em relação à arte — que a teoria é repressiva; e qual atividade no interior do 'status quo' não o seria a seu modo? O agir imediato, no entanto, que sempre lembra o bater com estrondo [Zuschlagen], está incomparavelmente mais próximo da repressão do que o pensamento, o qual ajuda a respirar. O ponto arquimédico: como é possível uma práxis não-repressiva, como navegar entre as alternativas espontaneidade e organização; isso só pode ser descoberto, se é que é possível, através da teoria, e não por outra via. Quando se descarta o conceito, aparecem traços como a solidariedade unilateral, que degenera em terror. Diretamente, impõe-se a supremacia burguesa dos meios sobre os fins, cujo espírito, segundo o programa, se pretendia combater. A reforma tecnocrática da universidade, à qual se quer conjurar, talvez mesmo 'bona fide', não é só o contragolpe assestado ao protesto. Este a promove a partir de si mesmo. A liberdade de cátedra é rebaixada a um serviço a clientes e deve sujeitar-se a controles.

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Entre os argumentos de que dispõe o ativismo, há um que, por certo, está muito longe da estratégia política de que se jactam, mas, por isso mesmo, possui uma força de sugestão tanto maior: seria preciso optar pelo movimento de protesto precisamente porque se sabe que não tem possibilidades objetivas de êxito; seguindo o exemplo de Marx durante a comuna de Paris ou, então, da entrada do Partido Comunista quando da derrocada do governo anarco-socialista soviético em Munique, em 1919. Assim como essas condutas teriam sido ditadas pelo desespero, também os que desesperam da possibilidade teriam de apoiar uma ação sem perspectivas. A inevitável derrota faria com que, por razões morais, devessem mostrar-se solidários mesmo aqueles que previram a catástrofe e não se dobraram ao ditado de uma solidariedade unilateral. Mas, o apelo ao heroísmo, na verdade, não faz mais que prolongar aquele mesmo ditado; quem não se tenha deixado aturdir por coisas semelhantes, não deixará de perceber o tom oco dessas vozes. Na segurança da América, podia-se, enquanto emigrante, suportar as notícias que chegavam de Auschwitz; ninguém acreditará facilmente em quem diz que o Vietname lhe rouba o sono, sobretudo porque todo adversário das guerras coloniais deve saber que os vietcongues, por sua vez, empregam as torturas à moda chinesa. Quem imaginar que, enquanto produto desta sociedade, está livre da gelidez burguesa, nutre ilusões sobre o mundo bem como sobre si mesmo; sem essa gelidez, ninguém mais poderia viver. A capacidade de identificação com o sofrimento alheio é escassa em todas as pessoas, sem exceção. Dizer que simplesmente não se pode resistir à sua visão, que nenhuma pessoa de boa vontade pode continuar resistindo-lhe, constitui a racionalização de uma compulsão moral [Gewissenszwang]. Possível e digna de admiração foi aquela atitude no limiar do horror extremo, tal como o experimentaram os conjurados de 20 de julho, que preferiram arriscar cair atrozmente exterminados em vez de permanecerem inativos. Pretender, à distância, que se sinta o mesmo que eles, significa confundir a força da imaginação com o poder da presença imediata. A pura autodefesa impede, naquele que está ausente, a imaginação do pior, sobretudo quando se trata de ações que o expõem ao pior. Mas aquele que conhece os fatos à distância tem que reconhecer os limites objetivamente impostos de uma identificação que choca com suas exigências de autoconservação e felicidade e não comportar-se como se já fosse uma pessoa do tipo que talvez somente se realizará num estado de liberdade, isto é, num estado isento de angústia. Do mundo tal qual é, ninguém poderá atemorizar-se suficientemente. Se alguém não só sacrifica o seu intelecto, mas também a si mesmo, a ninguém é permitido impedi-lo, embora haja martírios objetivamente falsos. Fazer do sacrifício um mandamento pertence ao repertório fascista. Solidariedade com uma causa cujo inevitável fracasso é patente pode proporcionar um seleto ganho narcisista; em si ela é tão ilusória quanto a práxis da qual comodamente se espera uma aprovação que talvez seja revogada no momento seguinte, pois não há sacrifício do intelecto que satisfaça às insaciáveis exigências da falta de espírito. Brecht que, de acordo com a situação de então, ainda tinha a ver com a política — não com seu sucedâneo — disse, em certa ocasião, e eu cito livremente, que, para ser completamente sincero consigo mesmo, deveria confessar que 'au fond' o teatro lhe interessava mais que a transformação do mundo(5). Tal consciência seria o melhor corretivo para um teatro que hoje se confunde com a realidade, assim como os 'happennings' que os ativistas encenam de vez em quando estão no limite [verfransen] entre a ilusão estética e a realidade. Àquele que não quiser ficar para trás em relação à confissão espontânea e ousada de Brecht, quase toda práxis atual estará sob a suspeita de falta de talento.

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O praticismo atual apoia-se num momento ao qual o horrível jargão da sociologia do conhecimento deu o nome de suspeita de ideologia, como se o motor para a crítica das ideologias fosse, não o conhecimento de sua falsidade, mas sim o retrógrado menosprezo burguês em relação a qualquer manifestação do espírito, por causa de seu presumido condicionamento por interesses, que o céptico, ele sim interessado, projeta sobre o espírito. Mas quando a práxis encobre com o ópio do coletivo sua própria e real impossibilidade, é ela que se torna ideologia. Existe, em relação a isso, um sinal infalível: o trancar-se [Einschnappen]automaticamente à pergunta "O que fazer?", respondendo a qualquer argumento crítico, antes mesmo que tenha sido expressado, que dirá entendido. Em nenhuma parte, é tão flagrante o obscurantismo da mais recente aversão à teoria. Lembra o gesto de exigir o passaporte. Inexpresso, mas tanto mais poderoso é o mandamento: tens que assinar embaixo. O indivíduo deve entregar-se ao coletivo; como recompensa pelo ato de saltar ao 'melting pot', promete-se-lhe a graça de pertencer ao grupo. Os fracos, os angustiados sentem-se fortes quando andam de mãos dadas. Eis aqui o real ponto de transição ao irracionalismo. Defende-se com mil sofismas, inculca-se com mil meios de pressão moral aos adeptos que, mediante a renúncia à própria razão e ao próprio juízo, eles se tornam partícipes de uma razão superior, coletiva; para conhecer a verdade, pelo contrário, seria imprescindível aquela razão incondicionalmente individuada, a respeito da qual se repete monotonamente que está superada e que, se eventualmente tem algo a dizer, isso já foi refutado e liquidado há tempo pela sabedoria sempre superior dos correligionários. Recai-se naquela atitude disciplinar que os comunistas ensaiaram em outros tempos. De acordo com um dito de Marx, nos pseudo-revolucionários, repete-se como comédia, aquilo que uma vez se apresentou como tragédia de terríveis consequências, quando a situação ainda parecia aberta. Em vez de enfrentar argumentos, topamos com frases estereotipadas visivelmente emitidas pelos líderes [Führern] e seus sequazes.

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Se teoria e práxis não são nem imediatamente o mesmo, nem absolutamente distintas, então sua relação é de descontinuidade. Não há uma senda contínua que conduza da práxis à teoria — isso é o que se quer dizer por momento espontâneo nas considerações que seguem. Mas a teoria pertence ao contexto geral da sociedade e é, ao mesmo tempo, autônoma. Apesar disto, nem a práxis transcorre independentemente da teoria, nem esta é independente daquela. Se a práxis fosse o critério da teoria, converter-se-ia, por amor ao 'thema probandum', no embuste denunciado por Marx e, por causa disso, não poderia alcançar o que pretende; se a práxis se regesse simplesmente pelas indicações da teoria, endurecer-se-ia doutrinariamente e, além disso, falsearia a teoria. O que Robespierre e Saint-Just fizeram da 'volonté générale' rousseauniana, à qual, aliás, não faltava o traço repressivo, constitui a mais célebre prova disso, embora de forma alguma a única. O dogma da unidade entre teoria e práxis é, em oposição à doutrina a que se reporta, adialético: ele capta simples identidade ali onde só a contradição tem chance de ser frutífera. Embora a teoria não possa ser arrancada do conjunto do processo social, também tem independência dentro do mesmo; ela não é somente meio do todo, mas também momento; não fosse assim, não seria capaz de resistir ao fascínio do todo. A relação entre teoria e práxis, uma vez distanciadas uma da outra, é a da virada qualitativa, não a da transição, muito menos a da subordinação. Elas estão em relação de polaridade entre si. Precisamente aquelas teorias que não foram concebidas com vistas à sua aplicação são as que têm maior probabilidade de serem frutíferas na prática, mais ou menos analogamente ao que ocorreu nas ciências naturais entre a teoria do átomo e a cisão nuclear: o geral, o relativo a uma práxis possível estava contido na razão orientada em sentido tecnológico, e não porque esta tivesse em vista a aplicação. A teoria marxiana da unidade valia para o agora ou nunca, talvez a partir do pressentimento de que, de outro modo, poderia ser tarde demais. Nessa medida, foi certamente prática; faltam, contudo, à teoria propriamente acabada, à crítica da economia política, todas as transições concretas para aquela práxis que, segundo a décima primeira tese sobre Feuerbach, deveria constituir sua 'raison d'être'. O pudor de Marx ante as receitas teóricas para a práxis mal foi menor que o de descrever positivamente uma sociedade sem classes. O Capital contém um sem-número de invectivas, em sua maior parte, aliás, dirigidas contra economistas e filósofos, mas nenhum programa de ação; qualquer orador da ApO (Oposição Extraparlamentar) que tenha assimilado o seu vocabulário deveria tachar o livro de abstrato. Não se poderia deduzir da teoria da mais-valia de que modo haveria de ser feita a revolução; o antifilosófico Marx quase não foi além, em relação à práxis em geral — não nos problemas políticos concretos — do filosofema segundo o qual a emancipação do proletariado só poderia ser obra do próprio operariado; e, naquela época, o proletariado ainda era visualizável. Nas últimas décadas, os Studien über Autorität und Familie, a Authoritarian Personality e também Dialektik der Aufklärung ("Dialética do Esclarecimento"), cuja teoria da dominação é heterodoxa em muitos aspectos, foram escritos sem intenção prática e bem que tiveram algum efeito prático. O que se irradiou a partir disso deveu-se, entre outras razões, ao fato de que num mundo em que até os pensamentos converteram-se em mercadoria e provocam 'sale's resistance', não poderia ocorrer a ninguém, ao ler esses volumes, que se lhe estava vendendo, impingindo algo. Todas as vezes que intervim de maneira direta, em sentido estrito, com visível influência prática, isso ocorreu unicamente através da teoria: na polêmica contra o movimento musical juvenil e seus seguidores, na critica ao neogermânico Jargon der Eigentlichkeit, que acabou com a festa de uma ideologia muito virulenta da nova Alemanha, deduzindo-a e levando-a ao seu próprio conceito. Se, com efeito, essas ideologias constituem uma falsa consciência, sua dissolução, que se difundiu amplamente nos meios intelectuais, inaugura um certo movimento para a maioridade; este, em todo caso, é prático. O tosco trocadilho de Marx sobre a crítica crítica, esse gracejo pleonasticamente laminado e destituído de graça, segundo o qual a teoria se destrói por ser teoria, somente encobre a insegurança de sua transposição direta à práxis. Mesmo depois, a despeito da Internacional com a qual brigou, Marx não se entregou de modo nenhum à práxis. A práxis é a fonte de onde a teoria extrai suas forças, mas não é recomendada por esta. Na teoria, ela aparece meramente, e mesmo de maneira necessária, como ponto cego, como obsessão pelo criticado; nenhuma teoria critica pode ser desenvolvida nos aspectos particulares sem sobrestimar o particular; mas, sem a particularidade, ela seria nula. Enquanto isso, o ingrediente de ilusão que isso implica previne contra as transgressões em que ele continuamente se amplia.


Notas de rodapé:

(1) Mitlacher-Humor:expressão quase intraduzível, que significa um tipo de humor que precisa do aplauso e do riso dos outros (N.T.). (retornar ao texto)

(2) O conceito de traidor provêm da eterna provisão da repressão coletiva, não importa de que cor. A lei das comunidades conspirativas é a irrevogabilidade; por isso, os conjurados gostam de requentar o conceito mítico do juramento. Aquele que muda de opinião não só é expulso como também se vê exposto às mais duras sanções morais. O conceito de moral reclama autonomia, mas os que têm sempre a palavra moral na boca não toleram a autonomia. Se alguém mereceria verdadeiramente ser chamado de traidor, seria aquele que atenta contra a própria autonomia. (retornar ao texto)

(3) Conceito politico-sociológico cunhado por Max Weber, relativo à racionalidade meios-fins (N.T.) (retornar ao texto)

(4) ApO (Ausserparlamentarische Opposition): Oposição Extraparlamentar, movimento estudantil de 1968 não rigorosamente limitado a estudantes, similar ao movimento de resistência francês, e NPD (National-Demokratische Partej Deutschlands): Partido Nacionalista, partido da direita radical, fundado em 1964 na Alemanha Federal, o qual não tem mais representação parlamentar nos anos 90 (N.T.). (retornar ao texto)

(5) Walter Benjamin, Versuche über Brecht, Frankfurt, 1966, p. 118. (retornar ao texto)

Inclusão 16/11/2018