Novas democracias e velho progresso

Theodor W. Adorno


Primeira Edição: O texto aqui publicado é, nas palavra do próprio autor, uma prefiguração de temas discutidos no seu livro Dialética Negativa, de 1966.

Fonte: SciELO - Lua Nova: Revista de Cultura e Política - https://doi.org/10.1590/S0102-64451992000300011

Trandução: Gabriel Cohn - Theodor W. Adorno, "Fortschritt", in Stichworte, Suhrkamp © Verlag, 2ª ed, 1969, p. 29-50

HTML: Fernando Araújo.

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A justificação teórica da categoria de progresso exige observá-la tão de perto ao ponto de perder-se a aparente evidência de seu uso, positivo ou negativo. Mas essa mesma proximidade dificulta a justificação. O conceito de progresso resiste ainda menos que outros à exigência de especificação daquilo a que realmente se refere, como na pergunta sobre o que progride e o que não. Quem busca precisar o conceito corre o risco de destruir o seu alvo. A argúcia subalterna que se recusa a falar de progresso enquanto não tenha como distinguir entre progresso do que, para que, em relação a que, converte a unidade dos momentos entrelaçados no conceito em mera justaposição. A arrogante teoria do conhecimento que reclama exatidão quando é a coisa mesma que impossibilita a univocidade passa ao largo do seu objeto, sabota o conhecimento e serve à manutenção da desgraça, ao interditar zelosamente a reflexão sobre aquilo que, numa época de possibilidade utópicas e também absolutamente destrutivas, a consciência dos homens enredados busca saber: se há progresso. Como todo termo filosófico o de progresso tem seus equívocos; como em todos, estes também remetem a algo comum. Sabe-se de maneira vaga mas segura o que agora se pode conceber por progresso: por isso mesmo não há como não empregar o conceito de modo grosseiro. Seu uso pedante apenas frustra sua promessa, de responder à dúvida e à esperança de que finalmente as coisas melhorem, de que enfim os homens possam tomar alento. Já por isso não há como dizer de modo preciso o que eles devem conceber como progresso, porque a miséria do estado presente consiste em que todos a sentem, enquanto carecem da palavra salvadora. Somente são verdadeiras aquelas reflexões sobre o progresso que mergulham nele sem deixar de manter distância, que evitam os fatos e significados pontuais paralisadores. Hoje as reflexões desse tipo culminam na consideração sobre se a humanidade logrará evitar a catástrofe. Decisiva nisso para a humanidade é a sua constituição social global, enquanto não se forme e intervenha um sujeito global consciente de si. É sobre isso que repousa inteira a possibilidade do progresso, a possibilidade de afastar o desastre extremo, total. Tudo o mais que se refira ao progresso deveria cristalizar-se em torno dissso. A carência física, que há muito parecia escarnecer dele, está potencialmente afastada: no estágio atual das forças produtivas técnicas ninguém mais precisaria passar fome na terra. A decisão sobre se persistirão a carência e a opressão - ambas formam uma unidade - repousa inteira no afastamento da catástrofe, mediante uma organização racional da sociedade global como humanidade. Por isso mesmo o projeto kantiano de uma doutrina do progresso vinculava-se à "idéia do homem": "Como somente em sociedade e a rigor naquela que permite a máxima liberdade e, conseqüentemente, um antagonismo geral de seus membros e, portanto, a mais precisa determinação e resguardo dos limites desta liberdade - de modo a poder coexistir com a liberdade dos outros; como somente nela o mais alto propósito da natureza, ou seja, o desenvolvimento de todas as suas disposições, pode ser alcançado pela humanidade, a natureza quer que a humanidade proporcione a si mesma este propósito, como todos os outros fins da sua destinação; assim uma sociedade na qual a liberdade sob leis exteriores encontra-se ligada no mais alto grau a um poder irresistível, ou seja, uma constituição civil perfeitamente justa, deve ser a mais elevada tarefa da natureza para a espécie humana, porque a natureza somente pode alcançar seus outros propósitos relativamente à nossa espécie por meio da solução e cumprimento daquela tarefa".(1) I. Kant, "Idee einer Allgemeinen Geschichte in Weltburgerlicher Absicht" (foi usada a tradução de Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra, Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Ed. Brasiliense, SP, 1986, p. 14-15). O conceito de história no qual o progresso encontrasse seu lugar é enfático, é o conceito geral ou cosmopolita de Kant, e não um adstrito a esferas particulares da vida. A referência do progresso à totalidade volta contudo um aguilhão contra ele. A consciência disso anima a polêmica de Benjamin contra a simbiose entre progresso e humanidade, nas teses sobre o conceito de história - a reflexão de maior peso para a crítica da idéia de progresso feita do lado daqueles que em termos sumariamente políticos são associados aos progressistas: "Tal como ele se afigurava na cabeça dos social-democratas o progresso foi, uma vez, um progresso da própria humanidade (não apenas das suas destrezas e conhecimentos)"(2) Walter Benjamin, Schriften, Frankfurt am Main, 1955, vol. 1, p. 502. . Por menos, contudo, que a humanidade enquanto tal avance conforme o lema publicitário do sempre-melhor-e-melhor, tampouco cabe uma idéia de progresso sem a de humanidade; o sentido da passagem de Benjamin seria então mais propriamente a censura aos social-democratas, por terem confundido o progresso de destrezas e conhecimentos com o da humanidade, do que a intenção de erradicar o progresso da humanidade da reflexão filosófica. Em Benjamin ele adquire seus direitos na doutrina de que a concepção da felicidade de gerações vindouras - sem a qual não se pode falar de progresso - é inextrincável da redenção(3) Walter Benjamin, op. cit., p. 494. . Confirma-se assim a concentração do progresso na sobrevivência da espécie: não cabe, destarte, insinuar na idéia de progresso a de uma humanidade já constituída e portanto capaz de avançar. Ele seria, ao invés, a constituição da humanidade, cuja perspectiva se abre em face da extinção. Segue-se disso que, como também ensina Benjamin, o conceito de história universal é irrecuperável; ele só se manteria na mesma medida em que fosse confiável a ilusão de uma humanidade já existente, internamente harmônica e em unitário movimento ascendente. Quando a humanidade fica confinada na totalidade constituída por ela própria, então, nas palavras de Kafka, ainda não se deu qualquer progresso, ao passo que somente a totalidade permite pensá-lo. O modo mais simples de dar-se conta disso é mediante a determinação da humanidade como aquilo que não exclui coisa alguma. Se ela se convertesse numa totalidade desprovida de qualquer princípio limitador, então no mesmo momento se livraria da coerção que submete todos os seus membros a tal princípio e não mais seria totalidade: não mais seria uma unidade forçada. A passagem na Ode à Alegria de Schiller "e quem nunca disso foi capaz que se retire chorando dessa irmandade", que em nome do amor mais abrangente expele quem a ele não teve acesso, inadvertidamente confessa a verdade sobre o conceito burguês de humanidade, simultaneamente totalitário e particular. O que no verso ocorre ao não amado ou incapaz no amor em nome da idéia a desmascara não menos do que a violência afirmativa com que a música de Beethoven a inculca. Não por acaso ocorre no poema a palavra "roubar", que acrescenta alusões à esfera da propriedade e do crime à humilhação do infeliz a quem por isso de novo se recusa a felicidade. O conceito de totalidade envolve, tal como no sistema político totalitário, o antagonismo permanente; assim são definidas, pelos não convidados, as malvadas festas míticas das estórias. Só haveria humanidade e não seu simulacro onde se desfizesse o princípio da totalidade, que impõe limites, ainda que somente se anulasse o seu comando de identificar-se com o todo.

Historicamente a concepção de humanidade já estava implícita na proposição estóica sobre o Estado universal, que pelo menos objetivamente remetia à idéia de progresso, por mais alheia que de resto ela fosse à antiguidade pré-cristã. A adequação dessa proposição estóica às reivindicações imperiais romanas revela algo do que ocorreu ao conceito de progresso por força da sua identificação com as emergentes "destrezas e conhecimentos". A humanidade existente insinua-se no lugar da ainda não nascida e a história converte-se sem mais em história da redenção. Este foi o protótipo da concepção de progresso até Hegel e Marx. Na civitas dei agostiniana ela está vinculada à redenção por Cristo, entendida como a historicamente bera, sucedida; só uma humanidade já redimida pode ser vista como se movendo, após o juízo e pela graça que mereceu, rumo ao reino do céu através do contínuo do tempo. Talvez tenha sido a fatalidade do pensamento posterior sobre o progresso que, enquanto ele adotava a teleologia imanente e a concepção da humanidade como sujeito de todo progresso de Santo Agostinho, a soteriologia cristã esmorecia nas especulações de filosofia da história. Por isso a idéia de progresso foi. inteiramente absorvida na civitas terrena, sua contrapartida agostiniana. Cabe-lhe, também no dualista Kant, avançar conforme seu princípio intrínseco, sua "natureza". Neste iluminismo contudo, que pela primeira vez coloca nas mãos da humanidade o progresso rumo a ela e com isso concretiza sua idéia como algo a ser efetivado, espreita a reafirmação conformista daquilo que meramente existe. Este recebe a aura da redenção, após ela não se ter dado e o mal ter-se perpetuado irrestritamente. Não havia como evitar essa modificação, de imprevisível alcance, do conceito de progresso. Assim como a enfática reivindicação de redenção bem sucedida foi frustrada em face da história pós-cristã, já se encontrava na proposição teológica agostiniana de um movimento imanente da espécie rumo ao estado de graça o tema da irresistível secularização. A própria temporalidade do progresso, seu simples conceito, o enreda no mundo empírico; sem essa temporalidade contudo a impiedade do curso do mundo seria com tanto maior força perenizada na idéia, e a própria criação se converteria em obra de um demônio gnóstico. A obra agostiniana torna legível a íntima constelação das idéias de progresso, de redenção e de curso imanente da história, que no entanto não podem fundir-se sob pena de se aniquilarem mutuamente. Se o progresso é equiparado à redenção, como a intervenção transcendente por excelência, então ele se vê privado, juntamente com a dimensão temporal, de qualquer significado perceptível, e se refugia na teologia histórica. Se no entanto o progresso é mediatizado na história, a ameaça é a da idolatria desta e, na reflexão do conceito como na da realidade, do absurdo de que aquilo que inibe o progresso já seja o próprio. Construções auxiliares de um conceito imanente-transcendente de progresso regulam-se já pela sua nomenclatura.

A grandeza da doutrina agostiniana consistia no que tinha de radicalmente original. Ela continha todos os abismos da idéia de progresso e empenhava-se em dominá-los teoricamente. Sua estrutura traz à sua plena expressão o caráter antinômico do progresso. Já em Agostinho, como depois novamente no auge da filosofia secular da história desde Kant, o antagonismo ocupa o centro daquele movimento histórico que, enquanto dirigido para o reino do céu, seria progresso; para Agostinho trata-se do combate entre o reino terrestre e o celestial. Desde então todo pensamento do progresso traz a marca do peso da desgraça historicamente ascendente. Enquanto em Agostinho a redenção forma o telos da história, esta não desemboca sem mais naquela, nem a relação da redenção com a história é inteiramente imediata. A redenção mergulha na história conforme o plano cósmico divino, e opõe-se a ela após o pecado original. Agostinho reconheceu que redenção e história não existem uma sem a outra nem existem uma na outra, mas sim numa tensão cuja energia acumulada finalmente não quer menos do que a supressão do mundo histórico mesmo. E não é por menos que ainda se pode pensar a idéia de progresso na época da catástrofe. Cabe tampouco ontologizar o progresso, atribuí-lo irrefletidamente ao ser, quanto a decadência - por mais que isto agrade à filosofia recente. Demasiado pouco de bom tem poder no mundo para que a partir dele se possa enunciar o progresso num juízo predicativo, mas nada de bom nem seu vestígio existe sem o progresso. Se, de acordo com uma doutrina mística, os eventos intramundanos devem ser relevantes para a vida do próprio absoluto até nas ações e omissões mais insignificantes, então algo semelhante é verdadeiro, em todo o caso, para o progresso. Pois cada pequeno abalo no nexo universal de ofuscação é relevante para seu possível fim. Bom é o que se desenreda, aquilo que encontra a fala, abre o olho. Na medida mesma em que se desenreda ele está entretecido na história, que, embora não se ordene inequivocamente no sentido da reconciliação, deixa fulgurar a sua possibilidade ao longo do seu movimento.

Os momentos pelos quais o conceito de progresso tem sua vida são, no modo costumeiro, em parte filosóficos e em parte sociais. Sem a sociedade sua idéia seria inteiramente vazia; todos os seus elementos derivam dela. Se a sociedade não tivesse passado da horda caçadora e coletora para a agricultura, da escravidão para a liberdade formal dos sujeitos, do medo dos demônios à razão, da carência ao afastamento das pragas e da fome e à melhora das condições de vida em geral: se pois procurássemos manter pura a idéia de progresso more philosofico, talvez debulhando-a da essência do tempo, então ela não teria conteúdo algum. Não cabe entretanto impor limites arbitrários ao conceito que, pelo seu sentido, necessita passar para a facticidade, A própria idéia da reconciliação, que na medida do finito constitui o telos transcendente de todo progresso, é inseparável do processo imanente do iluminismo, que afasta o medo e, na medida em que eleva o homem à condição de resposta às questões dos homens, alcança o conceito de humanidade, que sozinho se eleva sobre a imanência do mundo. Não obstante, o progresso não se dissolve na sociedade, não lhe é idêntico; tal como esta é, não raro se lhe opõe. A filosofia mesma, enquanto prestava, era ao mesmo tempo doutrina da sociedade; somente após submeter-se sem reservas ao seu poder é forçada sob protesto a separar-se dela; a pureza na qual recaiu é a má consciência da sua impureza, da cumplicidade com o mundo. O conceito de progresso é filosófico na sua capacidade de contrapor-se ao movimento da sociedade no passo mesmo em que o articula. Derivado da sociedade, ele reclama a confrontação crítica com a sociedade real. Indelével nele é o momento da redenção, por secularizado que esteja. A impossibilidade de reduzi-lo, seja à facticidade, seja à idéia, assinala sua própria contradição. Pois o momento iluminista nele, que se consuma na reconciliação com a natureza na medida em que conjura os espantos desta, está irmanado ao da sua dominação. O modelo do progresso, ainda quando transferido para a divindade, é o do controle da natureza externa e interna ao homem. A opressão exercida por esse controle, cuja forma de reflexão espiritual superior consiste no princípio da identidade da razão, reproduz o antagonismo. Quanto mais o espírito dominador afirma a identidade tanto mais o não idêntico sofre injustiça. A injustiça passa adiante pela resistência do não idêntico. Por sua vez a resistência reforça o princípio opressor, enquanto o oprimido se arrasta envenenado. Tudo avança no todo, exceto até hoje o próprio todo. O verso de Goethe "e todo o ímpeto e toda a insistência são paz eterna no Senhor" codifica a experiência disso, e a doutrina hegeliana do processo do espírito universal, da dinâmica absoluta como espírito que retorna a si próprio, ou mesmo como jogo dele consigo mesmo, aproxima-se sobremodo da sentença de Goethe. Apenas uma advertência caberia acrescentar à soma da intuição de ambos: que esse todo permanece imóvel no seu movimento, porque nada conhece além de si e não é o absoluto divino mas o seu oposto, desfigurado pelo pensamento. Kant não se curvou frente a esse engano, nem tampouco tornou absoluta a ruptura. Quando ele ensina, na passagem mais sublime da sua filosofia da história, que o antagonismo, vale dizer, o enredamento do progresso no mito, na submissão da dominação da natureza à própria natureza, enfim, o seu envolvimento no reino da servidão, por força da sua lei intrínseca tenderia para o reino da liberdade - mais tarde isso daria a astúcia da razão de Hegel -, então não diz menos do que isso: que as condições de possibilidade da reconciliação são o seu contrário, que a condição de possibilidade da liberdade é a servidão. A doutrina de Kant situa-se num ponto de passagem. Ela concebe a idéia dessa reconciliação como imanente ao "desenvolvimento" antagônico, na medida em que a deriva de um propósito que a natureza abrigaria para o homem. Por outro lado, a rigidez dogmática-racionalista com que se atribui tal propósito à natureza, como se esta mesma não fizesse parte do desenvolvimento e portanto não modificasse nisso seu próprio conceito, é o timbre dessa violência que o espírito identitário impõe à natureza. A estática do conceito de natureza é função do conceito dinâmico de razão; quanto mais do não-idêntico esta arrebata para si tanto mais a natureza se converte em caput mortuum residual, e é precisamente isto que facilita revesti-la daquelas qualidades de eternidade que consagram os seus fins. O "propósito" é impensável a menos que se atribua razão à própria natureza. Ainda no uso metafísico que Kant faz naquela passagem do conceito de natureza, pelo qual este se aproxima da coisa em si transcendente, a natureza permanece tão produto do espírito quanto na crítica da razão pura. Se conforme o programa .de Bacon o espírito subjugou a natureza ao identificá-la a si em todas as suas etapas, então na idéia kantiana de natureza ele projetou-se de volta sobre a natureza, na medida em que ela é absoluta e não meramente constituída. E o fez em prol de uma possibilidade de reconciliação na qual, contudo, em nada se abre mão do primado do sujeito. Na passagem em que Kant mais se aproxima do conceito de reconciliação, na idéia de que o antagonismo terminaria com a sua supressão, ocorre a sugestão de uma sociedade na qual a liberdade esteja "ligada a um poder irresistível". Mas até mesmo falar de poder já evoca a dialética do progresso. Se a persistente opressão sustava o progresso no ato mesmo de soltá-lo, enquanto emancipação da consciência ela também permitiu que se reconhecesse o antagonismo e a inteireza do ofuscamento o pressuposto para sua solução. O progresso gerado pelo sempre igual consiste em que em qualquer momento ele pode enfim começar. Se a figura do progredir da humanidade evoca a de um gigante que após sono imemorial lentamente se põe em movimento para depois desembestar, espezinhando tudo que lhe surja no caminho, ainda assim o seu rude despertar é o único potencial de emancipação; portanto de que não caiba a última palavra ao enredamento na natureza, no qual o próprio progresso se integra. Por séculos a questão do progresso carecia de sentido. Ela só se põe após a libertação da dinâmica da qual a idéia de progresso podia ser extrapolada. Se desde Agostinho o progresso é a transferência para a espécie humana do curso natural, tão mítico quanto a representação do curso que o destino determina para os astros, da vida dos indivíduos entre o nascimento e a morte, então a sua idéia é antimitológica por excelência, rompedora do circuito no qual se insere. Progresso significa: sair do encantamento, também daquele do progresso que é ele mesmo natureza, por uma humanidade cônscia da sua própria naturalidade e capaz de pôr termo à dominação que impõe à natureza, através da qual prossegue a da própria natureza. Nessa medida se poderia dizer que o progresso se dá no ponto em que termina.

Essa imagem do progresso está encerrada num conceito que atualmente é difamado por todos os lados, o de decadência. Os artistas do Jugenstill dela faziam profissão de fé. Isso certamente não era apenas porque desejavam exprimir sua própria situação histórica, que com freqüência lhes atribuía morbidez biológica. No ímpeto de eternizá-la na sua figura era vivo o sentimento - que os tornava fundamente afins aos filósofos da vida -de que nessa figura salvava-se neles a verdade da própria ruína e do mundo que ela parecia profetizar. Dificilmente alguém terá exprimido isso de modo mais conciso do que Peter Altenberg: "Mau trato de cavalos. Ele cessará, quando os transeuntes se tornarem tão irritáveis-decadentes que, fora de si, nesses casos irão ao crime e abaterão a tiros os cocheiros canalhas e covardes. Não suportar a visão de mau tratos a cavalos é a proeza dos neurastênicos e decadentes homens do futuro! Até agora eles ainda conseguiram ter a miserável força de não se preocuparem com tais assuntos alheios".(4) P. Alttenberg, Auswahl von Kari Kraus, Viena 1932, p. 122 sg. Assim entrou em colapso Nietzsche, que maldizia a compaixão, ao ver um cocheiro espancar seu cavalo. A decadência foi a miragem daquele progresso que ainda não começou. Por mais limitado e deliberadamente obstinado que fosse o ideal de uma completa inadaptação abnegadora do mundo, ele era a imagem reversa da falsa utilidade do negócio, em que tudo existe para um outro. O irracionalismo da décadence denunciava a não-razão da razão dominante. A felicidade cindida, arbitrária, privilegiada lhe é sagrada, porque só ela representa o escape, enquanto toda idéia linear da felicidade do todo, da maior felicidade possível para o maior segundo a fórmula liberalista, a cede por muito pouco ao aparato auto-mantenedor, que é o inimigo jurado da felicidade mesmo quando a proclama como seu alvo. Nesse espírito prenuncia-se em Altenberg a percepção de que a individuação extrema seja o guardião do lugar para a humanidade: "Pois na medida em que uma individualidade tem alguma justificativa ela só pode ser algo primeiro, algo precursor de qualquer desenvolvimento orgânico do humano como tal, que no entanto se acha no caminho natural do desenvolvimento possível para todos os homens! Ser o "único" não tem valor, é uma miserável brincadeira do destino com um indivíduo. Ser o "primeiro" é tudo! Ele sabe que a humanidade inteira o segue! Ele apenas foi mandado na frente por Deus! Algum dia todos os homens serão inteiramente finos, delicados, amorosos. A verdadeira individualidade consiste em antecipar sozinho aquilo que mais tarde todos deverão ser!"(5) p. Altenberg, op. cit., p. 137 sg. Somente através desse extremo de diferenciação, de individuação, pode-se pensar a humanidade, não como conceito superior abrangente.

Na interdição imposta pela teoria dialética tanto de Hegel quanto de Marx à utopia descabelada há a suspeita da sua traição. A decadência é o ponto nevrálgico no qual a consciência incorpora como tal a dialética do progresso. Quem vocifera contra a decadência ocupa inelutavelmente a posição do tabu sexual que o ritual antinômico da decadência trata de ferir. Na insistência naquele tabu, em proveito da unidade do eu dominador da natureza, ressoa a voz do progresso ofuscado e irrefletido. Ele pode contudo ser entregue por isso à própria irracionalidade, porque sempre projeta os meios de que se serve nos fins que mutila. Claro que a posição contrária, da decadência, permanece abstraía, e também disso advém a maldição do ridículo que caiu sobre ela. Ela confunde sem mais a particularidade da felicidade, à qual tem de aferrar-se, com a utopia, com a humanidade realizada, enquanto ela própria é desfigurada pela servidão, pelo privilégio, pela dominação de classe, que reconhece mas glorifica. A disponibilidade erótica que se liberaria conforme seu ideal seria ao mesmo tempo escravidão perpetuada, como na Salomé de Wilde.

A tendência rompedora do progresso não se reduz a ser o outro do movimento expansivo da dominação da natureza, sua negação abastrata, mas pela própria dominação da natureza suscita o desenvolvimento da razão. Só a razão, enquanto incorporação pelo sujeito do princípio da dominação, seria capaz de eliminar a dominação. A pressão da negatividade gera a possibilidade do desenredar-se. Por outro lado é a razão mesma que, no seu empenho em abandonar a natureza, lhe imprime o timbre daquilo que a torna temível. O conceito de progresso é dialético no rigoroso sentido não-metafórico do termo, de que a razão, seu órgão, é uma; de que nela não convivem justapostas uma camada dominadora da natureza e uma reconciliadora, mas que ambas compartilham todas as suas determinações. Cada momento apenas se desdobra no seu outro ao literalmente refletir-se, quando a razão aplica a razão a si própria, e nessa auto-limitação emancipa-se do demônio da identidade. A incomparável grandeza de Kant comprovou-se também nisso, de que manteve com firmeza a unidade da natureza mesmo no seu uso contraditório, o dominador da natureza - que na sua linguagem seria o teórico, mecânico-causal - e o da faculdade do juízo, que se achega reconciliadora à natureza. Não caberia a uma interpretação metafísica de Kant imputar-lhe uma ontologia latente mas sim ler a estrutura do conjunto do seu pensamento como uma dialética do iluminismo, que o dialético por excelência, Hegel, não percebe, porque apaga na consciência da razão unitária o seu limite e com isso desemboca na totalidade mítica, que ele tem por "reconciliada" na idéia absoluta. Progresso não se restringe, como na filosofia hegeliana da história, a circunscrever o âmbito daquilo que tem dialética, mas é dialético no próprio conceito, como as categorias da Ciência da Lógica. Dominação absoluta da natureza é queda absoluta na natureza, e ao mesmo tempo dela ainda escapa na auto-consciência, como se fora mito que desmitifica o mito. O protesto do sujeito, contudo, não mais poderia ser teórico, nem contemplativo. A concepção do primado da razão pura como algo que é, em si, separado da prática, também subjuga o sujeito, o reduz à condição de instrumento de propósitos. A auto-reflexão da razão que a salvasse seria contudo sua passagem à prática: ela se daria conta de ser urri momento da prática; ao invés de se ver como absoluta saberia que é um modo de comportamento. O impulso anti-mitológico do progresso não pode ser pensado sem o ato prático, que rompe a ilusão da autarquia do espírito. É por isso que o progresso não é algo a ser constatado na contemplação desinteressada.

Aqueles que com palavras novas sempre querem o mesmo - que não haja progresso - encontram nisso seu pretexto mais perigoso. Ele se nutre do sofisma de que, como até hoje não teria havido progresso, não haveria porque havê-lo. O triste retorno do sempre igual é apresentado como se fora uma mensagem do Ser, a ser captada e obedecida, quando na realidade o próprio ser ao qual se atribui essa mensagem é um criptograma do mito, do qual o ato de livrar-se seria um passo na liberdade.

Na tradução do desespero histórico para a norma a ser seguida ecoa novamente aquela repulsiva adaptação da doutrina teológica do pecado original, segundo a qual a corrupção da natureza humana legitimaria a dominação, o mal radical legitimaria o mal. Essa mentalidade tem um termo padrão para difamar de modo obscurantista a idéia do progresso: crença no progresso. O habitus daqueles que censuram o conceito de progresso como trivial e positivista é no mais das vezes positivista ele próprio. Para eles o curso do mundo, que sempre se opôs ao progresso no qual ao mesmo tempo consistia, é prova de que o plano cósmico não admitiria o progresso e de que cai em erro quem não o abandona. Com profundidade auto-complacente toma-se partido pelo horror e lança-se contra a idéia de progresso a carga de que aquilo em que os homens falharam lhes está ontologicamente negado; em nome da sua finitude e mortalidade seria seu dever assumir uma e outra. Caberia retrucar sobriamente a essa falsa veneração que de fato o progresso da pedra à bomba de megatons é um escárneo satânico, mas que é somente na época da bomba que se pode visar uma situação em que a violência desapareça de todo. Da mesma forma uma teoria do progresso precisa assimilar o que é acertado nas invectivas contra a crença no progresso, como antídoto para a mitologia de que sofre. De modo algum caberia a uma doutrina adulta do progresso negar-se a reconhecer a existência de uma doutrina trivial, só porque escarnecer desta aproveita à ideologia. Trivial, decerto, é menos a tão injuriada idéia oitocentista do progresso, apesar de Condorcet - em Rousseau a doutrina da perfectibilidade radical é associada à da corruptibilidade radical da natureza humana - do que a novecentista. Enquanto a classe burguesa se via oprimida, pelo menos quanto às formas políticas, ela se opunha à condição estacionária vigente com a palavra de ordem do progresso; disso seu pathos era o eco. Foi apenas quando a classe ocupou as posições de poder decisivas que o conceito progresso degenerou na ideologia da qual depois a vacuidade ideológica acusaria o século dezoito. O século dezenove atingiu o limite da sociedade burguesa; ela não podia realizar sua própria razão, seus próprios ideais de liberdade, de justiça e de imediaticidade humana sem que sua ordem fosse suprimida. Isso a obrigou a falsamente contabilizar as oportunidade perdidas como realizações. A acusação de mentira que os burgueses cultivados lançavam contra a crença no progresso dos incultos ou dos dirigentes operários era expres são da apologética burguesa. Verdade que, quando o imperialismo lançou suas sombras, a burguesia depressa desistiu daquela ideologia e a substituiu pela outra, desesperada, que frauda a negatividade, rejeitada pela crença no progresso, ao atribuir-lhe substância.

Aquele que esfrega as mãos com mal contida satisfação na lembrança do naufrágio do Titanic, porque o iceberg teria desferido o primeiro golpe contra a idéia de progresso, esquece ou esconde que esse desastre, de resto não determinado por qualquer destino, suscitou medidas que evitaram ao longo do meio século seguinte catástrofes naturais imprevistas na navegação marítima. Faz parte da dialética do progresso que os revezes históricos provocados pelo próprio princípio do progresso - o que seria mais progressivo do que a disputa da Blue Band? - também ofereçam as condições para que a humanidade encontre meios de evitá-los no futuro. O nexo de ofuscação do progresso remete para além de si mesmo. Pela sua mediação naquela outra ordem, em que a categoria de progresso enfim receberia o que lhe é devido, ele tem participação nisso, que os desastres provocados pelo progresso sempre serão afinal remediáveis pelas próprias forças deste e jamais pela restauração da situação anterior, que era vítima desse nexo. O progresso da dominação da natureza, que, na analogia de Benjamin, corre a contrapelo de todo progresso verdadeiro, que tivesse seu telos na redenção, não está contudo desprovido de toda esperança. Não é apenas no afastamento da desgraça última mas em toda a forma de alívio do sofrimento persistente que ambos os conceitos de progresso entram em contato.

Como corretivo da crença no progresso apresenta-se a crença na interioridade. Mas não é esta, não é a perfectibilidade dos homens que garante o progresso. Já em Agostinho a idéia de progresso - o nome ainda não lhe era acessível - é tão ambivalente quanto o exige o dogma da redenção consumada em face do mundo não redimido. Por um lado ele é histórico, conforme as seis eras do mundo que correspondem à periodização da vida humana; por outro lado não é deste mundo, é íntimo, místico nos termos do próprio Agostinho. A civitas terrena e a civitas dei seriam reinos invisíveis, e ninguém poderia dizer a qual deles cada vivente pertence; sobre isso decidiria a secreta escolha da graça, a mesma vontade divina que move a história conforme um plano. Já em Agostinho no entanto, como lembra Karl Heinz Haag, a internalização do progresso permite entregar o mundo aos poderes seculares e recomendar assim, como mais tarde Lutero, o cristianismo como apoio do Estado. A transcendência platônica, que em Agostinho se funde com a idéia cristã da história da salvação, permite ceder o mundo profano ao princípio que é pensado contra o progresso e, a despeito de toda a filosofia da história, reservar apenas ao juízo final a recomposição súbita da criação imperturbada. Esse timbre ideológico permaneceu impresso até hoje na interiorização do progresso. A ele opõe-se que a interioridade, enquanto historicamente produzida, é ela própria função do progresso ou do seu oposto. A natureza dos homens é apenas um dos momentos do progresso intramundano; e hoje certamente não o mais importante. O argumento de que não há progresso porque ele não ocorre no interior dos homens é falso, ao supor a sociedade no seu processo histórico como imediatamente humana, que tivesse sua lei naquilo que os próprios homens são. Mas está na essência da objetividade histórica que aquilo que os homens fizeram, as instituições no sentido mais amplo, ganhem independência frente a eles e se convertam em segunda natureza. Aquele sofisma propicia assim a tese da admirada ou então lamentada constância da natureza humana. O momento mítico do progresso intramundano consiste em que ele, como reconheceram Hegel e Marx, se dá por sobre as cabeças dos homens e os forma à sua imagem e semelhança; é tolice, portanto, contestar o progresso só por isso, por ele não dar inteiramente conta dos seus objetos, que são os sujeitos. Para deter aquilo que Schopenhauer denomina a roda que gira por si mesma seria certamente preciso aquele potencial humano que não é inteiramente absorvido pela necessidade do movimento histórico. O atual bloqueio da idéia de um progresso que transcenda seus limites advém da circunstância de que os momentos subjetivos de espontaneidade no processo histórico começama atrofiar-se. É ainda demasiado otimista, embora seja uma expressão de desespero, opor à onipotência social um conceito supostamente ontológico do subjetivamente espontâneo, à maneira dos existencialistas franceses; a subjetividade móvel não pode ser concebida fora da trama social. Seria ilusória-idealista a esperança de que ela fosse suficiente aqui e agora. Somente se nutre essa esperança numa hora histórica em que a esperança não oferece apoio visível. O decisionismo existencialista é somente o movimento reflexo em face da totalidade sem fissuras do espírito universal. Entretanto, também essa totalidade é aparência. As instituições esclerosadas, as relações de produção, não são pura e simplesmente o ser mas, ainda quando "omnipotentes", são algo feito pelos homens, revogável. Na sua relação com os sujeitos, dos quais provêm e que abarcam, elas mantêm-se antagônicas de ponta a ponta. Não somente o todo reclama sua mudança para não desaparecer como também lhe é impossível, por força da sua essência antagónica, forçar aquela sua plena identidade com os homens que é degustada nas utopias negativas. Por isso o progresso intramundano, adversário do outro, também está simultaneamente aberto para a sua possibilidade, por menos que consiga absorvê-la na sua própria lei.

A isso objeta-se de modo plausível que nas esferas espirituais, como na arte e especialmente no direito, na política ou na antropologia, não se dá um avanço simples como nas forças produtivas materiais. Da arte isso foi dito por Hegel e, de maneira extrema, por Jochman; a defasagem temporal nos movimentos da supra e da infraestrutura foi então enunciada como princípio por Marx na proposição de que a supraestrutura se move mais lentamente do que a base. Visivelmente não causou espanto a ninguém que o espírito, algo móvel e efêmero, fosse estacionário em confronto com a rudis indigestaque moles daquilo que também no contexto social, e não sem motivo, é chamado material. Analogamente a psicanálise ensinavam que o inconsciente, do qual também derivam a consciência e as formas objetivas do espírito, não teria história. É verdade que aquilo que numa classificação brutal é subsumido ao conceito de cultura, e que também inclui a consciência subjetiva, levanta um perene protesto contra a imutabilidade do meramente existente. Mas ela vê seu protesto dar-se perenemente em vão. A imutabilidade do todo, a dependência dos homens da necessidade vital, vale dizer das condições materiais da sua auto-preservacão, como que se oculta por trás da sua própria dinâmica, do crescimento da suposta riqueza social; isso beneficia a ideologia. É fácil no entanto prever que é frustrada a tentativa do espírito, do princípio propriamente dinâmico, de transcender esse estado de coisas, e isso satisfaz não menos a ideologia. A realidade produz a aparência de um movimento ascendente, e no fundo permanece igual. Na medida em que já não seja uma peça do aparato, o espírito que visa algo novo bate a cabeça em reiteradas tentativas desesperadas, como um inseto que voa contra a vidraça em busca da luz. O espírito não é o que altaneiro propõe ser - o outro, o transcendente imaculado - mas é também uma parcela da história natural. Como esta se apresenta na sociedade como dinâmica, desde os Eleatas e Platão o espírito presume ter acesso ao outro, aquilo que se substrai à civitas terrena, na figura do imutavelmente igual a si mesmo, e suas formas - primordialmente a lógica, que inere de modo latente a tudo que é do espírito - são ajustadas a isso. Nelas o espírito cai sob o poder do estacionário ao qual ele resiste mas do qual ainda assim é parcela. A imposição da realidade sobre o espírito o impede fazer o que, em oposição ao meramente existente, o seu próprio conceito quer: voar. Na condição de mais frágil e mais efêmero ele é tanto mais atingido pela exploração e mutilação. O representante daquilo que o progresso seria para além de todo progresso dá-se mal com aquele progresso que de fato ocorre, e isso por sua vez o honra; pela falta de cumplicidade com o progresso ele exprime o muito que este lhe importa. Sempre contudo que se pode julgar com bom fundamento que o espírito que existe para si progride, então ele próprio participa da dominação da natureza, precisamente porque, ao contrário do que supõe, ele não é separação mas está envolvido naquele processo vital do qual ele se afastou conforme sua própria lei. Todos os progressos nos domínios culturais concernem ao domínio do material, à técnica. O conteúdo de verdade do espírito não é indiferente a isso. Um quarteto de Mozart não é apenas melhor elaborado do que uma sinfonia da escola de Mannheim mas ocupa posição superior também no sentido enfático de elaboração melhor, mais justa. Por outro lado é problemático se com o desenvolvimento da técnica da perspectiva a pintura da alta Renascença realmente superou a supostamente primitiva; se não é no domínio imperfeito do material que se dá o melhor das obras de arte, como uma primícia, uma aparição súbita, que se dissolve tão logo se torna tecnicamente disponível. Progressos no domínio do material na arte de modo algum equivalem sem mais ao progresso da própria arte. Se contudo no início da Renascença o fundo dourado fosse defendido contra a perspectiva, isso não somente seria reacionário como objetivamente falso, pois iria de encontro ao exigido pela própria lógica intrínseca da obra; e é só historicamente que se desenvolve a complexidade do progresso. É possível que a la longue a qualidade e finalmente o conteúdo de verdade de configurações espirituais duráveis se imponha para além do seu caráter avançado em cada caso, mas também isso só graças a um processo progressivo de consciência. A idéia do caráter canônico da cultura grega, que ainda se manteve nos dialéticos Hegel e Marx, não é meramente um rudimento não resolvido da tradição centrada na idéia de um processo de formação, mas, com tudo que tem de duvidoso, é também resultado de uma percepção dialética. Para exprimir seu conteúdo a arte, e não só ela no domínio do espírito, inevitavelmente deve absorver o crescente domínio sobre a natureza. Mas, ao fazê-lo, acaba também conspirando contra o que busca dizer; afasta-se daquilo que a natureza antepõe, sem palavras e conceitos, ao crescente domínio sobre si. Isto pode ajudar a compreender porque a aparente continuidade dos assim chamados desenvolvimentos espirituais frequentemente se rompe, e isso em nome da palavra de ordem de retorno à natureza, por mais orientada por equívocos que esta seja. Deve-se isto a que, entre outros momentos, sobretudo sociais, a contradição no seu próprio desenvolvimento assusta o espírito e que ele busca, em vão decerto, corrigi-la mediante o apelo aquilo de que se alheiou, e que agora erroneamente toma por invariante.

Em lugar algum, talvez, o paradoxo de que haja um progresso e contudo não o haja é tão drástico como na filosofia, a sede mesma da idéia de progresso. Por mais concludente que fossem as passagens, mediadas pela crítica, de uma filosofia autêntica para outra, tão duvidosa continuaria igualmente sendo a afirmação de que teria havido um progresso entre elas: entre Platão e Aristóteles, entre Kant e Hegel, ou mesmo no conjunto de uma história universal da filosofia. Mas isto se deve tão pouco à invariância do suposto objeto filosófico, do verdadeiro Ser, cujo conceito dissolveu-se irrevogavelmente na história da filosofia, quanto caberia defender uma visão meramente estética da filosofia, que reservaria às imponentes arquiteturas de pensamento, ou mesmo aos agourentos grandes pensadores, posição superior à da verdade, quando esta de modo algum se identifica com a coesão imanente e rigor das filosofias. Inteiramente farisaico e falso seria o veredito de que os progressos da filosofia a desviariam daquilo que o jargão dos maus filósofos chama de sua aspiração: dessa forma a necessidade se tornaria a avalista do conteúdo de verdade. Antes, os inevitáveis e questionáveis progressos daquilo que tem por limite o seu tema, que é precisamente o limite, são postos pelo princípio da razão, sem o qual não se pode pensar a filosofia, porque não se pode pensar sem ele. Um conceito após outro cai no abismo do mítico. A filosofia vive em simbiose com a ciência; dela não se pode separar sem dogmatismo e sem finalmente recair na mitologia. Seu conteúdo consistiria entretanto em exprimir o que é desperdiçado ou cortado pela ciência, pela divisão do trabalho, pelas formas de reflexão do empreendimento da auto-preservação. Por isso o seu progresso simultaneamente a afasta daquilo rumo ao qual deveria progredir; a força da experiência, que ela registra, se estiola na medida em que afia o aparato científico. O movimento que ela realiza como um todo é a pura identidade consigo mesma do seu princípio. Ela sempre caminha também às custas daquilo que lhe caberia compeender e que só poderia compreender por força da auto-reflexão, através da qual ela abandona a posição da obstinada imediaticidade -em termos hegelianos, da filosofia da reflexão. Há burla no progresso filosófico, porque, quanto mais ele adensam os nexos de fundamentação, quanto mais sólidos e resistentes se tornam os enunciados, tanto mais ele se converte em pensamento identitário. Ele recobre os objetos com uma rede que, enquanto fecha as lacunas daquilo que ela própria não é, ousadamente se insinua no lugar da coisa mesma. No final entretanto a insuficiência do progresso da filosofia parece impor sua vingança a esse mesmo progresso, em conformidade com as tendências regressivas reais da sociedade. É meramente cômico supor um progresso de Hegel ao positivismo lógico, que desqualifique o primeiro como obscuro ou carente de sentido. Seja por cientificização tacanha, seja por renegar a razão, também a filosofia não está isenta de sucumbir àquele retrocesso, que certamente não é melhor do que a crença no progresso da qual maliciosamente se escarnece.

A convergência do progresso total com a negação do progresso na sociedade que criou o conceito, a burguesa, deriva do seu princípio, a troca. Ela é a figura racional da imutabilidade mítica. Na relação do igual com o igual de cada processo de troca cada ato anula o outro; o saldo não deixa resto. Se a troca foi justa então nada terá acontecido, fica-se onde se estava. Ao mesmo tempo a doutrina do progresso, que contesta o princípio, é verdadeira na medida em que a doutrina do igual pelo igual é mentira. De há muito, e não apenas na apropriação capitalista da mais-valia na troca da mercadoria força de trabalho pelos seus custos de reprodução, o contratante socialmente mais poderoso recebe mais do que o outro. Através dessa injustiça algo de novo ocorre na troca: o processo, que proclama sua própria estática, torna-se dinâmico. A verdade da ampliação destaca-se da mentira da igualdade. Os atos sociais devem suprimir-se reciprocamente no sistema global, e contudo não o fazem. Onde a sociedade burguesa satisfaz o conceito que sustenta sobre si própria ela não conhece progresso; onde o conhece ela atenta contra sua lei, que já abriga essa transgressão, e eterniza com a desigualdade a injustiça, que o progresso deveria transcender. No entanto, essa lei é ao mesmo tempo a condição da justiça possível. O cumprimento do reiteradamente rompido contrato de troca convergiria com sua abolição; a troca desapareceria se verdadeiramente fosse uma troca de iguais; o progresso verdadeiro seria, perante a troca, não apenas um outro mas também ela mesma, trazida para si. Assim pensavam os antípodas Marx e Nietzsche; Zaratustra postula que o homem será salvo da vingança. Pois a vingança é o paradigma mítico da troca; enquanto houver dominação por meio da troca então também dominará o mito. O cruzamento entre a imutabilidade e o novo na relação de troca manifesta-se nas imagens do progresso sob o industrialismo burguês. É a ele que se deve o efeito paradoxal nelas de que sequer algo ainda se converta em diferente, que elas envelheçam, porque por força da técnica a imutabilidade do princípio da troca eleva-se à dominação da repetição no âmbito da produção. O próprio processo vital paraliza-se na expressão do imutável: daí o choque das fotografias do século XIX e do início deste. Explode o contra-senso de que algo ocorra onde o fenômeno diz que nada mais pode ocorrer; seu semblante torna-se horrível. No horror o semblante do sistema condensa-se na aparência, de modo que, mais o sistema se expande tanto mais se enrijece naquilo que sempre foi. Aquilo que Benjamin denominou dialética em repouso certamente é menos um retrocesso platonizante do que a tentativa de tornar filosoficamente consciente tal paradoxo. Imagens dialéticas: elas são os arquétipos objetivos daquela unidade antagônica de repouso e movimento que define o conceito burguês mais geral de progresso.

Tanto Hegel quanto Marx são testemunhas de que mesmo a visão dialética do progresso requer correções. A dinâmica de que falavam não é pensada como dinâmica pura e simples mas na unidade com seu contrário, algo fixo sem o qual não há como ler a dinâmica nos fenômenos. Marx, que criticou como fetichistas todas as concepções da naturalidade da sociedade, igualmente rejeitou, em oposição ao programa de Gotha lassal-leano, a absolutização da dinâmica na doutrina do trabalho como a única fonte da riqueza social; e ele admitiu a possibilidade da recaída na barbárie. Será por mais do que mero acaso que Hegel, apesar da famosa definição da história, não contenha uma teoria explícita do progresso, e que Marx parece mesmo ter evitando a palavra, também na sempre citada passagem programática da introdução à Crítica da Economia Política. O tabu dialético sobre fetiches conceituais, herança do velho iluminismo anti-mitológico na fase da sua auto-reflexão, estende-se também à categoria que outrora foi diluída pela reificação, o progresso, que ilude tão logo usurpa o todo como momento isolado. A. fetichização do progresso reforça a sua particularidade, sua limitação às técnicas. Se o progresso verdadeiramente se assenhorasse do todo, cujo conceito traz as marcas da sua violência, então ele não mais seria totalitário. Ele não é uma categoria conclusiva; ele quer obstar o triunfo do mal radical, e não triunfar sobre si próprio. Pode-se conceber uma situação em que a categoria perca seu sentido e que no entanto não seja aquela da regressão universal, que hoje se alia ao progresso. Então o progresso se transformaria na resistência contra o sempre presente perigo da recaída. O progresso é essa resistência em todos os graus, não o abandonar-se na gradação.


Notas de rodapé:

(1) I. Kant, "Idee einer Allgemeinen Geschichte in Weltburgerlicher Absicht" (foi usada a tradução de Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra, Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Ed. Brasiliense, SP, 1986, p. 14-15). (retornar ao texto)

(2) Walter Benjamin, Schriften, Frankfurt am Main, 1955, vol. 1, p. 502. (retornar ao texto)

(3) Walter Benjamin, op. cit., p. 494. (retornar ao texto)

(4) P. Alttenberg, Auswahl von Kari Kraus, Viena 1932, p. 122 sg. (retornar ao texto)

(5) P. Altenberg, op. cit., p. 137 sg. (retornar ao texto)

Inclusão: 08/11/2021